Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
203/10.0TBMTR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDO SAMÕES
Descritores: CONTRATO DE CESSÃO PARA EXPLORAÇÃO TURÍSTICA
OBRAS IMPOSTAS PELA AUTORIDADE ADMINISTRATIVA
PAGAMENTO DE RENDAS
EXCEPÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO DO CONTRATO
Nº do Documento: RP20140709203/10.0TBMTR.P1
Data do Acordão: 07/09/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - As obras impostas pela autoridade administrativa competente, na vigência de um contrato de cessão para exploração turística, visando o incremento de maior segurança à fracção cedida e às partes comuns do prédio em que ela se integra, como condicionantes da continuação do exercício dessa actividade no local arrendado, devem ser classificadas como simples obras de beneficiação, nos termos do n.º 4 do art.º 11.º do RAU, por não se enquadrarem nos conceitos de obras de conservação ordinária, nem extraordinária, a que aludem os n.ºs 2 e 3 do mesmo artigo.
II - Pela sua execução, é unicamente responsável o locatário quando as mesmas não tenham sido discriminadas no escrito que titula o respectivo contrato, como sucede no presente caso.
III - O locatário não pode recusar o pagamento das rendas devidas com fundamento na realização de tais obras, por inexistir incumprimento do locador e não poder operar a excepção de não cumprimento do contrato.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 203/10.0TBMTR.P1
Do Tribunal Judicial de Montalegre.

Relator: Fernando Samões
1.º Adjunto: Dr. Vieira e Cunha
2.º Adjunto: Dr.ª Maria Eiró
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto – 2.ª Secção:

I. Relatório

B…, residente na Rua …, n.º ., …, freguesia …, concelho de Montalegre, instaurou, em 6/9/2010, a presente acção com processo sumário contra C…, SA, com sede no D…, …, …, Portimão, pedindo que a ré seja condenada a pagar-lhe a quantia de 9.867,02 €, correspondente ao somatório das contrapartidas devidas pelos anos de 2005, 2006, 2007 e 2008, acrescida de juros moratórios à taxa legal, desde 1 de Novembro de 2008 e até efectivo e integral pagamento.
Para tanto, alegou, em resumo, que:
Na qualidade de proprietário, em 1998, celebrou com a ré um contrato de cessão para exploração turística do seu apartamento n.º …, correspondente à fracção autónoma “ABR” do edifício denominado D…, sito na referida …;
No âmbito desse contrato, a ré tem estado, desde 1/1/99, na detenção plena e exclusiva do referido apartamento, promovendo a respectiva exploração turística e fazendo seus os proventos proporcionados por essa exploração;
Como contrapartida pela referida cedência, a ré obrigou-se a pagar-lhe as importâncias indicadas no respectivo contrato;
A ré pagou as contrapartidas acordadas até 2004, mas não efectuou qualquer pagamento a partir de 2005, não obstante continuar a explorar o aludido apartamento.

A ré contestou, por impugnação e excepção, concluindo pela improcedência da acção, bem como deduziu reconvenção pedindo que “o autor e sua esposa” fossem condenados a pagarem-lhe a quantia de 4.910,18 €.
Para o efeito, alegou, em síntese, que, em virtude da alteração da legislação e da inexistência das novas condições legalmente exigidas, após vistoria da entidade competente, a ré encerrou o estabelecimento turístico, onde se insere o referido apartamento, em Novembro de 2004, não tendo mais reaberto, não obstante ter feito obras de adaptação às novas exigências da responsabilidade do autor no montante peticionado.

O autor respondeu negando qualquer responsabilidade na execução das obras, alegando que a própria ré lhe afirmou que elas apenas justificariam o não pagamento da anuidade de 2005 e concluindo pela improcedência da reconvenção e pela procedência da acção, bem como pela condenação da ré como litigante de má fé.

Na audiência preliminar, foi a ré/reconvinte convidada a requerer a intervenção principal provocada da esposa do autor, E…, face ao pedido reconvencional contra ela deduzido, o que fez, tendo a chamada sido citada e apresentado articulado que foi mandado desentranhar.
Admitida a reconvenção e proferido despacho saneador tabelar, foi feita a condensação, com selecção dos factos assentes e organização da base instrutória, de que não houve reclamações.
Após várias vicissitudes para aqui irrelevantes, teve lugar a audiência de discussão e julgamento, em 26/11/2013, após o que, em 7/1/2014, foi elaborada douta sentença que decidiu:
“a) julgar a acção totalmente procedente, por provada e, em consequência, condenar a ré C…, S.A. no pagamento ao autor B… da quantia de 9.867,02€ (nove mil, oitocentos e sessenta e sete euros e dois cêntimos), acrescida dos juros de mora à taxa legal vencidos desde 1 de Novembro de 2008 e vincendos até efectivo e integral pagamento;
b) julgar totalmente improcedente, por não provado, o pedido reconvencional formulado pela ré C…, S.A. e, em consequência, dele absolver B… e E….”

Inconformada com o assim decidido, a ré interpôs recurso de apelação para este Tribunal e apresentou a sua alegação com as seguintes conclusões:
“a) Do julgamento da questão, e para o que importa neste recurso, resultou provado que:
- A recorrente e os recorridos celebraram um contrato através do qual estes últimos entregaram a sua fracção autónoma para exploração turística.
- Neste contrato ficou convencionado que os recorridos se obrigaram a manter constantemente apta e à disposição da recorrente a fracção que cederam de exploração, de modo a que a recorrente não pudesse ser, de qualquer forma, perturbada ou prejudicada no exercício da sua indústria, e ficou ainda convencionado que, caso a recorrente não pudesse dispor da fracção autónoma por causa ou facto imputável ou da responsabilidade dos recorridos, cessaria a obrigação do pagar as rendas.
- Em 4 de Março de 2004, a Direcção-Geral do Turismo ordenou o encerramento do empreendimento por as fracções autónomas terem deixado de reunir as condições legais relativas à segurança das pessoas, nomeadamente as que respeitam o uso de aparelhos a gás (fogão e esquentador) no seu interior.
- A recorrente encerrou o estabelecimento turístico em Novembro de 2004, entregou os projectos de segurança para aprovação e realizou as obras previstas neste projecto.
- No âmbito destas obras a recorrente, no interior da fracção dos recorridos, substituiu os aparelhos a gás (fogão e esquentador) por aparelhos eléctricos, alterou as respectivas instalações eléctricas, para que pudessem suportar a carga de consumo dos novos electrodomésticos, instalou o sistema de detecção automático de fumos e incêndios, e colocou molas anti-incêndio nas portas de entrada do apartamento.
- A recorrente realizou estas obras entre o final do mês de Novembro de 2004 e o final mês de Novembro 2005, e, em 13 de Janeiro de 2006, requereu à Direcção-Geral do Turismo a realização de vistoria ao empreendimento.
- Esta vistoria não foi realizada até ao final de 2008 e, por isto, não foi emitida a autorização para a abertura do empreendimento.
b) Pese embora estes factos, a recorrente foi condenada no pagamento das rendas previstas no contrato para os anos de 2006, 2007 e 2008, apesar de, como resulta dos autos, não ter podido usar os apartamentos.
a) A ordem de encerramento não deixa dúvidas quanto ao facto da fracção autónoma ter deixado de reunir as condições para ser usada, e a matéria de facto julgada provada demonstra que a recorrente iniciou e conclui as obras relativas ao projecto de segurança do imóvel e que, logo a seguir, pediu a vistoria e nova licença para recomeçar a sua actividade, ou seja, fez tudo o que estava ao seu alcance para reabrir o estabelecimento.
b) Por razões a que a recorrente é absolutamente alheia, a vistoria às fracções autónomas nunca foi realizada e a fracção autónoma dos recorridos não obteve a nova licença para poder ser usada.
c) Isto significa que a fracção autónoma não pode ser usada porque não possuía licença para isso, e esta qualidade da fracção autónoma tem de ser imputada aos proprietários, porque eram estes últimos que tinham a obrigação de manter a coisa em estado de poder cumprir o objecto de negócio.
d) Esta obrigação advém do contrato que as partes assinaram e não pode ser afastada pelas normas legais que, na falta de convenção das partes, regulam esta matéria.
e) É por estas razões a recorrente não tem a obrigação de pagar as rendas em que foi condenada.
Termos em que o presente recurso deve ser julgado provado e procedente, com a revogação da parte douta sentença que condenou no pagamento das rendas e com a consequente absolvição da recorrente.
Com o que se fará a habitual justiça desse Venerando tribunal, Justiça !!!”

O autor e a chamada contra-alegaram pugnando pela confirmação da sentença recorrida.

O recurso foi admitido como apelação, com subida nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Remetido o processo a este Tribunal, foi aquele considerado devidamente admitido, com o efeito legalmente previsto.

Tudo visto, cumpre apreciar e decidir o mérito do presente recurso.
Sabido que o seu objecto e âmbito estão delimitados pelas conclusões da recorrente [cfr. art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, ambos do NCPC, aqui aplicável, visto que se trata de uma sentença proferida após a data da sua entrada em vigor, numa acção instaurada depois de 1/1/2008 (cfr. art.ºs 5.º, n.º 1 e 8.º, ambos da Lei n.º 41/2013, de 26/6)], não podendo este Tribunal de 2.ª instância conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excepcionais que aqui não relevam, e tendo presente que se apreciam questões e não razões, a única questão que importa dirimir consiste em saber se a ré não é responsável pelo pagamento das rendas em que foi condenada, relativas aos anos de 2005 a 2008.

II. Fundamentação

1. De facto

Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos:

1. Encontra-se registada, em nome de E… e B… a aquisição por compra do apartamento …, correspondente à fracção ABR do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Portimão sob o número 4674/19930402-ABR (cfr. ap. 11 de 1993/06/16).
2. No ano de 1998, por escrito, e sob a epígrafe “Renovação de Contrato de Cessão de Apartamento para Exploração Turística”, o autor, como primeiro outorgante e a ré, como segunda outorgante, acordaram o seguinte:
“1.ª
O primeiro Outorgante é dono e legítimo possuidor do apartamento n.º 814 fracção autónoma “ABR”, do Edifício denominado D…, sito em … – …, em Portimão.
2.ª
A Segunda Outorgante, que substitui a anterior sociedade detentora do direito na exploração turística da fracção autónoma pertencente ao primeiro Outorgante, é dona e legítima proprietária do empreendimento turístico denominado D….
3.ª
Através do presente contrato, o primeiro Outorgante, pelo prazo de dez anos, com início no dia 1 de Janeiro de 1999 e termo no dia 31 de Dezembro de 2008, cede à Segunda Outorgante o direito de explorar o apartamento n.º 814 – fracção autónoma “ABR”, do edifício denominado D…, sito em … – …, em Portimão, da qual é proprietário.
4.ª
O presente contrato renova-se automaticamente se qualquer das partes, através de carta registada com aviso de recepção, expedida até seis meses antes do seu termo, não manifestar à outra a vontade de o não renovar.
5.ª
a) A título de retribuição pela cedência da identificada fracção, a Segunda Outorgante pagará ao primeiro Outorgante a quantia de 776.000$00 (setecentos e setenta e seis mil escudos) no ano de 1999, no ano 2000 a quantia de 830.000$00 (oitocentos e trinta mil escudos), no ano de 2001 a quantia de 888.000$00 (oitocentos e oitenta e oito mil escudos) e, nos anos seguintes, a importância que resulta da operação aritmética indicada na alínea b) desta cláusula, retribuição esta que será actualizada todos os anos segundo o coeficiente de actualização indicado pelo regulamento anual do Governo relativo aos arrendamentos comerciais.
b) A retribuição a pagar no ano 2002 será a quantia que resultar da soma da importância de 450.000$00 (quatrocentos e cinquenta mil escudos) com o valor relativo ao coeficiente de actualização indicado na clausula anterior relativo ao aumento das rendas comerciais publicados em 1999, 2000 e 2001, para vigorarem nos anos 2000, 2001 e 2002.
6.ª
A retribuição anual, acrescida das respectivas actualizações, é paga pela Segunda Outorgante ao primeiro outorgante durante o mê de Outubro do ano a que respeita.
7.ª
A segunda Outorgante obriga-se a conservar e a restituir no fim do contrato todos os móveis, utensílios e máquinas que equipam a fracção objecto deste contrato desde o início da exploração turística de que a mesma é objecto, e que constam do inventário anexo ao anterior contrato, inventário que também faz parte integrante do presente contrato, não sendo porém a segunda Outorgante responsável pelo desgaste próprio da norma e prudente utilização do referido recheio.
8.ª
O segundo Outorgante é responsável pelas despesas da fracção autónoma objecto deste contrato relativas à sua limpeza, aos consumos de água, de electricidade, de gás e de telefone, e é ainda responsável pelo pagamento da regular prestação de condomínio e pelo pagamento das regulares despesas de conservação do recheio e da fracção autónoma.
9.ª
O primeiro Outorgante, durante a vigência deste contrato, obriga-se a manter constantemente apta e à disposição da segunda Outorgante a fracção autónoma que cede de exploração de modo a que esta última não possa ser, de qualquer forma, perturbada ou prejudicada no exercício da sua indústria.
10.ª
A segunda Outorgante, caso não possa dispor da fracção autónoma objecto deste contrato por causa ou facto imputável ao primeiro outorgante, ou da responsabilidade deste último, cessará o pagamento da retribuição, na proporção do tempo em que não puder dispor da fracção autónoma para o exercício da sua indústria, retomando o pagamento logo que cesse o facto ou causa de impedimento do uso da fracção.
11.ª
Em caso de incumprimento por parte da segunda Outorgante, designadamente por falta de pagamento da retribuição anual e respectivas actualizações, o primeiro Outorgante poderá proceder à resolução do presente contrato, sem prejuízo das indemnizações a que tiver direito. (…)” - cfr. documento de fls.7 e 8, cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido.
3. No âmbito do acordo mencionado em 2., a ré tem estado desde 1 de Janeiro de 1999, na detenção plena e exclusiva do indicado apartamento, promovendo a respectiva exploração turística e fazendo seus os proventos proporcionados por essa exploração.
4. Até ao ano de 2004, inclusive, a ré liquidou ao autor as contrapartidas pecuniárias a que se obrigara nos termos constantes da 5.ª cláusula do acordo mencionado em 2.
5. A partir do ano de 2005, inclusive, a ré não mais efectuou qualquer pagamento ao autor.
6. A ré encerrou o estabelecimento turístico em Novembro de 2004.
7. Logo após o referido em 6., a ré informou o autor do que se estava a passar e marcou reuniões para explicar o que havia sucedido, a razão do encerramento, as diligências que realizou para obstar ao encerramento e quais as soluções para o problema.
8. O autor esteve presente numa dessas reuniões e foi informado da situação.
9. No ano de 2007, a ré fez outra comunicação ao autor, informando-o da realização de uma nova reunião com a finalidade de resolver “o problema do encerramento do Bloco III”.
10. Por decisão de 04.03.2004, a Direcção Geral do Turismo ordenou o encerramento onde se situa o apartamento referido no acordo mencionado em 2.
11. Após o referido em 6., a ré entregou, imediatamente, os projectos de segurança relativos ao empreendimento às autoridades administrativas competentes, para que os aprovassem.
12. No âmbito do referido projecto, a ré, nas zonas comuns do edifício, construiu uma escada de socorro exterior.
13. (…) instalou portas corta-fogo.
14. (…) uma central de alarme contra incêndios.
15. (…) um sistema automático de detecção de fumos e bocas de incêndio em cada um dos doze andares das dez torres do edifício onde se situam as unidades de alojamento.
16. No interior de cada uma das fracções substituiu os aparelhos a gás (fogão e esquentador) por aparelhos eléctricos.
17. (…) alterou as respectivas instalações eléctricas.
18. (…) e instalou o sistema de detecção automático de fumos e incêndios.
19. O encerramento do estabelecimento foi motivado pela falta das condições legais do imóvel e unidades de alojamento para o exercício da indústria hoteleira.
20. As obras supra referidas tiveram a duração de um ano (do mês de Novembro de 2004 ao mês de Novembro de 2005).
21. Após a conclusão dos trabalhos e a preparação do imóvel, em início de Janeiro de 2006, a ré requereu à Direcção Geral do Turismo autorização de abertura.
22. (…) e até final do ano de 2008, essa autorização não foi concedida.
23. A reposição da fracção autónoma dos reconvindos em condições de ser usada no exercício da actividade turística custou à ré/reconvinte a quantia de € 2940,00, acrescida de IVA, à taxa de 21%.
24. A quota-parte dos autores pela instalação do sistema de segurança nas zonas comuns do imóvel ascende a € 1.118,00, acrescidos de IVA, à taxa de 21%.
25. A ré informou o autor e os outros proprietários em situação semelhante que o pagamento da anuidade de 2006 seria feito.
26. (…) e para o efeito, convocaria o autor para uma reunião a realizar brevemente.

2. De direito

Os factos acabados de transcrever não foram impugnados em sede de recurso, nem é caso para os alterar oficiosamente, pelo que se consideram definitivamente assentes.
Resta aplicar-lhes o direito, tendo em vista a resolução da supramencionada questão.
É pacífico que estamos perante um contrato de locação com o fim específico de exploração turística, portanto com fim não habitacional, celebrado em 1998 entre o autor e a ré, ao qual são aplicáveis as normas do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo DL n.º 321-B/90, de 15/10, e subsequentes alterações.
É o que resulta dos factos provados, designadamente do n.º 2, e do disposto nos art.ºs 12.º e 1022.º, ambos do Código Civil, nos art.ºs 1.º e 2.º do citado DL n.º 321-B/90 e no art.º 59.º, n.º 1 da Lei n.º 6/2006, de 27/2, que aprovou o Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU).
Com efeito, apesar deste normativo mandar aplicar o NRAU não só aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, mas também “às relações constituídas que subsistam nessa data”, devem considerar-se excluídos dele os casos, como o presente, em que já tenham sido produzidos efeitos ao abrigo da lei anterior.
De referir que é fundamental, por força do princípio da não retroactividade, evitar a valoração ex novo de factos passados, cujos efeitos se fixaram ou cristalizaram (Baptista Machado, Sobre a Aplicação no Tempo do Novo Código Civil, pág. 326), razão pela qual a 2.ª parte do n.º 1 do citado art.º 12.º autonomiza as situações jurídicas já constituídas aquando da entrada em vigor da lei nova, determinando que, mesmo que a esta seja atribuída eficácia retroactiva, se presumem ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que se destina a regular (cfr. Acórdãos desta Relação de 4/5/95, publicado na CJ, III, pág. 198, e de 25/5/2010, proferido no processo n.º 9630/08.1TBMAI-A.P1, acessível em www.dgsi.pt).
Assim foi entendido na sentença recorrida, na sequência, aliás, do acórdão desta Relação de 31/5/2010, proferido no processo n.º 379/08.6TBVPA.P1, cuja cópia foi junta aos autos, constando de fls. 55 a 75, também sumariado em www.trp.pt, em que foi relator o actual Conselheiro Fernandes do Vale, e que versou sobre situação idêntica à destes autos, tendo por fundamento contrato praticamente igual, divergindo só no apartamento e nos locadores[1].
Com esse entendimento se conformaram as partes, pelo que não se impõem mais considerações e delongas sobre este assunto.
Aqui e agora, importa apenas indagar sobre a responsabilidade da ré pelo pagamento das rendas pela cedência do locado.
É sabido que o pagamento da renda pelo locatário constitui uma obrigação como contrapartida do gozo da coisa cedida pelo locador, à qual se vinculou com a celebração do contrato de locação e que se mantém enquanto durar, sendo um dos seus elementos essenciais (cfr. art.ºs 397.º, 1022.º e 1038.º, al. a), todos do Código Civil).
A recorrente, sem pôr em causa a subsistência de tal contrato, limitou-se a negar a obrigação do pagamento das rendas pedidas e em que foi condenada, com fundamento na realização de obras no locado para adaptação às novas exigências da exploração turística, que entende serem da responsabilidade do senhorio, invocando, deste modo, segundo cremos, a excepção de não cumprimento do contrato, apesar de não indicar a respectiva norma jurídica ou qualquer outra como sendo violada, em manifesto desrespeito pelo disposto no art.º 639.º, n.º 2, do CPC.
Relativamente a esta excepção, impõe-se proceder, desde já, a algumas precisões, servindo-nos das considerações feitas noutras ocasiões, designadamente no recente acórdão de 17/6/2014, proferido no processo n.º 473/11.6TBLSD.P1, ainda que no âmbito do contrato de empreitada, mas aqui aplicáveis no que se refere à apreciação genérica e definição do seu conceito.
Assim:
A excepção de não cumprimento do contrato (exceptio non adimpleti contractus) encontra-se prevista no art.º 428.º do Código Civil, cujo n.º 1 estabelece que, “se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto outro não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo”.
Esta excepção tem sido qualificada uniformemente como excepção dilatória de direito material. É excepção de direito material, porque fundada em razões de direito substantivo; é dilatória, porque não exclui definitivamente o direito do autor, apenas o paralisa temporariamente.
Como escreveu Almeida e Costa, “analisa-se a «exceptio» na faculdade atribuída a qualquer das partes de um contrato bilateral, em que não haja prazos diferentes para a realização das prestações, de recusar a prestação a que se acha adstrita, enquanto a contraparte não efectuar o que lhe compete ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo”[2].
Ou como refere José João Abrantes[3], “a excepção de contrato não cumprido tem por função obstar temporariamente ao exercício da pretensão do contraente que reclama a execução da obrigação de que é credor sem, por sua vez, cumprir a obrigação correspectiva a seu cargo ou sem, pelo menos, oferecer o cumprimento simultâneo”.
“É pois uma causa justificativa de incumprimento das obrigações, que se traduz numa simples recusa provisória de cumprir a sua obrigação por parte de quem alega”.
“O exercício da excepção não extingue o direito de crédito de que é titular o outro contraente. Apenas o neutraliza ou, melhor, apenas o paralisa temporariamente”.
“A excepção mostra-se assim como um meio de defesa que tende para a execução plena do contrato e não para a sua destruição”.
“Traduz-se esse direito em que o excipiens poderá legitimamente recusar a sua prestação, sem com isso incorrer em mora”.
Deste modo, o excipiens não nega o direito do autor ao cumprimento da prestação nem enjeita o dever de a cumprir, pretendendo, com a sua invocação, somente o efeito dilatório de realizar a sua prestação no momento (ulterior) em que receba a contraprestação a que tem direito. Neste caso, a recusa do cumprimento é lícita, o que impede a aplicação do regime da mora (art.º 804.º e seguintes) e, naturalmente, o do incumprimento definitivo (art.º 808.º), mesmo que tenha havido interpelação da outra parte. Se as duas obrigações forem puras, a excepção de não cumprimento é, assim, sempre invocável, nem sequer podendo ser afastada mediante a prestação de garantias (art.º 428.º, n.º 2).
O mesmo regime se aplica aos casos em que houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, podendo recorrer à excepção de não cumprimento o contraente que estiver obrigado a cumprir em segundo lugar. Assim, a excepção pode ser oposta ainda que haja vencimentos diferentes, desde que o seja pelo contraente cuja prestação deva ser feita depois da do outro contraente, apenas não podendo ser oposta pelo contraente que devia cumprir primeiro[4].
Esclarecendo melhor:
“Tendo havido, porém, estipulação de prazos certos diferentes para o cumprimento das prestações, um dos contraentes obriga-se a cumprir em primeiro lugar, o que implica uma renúncia da sua parte à excepção de não cumprimento do contrato e a consequente constituição em mora pelo decurso do prazo [artigo 805.º, n.º 2, alínea a)].
Apesar da redacção do artigo 428.º, n.º 1, naturalmente que nesta hipótese o contraente que esteja obrigado a cumprir em segundo lugar continua a poder usar da excepção de não cumprimento, não entrando em mora se não realizar a sua prestação enquanto a contraprestação não for realizada.
A limitação constante da parte inicial do artigo 428.º, n.º 1, aplica-se, por isso, apenas ao contraente que esteja obrigado a cumprir em primeiro lugar, continuando a ser admissível para o outro o recurso à excepção de não cumprimento”[5].
Neste mesmo sentido, ensinam Pires de Lima e Antunes Varela que, “mesmo estando o cumprimento das obrigações sujeito a prazos diferentes, a exceptio poderá ser sempre invocada pelo contraente cuja prestação deva ser efectuada depois da do outro, apenas não podendo ser oposta pelo contraente que devia cumprir primeiro”[6].
Nuno Manuel Pinto Oliveira defende também que o art.º 428.º “deverá aplicar-se por interpretação declarativa aos casos em que as duas prestações devam ser realizadas em simultâneo e deverá aplicar-se por interpretação extensiva aos casos em que o contraente que quer invocar a excepção é aquele que está obrigado a cumprir em segundo lugar”[7].
Esta excepção também se aplica às situações de cumprimento defeituoso ou de incumprimento parcial da prestação contratual, assumindo-se, então, como exceptio non rite adimpleti contractus[8], podendo, consequentemente, o contraente recusar a prestação enquanto a outra não for completada ou rectificada. “Neste caso, estamos perante uma verdadeira excepção em sentido técnico, correspondendo a um meio de defesa que tende para a execução plena do contrato e não para a sua destruição – a prestação devida não é negada em termos definitivos, ficando, apenas, suspensa, no que diverge da resolução por incumprimento”[9].
Nestes casos, como alerta Almeida Costa, há que ter presente o princípio da boa fé no cumprimento dos contratos, consagrado no artigo 762.º, n.º 2, do Código Civil e a possibilidade do recurso ao abuso do direito, nos termos do artigo 334.º, donde “resulta a exigência de uma apreciação da gravidade da falta, que não pode mostrar-se insignificante, bem como se impõe a regra da adequação ou proporcionalidade entre a ofensa do direito do excipiente e o exercício da excepção”[10].
Assim, são pressupostos do exercício da aludida excepção: a existência de um contrato bilateral; o não cumprimento ou não oferecimento do cumprimento simultâneo da contraprestação ou o seu cumprimento defeituoso; e não contrariedade à boa-fé[11].
Dito isto, vejamos o regime das obras vigente na data em que as mesmas foram realizadas.
Sob a epígrafe de “Tipo de obras”, o art.º 11.º do RAU dispunha:
1 - Nos prédios urbanos, e para efeitos do presente diploma, podem ter lugar obras de conservação ordinária, obras de conservação extraordinária e obras de beneficiação.
2 - São obras de conservação ordinária;
a) A reparação e limpeza geral do prédio e suas dependências;
b) As obras impostas pela Administração Pública, nos termos da lei geral ou local aplicável, e que visem conferir ao prédio as características apresentadas aquando da concessão da licença de utilização;
c) Em geral, as obras destinadas a manter o prédio nas condições requeridas pelo fim do contrato e existentes à data da sua celebração.
3 - São obras de conservação extraordinária as ocasionadas por defeito de construção do prédio ou por caso fortuito ou de força maior, e, em geral, as que não sendo imputadas a acções ou omissões ilícitas perpetradas pelo senhorio, ultrapassem, no ano em que se tornarem necessárias, dois terços do rendimento líquido desse mesmo ano.
4 - São obras de beneficiação todas as que não estejam abrangidas nos dois números anteriores.”
Por sua vez, o imediato art.º 12.º preceituava:
“1 - As obras de conservação ordinária estão a cargo do senhorio, sem prejuízo do disposto no artigo 1043º do Código Civil e nos artigos 4º e 120º do presente diploma.
2 - …”
E o art.º 13.º seguinte estabelecia, no n.º 1, que “As obras de conservação extraordinária e de beneficiação ficam a cargo do senhorio quando, nos termos das leis administrativas em vigor, a sua execução lhe seja ordenada pela câmara municipal competente ou quando haja acordo escrito das partes no sentido da sua realização, com discriminação das obras a efectuar.”
O ressalvado art.º 4.º previa as deteriorações lícitas, dispondo no n.º 1 que “É lícito ao arrendatário realizar pequenas deteriorações no prédio arrendado, quando elas se tornem necessárias para assegurar o seu conforto ou comodidade.”
Finalmente, o art.º 120.º estatuía:
“1 - As partes podem convencionar, por escrito, que qualquer dos tipos de obras a que se refere o artigo 11º do presente diploma fique, total ou parcialmente, a cargo do arrendatário.
2 - A realização de obras determinadas pelas autoridades administrativas em função do fim específico constante do contrato, quando devam ser suportadas pelo arrendatário, não carece de autorização do senhorio.
3 - Salvo cláusula em contrário, quando o arrendatário suporte o custo das obras, deve o senhorio indemnizá-lo, no termo do contrato, de acordo com as regras do enriquecimento sem causa.”
As obras realizadas, supra referidas nos n.ºs 12 a 18 dos factos provados, não podem ser classificadas como obras de conservação ordinária, nem de conservação extraordinária, mas antes como simples obras de beneficiação, nos termos do n.º 4 do art.º 11.º do RAU, visto que não são susceptíveis de serem enquadradas nos tipos de obras a que aludem os n.ºs 2 e 3 do mesmo artigo, pelas quais é unicamente responsável a locatária, aqui ré/recorrente.
Assim foi entendido nos casos que conhecemos, já decididos, em que estiveram em causa, precisamente, as mesmas obras feitas em zonas comuns do prédio e obras idênticas feitas noutras fracções do mesmo edifício, tendo por base contratos com clausulado idêntico, ou quase igual, ao que foi invocado nestes autos.
Referimo-nos aos acórdãos deste Tribunal de 31/5/2010, proferido no processo n.º 379/08.6TBVPA.P1, já referido, que cita outro de 3/12/2009, lavrado no processo n.º 4091/07.5TBPTM.P1, e de 5/3/2013, proferido no processo n.º 417/10.2TBVPA.P1, desta Secção[12], que seguiu aquele, com os quais concordamos, não havendo razões para deles dissentir.
Tal como decorre do regime do RAU, aqui aplicável, não se trata de obras de conservação ordinária, porque estas “destinam-se, em geral, a manter o prédio em bom estado de preservação e nas condições requeridas pelo fim do contrato e existentes à data da sua celebração”[13].
E também não são obras de conservação extraordinária, por não serem ocasionadas por defeito de construção do prédio ou por caso fortuito ou de força maior, nem ser caso previsto na parte final do n.º 3 do citado art.º 11.º.
Como se escreveu no citado acórdão de 31/5/2010, tal como ali, as obras aqui em causa “foram determinadas por imposição das autoridades administrativas, visando não a simples preservação do bom estado da fracção autónoma cedida em exploração turística, nas condições requeridas pelo fim do contrato e existentes à data da sua celebração, mas tão só o incremento de maior segurança à mesma e respectivas partes comuns, com directo e positivo reflexo nos respectivos utilizadores e frequentadores”.
Tais obras não podem deixar de ser classificadas como simples obras de beneficiação, por cujo pagamento é responsável a locatária, face ao teor da cláusula 8.ª do contrato dado como provado supra sob o n.º 2, donde resulta que a “C…” se responsabilizou “pelo pagamento das regulares despesas de conservação … da fracção autónoma” e visto que elas foram efectuadas, exclusivamente, em seu benefício para exercer a actividade turística, tendo surgido a sua necessidade em plena vigência do mesmo contrato.
É certo que na cláusula 9.ª desse contrato, o autor (locador) se obrigou a “manter constantemente apta e à disposição da segunda Outorgante”, a aqui ré/recorrente (locatária), “a fracção autónoma que cede de exploração de modo a que esta última não possa ser, de qualquer forma, perturbada ou prejudicada no exercício da sua indústria”.
É, precisamente, nesta cláusula que a recorrente estriba o seu recurso para sustentar a responsabilidade do autor pelo pagamento das obras.
Porém, a nosso ver, sem razão.
Desde logo, porque o texto da referida cláusula não permite tal entendimento e este afronta as regras da interpretação.
É sabido que o n.º 1 do art.º 236.º do Código Civil acolhe a denominada “teoria da impressão do destinatário”, de cariz objectivista, segundo a qual a declaração vale com o sentido que um declaratário normal, medianamente instruído, sagaz e diligente, colocado na posição do concreto declaratário, a entenderia, respondendo o declarante “pelo sentido que a outra parte pode atribuir à sua declaração, enquanto esse seja o conteúdo que ele próprio devia considerar acessível à compreensão dela” (cfr. Ferrer Correia, Erro e Interpretação na Teoria do Negócio Jurídico, pág. 201, e Heinrich Hörster, A Parte Geral do Código Civil Português, Coimbra, 1992, pág. 510).
Entre as circunstâncias atendíveis, apontam-se os termos do negócio, os interesses em jogo, a finalidade prosseguida pelo declarante, as negociações prévias, os usos e os hábitos do declarante, os usos da prática em matéria terminológica e o modo como foi dada execução ao negócio, além de outras (Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª ed., 450/1; acórdão do STJ de 15/5/2001, CJ – STJ -, ano IX, tomo II, pág. 85).
A normalidade do declaratário, que a lei toma como padrão, exprime-se não só na capacidade para entender o texto ou conteúdo da declaração, mas também na diligência para recolher todos os elementos que, coadjuvando a declaração, auxiliem a descoberta da vontade real do declarante.
Quanto aos negócios formais, como era o caso, a declaração negocial não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do documento respectivo, ainda que imperfeitamente expresso (cfr. art.º 238.º, n.º 1, do Código Civil). Contudo, um sentido desprovido desta correspondência pode valer, se corresponder à vontade real das partes do negócio e as razões determinantes da forma se não opuserem a essa validade (cfr. art.º 238.º, n.º 2).
Ora, um declaratário normal, colocado na posição do declaratário real (o autor), jamais entenderia a invocada cláusula como prevendo as obras que viessem a ocorrer depois da celebração do contrato impostas pelas autoridades administrativas.
Depois, e passando a citar o aludido acórdão de 31/5/2010, porque “a obrigação genérica de assegurar o gozo da coisa, por lei debitada ao locador (art. 1031.º, al. b) do CC), apresenta-se sob duas vertentes: a obrigação de o locador se abster de actos que impeçam ou diminuam esse gozo (art. 1037.º, n.º 1 do CC) e a obrigação de efectuar reparações ou outras despesas essenciais ao referido gozo.” Tal como ali, também aqui, não são, manifestamente, desta última natureza as obras mencionadas nos autos.
Continuando a citação do mesmo acórdão: “Também porque faz parte dos usos comerciais que, em circunstâncias idênticas e na ausência de convenção escrita em contrário, seja o locatário (comerciante ou industrial) a arcar com o pagamento integral de tais despesas essenciais ao prosseguimento da respectiva actividade e não já ao simples e normal gozo do prédio tal como lhe foi dado em locação. Não sendo crível que, pela mente do A.- locador, na altura da celebração do contrato e com a fracção arrendada em perfeitas condições de segurança e funcionalidade de equipamentos para a prossecução do fim contratual, então, estabelecido, tenha, sequer, perpassado a ideia da possibilidade de, a curto prazo, deixar, duma só vez, de beneficiar do rendimento que a fracção arrendada lhe poderia propiciar, com o complementar gravame de, para cúmulo, ter de arcar com a responsabilidade do pagamento de despesas determinadas, exclusivamente, por imposições das autoridades administrativas, com natureza condicionadora da continuação da actividade de exploração turística desenvolvida no locado…
Finalmente, porque, quanto às obras realizadas em partes comuns do edifício constituído em regime de propriedade horizontal, as mesmas só poderiam, em qualquer caso e independentemente do já expendido, ser exigidas ao respectivo condomínio (tese do sobredito Ac. do STJ[14]), ou, simultaneamente e em litisconsórcio necessário passivo condicionador da produção do efeito útil normal da correspondente decisão judicial (art. 28.º, n.º 2) àquele, acompanhado do locador-senhorio (tese de Sandra Passinhas, na referida anotação constante do n.º 10 dos CDP). …
Assim sendo, a realização de tais obras só se tornaria obrigatória para o senhorio, em dois casos, ambos inverificados na espécie: ou quando a sua execução fosse ordenada ao senhorio pela câmara municipal competente, nos termos das leis administrativas em vigor (Regulamento Geral das Edificações Urbanas – DL nº 38382, de 07.08.51, arts. 4º, 10º e 12º, e art. 51º, n.º 2, al. b) do DL nº 100/84, de 29.03, alterado pela Lei n.º 18/91, de 12.06) ou quando houvesse acordo escrito das partes, com indicação das obras que tivessem de ser realizadas[15]”.
Acresce que, independentemente do que se disse e sem conceder, nem sequer é possível configurar que o autor tivesse incorrido em mora para a ré/locatária poder realizar as obras e ter direito a eventual reembolso do que despendeu ao abrigo do disposto no art.º 1036.º do Código Civil, desde logo porque não deu, oportunamente, cumprimento ao disposto no art.º 1038.º, al. h) do mesmo Código, não valendo como tal as informações da “situação” a que se alude nos n.ºs 7, 8 e 9 dos factos provados, tanto mais que diligenciou, ela própria, pela realização das mesmas.
As obras em causa não estão indicadas na cláusula 9.ª do contrato celebrado entre as partes, supra referido no n.º 2 dos factos provados.
Deste modo, contrariamente ao sustentado pela apelante, não podem as mesmas ser aí incluídas.
Consequentemente, não sendo a sua realização da responsabilidade do autor/locador, nem resultando de facto que lhe seja imputável, não podia a ré/locatária cessar, como cessou, o pagamento da retribuição devida pela cedência do locado, ao abrigo da cláusula 10.ª do mesmo contrato, independentemente de continuar ou não a exercer nele a indústria hoteleira.
A necessidade de realização das obras referidas nos autos não radicou em qualquer causa ou facto susceptível de imputação ao autor, mas unicamente na imposição da competente autoridade administrativa.
O autor não deixou de assegurar à ré o gozo da fracção arrendada para os fins para que a mesma foi locada, tal como lhe era imposto pelo art.º 1031.º, al. b), do Código Civil. Era esta a sua única obrigação que sempre cumpriu.
Ao invés, a ré não cumpriu a correspectiva obrigação de pagamento da renda, como lho impunha o art.º 1038.º, al. a), do Código Civil.
Inexistindo incumprimento pelo locador da sua referida obrigação, não podia a locatária sobrestar no cumprimento da sua, deixando de pagar as rendas a que se obrigou, invocando as ditas cláusulas 9.ª e 10.ª ou a excepção de não cumprimento do contrato, antes sendo aquelas devidas nos exactos termos acordados, pois que o contrato deve ser pontualmente cumprido (art.º 406.º, n.º 1, do Código Civil).
Acresce que jamais seria possível estabelecer o indispensável nexo de correspectividade entre as duas prestações.
Na verdade, para que a excepção de não cumprimento pudesse operar, teria que haver proporcionalidade entre a infracção contratual do credor e a recusa do contraente devedor que alega a excepção, o que é exigido pelos ditames da boa fé (art.º 762.º, n.º 2, do Código Civil), que postula, nos contratos bilaterais, o respeito pela ideia da preservação do equilíbrio entre as obrigações sinalagmáticas; esse equilíbrio de prestações é inerente ao sinalagma de tal modo que, se não se puder estabelecer esse nexo de correspectividade, é inoperante a invocação da excepção[16].
Para além disso, a mencionada excepção jamais permitiria recusar o pagamento de todas as rendas, pois o devedor, em regra, apenas poderia recusar a sua prestação na parte proporcional ao incumprimento do outro contraente.
Além de inexistir incumprimento por parte do autor, como se disse, ele nunca poderia ficar privado de todas as rendas, tanto assim que a reabertura não depende de si e as obras tiveram a duração de um ano (de Novembro de 2004 a Novembro de 2005), chegando a ré a informá-lo que iria proceder ao pagamento da anuidade de 2006.
Refira-se, ainda, que a excepção de não cumprimento não pode excluir definitivamente o direito do autor e que ela, que se justifica por razões de boa fé, de moralidade, de equidade e de justiça comutativa, sanciona a unidade das obrigações que para cada uma das partes derivam do contrato, evitando que uma delas tire vantagens sem suportar os encargos correlativos.
Não é este, manifestamente, o caso.
Improcedem, deste modo, todas as conclusões relevantes e, consequentemente, a apelação, pelo que deve manter-se a decisão impugnada.

Sumariando, em jeito de síntese conclusiva:
I. As obras impostas pela autoridade administrativa competente, na vigência de um contrato de cessão para exploração turística, visando o incremento de maior segurança à fracção cedida e às partes comuns do prédio em que ela se integra, como condicionantes da continuação do exercício dessa actividade no local arrendado, devem ser classificadas como simples obras de beneficiação, nos termos do n.º 4 do art.º 11.º do RAU, por não se enquadrarem nos conceitos de obras de conservação ordinária, nem extraordinária, a que aludem os n.ºs 2 e 3 do mesmo artigo.
II. Pela sua execução, é unicamente responsável o locatário quando as mesmas não tenham sido discriminadas no escrito que titula o respectivo contrato, como sucede no presente caso.
III. O locatário não pode recusar o pagamento das rendas devidas com fundamento na realização de tais obras, por inexistir incumprimento do locador e não poder operar a excepção de não cumprimento do contrato.

III. Decisão

Por tudo o exposto, julga-se a apelação improcedente e confirma-se a sentença recorrida.
*
Custas pela apelante.
*
Porto, 9 de Julho de 2014
Fernando Samões
Vieira e Cunha
Maria Eiró
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[1] Apesar disso foi completamente omitida qualquer referência ao mesmo acórdão na sentença, não obstante ter servido para a fundamentação, quase em exclusivo, desta e doutras questões ali apreciadas.
[2] Direito das Obrigações, 5.ª edição, página 290.
[3] A Excepção de Não Cumprimento do Contrato no Direito Civil Português, Conceito e Fundamento, páginas 127 e seguintes.
[4] Acórdão do STJ de 8/4/2003, processo n.º 02A4061, em www.dgsi,pt.
[5] Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Volume II, página 263.
[6] Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª edição, página 405.
[7] Princípios de Direito dos Contratos, Coimbra Editora, páginas 790 e 791.
[8] Vide Pedro Romano Martinez, Direito das Obrigações, Parte Especial, Contratos, página 440.
[9] Acórdão da RL de 5/6/2008, processo n.º 2248/2008-2, em www.dgsi.pt.
[10] Direito das Obrigações, 5ª edição, páginas 290/291 e RLJ, ano 119, 1986/1987, página 144 e acórdão do STJ de 22/1/2013, processo n.º 4871/07.1TBBRG.G1.S1, em www.dgsi.pt., donde foram extraídas as citações acabadas de fazer.
[11] José João Abrantes, “A Excepção de Não Cumprimento do Contrato”, edição de 1986, págs. 39 e segs.
[12] Disponível em www.dgsi.pt.
[13] Cfr. Aragão Seia, in Arrendamento Urbano, 7.ª edição, revista e actualizada, pág. 204.
[14] Ou seja, do acórdão de 13/1/2004, CJ – STJ – ano XII, tomo I, pág. 17, anotado por Sandra Passinhas, in Cadernos de Direito Privado, n.º 10, pág. 53.
[15] Neste sentido, Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, in CC Anotado”, vol. II, 4.ª ed., pág. 515.
[16] Ac. STJ de 19.06.2007, processo n.º 07A1651, em www.dgsi.pt.