Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
931/07.7PAPVZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: VASCO FREITAS
Descritores: CRIME
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
CRIME DE EXECUÇÃO CONTINUADA
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
Nº do Documento: RP20100915931/07.7PAPVZ.P1
Data do Acordão: 09/15/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE.
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Em termos de configuração do crime de violência doméstica do art. 152.º, do CP, é irrelevante a circunstância de a ofendida ter desistido da queixa ou perdoado alguns dos factos susceptíveis de preencher ilícitos criminais que, atomisticamente, o integram.
II - Nos crimes cuja execução se prolonga no tempo, se durante o seu decurso surgir uma lei nova, ainda que mais gravosa, é esta a aplicável a todo o comportamento uma vez que não é possível distinguir partes do facto.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso Penal nº 931/07.7PAPVZ.P1


Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

I RELATÓRIO
No .º juízo criminal do Tribunal Judicial da comarca da Póvoa do Varzim, em processo comum com intervenção do Tribunal Singular, foi submetido a julgamento o arguido B………., devidamente identificado nos autos, tendo no final sido proferida sentença, na qual se decidiu condená-lo pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. no art. 152 nº 2 do CP, na pena de 13 (treze) meses de prisão.
Mais se determinou ainda que tal pena de prisão fosse suspensa na sua execução pelo período de 13 (treze) meses.
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Inconformado com o Acórdão, dela interpôs recurso o arguido, pugnando pela sua revogação apresentando as seguintes conclusões
1- Não pode a sentença incluir nela factos que não constam do libelo acusatório;
2- Ao incluir factos que não constam da acusação como afirmar que o arguido se preparava para lhe atirar uma pedra mármore, e outros supra referidos, há errada apreciação da matéria de facto, que resulta do próprio texto da sentença., constituindo um vicio de falta de fundamentação. e erro na apreciação das provas, que determina a anulação do julgamento .
3- Não foram provados os factos constantes da acusação, tendo sido na sentença dados como provados factos que não constavam na acusação, que se desconhece quando foram praticados, com violação do direito à defesa do arguido e ao principio do contraditório.
4- Os factos alegados na acusação, de forma vaga imprecisa sem especificar os factos no tempo, não permitem a sua procedência.
5- Os factos reportados a uma garrafa de vidro que o tribunal dá como provado, cujas testemunhas são a Neta e o neto do casal, são no seu depoimento totalmente contraditórios quanto à idade em que cada um verificou o facto , não merecendo por isso aceitação .
6- a douta sentença ao condenar o arguido pelo crime do art 1522 do CP , desvirtuou por completo o conteúdo e finalidade desta norma.
7- os únicos factos dados como provados constantes da acusação são aqueles que se reportam ás injurias, que na sua não Têm por si só , característica de um crime de maus tratos.
8- O chamar à colacção factos que a ocorrerem terão acontecido há mais de 10 anos, (a garrafa partida) é um erro de julgamento, não só porque não pode o arguido responder por um facto de que não vinha acusado, mas também porque já prescreveu.
9ª- Além disso, só prova que o arguido não dava maus tratos à queixosa, uma vez que essa facto a ter ocorrido, o foi há mais de 10 anos.
10ª- para a pratica do crime de violência domestica, é necessária a pratica de crimes violentos fisicamente , com agressões físicas que atinjam a natureza humana ,. 119- o bem jurídico protegido é a saúde do cônjuge nas suas vertentes físicas e psíquica. O tipo legal compreende uma reiteração de condutas sendo o tipo de crime em causa considerado como de habitual.
12ª- não se provando agressões físicas, físicas e reiteração destas, ainda que se considerasse provada a injuria, tal facto não constitui por si só um caso de violência domestica.
13ª- não sendo de considerar que eventual objecto de arremesso contra as portas de objectos por duas vezes, uma fruteira e uma garrafa, distanciados mais de dez anos no tempo, tenham qualquer carácter de reiteração .
14ª- não podendo o tribunal dar como provado varias vezes, quando em concreto só duas foram referidas.
15ª- não podendo o tribunal dar como provado que a queixosa foi ameaçada por tal não decorrer do seu depoimento.
16ª- não pode o Tribunal na sentença alterar a hora dos factos, colocando os factos constantes na acusação no dia 27 de Out. pela 2 horas em hora diversa por forma a colocar o arguido em casa nessa hora depois da chegada da festa em casa de familiares.
17ª- a falta completa da gravação dos depoimentos das testemunhas, não permite acaba) defesa do arguido, pelo que , determina a anulação do julgamento .
18ª- a douta sentença violou o disposto nos artigos 152º do CP. , o artº 410º do CPP, 669º, CPP, 358º do CPP e ainda os princípios gerais -do direito - o contraditório .
Termos em que, deve ser procedente o recurso, absolvendo o arguido ou anulando o julgamento,
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Na resposta, o Ministério Público junto da 1ª instância, defendeu a improcedência do recurso, alegando que o recorrente ao impugnar a prova produzida, não o fez de forma correcta, com obediência ao estipulado no artº 412º nºs 2, 3 e 4 do Cod. Proc. Penal sendo que o que é posto em causa pelo recorrente é subsunção da matéria de facto dada como provada, ao crime de maus tratos a cônjuge nos termos em o faz a decisão recorrida, a qual no seu entender deve ser mantida, não existindo qualquer falta de fundamentação ou erro notório de prova, e que não foram violados os direitos de defesa do arguido e do princípio do contraditório
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O recurso foi admitido.
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O Exmº Procurador-geral Adjunto, subscrevendo as razões e os fundamentos apresentados pelo MºPº junto da 1ª instância emitiu o seu parecer de improcedência do recurso nos seguintes termos:
Face à motivação e respectivas conclusões, atento o teor da decisão recorrida e respectiva fundamentação, somos de parecer que o recurso não merece provimento, pelos fundamentos constantes da decisão, referentes aos factos provados e não provados, à motivação da decisão proferida sobre a matéria de facto e ao enquadramento jurídico dos factos provados – fundamentos que, na nossa opinião, não foram postos em crise, de forma juridicamente sustentável, pelos argumentos aduzidos pelo recorrente na motivação de recurso – e da resposta do M.P., concordantes e complementares entre si, com os quais estamos de acordo.
Anotamos ainda, em consonância com o referido na decisão e na resposta à motivação:
Como se demonstra no despacho de fls. 375 a 378, do qual não foi interposto recurso, quer pelo M.P., quer pelo arguido, ora recorrente, a situação a que se reporta o recorrente na "questão prévia" da sua motivação de recurso não se verifica, mas, a verificar-se, consubstanciar-se-ia numa irregularidade já sanada por falta de arguição atempada, conforme foi decidido no aludido despacho. Pelo que, não há fundamento para a anulação do julgamento pedida pelo recorrente por alegada, mas inexistente, falta de registo de prova declarativa produzida em audiência de julgamento.
Também, como facilmente se constata pela simples leitura do texto, a motivação de recurso está redigida de forma confusa, sendo difícil de decifrar quais as nomeadamente se impugna, nos termos do art. 412 n° 3 e 4 do C.P.P., a decisão proferida sobre a matéria de facto ou se se limita a invocar a existência dos vícios referidos no art. 410 n° 2 do C.P.P. e se impugna a qualificação jurídica dos factos dados como provados.
De qualquer modo, parece-nos, salvo sempre o devido respeito por opinião contrária, que o recorrente não impugna, pelo menos correctamente, a decisão de facto, nos termos do art. 412 n° 3 e 4, dado que não cumpre o formalismo aí imposto para a impugnação, pois não especifica taxativamente, na motivação e nas conclusões, quais os concretos pontos de facto, por referência aos dados como provados e ou não provados, que considera incorrectamente julgados e quais as concretas passagens das declarações e depoimentos prestados e registados em audiência que impõem, e não, apenas permitem, decisão diversa quanto a tais factos impugnados, tendo-se ele limitado a tecer críticas genéricas sobre tais declarações e depoimentos, tendo por referência a análise crítica dos mesmos feita pelo tribunal das declarações e depoimentos ali prestados, o que não consubstancia a impugnação exigida por aquelas normas.
Por outro lado, ao contrário do alegado pelo recorrente, não é detectável no texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso a elementos externos ao texto da decisão, qualquer dos vícios referidos no art. 410 n° 2 do C.P.P. – e era necessário que qualquer deles resultasse do texto, face ao n° 2 da norma, para o tribunal de recurso poder tomar conhecimento de qualquer deles – dado que o texto da decisão é um todo coerente entre as suas partes componentes, não se detectando que a decisão de direito tomada não tenha suporte na matéria de facto apurada ou que esta não seja suficiente e bastante para sustentar aquela decisão, que na decisão haja qualquer contradição entre factos, entre estes e a respectiva fundamentação e ou entre uns e outra e a decisão e respectiva fundamentação, que a decisão contenha o tal erro de tal modo evidente que não escaparia ao observador médio e ou ao jurista médio pela simples leitura do texto da decisão, pois não foram dados por provados factos contraditórios, de verificação impossível ou contrários às regras da experiência ou da lógica ou a documentos com força obrigatória plena, não foram tiradas conclusões ilógicas ou impossíveis ou contrárias àquelas regras e documentos e não foram cometidos erros de raciocínio. Pelo que, não se verifica preenchido o conceito e o conteúdo de qualquer dos vícios referidos naquela norma, conforme um e outro vêm sendo definidos, de forma uniforme, pela Doutrina e pela Jurisprudência, em numerosas obras e acórdãos.
Assim, não há fundamento para alterara decisão proferida sobre a matéria de facto, quer pela via da impugnação nos termos do art. 412 n° 3 e 4 do C.P.P., quer pela via dos vícios referidos no art. 410 do C.P.P., devendo a matéria de facto ser mantida.
Por sua vez, conforme é demonstrado na decisão recorrida, os factos provados integram os elementos do tipo legal de crime de violência doméstica, não exigindo esse tipo legal para o seu preenchimento, ao contrário do defendido pelo recorrente na motivação, quer agressões fisicas de um cônjuge ao outro, quer a sua reiteração ao longo do tempo, face ao teor da descrição da conduta ali prevista – "quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações de liberdade e ofensas sexuais". Aliás, os factos provados retratam uma situação de violência doméstica típica: alguém que estando casada, na dependência económica do marido, com quem vive na mesma casa, é vítima por parte do cônjuge, ao longo do casamento, de injúrias e de ameaças de agressão, umas expressas, outras mais subtis, como destruir mobiliário e lançar contra as paredes e portas peças de louça, retirar àquela o usufruto de bens considerados essenciais (água e televisão, pois se o marido não paga a água fornecida à casa o abastecimento é cortado e se retira as fichas para ligação á rede de electrodomésticos estes não podem ser usados), o que causa sofrimento cruel e injustificado à vitima, cônjuge do agressor, e torna impossível a vida em comum de forma harmoniosa dentro da mesma casa. Assim, a qualificação dos factos provados feita na decisão recorrida é a correcta.
No que concerne à alegado violação do direito de defesa do arguido e do princípio do contraditório, entendemos que tal violação não ocorreu e que a dita alegação é insustentável, dado que o arguido exerceu todos os direitos conferidos por lei, deduzindo contestação indicando prova, fazendo todas as perguntas que entendeu pertinentes durante a produção de prova em audiência e não sendo surpreendido por factos novos, pois, como refere o M.P. na resposta à motivação, os únicos factos provados que constam da sentença e não estavam descritos na acusação são os relativos às condições pessoais do arguido e aos seus antecedentes criminais.
Mas do que o recorrente verdadeiramente discorda, tendo em conta o teor da motivação, é que o tribunal tenha dado credibilidade è versão dos acontecimentos dada pela ofendida, versão acompanhada em parte pelos depoimentos da filha e dos netos daquela, e não tenha atribuído credibilidade às declarações do arguido e aos depoimentos das testemunhas de defesa. Porém, tal discordância sobre o juízo de credibilidade expresso pelo tribunal, não consubstancia qualquer dos vícios referidos no art. 410 n° 2 do C.P.P. ou qualquer erro de julgamento ou de qualificação.
Em suma, não assiste razão ao recorrente nas questões postas na motivação e respectivas conclusões. Em conformidade, o recurso deve ser julgado improcedente.”
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Foi cumprido o art. 417º nº 2 do C.P.P., sem que tivesse havido resposta.
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Colhidos os vistos, foi o processo submetido à conferência.
Cumpre decidir.
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II FUNDAMENTAÇÃO
Foram os seguintes os factos que na sentença recorrida foram dados como provados:
1. O arguido B………. e a ofendida C………. casaram entre si no dia 21 de Setembro de 1963.
2. Fixaram como última residência a Rua ………., .., ..° Esquerdo, nesta cidade.
3. Devido a desentendimentos conjugais, o arguido vem a injuriar e a ameaçar a ofendida ao longo dos anos, no interior da casa em que habitam.
4. Por diversas vezes, em datas e horas que não possível apurar, o arguido dirigia-se à ofendida apelidando-a de "filha da puta", "vaca", "puta" e "cabra".
5. Ameaçava-a dizendo que um dia lhe havia de dar um tiro e que a havia de matar.
6. Nessas circunstâncias, arremessava com objectos de decoração em louça contra as paredes.
7. Mandou cortar o abastecimento de água canalizada, vendo-se a ofendida impedida de fazer a sua higiene pessoal e as refeições.
8. No dia 27 de Outubro de 2007, cerca das 22h, quando chegou a casa, depois de ter ido tomar banho a casa da filha, o arguido dirigindo-se à ofendida disse: "puta", "vaca do caralho", "filha da puta", "hoje é o teu último dia de vida".
9. Ao mesmo tempo que atirou contra a parede da cozinha, na mesma direcção da ofendida, uma fruteira em louça, só não tendo sido atingida com a mesma por ter conseguido desviar-se.
10. No dia 6 de Novembro de 2007, por volta das 19h, quando entrava em casa, o arguido voltou a chamar à ofendida: "vaca", "filha da puta" e que a havia de matar, que lhe havia de dar um tiro.
11.A ofendida só ultimamente ganhou coragem para apresentar queixa contra o arguido pelo facto dos insultos e das ameaças serem constantes e recear que as viesse a concretizar.
12. O arguido transformou a garagem de sua casa numa sala de convívio, onde ouve música e recebe os amigos e familiares.
13. Possui a arma com o n. …….., marca "S.K.B", modelo "…", calibre 12mm e uma pistola com o n. ….., marca "CZ", modelo "..", calibre 6,35MM-Browing, as quais foram apreendidas, assim como as munições, sendo 45 cartuchos, calibre 6,35MM-Browing e 35 cartuchos, calibre 12mm.
14.O comportamento do arguido perturbou o bem-estar e sossego da ofendida, causando-lhe receio.
15.O arguido agiu sempre voluntária, livre e conscientemente.
16. Com o propósito concretizado de atormentar e molestar psicologicamente a sua mulher.
17. Sabia o arguido que o seu comportamento era proibido e punido por lei.
18.O arguido e a ofendida vivem na mesma casa.
19. Não fazem vida em comum, não dormem, nem fazem as refeições juntos.
20.O arguido trabalhou durante anos no D………..
21.Era tido como bom profissional.
22.É tido como pessoa cordial nas relações interpessoais.
23.Goza de boa reputação no meio onde vive.
24. Desde há muitos anos que se dedica a actos venatórios (caça).
25.É reformado.
26.Aufere, a título de reforma, a quantia de € 550,00.
27.A mulher é doméstica.
28.Vive em casa própria.
29. Possui o 2.° ano do ensino comercial, correspondente ao actual 6.° ano de escolaridade.
30. O arguido não regista antecedentes criminais.

Relativamente à matéria de facto não provada consignou-se que
31- Que o arguido arremessasse com objectos de decoração contra a ofendida e lhe causasse hematomas.
32. Que o arguido dissesse à ofendida que: "andas com amantes" e a agredisse com bofetadas, murros e pontapés e lhe tivesse apontado uma faca de cozinha.
33.Que tivesse desligado a energia eléctrica.
34. Que se preparava para arremessar um pedaço de mármore contra a ofendia, tendo sido impedido pela testemunha E………..
35. Que no último ano, de uma das vezes em que o arguido agrediu a ofendida, a deitasse ao chão e se colocasse por cima dela, batendo-lhe.
36. Que o arguido fizesse uma "boite" no pátio de sua casa, onde guardava armas.
37.Que ingira bebidas alcoólicas em excesso.
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A motivação foi explicada desta forma:
A convicção do tribunal formou-se, quanto aos factos provados e não provados, com base na análise conjugada e crítica, da prova produzida em audiência de julgamento e carreada para os autos, apreciando-as à luz das regras da experiência e da livre apreciação.
O tribunal atendeu:
1) Às declarações do arguido B………. que negou os factos objecto destes autos, argumentando não perceber o motivo que deu origem a este processo, defendendo-se depois com a afirmação de que a ofendida sofre problemas do foro mental, que toma medicamentos, que é desleixada, tendo esquecimentos, deixando as luzes acesas e que tem mau feitio, batendo com as portas.
O arguido ao longo do julgamento adoptou um comportamento defensivo, ao tentar convencer o tribunal da inversão de papeis, ou seja, assumindo ele o papel de vitima e a ofendida passando à posição de agressor, não tendo, contudo, logrado convencer o tribunal da sua veracidade, nem abalar os depoimentos das testemunhas F………., G………. e H………., quando em confronto com o depoimento destas os quais se revelaram credíveis.
O arguido deu conta ao tribunal que não faz vida com a ofendida, designadamente não dormindo nem com ela convivendo, como de marido e mulher se tratasse, ao invés, criou na garagem da casa uma sala de estar, onde passa o tempo livre, aí recebendo os familiares e amigos.
Confirmou possuir as armas identificadas nos autos (legais), sendo que uma lhe foi cedida pela sua então entidade patronal, devido às suas funções, e porque fazia o transporte de valores, por vezes, sendo a outra pela circunstância de ser caçador desde há muitos anos, o que as testemunha I………. e J………. confirmaram.
Quanto a ocorrência dos factos assentes sob o 8. a defesa do arguido assentou, no essencial, em tentar demonstrar serem os mesmos pura imaginação da ofendida, colocando-se numa festa em casa da testemunha K………., muito para além da hora que consta como da sua ocorrência. E se a memória de todas as testemunhas quanto ao "menu" dessa noite se apresentava "fresca", pois que se recordavam que jantaram arroz de cabidela, o mesmo não se diga no que tange à hora em que o arguido abandonou a "jantarada", tendo as testemunhas versão contraditórias entre si.
No que tange às suas condições de vida, ou seja, à sua situação familiar e profissional, as mesmas mostraram-se credíveis.
2) Ao depoimento da ofendida C………. que confirmou as circunstâncias em que ocorreram os factos que se mostram assentes, sob os números 1 a 11, bem os que constam de 14, designadamente as agressões verbais e as ameaças perpetradas pelo arguido ao longo do tempo de casados com mais incidência nos períodos que abaixo se assinalarão.
Afirmou, de forma peremptória, ser o arguido pessoa muito agressiva nas palavras e nas ameaças (sic), fazendo reflectir nela as contrariedades da sua vida, salientando não a ter agredido fisicamente, com excepção de uma vez que se agarrou ao seu pescoço e a arranhou por altura da doença do sogro, e próximo da morte deste.
A ofendida apesar de ter mencionado que o arguido se tornou mais amargo após o casamento da filha de ambos, por não concordar com o mesmo, passando a agredi-la verbalmente, chamando-lhe puta e vaca, foi a partir do momento que passou à situação de reforma, que ocorreu há cerca de 10 anos, que as coisas foram piorando atingindo o seu ponto mais alto em 2007, adoptando comportamentos violentos e indignos com a sua pessoa, designadamente as tentativas encetadas pelo mesmo de a atingir com objectos, o que nunca aconteceu, tendo dito, no entanto, que foram muitas as vezes o arguido arremessava com objectos contra as paredes para a assustar e a ameaça-la, de forma velada, que a matava com um tiro.
Relatou, de forma objectiva, que o arguido a desapossou das coisas básicas e inerentes à vida do dia a dia de qualquer ser humano, como seja a agua canalizada, cortando-a, desde 2007 até cerca da altura em que começou o julgamento, impedindo-a, desta forma, de fazer a sua higiene pessoal, de cozinhar, de lavar a roupa e limpar a casa, arrancou a fechadura da porta do seu quarto, e tirou-lhe a televisão do quarto, impedindo-a de ter os seus momentos de distracção. Acrescentou que apesar de haver uma televisão na sala o arguido escondia o comando desta.
Deu conta do número de noites que dormiu sentada numa cadeira, afastada da porta e da cama, com receio que o arguido a atingisse com um tiro durante a noite, devido às ameaças constantes que lhe fazia, ao dizer que um dia a haveria de matar, circunstância que veio a ser confirmada pela testemunha F………., filha do casal.
Confirmou e situou no tempo, em data concreta, alguns episódios de violência verbal, designadamente as circunstâncias em que ocorreram os factos assentes sob o número 8, quando regressava da casa da filha, onde tinha ido tomar banho, tendo necessidade de chamar a polícia, e os factos assentes sob o n. 10, os quais se mostram credíveis, e não obstante a estratégia usada pelo arguido, quanto à ocorrência dos primeiros, que usou o estratagema de "arranjar" uma festa a terminar em hora posterior aos mesmos não conseguiu abalar a objectividade e genuinidade com que os mesmos foram verbalizados pela ofendida.
E foi da mesma forma genuína com que relatou as circunstancias difíceis em que teve de suportar a agressividade do arguido, a qual era patente no dia a dia, que a dada altura disse ter passado a ripostar do mesmo modo, insultando, também ela, o arguido como resposta às agressões verbais daquele.
Acrescentou que para além da queixa que deu origem a estes autos fez mais duas por factos da mesma natureza, acabando por desistir das mesmas.
3) Ao depoimento da testemunha F………. filha do arguido e da ofendida, que esclareceu que a relação entre os pais começou a deteriorar-se a partir do seu casamento, há 23 anos, tendo afirmado que a mãe carregou a culpa por ela ter casado com uma pessoa oriunda de família de pescadores, que a mãe apoiou e o pai sempre rejeitou, só se tendo este relacionado com o genro desde há cerca de 4 anos a esta parte.
Presenciou, muitas vezes, o pai a agredir verbalmente a mãe e a arremessar com objectos, salientando, contudo, que admite que era para a assustar, o que conseguia, tendo referido que num dos episódios ao atirar uma garrafa contra a parede a sua filha, ainda pequena, acabou por ser atingida na face por um estilhaço (vidro).
Deu nota das dificuldades sentidas pela ofendida, que acompanhou, com comportamentos inexplicáveis por parte do arguido, que começou cada vez mais a descontrolar-se, quer no arremesso de objectos quer ao nível das palavras injuriosas, que não se coibia de as proferir na sua e na frente dos seus filhos (netos daquele), a cortar o abastecimento de água canalizada, a retirar a ficha eléctrica junto ao frigorifico para que não o pudesse ligar, a tirar TV do quarto da mãe, e a esconder o comando da que estava na sala, impedindo-a de ter uma vida normal, como tomar banho, cozinhar, ver televisão, etc., provocando sofrimento à ofendida e desarmonia familiar.
Disse que o arguido começou a verbalizar que um dia mataria a ofendia, o que passou a fazer com convicção, na sua perspectiva, tendo, numa das vezes, afirmado: - "um dia mato essa gaja"!
Quanto ao conhecimento das armas confirmou a sua existência.
Corroborou a versão da ofendida no que tange ao medo sentido com a ameaça de morte, tendo ficado chocada quando se apercebeu que a ofendida fazia perguntas sobre se o disparo de arma de fogo a podia atingir através da porta do seu quarto, mesmo quando estivesse fechada, e quando teve conhecimento que a mesma se deitava na cama ao contrário, ou seja, com os pés virados para a cabeceira, de forma a proteger-se de, eventual, disparo de arma de fogo.
Quanto a agressões físicas disse nunca ter assistido, a não ser ter presenciado o pai em cima da mãe a agarrar-lhe o pescoço e aquela a reagir como podia, em data que não foi possível concretizar.
No que tange aos factos assentes sob o número 8, disse não os ter presenciado, salientando que era habitual a mãe tomar banho e fazer as refeições em sua casa em virtude do pai ter mandado cortar a água, como se referiu.
Não presenciou os factos sob o n. 10, sendo que quando foi em auxílio da mãe, já esta se encontrava à porta de casa, com medo do arguido.
A testemunha depôs de forma serena, objectiva e isenta.
4) Ao depoimento da testemunha G………., neto do arguido e da ofendida, que de forma isenta, referiu que sempre frequentou a casa dos avós desde miúdo, dada a proximidade à casa dos pais, demonstrando ter conhecimento da vivência familiar daqueles, que reputou de "anómala", quer pelos motivos das discussões (por tudo e por nada...) fomentadas pelo avó, quer pela frequência das mesmas, bem como pelo seu conteúdo, em comparação com o modelo que tem dos seus pais, e, também, daquilo que resulta da sua percepção e experiência como ser humano, apesar da sua jovem idade. Acrescentou que desde que se conhece como "gente" o ambiente em casa dos avós foi sempre da forma que descreveu, nunca tendo percebido quais eram concretamente as motivações do avô!
Sustentou recordar-se das muitas discussões iniciadas pelo arguido, da verbalização de palavrões que este dirigia à avó, apelidando-a de "filha da puta", "chula", entre outros, do lançamento de objectos, que voavam pela casa, designadamente garrafas, saladeira, etc., confirmando que numa dessas situações a irmã foi atingida por um vidro.
Da mesma forma segura com que prestou o seu depoimento também mencionou ter ouvido as ameaças de morte que o avô fazia à avó, com o anúncio de que "a matava".
Chegou a ir dormir com a avó, quando era mais novo, para lhe fazer companhia, tendo ainda bem presente a pancadas que ouvia do lado de fora da porta do quarto as quais eram dadas pelo avô, que os assustavam.
No mais, demonstrou ter conhecimento da falta de água, da retirada da ficha do frigorífico.
A testemunha depôs de forma coerente e consistente.
5) Ao depoimento da testemunha H………., neta do arguido e da ofendida, que também demonstrou ter conhecimento dos factos, relatando as circunstancias em que começavam e decorriam as discussões entre os avós (a impulso do avô), as injúrias que o avô dirigia à avó, puta, vaca, cabra, o lançamento de objectos pela casa, tendo corroborado ter, numa dessas vezes, ficado ferida na face devido a um estilhaço, as ameaças que lhe dirigia, designadamente, que a matava ou dizia: - "é hoje que te parto o costado"!, e os barulhos provocados na porta do quarto avó pelo lado de fora, quando elas dormiam.
Confrontada esta testemunha para a necessidade de concretizar o número de vezes a que assistiu a estas ocorrências, concluiu que este tipo de "cenas" fora uma constante na vida da avó.
6) Ao depoimento da testemunha I………. irmão do arguido, que disse nunca ter presenciado nenhum dos factos objecto da acusação, tendo acrescentado não frequentar a casa do irmão desde a morte do pai de ambos, que ocorreu em 1994, a não ser pontualmente e quando assim acontecesse desloca-se ao anexo (garagem da casa), não mantendo qualquer tipo de relacionamento com a cunhada.
Ao invés, sustentou que o arguido e a ofendida mantêm um casamento atípico, vivendo separados dentro da mesma casa, com violência despropositada por parte da última.
O depoimento desta testemunha, todo ele, foi no sentido de afirmar que a ofendida é mulher conflituosa, adoptando comportamentos incorrectos e com linguagem norteada por impropérios dirigidos ao arguido, sendo este vítima de agressões por parte daquela. Adjectivos que estendeu à testemunha F………., filha do casal e sua sobrinha, concluindo que aquela tem o mesmo "registo verbal" da mãe.
Do mesmo modo que o arguido esta testemunha tentou inverter a qualidade das partes deste processo, podendo muito bem a ofendida passar por arguida a quem quer que entrasse naquele momento na sala de julgamento de audiências e ali se sentasse a ouvir este depoimento. Ou seja, embora o tribunal compreenda que esta testemunha nada saiba sobre os factos que são imputados ao arguido, dado que não frequenta a "casa" do irmão, nem convive com a ofendida, não se percebe como pode afirmar ser este vítima de agressões a não ser daquilo que aquele lhe conta!!!
No que tange aos factos datados de 27/10/07, também esta testemunha disse ser inverosímil a sua ocorrência dado que, tal como ele, o arguido estava na casa da testemunha K………..
O depoimento desta testemunha revelou-se inconsistente e eivado de subjectivismo.
7) Ao depoimento das testemunhas K……… E J………., respectivamente, primo e amigo do arguido, tendo ambos dito, do mesmo modo que a anterior testemunha, que no dia 27/09/07, o arguido jantou com eles, tendo o 1.º referido que o arguido foi embora por volta das 22h30m (salientando que não se deita depois das 23horas) e o 2.°, por volta da 1h.
Embora nenhum dos dois tivesse conhecimento dos factos da acusação, o K………. teve como preocupação dizer que a ofendida é uma linguaruda, rancorosa e que injuria o primo, e trata-o mal.
O segundo, o J………., ficou-se só pela menção à afirmação de que o arguido se queixava da mulher, não se descortinando porque motivos porque este também não os verbalizou.
Questionadas estas testemunhas sobre a razão especial porque se lembravam desta data e não de outras (nos dias anteriores e posteriores, como atestou o tribunal) o segundo respondeu que nesse dia era o aniversário do seu casamento (...), sendo caso para dizer que a tradição já não é o que era, ao invés do "festejo tradicional com o cônjuge", janta-se com amigos e conhecidos!
O J………. relatou ser o arguido pessoa conceituada entre os amigos e ter sido bom profissional.
8) Ao depoimento das testemunhas L………. E M………., agentes da PSP, que questionados sobre as datas que apuseram nos autos de noticia pelos factos ocorridos em 06/11/07 e 27/10/07, respectivamente, pelas 22h15m e 23h57, que as confirmaram, recordando-se das ocorrências, acrescentando, um deles, que embora na altura não tenha contactado com o arguido, disse que nessa altura a ofendida estava muito aflita, em pânico, não sendo aquela a primeira vez que ali se havia deslocado pelas mesmas circunstâncias.
No que toca ao elemento subjectivo dos tipos legais de crimes, o Tribunal considerou que, com a prova dos seus elementos objectivos resultaram, igualmente, demonstrados os seus elementos subjectivos na medida em que conhecendo o arguido os elementos objectivos típicos agiu com vontade e por forma a preenchê-los, tendo ainda por base as regras da experiência comum.
9) O teor dos assentos de nascimento, de fls. 95.
10) O teor dos documentos de fls. 88 e 89, respectivamente, autorização de detenção de arma no domicílio e livrete de arma.
11) O teor do auto de exame pericial, de fls. 100.
12) O teor do CRC de fls. 272.
Foi por força deste quadro probatório que o tribunal se convenceu da ocorrência dos factos tais como se mostram provados.

QUANTO AOS FACTOS NÃO PROVADOS
Não foi produzida prova que os assentasse.
*
O Direito
"Os recursos não podem ser utilizados com o único objectivo de uma "melhor justiça. O recorrente tem de indicar expressamente os vícios da decisão recorrida. A motivação do recurso consiste exactamente na indicação daqueles vícios." - Cunha Rodrigues, Jornadas de Direito Processual Penal, CEJ, p.387.
Trata-se de um verdadeiro ónus de alegação e motivação do recurso, devendo o recorrente formular com rigor o que pede ao tribunal.
São as conclusões que irão habilitar o tribunal superior a conhecer dos motivos que levam o recorrente a discordar da decisão recorrida, quer no campo dos factos quer no plano do direito.
Ora, as conclusões destinam-se a resumir essas razões que servem de fundamento ao pedido, não podendo confundir-se com o próprio pedido pois destinam-se a permitir que o tribunal conhecer, de forma imediata e resumida, qual o âmbito do recurso e os seus fundamentos.
E, sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recurso (art. 412°, n.º 1 CPP), às quais o tribunal se deve restringir (AC. STJ de 9.12.98, BMJ 482°,68), não basta que na motivação se indique, de forma genérica, a pretensão do recorrente pois a lei impõe a indicação especificada de fundamentos do recurso, nas conclusões, para que o tribunal conheça, com precisão, as razões da discordância em relação à decisão recorrida.
Essa definição compete exclusivamente ao recorrente e tem a finalidade útil e garantística de permitir que não existam dúvidas de interpretação acerca dos motivos que levam o recorrente a impugnar a decisão, o que poderia acontecer perante a mera leitura das alegações, por natureza mais desenvolvidas, definindo-se claramente quais os fundamentos de facto e/ou de direito, já que é através das conclusões que se conhece o objecto do recurso.
Neste sentido se pronunciaram, entre outros, os Ac. STJ 21/04/93, 19/04/94, 09/11/94, C.J, do STJ, tomos 2°, 2° e 3° dos anos respectivos, p. 206,189,245.
Como se viu, a lei exige conclusões em que o recorrente sintetize os fundamentos e diga o que pretenda que o juiz decida, certamente porque são elas que delimitam o objecto do recurso.
Não pode o tribunal seleccionar as questões segundo o seu livre arbítrio nem procurar encontrar no meio das alegações, por vezes extensas e pouco inteligíveis, o que lhe pareça ser uma conclusão.
As conclusões nada têm de inútil ou de meramente formal.
Constituem, por natureza e definição, a forma de indicação explícita e clara da fundamentação das questões equacionadas pelo recorrente e destinam-se, à luz da cooperação devida pelas partes, a clarificar o debate quer para exercício do contraditório, quer para enquadramento da decisão.
- Feita esta introdução de âmbito geral e analisadas as conclusões de recurso, dir-se-á que sendo o objecto de um recurso penal delimitado pelas conclusões da respectiva motivação - art. 403°, n.º 1, e 412°, n.ºs 1 e 2, do CPP - no caso dos autos, as questões que se colocam são:
a) - impugnação da matéria de facto
b) - falta de fundamentação e erro notório na apreciação da prova
c) - violação dos princípios do direito de defesa do arguido, do in dubio pro reo e do contraditório
d) - erro na subsunção dos factos ao direito.
e)- contradição insanável da fundamentação e entre esta e a decisão- artº 410º nº 2 al. b) do CPP
f) - da medida da pena
Cumpre apreciar
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Da questão prévia
Antes do mais haverá que apreciar a questão prévia invocada pelo recorrente e referente à nulidade do julgamento por falta completa da gravação do depoimentos das testemunhas
Quanto esta questão, desde logo há a salientar que em face da data da decisão recorrida, são aplicáveis ao processo, as alterações introduzidas ao Código de Processo Penal pela Lei 48/2007 de 28/8 que entrarem em vigor em 15/9/07 (artº 7º).
Antes das alterações referidas e que no que respeita á gravação da prova em audiência e em suporte magnético, considerava-se que a sua falta ou deficiência gravação, constituía irregularidade, como se pode aferir dos Acórdãos seguintes: Ac. R.P. de 26/05/04, www.dgsi.pt/trp, proc. nº 0440788: “Se: …- se verifica que as fitas magnéticas não contêm qualquer gravação, ocorre uma irregularidade que, tendo sido atempadamente arguida pelo arguido, leva à invalidade do julgamento.” Ac. R.P. 18/4/07 www.dgsi.pt/trp, proc. nº 0646228 :“A deficiente gravação da prova na audiência constitui irregularidade que, por não afectar o valor do acto, tem de ser arguida nos termos do artº 123º, nº 1, do CPP98.”, e Ac. R.C. 29/11/06, www.dgsi.pt/trc, proc. nº476/01.9GBILH.C1 “A imperceptível gravação de um depoimento constitui mera irregularidade que se sana com a repetição do acto que dela sofre …”.
Todavia com a Lei nº 48/07 de 29/98 foi dada nova redacção ao artº 363º CPP, que passou a dispor o seguinte: “As declarações prestadas oralmente na audiência são sempre documentadas na acta, sob pena de nulidade.” e a essa falta de gravação deve ser equiparada a imperceptibilidade das mesmas declarações, por deficiente gravação, ou outra causa.
Assim face á nova redacção do artº 363º CPP, não há dúvida sobre a classificação daquela falta como nulidade, nulidade essa porque não constante das taxativamente enumeradas no artº 119º CPP (nulidade insanável), enquadra-se nas nulidade dependentes de arguição do artº 120º CPP a efectuar no prazo de 10 dias.[1]
Ora conforme se afere dos autos, os suportes digitais foram entregues ao recorrente em 24/07/09 (fls. 295), tendo o recorrente na sua motivação do recurso que foi remetido ao Tribunal por correio electrónico em 07 /09/09 e por carta registada em 21/09/09, arguido essa nulidade.
O tribunal recorrido proferiu então o despacho de fls. 375 o qual para além de considerar tal arguição como intempestiva, considerou que tanto as declarações do arguido como os depoimentos não obstante a existência de pequenas interferências e ruídos, são audíveis e perceptíveis, não sendo estes afectados na sua percepção e valoração global
Notificado o recorrente, tal despacho não mereceu reparo por sua parte e de que não recorreu como podia e devia, querendo, e que assim transitou em julgado.
Assim tem tal nulidade de se considerar sanada, improcedendo esta questão de recurso.
Apreciemos de seguida as questões invocadas no recurso
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d) Do erro na subsunção dos factos ao direito.
O recorrente não aceita que a matéria provada consubstancie o ilícito criminal pelo qual foi condenado, uma vez que não se teriam provado agressões físicas ou psicológicas à ofendida, não houve reiteração dos factos, já não vivem juntos, alguns factos teriam sido referidos como tendo ocorrido há mais de 10 anos pelo que estariam prescritos, sendo que dada a desistência que segundo a ofendida teriam sido alvo, os mesmo não poderiam ser tidos em conta. Mais refere que não se provaram as ameaças ou injúrias e que relativamente a estas as mesmas teria sido recíprocas, pelo que nunca poderia integrar o crime em apreço.
Apreciemos de seguida os fundamentos de direito invocados, sendo que como é óbvio, partiremos da matéria de facto dada como provada na decisão recorrida.
Dispõe o artigo 152º do Código Penal, na parte relevante para estes os autos:
“ Violência doméstica
1. Quem, de modo reiterado ou não inflingir maus tratos físicos ou psíquicos incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) ao cônjuge ou ex-cônjuge
(…)
é punido com pena de prisão de um a cinco ano, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”
2. No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
(…)”
Esta redacção, ora vigente, foi introduzida Lei nº 59/2007 de 4 de Setembro, que veio rever o Cod. Penal, aferindo-se dos motivos da Proposta de Lei nº 98/X que a originou, estar entre as principais orientações “o reforço da tutela de pessoas particularmente indefesas, como as crianças, os menores e as vítimas de violência doméstica, maus tratos ou discriminação”.
Anteriormente correspondia-lhe o crime de maus tratos introduzido no nosso ordenamento jurídico em 1982 e que visava reprimir criminalmente, além do mais, formas de violência no seio familiar.
Assim sendo, a ratio normativa dirigiu-se à protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana, sendo o bem jurídico protegido a saúde, enquanto bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental e que pode ser afectado por uma variedade de comportamentos que impeçam ou dificultem o normal e saudável desenvolvimento da personalidade. [2]
A função da incriminação é assim de prevenir as frequentes formas de violência no âmbito da família, da educação e do trabalho.
Por seu lado a reforma do Cód. Penal efectuada pelo Decreto- Lei nº 48/95 de 15 de Março introduziu importantes alterações ao regime até aí existente, passando a incriminar a par dos maus tratos físicos, os maus tratos psíquicos.
Conforme refere Taipa de Carvalho, (Código Penal Conimbricense, Coimbra, Tomo I, pág. 332), a ratio do tipo não está na protecção da comunidade familiar, conjugal, (...), mas sim na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana. O âmbito punitivo deste tipo de crime inclui os comportamentos que lesam esta dignidade.
Por fim e após a última revisão legislativa levada a cabo no tipo legal de crime em causa, esclareceu-se a dúvida que então até aí se suscitava, e que consistia, em saber se para a verificação do ilícito criminal em causa se exigia uma actuação reiterada do agente, repetindo sucessivamente condutas, alongando a violação típica no tempo, mesmo que por actuações diversas ou se bastava um único acto isolado, desde que a sua gravidade fosse tamanha que por si só, fosse adequado a atingir a dignidade do visado, isoladamente.
Como refere a exposição de motivos da proposta de Lei n.º98/X “na descrição típica da violência doméstica e dos maus tratos recorre-se, em alternativa, às ideias de reiteração e intensidade, não sendo imprescindível uma continuação criminosa”.
Efectivamente a actual redacção do tipo (art.º 152º do CP) estatui-se que “quem, de modo reiterado ou não” infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais ao cônjuge pelo que hoje em dia o tipo legal de crime de violência doméstica inclui comportamentos que de forma reiterada ou intensa lesam a dignidade humana do cônjuge.
O bem jurídico por ele protegido é a saúde do cônjuge nas suas vertentes física, psíquica e mental.
No que concerne ao elemento subjectivo, para que este se verifique exige a lei o dolo, embora já não o específico traduzido na actuação por malvadez ou egoísmo.
O tipo assim definido tanto consente uma reiteração de condutas que se traduzem, cada uma à sua maneira, na inflicção de agressões físicas ou psíquicas ao cônjuge, como uma só conduta que manifeste gravidade intrínseca suficiente para nele se enquadrar.
Os maus tratos podem ser de natureza física traduzindo-se em actos de ofensa à integridade física simples, ou psíquicos[3] consistindo este em actos que ofendem a integridade moral ou o sentimento de dignidade, tais como crimes de ameaça simples ou agravada, coacção simples, difamação e injúrias, simples ou qualificadas”.[4]
No crime de violência doméstica as condutas típicas podem elas próprias integrar diversos tipos legais, nomeadamente ofensas corporais voluntárias simples, ameaças, injúrias, sendo que “ A execução é reiterada quando cada acto de execução sucessivo realiza parcialmente o evento do crime; a cada parcela de execução segue-se um evento parcial. Porém, os eventos parcelares devem ser considerados como evento unitário. A soma dos eventos parcelares é que constitui o evento do crime único”[5].
O crime de maus tratos/violência doméstica, com excepção dos casos em que se realiza através de um único comportamento, pressupõe uma reiteração das condutas que preenchem o respectivo tipo objectivo e que são susceptíveis de integrar, quando singularmente consideradas, outros tipos de crime, nomeadamente, injúria, ofensa à integridade física e ameaça.
Na verdade o tipo objectivo “inclui as condutas de violência física, psicológica, verbal e sexual que não sejam puníveis com pena mais grave por força de outra disposição legal”[6]
Tratando-se de um crime único, embora de execução reiterada, a consumação do crime de maus tratos/violência doméstica ocorre com a prática do último acto de execução.
Como se afere da leitura do artº 152º do Cod. Penal, a violência não tem que ocorrer na habitação ou domicílio comum que aliás, salvo a excepção referida na al. d) do citado preceito, pode até nem existir, uma vez que o “respeito pelo outro” é um valor que se impõe em qualquer parte, seja dentro ou fora de casa.
No caso em apreço verificam-se que os actos do arguido já vinham a decorrer ao logo dos anos prolongando-se até Novembro de 2007.
Assim sendo e tendo em atenção o exposto, verifica-se como é óbvio que é irrelevante o facto de a ofendida ter desistido ou perdoado alguns dos factos susceptíveis de integrar um dos ilícitos criminais que atomísticamente integram o crime de violência doméstica. E pela mesma razão, não que invocar a prescrição do procedimento criminal relativamente a alguns dos factos pois que nos termos do artº 119º nº 2 al. a) do Cod. Penal o respectivo prazo prescricional começa a correr desde o dia em que cessou a sua consumação.
E sendo diversa a previsão nos tipos vigentes, bem andou o tribunal em aplicar a actual redacção, já que com as sucessivas alterações legislativas que lhe foram sendo introduzidas o que se verificou foi uma sucessão de leis pois o facto sempre foi punível por todas elas.
A doutrina tradicional é a de que nos crimes cuja execução se prolonga no tempo, se durante o seu decurso surgir uma lei nova, ainda que mais gravosa, é esta a aplicável a todo o comportamento uma vez que não é possível distinguir partes do facto.
Resulta por outro lado da sentença recorrida, que os actos descritos como praticados pelo arguido causaram à ofendida receio, perturbando o seu bem estar e sossego, e que agiu com dolo directo, com liberdade na acção, conhecendo e querendo infligir ao seu cônjuge maus tratos psíquicos, com conhecimento de que a sua conduta era proibida.
Acresce que a nosso ver os factos praticados em 27 de Outubro e 6 de Novembro de 2007, e tendo em atenção o circunstancionalismo que os rodeiam, nomeadamente com ameaças por parte do arguido de que haveria de dar um tiro à ofendida, sendo aquele possuidor de armas de fogo, com arremesso de objectos contra aquela, estando esta sem abastecimento de água e impedida como tal de efectuar a sua higiene pessoal e as refeições, são suficientemente graves para ultrapassar o âmbito o crime de ameaças ou de injurias e integrarem o ilícito pelo qual o arguido foi condenado.
Conforme dispõe o Ac do Tribunal da Relação de Coimbra, recurso nº 3827/2002, disponível em www.dgsi.pt “Não são os simples actos plúrimos ou reiterados que caracterizam o crime de maus tratos a cônjuge, o que importa é que os factos, isolados ou reiterados, apreciados à luz da intimidade do lar e da repercussão que eles possam ter na possibilidade de vida em comum, coloquem a pessoa ofendida numa situação que se deva considerar de vítima, mais ou menos permanente, de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro do ambiente conjugal”.
Como tal haverá que reconhecer que o recorrente preencheu com a sua conduta todos os elementos objectivos e subjectivos do crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.152.º, n.ºs 1, al. a), do Código Penal.
Uma vez que tal chegou a ocorrer na residência do casal, o recorrente preencheu ainda com a sua conduta a agravante do n.º 2 , do art.152.º, do Código Penal, na redacção que lhe foi dada pela Lei 59/2007, de 4 de Setembro.
Improcede deste modo o recurso.

e) Da contradição insanável da fundamentação e entre esta e a decisão- artº 410º nº 2 al. b) do CPP
O vício invocado faz parte daqueles que o legislador considerou de conhecimento oficioso e que se encontram previstos no nº 2 do art. 410º do C.P.P. e fundamentos possíveis do recurso, mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito.
Como é assente qualquer um deles tem de resultar do próprio texto da decisão recorrida - sem a consulta de outros elementos constantes do processo – por si ou conjugada com as regras da experiência comum.
Por outro lado, estes vícios não podem (…) ser confundidos com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos, no respeito pelo princípio da livre apreciação da prova inscrito no artigo 127º do CPP.
Neste aspecto, o que releva, necessariamente, é a convicção que o tribunal forme perante as provas produzidas em audiência, sendo irrelevante, no âmbito da ponderação exigida pela função do controlo ínsita na identificação dos vícios do artigo 410º, nº 2, do CPP, a convicção pessoalmente formada pelo recorrente e que ele próprio alcançou sobre os factos.”[7]
Referindo-nos agora em concreto ao vício invocado, ou seja o da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, este vício tanto pode existir ao nível da factualidade, como ao nível do direito que é apreciado na decisão proferida; pode reportar-se quer à fundamentação da matéria de facto, quer à contradição na matéria de facto com o consequente reflexo no fundamento da decisão de direito, quer aos meios de prova que serviram para formar a convicção do juiz.
Há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou de forma a excluírem-se mutuamente[8].
Os pontos que servem de base à pretensão do recorrente são os descritos no nº 35º da matéria de facto dada como não provada o referenciado na decisão recorrida relativamente à medida da pena.
Com efeito no ponto 37 dos factos não provados e relativamente ao arguido consignou-se que:
“37.Que ingira bebidas alcoólicas em excesso”.
Ora relativamente à medida da pena refere-se na decisão recorrida que:
“Analisando o caso sub judice à luz das circunstâncias elencadas no art. 71.° do Cód. Pen., podemos referir que:
- Não são conhecidos antecedentes criminais ao arguido. - A ilicitude é média.
- É de referir que ficou provado o resultado danoso da conduta do arguido que perturbou o bem-estar e sossego da ofendida, causando-lhe receio, atormentando e molestando-a psicologicamente.
- A culpa do arguido é média.
- O seu dolo foi directo.
- As exigências de prevenção geral são manifestas, dada a frequência com que o crime de violência doméstica é praticado, estando vulgarizado na nossa sociedade, onde se bate ou se injuria, ameaça (...), por tudo e por nada, como forma de descarregar as energias negativas do dia a dia, de um mau dia de trabalho, das contrariedades que vão surgindo ao longo da vida, da crise económica, etc.
- As exigências de prevenção especial não revestem grande acuidade, pois que não podermos descurar a circunstância do(a) arguido(a) não registar antecedentes criminais.
Contudo, atendendo à relação de parentesco existente entre o(a) ofendido(a) e o(a) arguido(a), por parte deste(a) deveria ter surgido segurança, como era expectável; ao invés, surgiu a violência psicológica Do(a) arguido(a) deveria ter surgido confiança; ao invés, surgiu a agressão verbal, insegurança. Do(a) arguido(a) seria de esperar compreensão, um ombro amigo... ao invés surgiu instabilidade...!
Subjacente a este tipo de postura estão, muitas das vezes, os comportamentos "aditos", como foi o caso dos autos, os quais geram grande conflitual familiar, pois que resultou provado que arguido tinha problemas de alcoolismo.
Pelo exposto, entendo ser ajustada a aplicação ao(à) arguido(a) de uma pena próxima do mínimo legal, ou seja, uma pena de 13 meses de prisão, nos termos do art.152° do Código Penal”.
Da simples leitura do texto ora transcrito verifica-se que para a medida concreta da pena teve-se em conta os comportamentos “aditos” como foi o caso dos autos, os quais geram grande conflitual familiar, pois que resultou provado que arguido tinha problemas de alcoolismo”(sublinhado nosso).
Como tal sendo forçoso será de concluir que existe uma contradição entre a fundamentação e a decisão, consubstanciadora do vício a que se refere o artº 410º nº 2 al. b) do Cod. Proc. Penal o que determina o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do art. 426º nº 1 do C.P.P., restrito ao apuramento de todos os factos relevantes e necessários para apurar da existência ou não de comportamentos aditivos por parte do arguido nomeadamente se este sofre de alcoolismo.

f) Da medida da pena
O conhecimento deste fundamento do recurso encontra-se obviamente prejudicado, pela questão anteriormente abordada.
*
III DECISÃO
Por todo o exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente o recurso e determinam o reenvio do processo para novo julgamento, a realizar pelo tribunal que resulte da aplicação das regras contidas no art. 426º-A do C.P.P., única e exclusivamente para que seja completada a decisão da matéria de facto relativamente apenas aos factos acima aludidos e consequente determinar em consonância a fixação da pena, mantendo-se intocada a no mais a decisão recorrida, bem como a qualificação jurídica dos factos que já se encontram definitivamente fixados.
Sem custas
(processado por computador e revisto pelo 1º signatário- artº 64º nº 2 do Cod. Proc. Penal)

Porto, 15 de Setembro de 2010
Vasco Rui Gonçalves Pinhão Martins de Freitas
Luís Augusto Teixeira

_______________________
[1] Ac. R. P de 29/10/08, www.dgsi.pt/trp proc nº 0844934: “I - A imperceptibilidade do conteúdo das gravações da prova constitui nulidade. …”, mas dado que não se trata de uma nulidade especialmente prevista sujeita ao prazo especial de arguição que consta no artº 120º 3 CPP, é-lhe aplicável o prazo geral do artº 105º CPP de 10 dias a partir, pelo menos, do seu conhecimento ou intervenção do processo.
Ac.R.P. de 29/10/08 citado: “II - O prazo para arguir esse vício é de 10 dias e inicia-se no dia em que os suportes técnicos com o registo das gravações ficam à disposição do sujeito processual interessado.”; Ac.R.P.7/1/09, www.dgsi.pt/trp, proc. 0845170 Des. Isabel Martins: “O prazo para a arguição dessa nulidade é de 10 dias, a contar daquele em que o assistente for notificado para qualquer termo do processo ou tiver intervindo em qualquer acto nele praticado.”
Simas Santos in, Código de Processo Penal Anotado, I Vol., 2.ª edição, pág. 626: “Nos casos de nulidades “relativas” que não tenham um prazo especial marcado aplica-se para a arguição o prazo geral de 10 dias do artigo 105.º” e no mesmo sentido, M. Gonçalves, Cod. Proc. Penal 16º ed. pág. 764.
[2] (neste sentido, Comentário Conimbricense do Código Penal, I vol. pág 332).
[3] Ac do STJ de 4/2/2004/ Processo 2857/03-3
[4] Pinto de Albuquerque, op. cit., anotação 7, citando no mesmo sentido Catarina Sá Gomes, Fernando Silva e Sá Pereira e Alexandre Lafayette).
[5] in C.J. Ano XXVIII, tomo V/2003, pág. 220/230.
[6] (Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica, Lisboa, 2008, pág. 405, anotação 4).
[7] cfr. Ac. STJ 13/7/05, proc. nº 05P2122.
[8] cfr. Simas Santos, Recursos em Processo Penal., 5ª ed. págs. 63-64.