Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
286/19.7T8STS-J.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MIGUEL BALDAIA DE MORAIS
Descritores: NULIDADE PROCESSUAL
NULIDADE SECUNDÁRIA
RECORRIBILIDADE
DIREITO À PROVA
Nº do Documento: RP20221024286/19.7T8STS-J.P1
Data do Acordão: 10/24/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A recorribilidade de despacho proferido sobre a arguição de uma nulidade processual de cariz secundário está condicionada à alegação da concreta violação de algum dos princípios ou regras enunciadas no nº 2 do artigo 630º do Código de Processo Civil, isto é, cabe ao recorrente justificar a admissibilidade da impugnação, demonstrando a aplicabilidade, no caso, da cláusula de salvaguarda estabelecida nesse preceito legal, sob cominação de indeferimento do requerimento de interposição de recurso por a decisão o não admitir.
II - O direito a um processo equitativo, consagrado no nº 4 do artigo 20º da Constituição da República, envolve a opção por um processo justo em cada uma das suas fases, constituindo o direito fundamental à prova uma das dimensões em que aquele se concretiza.
III - O direito à prova emana da necessidade de se garantir ao cidadão a adequada participação no processo e de assegurar a capacidade de influenciar o conteúdo da decisão, o que significa que as partes/sujeitos processuais têm o direito a utilizarem a prova em seu benefício e como sustentação dos interesses e das pretensões que apresentarem em tribunal. E têm ainda o direito a contradizer as provas apresentadas por outro sujeito processual, bem como o direito à contraprova.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 286/19.7T8STS-D.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Santo Tirso – Juízo de Comércio, Juiz 5
Relator: Miguel Baldaia Morais
1º Adjunto Des. Jorge Miguel Seabra
2ª Adjunta Desª. Maria de Fátima Andrade
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SUMÁRIO
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO

No âmbito do presente processo de insolvência da sociedade “C..., Ldª.” foi elaborado auto de arrolamento, alegadamente datado de 26 de fevereiro de 2019.
A insolvente, por requerimento apresentado em 16 de maio de 2019, veio arguir a nulidade desse auto em virtude de o mesmo não se mostrar assinado, designadamente pelo seu legal representante, conforme impõe a al. f) do nº 4 do art. 150º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, havendo nele a menção de factos que não correspondem à verdade.
Sobre o aludido requerimento recaiu despacho com o seguinte teor: «A sociedade insolvente, no requerimento referência 38102977 veio requerer a nulidade do auto de inventário e arrolamento de bens.
O Sr. AI teve oportunidade de responder (referências 38701152, 37872541 e 41461570).
Os credores não tomaram posição quanto ao requerido.
Cabe decidir:
Sobre a matéria do auto de apreensão, e no que concerne às regras a observar, rege o n.º 4 do art.º 150.º do CIRE.
A sociedade insolvente insurge-se contra o teor do mesmo, mormente por não se mostrar assinado tal auto pelo legal representante da sociedade insolvente, conforme dispõe a alínea f) do n.º 4 do art.º 150.º do CIRE.
Analisado o mesmo (elaborado em 26 de janeiro de 2019 (vd. requerimento referência 32251907 de 26.04.2019 (apenso B de apreensão), resulta efetivamente que o auto não se mostra assinado pelo legal representante da sociedade insolvente.
Contudo, mesmo não tendo sido dado cumprimento à alínea f) do n.º 4 do art.º 150.º do CIRE, há que atender ao mencionado pelo Sr. AI (vd. art.º 22.º do requerimento referência 41461570), designadamente que já havia informado o tribunal e documentou, até com fotos, que o mesmo foi elaborado no local, com base naquele que havia sido lavrado no procedimento cautelar de Arresto número 1575/18.T8PVZ, que estava em vigor e que o mesmo, como é inequívoco, verificou, tanto mais que o gerente da insolvente ficou constituído como fiel depositário não podendo dar descaminho aos bens que lhe estavam confiados. No próprio auto lavrado in loco constam as notas que o sócio-gerente lhe foi comunicando de cada uma das respetivas viaturas, o que atesta a autenticidade do auto.
Ora, resultando do auto de arrolamento e apreensão de bens, elaborado em 26 de janeiro de 2019 (vd. requerimento referência 32251907 de 26.04.2019 (apenso B de apreensão), que o gerente da insolvente ficou constituído como fiel depositário não podendo dar descaminho aos bens que lhe estavam confiados.
Por outro lado, não existem dúvidas sobre a realização do auto no local (vd. feito no local do exercício da atividade económica da sociedade insolvente, situação que resulta bem patente nas notas a) a g) constantes do mesmo, atentas as fotografias tiradas e o facto de constarem do auto as notas que o sócio-gerente lhe foi comunicando de cada uma das respetivas viaturas).
Acresce que o auto teve em consideração o arrolamento e apreensão dos bens adicional conforme o processo de arresto (nº 1575/18.3T8PVZ do Juiz 4 do Juízo Central da Póvoa de Varzim).
Nessa medida, pese embora não se verifique a assinatura do legal representante da sociedade insolvente no auto, face ao circunstancialismo apurado, a omissão de tal regra não é de molde a considerar o auto nulo.
Pelo exposto, inexistindo qualquer nulidade do auto, indefiro o requerido, mostrando-se assim também prejudicado o conhecimento do requerimento da sociedade insolvente referência 41631856».
Não se conformando com o assim decidido, veio a insolvente interpor o presente recurso de apelação, admitido a subir imediatamente, em separado e com efeito meramente devolutivo.
Com o requerimento de interposição do recurso apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes

CONCLUSÕES:
A- Não se encontra devidamente fundada nos autos, a conclusão encerrada na decisão em recurso de que a informação prestada pelo Sr. AI no requerimento com a ref.ª 41461570, não merece contestação e que os factos aí relatados correspondem à verdade sem necessidade de prova em audiência contraditória;
B- Com efeito, para além das sucessivas impugnações ao teor do auto de arrolamento, e que se iniciaram com o requerimento com a ref.ª 22517390, do Apenso B dos presentes autos, datado de 16 de Maio de 2019, e que culminaram com o requerimento com a ref.ª 38102977, do presente apenso, a veracidade do auto de arrolamento foi posta em causa, a par da falta de aposição da assinatura do mesmo;
C- O tribunal também considerou como certos factos que por si não demonstram a conclusão encerrada na decisão, nomeadamente:
- As notas constantes do auto de arrolamento apresentado pelo Sr. AI, são as mesmas notas que constam do auto de arrolamento elaborado no âmbito do procedimento cautelar de arresto (Proc. n.º 1575/18.3 do 4 Juízo Central da Póvoa de Varzim), facto de que o tribunal tomou conhecimento pela comparação de ambos os documentos;
– A Insolvente reconhece que foram feitas fotografias a 26 de Fevereiro de 2019, mas nega a elaboração do auto de arrolamento;
D- Mais relevante porém é o facto de que a impugnação não se resume apenas à falta de assinatura, mas ainda à impugnação da realidade trazida ao auto de arrolamento, e que o tribunal não poderia ter dado sem mais como assente;
E- A obrigação de assinatura do auto de arrolamento por parte do detentor ou possuidor que é constituído fiel depositário não é apenas uma formalidade ad probationem, mas constitui uma formalidade ad substantiam, na medida em que a constituição de depositário tem que ser atestada e validade por entidade diversa que não o Administrador de Insolvência;
F- A importância da significação e instituição de depositário está directamente ligada com o estabelecimento da responsabilidade do depositário, sendo essa a razão pela qual a lei impõe a necessidade de atestação por testemunhas, de realização do auto, dado que, a validação da realidade constante do auto decorre da comprovação das declarações do AI, ou, através da aposição da assinatura do detentor ou possuidor dos bens, ou da atestação por duas testemunhas da realidade do auto;
G- A lei não confere ás declarações do AI valor de prova plena e que face fé em juízo, da mesma forma, em que a lei não consente que o AI se limite a juntar aos autos uma cópia ou versão de anterior auto de arrolamento realizado em providência cautelar, sem proceder à elaboração no local devido do mesmo, e obtendo as assinaturas devidas, sendo que, a necessidade de aposição das assinaturas de testemunhas ou a assinatura do possuidor ou detentor constituem uma formalidade ad probationem e ad substantiam, que contende com a validade da declaração do AI; Não constando do auto nem a assinatura do possuidor ou detentor, nem a menção do Sr. AI de que o possuidor ou detentor e fiel depositário se recusou a assinar ou não pode assinar o auto, as declarações apenas do Sr. Administrador constantes do auto não têm relevo ou valor, porque a lei não confere ao auto assinado apenas pelo Sr. Administrador de Insolvência valor probatório;
H- Assim a decisão em causa considera de forma indevida como assentes factos que pela sua natureza são controvertidos, e firma factos que não estão assentes para fundar a decisão, havendo assim uma errada apreciação da matéria de facto e de aplicação do direito aos factos;
I- A interpretação vertida na decisão em recurso do disposto no Art.º 150º n. 4 al. f) do CIRE e que corresponde a considerar que não constitui nulidade a falta de assinatura do detentor e possuidor dos bens que é constituído fiel depositário no auto de arrolamento é uma clara violação do princípio constitucional ao processo equitativo previsto no Art.º 20º n. 4 da CRP, ao conceder, ao arrepio da lei, relevância à simples declaração do Administrador de Insolvência, substituindo a assinatura do detentor ou possuidor e fiel depositário dos bens ou a declaração das duas testemunhas exigidas pela lei, bem como, do princípio da igualdade, ao estabelecer uma situação de especial credibilidade das declarações do AI, sobre as declarações dos demais sujeitos processuais.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no art. 17º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas[1].
Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pela apelante, são as seguintes as questões solvendas:
. da nulidade do auto de arrolamento por falta de assinatura do mesmo;
. da não produção da prova indicada pela insolvente para demonstrar a alegada desconformidade desse auto.
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III. FUNDAMENTOS DE FACTO

A materialidade a atender para a decisão do presente recurso é a que dimana do antecedente relatório.
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IV. FUNDAMENTOS DE DIREITO

Como se deu nota, o presente recurso incide sobre o despacho jurisdicional que julgou improcedente a nulidade processual invocada pela insolvente no requerimento que apresentou em 16 de maio de 2019.
Antes, porém, de entrar propriamente na apreciação do objeto do recurso, importa, como questão prévia, tomar posição sobre a recorribilidade desse despacho. É que, nos termos da lei adjetiva, esse ato jurisdicional encontra-se submetido a um regime específico de impugnação.
Dispõe, com efeito, o nº 2 do art. 630º do Cód. Processo Civil que “[n]ão é admissível recurso das decisões proferidas sobre as nulidades previstas no nº 1 do artigo 195º (…), salvo se contenderem com os princípios da igualdade ou do contraditório, com a aquisição processual de factos ou com a admissibilidade de meios de prova”.
Portanto, como emerge da exegese do transcrito inciso normativo, a decisão proferida sobre a arguição de nulidade processual é suscetível de recurso, mas tão-somente quando contenda com os princípios matriciais da igualdade ou do contraditório, com a aquisição processual de factos ou com a admissibilidade de meios de prova, isto é, estabelece uma exclusão condicional da recorribilidade desse ato decisório.
Consequentemente, dada a natureza excecional da recorribilidade das decisões que se pronunciem sobre nulidades processuais de cariz secundário (ou seja de nulidades previstas no nº 1 do art. 195º), competirá ao recorrente alegar que a nulidade relativa ocorrida – além de ser essencial por interferir no exame ou na decisão da causa – infringe pelo menos um dos referidos princípios ou contende com a admissibilidade de meios probatórios.
A exigência deste fundamento específico para a admissibilidade do recurso é um reflexo do princípio da instrumentalidade das formas ou do aproveitamento dos atos processuais, sendo tributária dos princípios da celeridade processual e da estabilidade do processo. Se o ato supostamente viciado não impede a função instrumental do processo – isto é, a declaração do direito substantivo não é prejudicada -, não estando comprometida a natureza equitativa deste, não deve ser admitida a sua destruição.
Por via disso, se vem entendendo[2] que a sindicabilidade do despacho proferido sobre a arguição de uma nulidade secundária está condicionada à alegação da concreta violação de algum dos princípios ou regras enunciados no citado nº 2 do art. 630º, isto é, cabe ao recorrente justificar a admissibilidade da impugnação, demonstrando a aplicabilidade, no caso, da cláusula de salvaguarda estabelecida nesse preceito legal, sob cominação de indeferimento do requerimento de interposição de recurso por a decisão o não admitir (art. 641º, nº 2, al. a)).
Ora, embora se nos afigure que a recorrente não densificou cabalmente o fundamento específico de recorribilidade, condescende-se, ainda assim, poder extrair-se das suas alegações recursivas que, in casu, estará em causa a aquisição processual de factos relevantes para o subsequente desenvolvimento do presente processo insolvencial, na justa medida em que o auto de arrolamento servirá de base à definição do acervo de bens a atender para a satisfação quer das dívidas da massa insolvente, quer das dívidas da insolvente.
Isto posto, importa, então, agora avançar para a apreciação das questões que a apelante coloca na sua peça recursória e que essencialmente se prendem com a ocorrência da nulidade do auto de arrolamento por o mesmo não se mostrar assinado, designadamente pelo seu legal representante, e bem assim por não lhe ter sido permitida a produção da prova que indicou no sentido de demonstrar que as menções constantes desse auto não correspondem à verdade.
Em conformidade com o que se dispõe nos arts. 36º, nº 1, al. g) e 149º, depois de declarada a insolvência do devedor, o administrador judicial nomeado procede à apreensão tanto dos elementos da contabilidade, como de todos os bens penhoráveis do insolvente. Com ela realiza-se, desde logo, uma finalidade de acautelamento, na medida em que o ingresso dos bens na esfera de disponibilidade material do administrador impede o insolvente de deles materialmente dispor, ocultando-os ou dissipando-os. Todavia, a função da apreensão consiste, essencialmente, em concretizar o conteúdo da massa insolvente e o objeto dos atos (de administração e de alienação) que sobre ela subsequentemente se irão realizar[3]. Trata-se, pois, de uma função semelhante à da penhora no processo executivo, embora, dos efeitos imediatos desta, só tenha o de atribuir ao administrador da insolvência o poder de administração dos bens apreendidos (art. 150º, nº1), posto que quer o efeito de inoponibilidade situacional dos atos de disposição dos bens da massa insolvente quer o da perda da administração dos bens pelo insolvente resultam, antes dela, da sentença de declaração da insolvência (art. 81º, nºs 1, 2 e 6).
Ainda de acordo com o citado art. 150º, a apreensão realiza-se mediante arrolamento ou por entrega direta através de balanço, sendo que, nos termos da al. d) do seu nº 4, o arrolamento consiste na “descrição, avaliação e depósito dos bens” que integrarão a massa insolvente, diligência essa que deverá ficar documentada em auto (al. e) desse mesmo nº 4), no qual serão descritos os bens em verbas numeradas “como em inventário”, sendo ainda destacada a entrega dos bens ao administrador da insolvência ou ao depositário especial, conforme os casos, e será nele feita menção de “todas as ocorrências relevantes com interesse para o processo”. Ainda por determinação da lei (al. e) desse nº 4) o auto é assinado por quem presenciou a diligência e por quem é possuidor ou detentor dos valores apreendidos. Se o possuidor ou detentor não puder ou não quiser assinar, esse auto será assinado por duas testemunhas a que se possa recorrer.
Descrito deste modo sumário a forma como se concretiza e documenta a apreensão dos bens da devedora insolvente, verifica-se que, no caso vertente, o administrador da insolvência elaborou auto de arrolamento que, no entanto, não foi assinado, designadamente pelo legal representante daquela.
Tomando posição sobre a questão, o juiz a quo, depois de afirmar a ocorrência dessa omissão – o que constitui, portanto, nulidade processual secundária à luz do disposto no nº 1 do art. 195º do Cód. Processo Civil, por se tratar de formalidade que a lei prescreve – considerou, todavia, que a mesma seria concretamente inoperante, estribando-se, para tanto, nas informações prestadas pelo administrador da insolvência.
Certo é que a insolvente, para além de suscitar o referido vício formal, indicou igualmente prova (designadamente pessoal) destinada a demonstrar a desconformidade desse auto com a realidade, sustentando que o mesmo não a retrata fielmente.
Quanto a este ponto o decisor de 1ª instância não se pronunciou sobre essa prova e oportunidade da sua produção, o que se impunha por assistir à insolvente o direito de sindicar a regularidade da diligência de apreensão e do auto de arrolamento que ficou a documentá-la.
Com efeito, neste domínio, ter-se-á de ter em consideração as imposições vertidas na Lei Fundamental, em particular no nº 4 do seu artigo 20.º, de onde emerge que o direito a um processo equitativo, envolve a opção por um processo justo em cada uma das suas fases, constituindo o direito fundamental à prova uma das dimensões em que aquele se concretiza. O direito à prova emana da necessidade de se garantir ao cidadão a adequada participação no processo e de assegurar a capacidade de influenciar o conteúdo da decisão.
De facto, como se sublinha no acórdão do Tribunal Constitucional de 11.11.2008 (acórdão nº 530/2008)[4], “o direito à tutela jurisdicional efetiva para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, genericamente proclamado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, implica um direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância de garantias de imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultados de umas e outras”.
O direito à prova significa, assim, que as partes/sujeitos processuais têm o direito a utilizarem a prova em seu benefício e como sustentação dos interesses e das pretensões que apresentarem em tribunal. E têm ainda o direito a contradizer as provas apresentadas por outro sujeito processual, bem como o direito à contraprova, sendo certo que, na prática, os intervenientes processuais têm sempre interesse em produzir provas, seja em relação aos factos que lhes são favoráveis, seja quanto à inexistência dos factos que os podem prejudicar (contraprova ou prova contrária).
Por esse motivo, assistia à apelante (enquanto sujeito interessado no processo insolvencial) o direito de ver jurisdicionalmente apreciada a prova que apresentou no sentido de demonstrar a alegada desconformidade do auto de arrolamento elaborado pelo administrador da insolvência, peça essa que, como se referiu, assume uma importância decisiva na delimitação dos bens cuja liquidação permitirá satisfazer os interesses dos seus credores.
Impõe-se, por isso, a procedência do recurso, devendo o tribunal recorrido permitir a produção da prova indicada pela apelante com vista à demonstração da materialidade por si alegada.
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V. DISPOSITIVO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação, em consequência do que se revoga a decisão recorrida, determinando-se a devolução dos autos à 1.ª instância para aí prosseguirem os seus ulteriores termos, designadamente com a produção da prova indicada pela insolvente com vista à demonstração da alegada desconformidade do auto de arrolamento.
Sem custas.

Porto, 24.10.2022
Miguel Baldaia de Morais
Jorge Seabra
Fátima Andrade
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[1] Diploma a atender sempre que se citar disposição legal sem menção de origem.
[2] Cfr., por todos, na doutrina, ABRANTES GERALDES, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2ª edição, Almedina, pág. 65 e RAMOS DE FARIA/ANA LOUREIRO, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, vol. II, Almedina, 2014, pág. 33; na jurisprudência, acórdãos da Relação de Lisboa de 10.05.2018 (processo nº 1905/13.4TYLSB-F.L1-6) e de 13.10.2020 (processo nº 14091/09.5T2SNT-C.L1-7), acessíveis em www.dgsi.pt.
[3] Tem-se discutido a este propósito se a apreensão é uma providência executiva ou antes uma providência meramente conservatória, sendo que a posição maioritária (cfr., por todos, CATARINA SERRA, in Lições de Direito da Insolvência, Almedina, 2019, pág. 256) vem defendendo que a apreensão é simultaneamente uma coisa e outra, na medida em que tanto evita que o devedor pratique atos que possam diminuir a garantia dos credores como permite a liquidação para ulterior pagamento aos credores.
[4] Acessível em www.tribunalconstitucional.pt.