Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0541313
Nº Convencional: JTRP00038281
Relator: ANTÓNIO GAMA
Descritores: BURLA PARA ACESSO A MEIOS DE TRANSPORTE
Nº do Documento: RP200507060541313
Data do Acordão: 07/06/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: .
Sumário: Estando em causa a utilização de meio de transporte, a dívida contraída, para efeitos do srtigo 220º nº1, alínea c) do CP95, é referida ao valor do bilhete, em singelo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:

O Ministério Público, não se conformando com o despacho do Ex.mo juiz que rejeitou, por manifestamente infundada, a acusação deduzida contra o arguido B............, pela prática de um crime de burla, p. e p. nos termos do art.º 220º n.º 1 al. c.) do Código Penal veio recorrer finalizando a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:
O Crime de burla para a obtenção de serviços, p. e p. pelo art.º 220, n.º 1 c.) do Código Penal está numa relação de concurso aparente coma transgressão p. e p. pelo art.º 3º do Decreto Lei n.º 108/78, de 24 de Maio;
Isto porque o referido diploma legal se encontra em vigor, dado nunca ter sido expressamente revogado por legislação penal posterior, nem se encontra tacitamente revogado, por ter campo de aplicação distinto do crime em apreço;
Assim, segundo o princípio do concurso de normas lex specialis derrogat lex generalis, deve prevalecer a lei penal;
Encontram-se na acusação pública todos os pressupostos – elementos típicos – do crime de burla de serviços (a utilização pelo agente de um meio de transporte; o conhecimento que essa utilização supõe o pagamento de um preço; a recusa de solver a dívida), pelo que o Mmo juiz deveria havê-la recebido e designado data para julgamento;
Ao rejeitar a acusação pública, por a considerar manifestamente infundada, o despacho recorrido violou o disposto nos art.º 311º, n.º 2 al. a) e 312º, do Código Processo Penal e o disposto no art.º 220º n.º 1 al. c.) do Código Penal.
Pede a revogação do despacho recorrido determinando-se a sua substituição por outro que receba a acusação e designe dia para julgamento.

Admitido o recurso o arguido não respondeu.
Já neste Tribunal o Ex.mo Procurador Geral Adjunto foi de parecer que o recurso merece provimento.
Cumpriu-se o disposto no art.º 417º n.º 2 do CPPenal e após os vistos realizou-se conferência.

O despacho recorrido:
(...)
O arguido vem acusado da prática de um crime de burla para obtenção de serviços, p. e p. pelo art.º. 220º do CP. Isto porque, de acordo com o libelo acusatório, o arguido entrou num autocarro, fez determinado percurso, não pagou a tarifa em vigor e não liquidou tal importância posteriormente, em prazo que lhe foi dado.
Saber se este tipo de factos constitui crime é questão que tem vindo a ser debatida na jurisprudência há longo tempo, não se podendo dizer com segurança qual a posição prevalecente. Assim, para uns, estes factos consubstanciarão apenas um ilícito contravencional (agora contraordenacional), enquanto que para outros haverá um ilícito criminal, qual seja o do art.º 220º do CP.
Dando aqui por reproduzidos os argumentos de cada uma das posições referidas, temos que para nós os factos constantes da acusação não constituem crime, antes contraordenação. Com efeito, o DL 108/78, de 24/05, entrou em vigor pela necessidade sentida de regulamentar o direito e a forma de exercer a fiscalização nos serviços de transportes colectivos, em função da infracção cometida; ou seja, em 1978 construiu-se um “edifício legislativo” que visou garantir o respeito da obrigação legal de pagar o preço do transporte. E isto porque não havia, à data, nenhuma norma incriminadora deste tipo de condutas (designadamente no CP 1886).
A entrada em vigor do CP de 1982 acarretou o problema da eventual sobreposição da (agora) norma do art.º 220º do CP com as disposições do DL 108/78 – daí nascendo a aludida divergência jurisprudêncial. Vários arestos têm defendido que a partir da entrada em vigor do CP de 1982 se verificou uma revogação (ainda que tácita) das normas do DL 108/78. Salvo o devido respeito, não subscrevemos os respectivos argumentos. Antes sufragamos os daqueles que defendem que se uma conduta preencher em simultâneo os elementos constitutivos do art.º 220º do CP e dos artºs. 3º a 5º do DL 108/78, deve prevalecer a infracção deste último diploma, uma vez que contém um elemento especializador. E esta relação de especialidade reclama o afastamento do disposto no art.º 220º do CP.
Ou seja, subsiste meramente um ilícito contraordenacional.
O art.º 220º configura um tipo de burla irregular; e sua consagração (no CP/82 através do art.º 316º) surgiu da necessidade de punir situações que a lei, até aí, não punia (sendo que o CP 1886 era totalmente omisso nessa matéria). Só que, ao que cremos, a nova punição (a nova criminalização) não teve como intuito primeiro interferir no plano das disposições especiais já em vigor (através de legislação extravagante) para alguns meios de transporte; visou, isso sim, as situações que ainda não eram contempladas por legislação (p. ex. táxis, barcos, etc) – não se vislumbrando que, historicamente, tenha havido necessidade de alterar / modificar o já aludido “edifício legislativo”.
(...)
Por isso, julgamos que não operou em momento algum a conversão de ilícito contraordenacional em criminal. Os factos, tal qual descritos na acusação, não constituem crime (neste sentido, Acs. RL de 07/11/84 e 30/01/85, in BMJ, 368, pág. 463 e 350, pág. 386, respectivamente; RC de 15/02/89, in CJ XIV, tomo 1, pág. 77; RP de 27/02/89).
Pelo exposto, decide-se rejeitar a acusação, nos termos conjugados do art.º 311º, nº.2, al. a) e nº.3, al. d), do CPP.

O Direito:
A questão a decidir consiste em saber se o passageiro de transporte colectivo rodoviário que o utiliza sem pagar o respectivo preço comete um crime de burla [posição do Ministério Público] ou uma contra-ordenação [tese do despacho recorrido], ou então é passível de outra sanção.
*
A resposta á enunciada questão pressupõe que previamente se tome posição quanto à vigência ou não do Decreto Lei n.º 108/78, de 24.5.
Entendemos que o Decreto Lei n.º 108/78, de 24.5 se encontra em vigor, não só porque o n.º 2 do art.º 6º do Decreto Lei n.º 400/82, de 23/9, não o revogou expressamente, como também o n.º 1 do mesmo preceito excepciona as normas relativas a contravenções, e finalmente porque o âmbito de previsão e aplicação daquele diploma legal e do disposto no art.º 220º, n.º 1 al. c.) do Código Penal [quer do pré-vigente 316º, n.º 1 al. c.)] não é coincidente. Daí resulta, em abstracto, que a utilização de transportes colectivos de passageiros sem título de transporte, tanto pode integrar uma contravenção ou um crime [Assim também o Acórdão da RL de 16.1.96 CJ XXXI Tomo I pág. 150].
Como refere o Ex.mo Procurador Geral Adjunto, para que a conduta seja punida como crime exige-se, art.º 220º n.º 1 do Código Penal [Neste sentido Acórdão RC de 22.6.1994, CJ XIX, Tomo III, pág. 59]:
intenção de não pagar;
utilização de meio de transporte;
sabendo que tal supõe o pagamento de um preço;
recusa de solver a dívida contraída.
Não se exige uma especial actuação astuciosa na indução de erro ou engano [Acórdão da RL de 22.9.98 CJ XXIII, Tomo IV, pág. 139].
Do confronto do tipo legal de crime com a previsão legal da contravenção constata-se, como salienta o Ex.mo Procurador Geral Adjunto, que só o segundo e o terceiro requisitos são comuns ao crime e à contravenção, satisfazendo-se esta com a mera negligência – v. g. esquecimento de adquirir ou de obliterar o bilhete – pelo que, não pode com propriedade falar-se de qualquer relação de especialidade entre o regime penal e o convencional, como se faz no despacho recorrido.
Depois, o despacho recorrido mete no mesmo saco contra-ordenações e contravenções, sendo certo que a utilização de transportes colectivos de passageiros sem título de transporte, não constitui [por agora [A «conversão das transgressões e contravenções ainda existentes (...) em contra-ordenações» é propósito confessado do Governo, cfr. Resolução do Conselho de Ministros n.º 100/2005, DR I Série B de 30 de Maio de 2005]] contra-ordenação, apenas pode configurar ou crime ou contravenção, ilícitos de natureza diferente da contra-ordenação.
Não releva, para afastar o crime, o argumento de que o STCP só comunica ao Ministério Público os casos em que nada recebe dos infractores, o que tem subjacente o entendimento de que não é crível que uma conduta qualificada pela lei como crime pode deixar de o ser pelo simples facto de o agente pagar voluntariamente o montante em dívida dentro do prazo que para o efeito lhe é concedido pela lei, pois, como refere Almeida Costa [Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo II, pág. 322] no caso do art.º 220º do Código Penal, estamos perante uma burla privilegiada, que se encontra perfeita apenas quando e agente se nega a solver a dívida contraída (....) a consumação só ocorre quando o agente, depois de instado para o efeito, adopte uma atitude que signifique a recusa efectiva em proceder à liquidação do débito.
Ora da acusação não constam todos os factos para que a conduta do arguido possa ser punida como crime, concretamente a negação em solver a dívida contraída.
A lei penal, art.º 220º n.º 1 al. c.) do Código Penal, ao referir negar a solver a dívida contraída só pode querer aludir ao preço da viagem efectuada e que não foi paga, ou seja, ao não pagamento do singelo preço do bilhete sem qualquer acréscimo. Ora dos autos não resulta, com segurança bastante, que o arguido se recusou ou negou a pagar o preço da viagem. Para tal se poder concluir era necessário que lhe tivesse sido facultada a oportunidade desse pagamento e dos autos não resulta que foi. Bem pelo contrário: da circunstância de ter sido emitido de imediato o aviso para pagamento da multa e do preço do transporte, conforme o disposto no Decreto Lei n.º 108/78, pode concluir-se que não chegou a ocorrer negação de solver a dívida. Questão diversa, mas que aqui não importa resolver, é a de saber se a exigência do art.º 220º do Código Penal «negar a solver a dívida», na prática é incompatível com o procedimento prescrito no Decreto Lei n.º 108/78, originando que a maior parte das infracções sejam punidas como contravenção.
Do exposto resulta, se bem que por razões diversas das invocadas no despacho recorrido, a improcedência do recurso.
Finalmente, como os factos integram a contravenção dos artºs 1º , 2º e 3º al. a) do Decreto Lei n.º 108/78, importa advertir que o despacho recorrido não se devia ter limitado à rejeição da acusação: devia ter ordenado a remessa dos autos ao tribunal competente para apreciar a contravenção [Acórdão desta Relação de 19.5.93 referido por Leal Henriques e Simas santos, Código Penal anotado, 2º vol. 1997, pág. 580, Acórdão da RP de 16.6.93 CJ XVIII tomo III pág. 259 e Acórdão da RP de 14.7.93 CJ XVIII tomo IV, pág. 249].

Decisão:
Na improcedência do recurso mantém-se a decisão recorrida.
Sem tributação.
Porto, 6 de Julho de 2005
António Gama Ferreira Ramos
Luís Eduardo Branco de Almeida Gominho
José do Nascimento Adriano