Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
16073/21.0T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ERNESTO NASCIMENTO
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
INCUMPRIMENTO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
EXAME DA COISA LOCADA
ASSÉDIO PELO SENHORIO
INCONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: RP2023042016073/21.0T8PRT.P1
Data do Acordão: 04/20/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – No silêncio do contrato, o senhorio – na hipótese de pretender vender o locado, na vigência, ou quando findar, o contrato de arrendamento, mas não queira esperar que o mesmo fique vago – não tem o direito de exigir que o inquilino seja obrigado a aceitar as visitas de potenciais compradores do locado.
II – Não tem o direito de, invocando a obrigação do locatário em lhe facultar o exame da coisa locado, pretender que o inquilino faculte o acesso ao locado dos potenciais compradores do mesmo. Nem ao abrigo da previsão da dita alínea b) do artigo 1038.º, nem de qualquer outra.
III – Se não há incumprimento, fica afastada, desde logo, a possível verificação da causa de resolução do contrato, estruturada no preenchimento da cláusula geral contida no artigo 1083.º/2 Ccivil.
IV – A verificação de uma situação susceptível de integrar a noção de assédio, proibido e punido nos termos da Lei 12/2019 de 12FEV, através do aditamento ao artigo 13.º-A ao NRAU, tem as consequências previstas no, também, aditado artigo 13.º-B.
V – Sem a virtualidade, o efeito, de que a conduta se possa traduzir num facto modificativo, impeditivo ou extintivo do alegado direito do senhorio, à resolução do contrato de arrendamento, consabidamente, estruturado em incumprimento por parte do inquilino – salvo, porventura, numa situação de abuso de direito, por parte do senhorio.
VI – Não é inconstitucional, por violação dos artigos 20.º e 62.º da Constituição, a interpretação extraída da conjugação das normas contidas nos artigos 1038.º alínea b) e 1081.º/3 e 4 Ccivil, segundo a qual,
- nada se estipulando no contrato de arrendamento, ao senhorio e/ou terceiros interessados na aquisição da coisa locada,
- está vedado o seu exame, tendo em vista a transmissão da sua propriedade,
- quer porque tal pretensão não se encontra abrangida pelo estatuído na alínea b) do artigo 1038.º CCivil,
- quer porque o arrendatário apenas está obrigado a facultar o pretendido acesso nos termos do artigo 1081.73 e 4 do mesmo diploma.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 16073/21.0T8PRT.P1

Apelação - Processo 16073/21.0T8PRT - Despejo - do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Cível do Porto - Juiz 1

Relator - Ernesto Nascimento
Adjunto - Carlos Portela
Adjunto - António Paulo de Vasconcelos

Acordam na 3a Secção do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
"A..., Lda." instaurou contra AA e BB a presente acção declarativa com processo comum, pedindo que,
- seja declarada a resolução do contrato e que os réus sejam condenados a entregar-lhe o locado livre de pessoas e bens;
- os réus sejam condenados a pagar-lhe, "a título de indemnização", as rendas estipuladas, em dobro a partir da mora, até efectiva restituição do locado; e
- sejam condenados a pagar-lhe a quantia de 2.500 €, a título de cláusula penal, alegando, em resumo que,
- na qualidade de senhoria, celebrou, em 29-10-2018, com o 1.º réu, na qualidade de inquilino, um contrato de arrendamento, pelo prazo de 10 anos, destinado a habitação (podendo o 1o réu nele desenvolver, igualmente, a actividade de prestação de serviços de alojamento),
- o 2.º réu interveio nesse contrato como fiador (e principal pagador) das obrigações assumidas pelo 1.° réu;
- pretendendo levar a cabo a venda da fracção locada, o 1.º réu não facultou a realização de visitas ao mesmo pelos potencias compradores;
- o que constitui incumprimento do contrato, o qual, pela sua gravidade, é motivo fundador da sua resolução;
- e, gera a aplicação da cláusula penal, no montante de € 2.500,00, prevista no contrato para a hipótese de ocorrência de qualquer incumprimento.
Citados, contestaram os réus, pugnando pela improcedência da acção, alegando, em síntese, que,
- o arrendatário não está legalmente obrigado a facultar a realização de visitas a potenciais compradores do locado, sendo que nunca a autora, directamente, as solicitou, tendo-o feito através de agente imobiliário;
- o arrendatário só está obrigado a permitir o exame da coisa ao locador, nos termos do artigo 1038.° alínea b) CCivil, bem como a mostrar locado a potenciais arrendatários nos três meses anteriores à cessão do contrato, nos termos do artigo 1081.°/3 e 4, do mesmo diploma - e, no caso, nenhuma destas circunstâncias se verifica;
- ainda que assim não se entendesse, sempre a realização de tais visitas pelos potenciais compradores contenderia com a reserva da vida privada dos seus clientes e hóspedes, assim violando o locador a sua obrigação, prevista no artigo 1031.° alínea b) CCivil, de assegurar o gozo da coisa ao locatário.
Realizou-se a audiência prévia, tendo, nessa sede, sido dada oportunidade às partes para se pronunciarem quanto ao eventual conhecimento do mérito da acção.
Após o que por se entender que o estado do processo permite, sem necessidade de mais provas, o conhecimento do mérito da causa (sendo certo que, em sede de audiência prévia, já foi dada às partes a oportunidade de discutirem as questões em apreço), foi, de imediato proferido despacho saneador-sentença, nos termos do artigo 595.°/1 alínea b) CPCivil, a julgar a acção improcedente, absolvendo os réus dos pedidos.
Inconformada recorre a autora rematando as alegações com as conclusões que se passam a transcrever:
1. Vem o presente recurso interposto da, aliás douta, sentença de 29/11/2022, que julgou a ação improcedente e absolveu os réus dos pedidos formulados pela autora,
2. Para o efeito, entendeu que a causa de pedir da autora não integrava as previsões dos artigos 1038.º alínea b/ e 1081.º/3 e 4 CCivil, pelo que, mesmo provando-se a versão fáctica descrita na petição inicial, a improcedência da acção seria uma inevitabilidade.
3. Salvo o devido respeito por melhor opinião, sem razão,
4. O artigo 1083.º/1 e 2 (1ª parte) CCivil consagra uma cláusula geral de resolução do contrato de arrendamento, baseada na boa-fé contratual, da qual resulta, que qualquer tipo de incumprimento (não expressamente referido nas diversas alíneas) pode fundamentar a resolução que pela sua gravidade e consequências torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento.
5. O que tudo terá de ser aferido pelo Digno Tribunal em atenção às concretas condutas em causa nos autos.
6. A douta sentença recorrida fez uma errada interpretação conjugada dos preceitos do Código Civil por ela invocados, designadamente, do artigo 1038.º alínea b CCivil (interpretação ilegalmente restritiva) e do artigo 1081.°/3 e 4 do mesmo diploma (inaplicável ao caso dos autos).
7. A recorrente pretendia exercer aquele direito, alínea b) do artigo 1038.° CCivil; exame do locado), que é conferido por Lei em termos amplos (acesso ao arrendado para sua análise por interessados na compra da fração), em termos moderados, não abusivos, não perturbando o gozo do local pelo arrendatário (cfr. por exemplo, o documento n.° 7 junto com a p. i. em que se solicita que seja o arrendatário a marcar dia e hora convenientes para o pretendido exame).
8. Foi alegado que dos 16 andares habitacionais que compõem aquele imóvel, 15 foram vendidos sem quaisquer problemas (acesso, visitas, etc.) e que o andar ocupado pelo 1.° réu foi o último a ser vendido (mais de dois anos de atraso face ao injustificado comportamento daquele).
9. Foi invocado que o próprio réu, em 17/07/2020, tinha adquirido um outro andar à Autora!! - cfr., documento n° 1 junto com a réplica, sendo, portanto, falsas as razões da sua atitude (que não o informaram da intenção de venda dos andares, que não queria incomodar os "hóspedes", etc., etc.).
10. E que a única razão para a tentativa de obstaculização da venda do andar foi, da parte do réu, o querer ganhar tempo para, mais tarde, exercer a preferência na venda e... comprar um segundo andar...; nada mais!
11. Ora, toda esta prova seria produzida (e corroborada) em audiência de julgamento - o que a douta decisão recorrida impediu...
12. Prosseguindo os autos e provado que fosse (nessa hipótese) que o réu/inquilino incumprira, de forma constante, a obrigação que lhe impunha facultar ao senhorio o exame da coisa locada (diretamente ou por terceiros, v.g. interessados na compra do imóvel), tal incumprimento configurar-se-ia como grave, de tal modo a tornar inexigível ao senhorio a manutenção do contrato de arrendamento e a conferir-lhe o direito a ser indemnizado nos termos contratualmente estabelecidos e peticionados.
13. Face ao preceituado no artigo 1083.º/1 e 2 (Ia parte) o Digno Tribunal deveria ter ordenado o prosseguimento dos autos para, depois, face à prova produzida, poder aferir se a previsão daqueles preceitos se preenchia, ou não, em função da "gravidade" ou "consequências" do incumprimento resolutivo.
14. A douta decisão recorrida interpretou conjugada e inconstitucionalmente os artigos 1038.° alínea b) e 1081.°/3 e 4 CCivil, ao defender (1) que nada se estipulando no contrato de arrendamento, ao senhorio e/ou terceiros interessados na aquisição do imóvel seu objecto (do contrato), (2) está vedado o exame da coisa locada tendo em vista a transmissão da sua propriedade, (3) quer porque tal pretensão não se encontra abrangida pelo estatuído na alínea b) do artigo 1038.° CCivil, (4) quer porque o arrendatário apenas está obrigado a facultar o pretendido acesso nos termos do artigo 1081.°/3 e 4 do mesmo diploma.
15. O que não se poderá admitir, uma vez que, nessa interpretação, o direito a transmitir a propriedade vê-se afetado no seu conteúdo essencial.
16. Na verdade, a recorrente viu-se privada (ou gravemente afetada) no seu direito de propriedade (impedida de vender durante mais de dois anos), e, cumulativamente, a adoptada interpretação comprime, de modo desproporcionado, o direito à tutela jurisdicional efetiva do direito de propriedade da recorrente, artigos 20.º e 60.º da CRP.
17. Pelo contrário, a recorrente defende que o disposto na alínea b) do artigo 1038.° CCivil, abrange as situações em que o senhorio e/ou terceiros interessados na transmissão da propriedade do imóvel o pretendem examinar, desde que tal faculdade seja exercida em termos moderados e sem perturbação do gozo do local pelo arrendatário, a quem deverá ser concedida a faculdade de designação de dia e hora para o efeito.
18. A douta decisão recorrida violou, por erro de interpretação, o disposto nos citados preceitos legais, artigos 1038 alínea b), 1081.°/3 e 4 CCivil, dando-lhes, inclusivamente, uma interpretação conjugada inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 20.° e 60.° da CRP, devendo ser revogada e substituída por outra que julgue no sentido antes defendido, ordenando o prosseguimento dos autos, assim se fazendo JUSTIÇA.
Contra-alegou a ré, rematando as alegações com as seguintes conclusões:
I. A discordância da recorrente prende-se com o facto do Tribunal a quo não ter decidido na sua douta opinião com acerto e correção determinada, "por erro de interpretação, o disposto nos citados preceitos legais, artigos 1038.° alínea b) e 1081.°/3 e 4 CCivil, dando-lhes, inclusivamente, uma interpretação conjugada inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 20.° e 60.° da CRP, devendo ser revogada e substituída por outra que julgue no sentido antes defendido, ordenando o prosseguimento dos autos, assim se fazendo".
II. A recorrente faz uma interpretação contrária ao consagrado na legislação.
III. Quando um inquilino/recorrido arrenda uma casa é-lhe atribuído um conjunto de direitos como se a casa fosse sua.
IV. Portanto o senhorio/recorrente não deve entrar na casa arrendada sem autorização do inquilino, pois este tem direito à sua privacidade e a não ser incomodado.
V. Existem algumas exceções onde o inquilino é obrigado a permitir as visitas do senhorio ao imóvel:
- o previsto no artigo 1038.º alínea b) CCivil ou
- quando o contrato se encontra na iminência de cessar, descritas nos termos do artigo 1081.º Código Civil.
VI. O senhorio tem direito a examinar o imóvel em situações muitas delimitadas. Contudo, mesmo nestas situações não se pode entrar no imóvel contra a vontade do inquilino, o que poderá resultar em invasão de propriedade pelo senhorio, de forma que estas visitas deverão ser agendadas com antecedência, feitas através de consultas com o inquilino sobre a hora e a data das mesmas.
VII. Ora, nos autos conforme resulta do alegado pela autora/recorrente as solicitações para visita ao imóvel mencionadas na petição visavam, exclusivamente, apresentar o imóvel a potenciais interessados na sua compra; não é alegada, designadamente, nos artigos 30 a 33 e ss. da petição, nenhuma situação específica em que a autora tenha solicitado a visita o imóvel para proceder tão-somente ao seu exame com fundamento na faculdade prevista no artigo 1038.° alínea b).
VIII. Conforme o alegado pela autora todas as solicitações concretamente alegadas na petição visavam a visita do imóvel por terceiros interessados na sua compra.
IX. Sendo certo que o réu/recorrido, nos termos do artigo 1081.º/3 e 4 CCivil, só estaria obrigado a mostrar o locado a outras pessoas (que não o locador, no âmbito da faculdade prevista no artigo 1038.° alínea b)) numa situação especifica: designadamente, nos três meses anteriores à cessação do contrato, e a quem o pretendesse tomar de arrendamento.
X. Nesta hipótese, essas visitas devem ocorrer, segundo o mencionado no aludido n.° 4, em horário acordado com o senhorio ou, na falta de acordo, nos dias úteis, das 17 horas e 30 minutos às 19 horas e 30 minutos e, aos sábados e domingos, das 15 às 19 horas.
XI. O legislador optou, conforme decorre do quadro legal vigente - mormente, do disposto no artigo 1081.º/3 e 4 - pela seguinte solução de compromisso:
o locatário só está obrigado a suportar as visitas ao imóvel por terceiros:
que pretendem arrendar o locado e durante os últimos três meses de vigência do contrato.
XII. Como consequência do alegado, qualquer comportamento do senhorio que não se enquadram nestas exceções, e que resultem em um ambiente intimidativo, hostil, degradante, perigoso, humilhante, desestabilizador ou ofensivo ou que tenham o objetivo de provocar a desocupação do imóvel e perturbe o arrendatário são considerados assédio e punidos por lei.
XIII. Esta imposição legal foi ainda vincada pelo legislador, aquando da alteração ao Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU) promovida pela Lei 12/2019, de 12 de fevereiro, que veio instituir uma "nova" obrigação para o senhorio, a proibição do assédio no arrendamento, entendendo-se como assédio, nos termos legais, "qualquer comportamento ilegítimo do senhorio, de quem o representa ou de terceiro interessado na aquisição ou na comercialização do locado, que, com o objetivo de provocar a desocupação do mesmo, perturbe, constranja ou afete a dignidade do arrendatário, subarrendatário ou das pessoas que com estes residam legitimamente no locado, os sujeite a ambiente intimidativo, hostil, degradante, perigoso, humilhante, desestabilizador ou ofensivo, ou impeça ou prejudique gravemente o acesso e a fruição do locado".
XIV. Inexistindo qualquer incumprimento dos réus/recorridos, não terá a autora/recorrente, o direito à peticionada resolução do contrato; do mesmo modo, afastada se encontra a responsabilidade contratual dos réus no pagamento da quantia estipulada a título de cláusula penal para a hipótese de incumprimento.
XV. Pelo exposto, mesmo provando-se a versão fáctica descrita na petição inicial, a improcedência da ação é uma inevitabilidade.
XVI. Ora, estando vedada a prática de atos inúteis no processo, cfr. artigo 130.º CPCivil, não se justifica o prosseguimento dos autos para julgamento, devendo a ação ser considerada, desde já, totalmente E não assiste razão ao recorrente no que toca aos fundamentos invocados que sustentam e fundamento este recurso.
Seguidamente foi proferido despacho a admitir o recurso, como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo da decisão, nos termos dos artigos 638.º/1, 644.º/1 alínea a), 645.º/1 alínea a), 647.º/3 alínea b) e 629.º/3 alínea a) CPCivil.
Remetido o processo a este Tribunal, foi proferido despacho onde se teve o recurso por próprio, tempestivamente interposto e admitido com efeito e modo de subida adequados.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir, uma vez que a tal nada obsta.

II. Fundamentação

II. 1. Tendo presente que o objecto dos recursos é balizado pelas conclusões da motivação apresentada pelo recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas - a não ser que sejam de conhecimento oficioso - e, que nos recursos se apreciam questões e não razões, bem como, não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido, então, as questões suscitadas no presente são as de saber se,
- a alegada oposição do 1.º réu à realização de visitas ao locado por interessados na compra do mesmo constitui incumprimento contratual;
- em caso afirmativo, se é fundamento para a resolução do contrato;
- é conforme com os artigos 20.º e 60.º da CRP a interpretação do artigo 1038.º alínea b) CCivil, no sentido de que o locatário não está obrigado a facultar o exame ao locado, por parte dos potenciais compradores, quando o senhorio o decidiu vender.

II. 2. Vejamos primeiramente os fundamentos da decisão recorrida.

II. 2. 1. Factos provados
1 - A Autora é uma sociedade comercial por quotas que se dedica ao comércio de comissões, representações, consignações e conta própria.
2 - A A. foi proprietária, entre 4-11-1970 e 8-7-2022, da fracção autónoma "S", correspondente a 1.° andar esquerdo, com acesso pela n.° ... da Calçada ..., destinada a habitação, que integra o prédio urbano sito no gaveto da Rua ..., ... e Calçada ..., ..., da freguesia ..., concelho do Porto, matriz ..., descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.° ....
3 - A A. deu essa fracção de arrendamento, em 29-10-2018, ao 1º Réu AA, através do contrato junto como doe. 4 à petição.
4 - Nos termos da cláusula 4ª desse contrato, o arrendamento foi celebrado, pelo prazo de 10 anos, tendo o seu início a 1-11-2018.
5 - Nos termos da cláusula 2ª, o locado destinava-se à habitação.
6 - Nos termos da cláusula 2º paragrafo 1º, ficou acordado que "O Arrendatário fica autorizado a desenvolver no arrendado a prestação de serviços de alojamento, ficando expressamente esclarecido ser da exclusiva responsabilidade do inquilino diligenciar e obter todas e quaisquer licenças ou autorizações, públicas ou privadas, que se mostrem ou venham a mostrar, necessárias para tanto, nunca podendo a senhoria ser responsabilizada pela sua não obtenção, término, caducidade ou não renovação."
7 - Nos termos da cláusula 2ª, paragrafo 1º, ficou acordado que "O arrendatário assume também, desde já e expressamente, toda e qualquer responsabilidade (por coimas, multas, indemnizações, etc.) decorrente do exercício de tal actividade (prestação de serviços de alojamento), mais se obrigando a indemnizar a Senhoria por todo e qualquer prejuízo que a mesma venha a suportar por tal facto".
8 - Na cláusula 5ª, foi convencionado o pagamento mensal de uma renda à Autora no montante de 625 €, montante este que, fruto das actualizações, se cifra actualmente na quantia de 635,41 €.
9 - Consta da cláusula 13* o seguinte: "Dada a natureza temporária deste contrato e a faculdade que a Senhoria tem em o denunciar, em qualquer uma das prorrogações, fica desde já estabelecida entre os Outorgantes, para além das penalidades legais aplicáveis (designadamente, o pagamento de uma indemnização mensal, igual à renda, por todo o tempo que vigorar qualquer eventual mora na entrega do arrendado), uma cláusula penal de 2 500 €, para o caso de incumprimento ou mora na entrega do arrendado à Senhoria no término do contrato, deterioração do mesmo e ou qualquer outro tipo de incumprimento contratual contratual por parte do inquilino".

10 - Consta da cláusula 14ª o seguinte: "O Terceiro Outorgante [o R. BB] responsabiliza-se, solidariamente, como fiador e principal pagador, pelas obrigações assumidas pelo Arrendatário (designadamente, as rendas, estragos verificados no arrendado e cláusula penal ajustada na cláusula décima terceira), tanto na vigência do período inicial, como na vigência dos periodos em que o contrato eventualmente se venha a renovar, mesmo que haja alteração de renda, expressamente renunciando ao beneficio da excussão, mantendo todas as obrigações constituídas e a responsabilidade até à entrega efectiva do arrendado à Senhoria (mesmo que posterior à resolução ou denuncia do contrato).".

II. 2. 2. De direito.
"Entre a A. e o 1º R. foi celebrado um contrato de arrendamento, tendo por objecto uma fracção autónoma,
O contrato de locação é aquele pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição (art. 1022° do CC), dizendo-se arrendamento a locação quando verse sobre coisa imóvel (art. 1024° do CC).
Atentos os concretos termos em que o A. descreve a causa de pedir em sede de petição inicial, bem como o pedido, a final, formulado, forçoso é concluir que estamos perante uma acção de despejo.
Com efeito, pede a A. que se declare a resolução do contrato, com base em incumprimento do mesmo pelos RR., nos termos do art. 1083°, n°s 1 e 2, do CC, bem como a condenação destes a restituir o locado livre de pessoas e bens.
Alega a A. que, pretendendo levar a cabo a venda da fracção locada, o 1º R. não facultou a realização de visitas ao mesmo pelos potenciais compradores.
Afirma que tal conduta constitui incumprimento do contrato, o qual, pela sua gravidade, é motivo fundador da peticionada resolução.
Vejamos.
Nos termos do art. 1038°, al. b), do CC, constitui obrigação do locatário "facultar ao locador o exame da coisa locada".
Conforme decidido no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14-1-2020, in www.dgsi.pt, esta obrigação legal visa permitir ao senhorio controlar o bom estado do imóvel e, eventualmente, suprir deficiências ou exigir responsabilidade pelos danos a este causados.
Assim sendo, se o arrendatário não faculta ao senhorio o exame da coisa locada, impedindo-lhe o acesso à mesma, ocorrerá incumprimento que, consoante a sua gravidade, a apurar segundo as circunstâncias do caso concreto, nos termos do mencionado art. 1083°, n° 2, do CC, poderá ser fundamento da resolução do contrato de arrendamento por parte do senhorio.
Conforme referido, o A., visando vender o locado, pretendia que o R. facultasse o acesso ao locado para realização de visitas por potenciais interessados na sua aquisição.
Da alegação exposta nos arts. 12° a 29° da petição decorre, desde logo, que o A. não pretendia, na realização dessas visitas, examinar o locado com os fins acima previstos.
Com efeito, tais visitas seriam levadas a cabo, não pelo A., mas pelos interessados na compra do imóvel (e pelas pessoas responsáveis pela intermediação da venda).
Ou seja, as solicitações para visita ao imóvel mencionadas na petição visavam, exclusivamente, apresentar o imóvel a potenciais interessados na sua compra; não é alegada, designadamente, nos arts. 30 a 33° e segs. da petição, nenhuma situação específica em que a A. tenha solicitado a visita o imóvel para proceder tão-somente ao seu exame com fundamento na faculdade prevista no art. 1038° al. b). Pelo contrário: todas as solicitações concretamente alegadas na petição visavam a visita do imóvel por terceiros interessados na sua compra.
Assim, não podia a A. fundar a sua pretensão no disposto no art. 1038°, al. b), do CC.
Daqui decorre que o R. não estava legalmente obrigado a facultar o acesso ao imóvel aos referidos terceiros para realização dessas visitas tendentes à sua venda.
Refira-se que a realização dessas visitas contenderia, inclusivamente, com o direito do R. no gozo do locado, sendo que é obrigação do A./locador assegurar-lhe esse gozo, nos termos do art. 1031°, n° 1, al. b), do CC.
Nesta perspectiva, o R., nos termos do art. 1081°, n°s 3 e 4, do CC, só estaria obrigado a mostrar o locado a outras pessoas (que não o locador, no âmbito da faculdade prevista no art. 1038°, al. b)) numa situação especifica: designadamente, nos três meses anteriores à cessação do contrato, e a quem o pretendesse tomar de arrendamento. Nesta hipótese, essas visitas devem ocorrer, segundo o mencionado no aludido n° 4, em horário acordado com o senhorio ou, na falta de acordo, nos dias úteis, das 17 horas e 30 minutos às 19 horas e 30 minutos e, aos sábados e domingos, das 15 às 19 horas.
Ora, no caso, não estava em curso aquele prazo de três meses anteriores è cessação do contrato (dado que este iniciou a sua vigência em 1-11-2018, tendo sido celebrado pelo prazo de 10 anos); além disso, as pessoas que o A. pretendia que visitassem o imóvel não projectavam arrendá-lo, mas sim comprá-lo.
Nesta perspectiva, na situação em que o senhorio pretende a realização de visitas por terceiros interessados na aquisição do locado, encontram-se em jogo dois interesses antagónicos: o interesse económico do senhorio em rentabilizar o imóvel sua propriedade; e o do arrendatário em manter o gozo imperturbável desse imóvel durante a vigência do contrato de arrendamento.
Ponderando e harmonizando estes dois interesses, o legislador optou, conforme decorre do quadro legal vigente - mormente, do disposto no art. 1081°, n°s 3 e 4 - pela seguinte solução de compromisso: o locatário só está obrigado a suportar as visitas ao imóvel por terceiros i) que pretendem arrendar o locado e ii) durante os últimos três meses de vigência do contrato.
Ou seja, não é permitido a qualquer pessoa visitar do imóvel (apenas aos que o pretendam arrendar); e o período em que essas visitas devem ocorrer não é indistinto (incidindo apenas nos últimos três meses de vigência do contrato).
Do exposto decorre que, segundo a opção do legislador, o locatário não está obrigado a facultar o acesso ao imóvel a terceiros que o pretendam comprar (ou arrendar) fora daquele período temporal de três meses que antecede a cessação do contrato.
Assim, conclui-se que o R., ao não permitir a realização de tais visitas, nunca incorreria em qualquer violação do contrato.
Inexistindo qualquer incumprimento dos RR., não terá o A. direito à peticionada resolução do contrato; do mesmo modo, afastada se encontra a responsabilidade contratual dos RR. no pagamento da quantia estipulada a título de cláusula penal para a hipótese de incumprimento.
Nestes termos, mesmo provando-se a versão fáctica descrita na petição inicial, a improcedência da acção seria uma inevitabilidade. Ora, estando vedada a prática de actos inúteis no processo (cfr. art. 130° do CPC), não se justifica o prosseguimento dos autos para julgamento, devendo a acção ser considerada, desde já, totalmente improcedente".

II. 3. Apreciando.
Invocando a autora,
- pretender levar a cabo a venda da fracção arrendada,
- o 1.º réu não facultou a realização de visitas ao mesmo pelos potenciais compradores,
- constituindo tal conduta incumprimento do contrato,
- o qual, pela sua gravidade, é motivo fundador da peticionada resolução do contrato de arrendamento, nos termos do artigo 1038.º alínea b) CCivil,
tendo visto improceder a sua pretensão, através do despacho saneador- sentença, recorrido,
pretende, agora, em sede de recurso, face ao preceituado no artigo 1083.°/1 e 2 (1a parte) CCivil que se deveria ter ordenado o prosseguimento dos autos para, depois, face à prova produzida, poder aferir se a previsão daqueles preceitos se preenchia, ou não, em função da "gravidade" ou "consequências" do incumprimento resolutivo.

II. 3.1. O incumprimento por parte do 1 ° réu.
Dispõe o artigo 1038.º CCivil, a abrir a secção III, Obrigações do locatário, sob a epígrafe de "enumeração" que,
"são obrigações do locatário:
(...)
b) facultar ao locador o exame da coisa locada;
(…)"
A este propósito referem os Professores Antunes Varela e Pires de Lima in CCivil, anotado, II, 3.a edição, 393, que, "o direito de examinar a coisa locada é conferido ao locador em termos amplos; mas é claro que o locador não pode, sob pena de abuso do seu direito, exercê-lo em condições de prejudicar o gozo da coisa pelo locatário, artigo 1037." CCivil. A boa fé impõe que o faça de forma conciliatória para os dois direitos".
Com a obrigação do locatário facultar ao locador o exame da coisa locada visa-se permitir ao senhorio controlar o bom estado do imóvel, e eventualmente suprir deficiências ou exigir responsabilidade pelos danos a este causados. Trata-se de um direito do senhorio que, no entanto, tem que ser exercido em termos moderados, uma vez que constantes e sucessivos exames da coisa locada corresponderiam a uma perturbação do gozo pelo arrendatário, cfr. Menezes Leitão, "Arrendamento Urbano", 9.ª ed., 98/99.
A propósito desta obrigação de "facultar ao locador o exame da coisa locada", João Marcolino Pimentel Lourenço in "A Relação Locatícia no Arrendamento Urbano para Habitação" Dissertação para a obtenção do grau de Mestre em Direito, especialidade em Ciências Jurídicas, consultada online, refere que, "o arrendatário tem obrigação legal e contratual de facultar ao locador, senhorio, o exame e respectivo acesso à coisa locada, ao prédio dado de arrendamento.
Numa leitura e interpretação meramente literal declarativa e levada ao extremo, poder-se-ia defender que o senhorio tem o direito de ter acesso ao arrendado, sempre que queira, à hora que pretender, por si ou por representante e pelo tempo que quiser.
Na verdade, a faculdade do locador, deve ser justificada e solicitada de preferência por escrito ou arrendatário.
Qualquer direito deve ser exercido segundo as regras da boa-fé sob pena de se cair no atraso do direito, e, o locador assumiu a obrigação de assegurar o gozo da coisa, ao locatário e à sua família, uma vez que o contrato é para fins habitacionais.
Resulta daí que neste particular do direito, há que exercer o direito segundo os princípios e normas legais.
Se o arrendatário não pode impedir o exame do prédio, sob pena de cair em incumprimento contratual com as inerentes consequências; também o senhorio é obrigado a comunicar ao arrendatário a intenção e a necessidade de proceder a exame, para fins legítimos, ainda que sejam para verificar o estado de conservação ou se o arrendatário mantém ou não aí a sua morada de facto ou outro
O senhorio deve proceder ao exame pretendido a horas aceitáveis, pelo tempo estritamente necessário e acompanhado das pessoas imprescindíveis para fazer o exame ou vistoria".
Desde já, importa notar que sendo o contrato de arrendamento ditado, em grande parte, pela liberdade contratual e pela autonomia da vontade das partes, sempre existe a possibilidade de, na definição do conteúdo da relação contratual, as partes estabelecerem a obrigação de o arrendatário permitir o acesso ao imóvel a agências imobiliárias e a terceiros eventualmente interessados na sua aquisição.
Naturalmente, redigida mediante critérios de razoabilidade, de forma a salvaguardar, sempre, o direito ao descanso e à reserva da vida familiar do inquilino e agregado familiar - que a serem afectados de forma desrazoável e desproporcional, poderia tornar o clausulado nulo.
Não é o caso, nem se conhece, de resto, casos em que o haja sido.
A controvérsia reside aqui em saber se perante a manifestação por parte do locador da intenção de vender o locado pode o inquilino recusar facultar a realização de visitas ao locado, por parte dos potenciais compradores,
Questão, então, que, manifestamente, não encontra resposta nesta norma.
Aquela obrigação do inquilino e direito do senhorio, têm subjacente uma outra realidade e visam tutelar interesses deste último, absolutamente diversos.
O de se assegurar do bom uso da coisa.
Aqui está a justificação para a situação, absolutamente, excepcional, no confronto com o direito de gozo da coisa locada por parte do inquilino.
Estamos no caso da alínea b) do artigo 1038.º e no caso dos autos, perante um conflito de dois interesses: por um lado os do inquilino, o direito ao descanso e à reserva da vida familiar, e por outro lado os do senhorio.
No caso da alínea b) do artigo 1038.º o de se assegurar do bom uso do locado. Isto porque o senhorio precisa da confirmação do estado em que se encontra a casa. Mas, tal não significa que tenha o direito de se deslocar ao imóvel e visitá-lo sempre que queira. Apenas de proceder ao seu exame, pré-ordenado à finalidade em vista como mencionado bom uso.
E exame significa, análise minuciosa, segundo o Dicionário de Língua Portuguesa da Porto Editora, edição 2003.
E, segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, significa investigação, análise, inspecção ou pesquisa minuciosa, análise detalhada para verificação de um facto ou de uma situação.
Assim surgindo como um acto que tem como objectivo o de esclarecer a verdade ou de elucidar um facto controverso.
E, aqui, no caso dos autos, o interesse do senhorio será o de aumentar as suas chances de vender o locado, com a visita do pessoal de agências imobiliárias e de potenciais interessados.
Tendo presente que proporcionar o gozo do imóvel pelo inquilino, mediante retribuição e de forma temporária, é precisamente a principal obrigação do senhorio, assiste àquele o direito de não ser importunado nem pelo senhorio nem por terceiros, salvo as situações expressamente previstas na lei.
Caso isso aconteça, o senhorio estará a violar o direito de gozo do arrendatário, afinal, a essência do contrato.
E, então surge a situação do n.° 3 do artigo 1081.º CCivil, caso o contrato de arrendamento se encontre na iminência de cessar, quer por acordo das partes,
resolução, caducidade ou denúncia, o arrendatário está obrigado a facultar o acesso ao imóvel, durante os três meses anteriores à desocupação do imóvel, em horário a acordar com o senhorio. E, se as partes não cheguem a entendimento quanto ao horário em que as visitas ao imóvel devam acontecer, segundo o disposto no n.° 4 do artigo 1081.º CCivil, as visitas marcadas para dias úteis devem ocorrer entre as 17h30 e as 19h30 e aos fins de semana das 15h às 19h.
O inquilino "deve mostrar o local a que o pretender tomar de arrendamento", são as expressões ali utilizadas.
Situação que ao caso, manifestamente, não vem.
Mas que marca bem a diferença, desde logo, entre o dever de "facultar o exame da coisa locada" e o de "mostrar o local".
Uma diferença de grau, desde logo, em função dos diferentes interesses subjacentes.
E, se assim é, como parece, ser, em face do texto da lei e da "ratio" da norma, contida no aludido artigo 1038.º alínea b), então, há que, afirmar, que a regra é que,
- o senhorio não pode incomodar o inquilino;
- não pode limitar o gozo do locado pelo inquilino;
- não pode intrometer-se no que é a vida do arrendatário no locado.
É-lhe permitido, como vimos, o exame do locado, sendo que, a utilização deste termo não deixa muitas dúvidas sobre o alcance da norma, visando possibilitar ao senhorio confirmar o estado em que se encontra o locado, e não atribuir um direito para se deslocar ao imóvel e visitá-lo sempre que lhe aprouver. De outra forma, estaria a violar o direito de gozo do arrendatário.
Direito, ainda, assim, que deve ser exercido de forma esporádica e justificada, em vista da percepção acerca do bom uso do locado pelo arrendatário, ou perante alguma circunstância anormal que motive a necessidade de ir ao locado.
Este direito, como qualquer outro visando assegurar legítimos interesses, não abrange a situação delineada nos autos.
No silêncio do contrato, o senhorio - na hipótese de pretender vender o locado, na vigência, ou quando findar, o contrato de arrendamento, mas não queira esperar que o mesmo fique vago - não tem o direito de exigir que o inquilino seja obrigado a aceitar as visitas de potenciais compradores do locado.
Não tem o direito de, invocando a obrigação do locatário em lhe facultar o exame da coisa locado, pretender que o inquilino faculte o acesso ao locado dos potenciais compradores do mesmo. Nem ao abrigo da previsão da dita alínea b) do artigo 1038.º, nem de qualquer outra.
Se o senhorio decidir vender o locado, terá de pedir ao arrendatário autorização para mostrar o imóvel e, caso a autorização seja negada, resta ao potencial comprador analisar o imóvel exteriormente e através de plantas - sendo, interdito, desde logo, fotografar o interior e o recheio do locado.
E, isto é assim, independentemente de o inquilino apresentar, ou não, justificação para a sua recursa e, da avaliação da pertinência ou da validade da mesma. Mormente, para prejudicar as negociações do senhorio e tentar, porventura, tirar partido
da posição em que se encontra para tentar ser tido como interlocutor e ganhar vantagem e capacidade de negociação, ele próprio, como potencial interessado na compra.
Carece, assim, de fundamento legal, a pretensão da autora.

II. 3. 2. A resolução do contrato.
E, se carece de fundamento legal, se não é tutelada pelo direito, logo, não existe, não pode existir, o, alegado, incumprimento do inquilino, em que a autora estrutura o pedido de resolução do contrato.
Na transposição do alegado incumprimento do dever de facultar o locado, para o direito de o senhorio resolver o contrato com fundamento no incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível ao senhorio a manutenção do contrato, vem a propósito, citar aqui o acórdão deste tribunal de 14.1.2020, consultado no site da dgsi.
Aqui se decidiu ser caso de resolução do contrato de arrendamento, com fundamento no artigo 1083.°/ e 2, 1.ª parte, numa situação em que, o inquilino sempre impediu o senhorio de aceder ao locado, tendo este solicitado, por diversas vezes, a visita ao locado, a que o réu sempre se opõe e, sempre que o autor falou com o réu, fê-lo à porta de casa, sem que fosse possível fazer uma vistoria do imóvel, isto perante a existência de um cheiro muito mau, o aspeto degradado do locado, as paredes completamente pretas, a sujidade do imóvel e o lixo espalhado no chão, assim se concluindo ser manifesto que o réu/inquilino vinha incumprindo, de forma constante, a obrigação que lhe impõe facultar ao senhorio o exame da coisa locada e esse incumprimento configura-se como grave, de tal modo que se torna inexigível ao senhorio a manutenção do contrato de arrendamento.
Em cuja fundamentação se considerou que, se "consagra nesta norma uma cláusula geral de resolução do contrato de arrendamento, da qual resulta, por um lado, que qualquer tipo de incumprimento (não expressamente referido nas diversas alíneas do n.° 2) pode fundamentar a resolução, desde que pela sua gravidade e consequências torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento e, por outro, todos os fundamentos tipificados nessas alíneas terão de preencher essa cláusula, ou seja, terão de atingir um nível de gravidade e gerar consequências tais que não seja razoavelmente exigível àquele senhorio (de um ponto de vista objetivo) a manutenção do contrato com aquele arrendatário, citando Maria Olinda Garcia, "A Nova Disciplina do Arrendamento Urbano", 2a ed., 25.
O n.° 2 concretiza a ideia de que o princípio da boa-fé postula a exigência de um incumprimento resolutivo suficientemente grave, de tal modo que não poderá ser um incumprimento de pequena importância a determinar a resolução de um contrato de arrendamento.
Por isso, a inexigibilidade da manutenção do arrendamento, como resultado da gravidade ou das consequências do incumprimento, terá que ser aferida em atenção às concretas condutas assumidas pela outra parte na relação contratual e considerando as suas concretas consequências, concluindo-se por tal inexigibilidade quando, perante aquele específico incumprimento, não mais pode ser exigido a um locador normal a manutenção do contrato, citando Fernando Baptista de Oliveira, "A Resolução do Contrato no Novo Regime do Arrendamento Urbano", Almedina, 2007, 33 e 39.
Consequentemente, mesmo verificando-se qualquer das hipóteses previstas nas diversas alíneas deste n.° 2, a resolução não poderá operar automaticamente, impondo-se que esse incumprimento contratual, pela sua gravidade ou consequências, tome inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento".

Dispõe, então, o artigo 1083.º inserido na Subsecção IV, Cessação, a abrir a divisão III, Resolução, sob a epígrafe de "fundamento da resolução", que,
"1 - Qualquer das partes pode resolver o contrato, nos termos gerais de direito, com base em incumprimento pela outra parte.
2 - É fundamento de resolução o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento, designadamente quanto à resolução pelo senhorio:
Com o artigo 1083.º CCivil abandonou-se o regime da taxatividade dos fundamentos de resolução do contrato de arrendamento, por parte do senhorio, com fundamento no incumprimento do inquilino, anteriormente definido no artigo 1093.º CCivil e, procedeu-se ao alargamento das causas de incumprimento, para além das especificadas nas diversas alíneas do seu n° 2.
Passou a exigir-se o preenchimento do conceito de que pela sua gravidade o incumprimento - seja ele qual for e, independentemente de estar previsto expressamente - torne inexigível ao senhorio a manutenção do contrato.
Consagra esta norma uma cláusula geral de resolução do contrato de arrendamento, da qual resulta, por um lado, que qualquer tipo de incumprimento (não expressamente referido nas diversas alíneas) pode fundamentar a resolução, desde que pela sua gravidade e consequências torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento e, por outro, todos os fundamentos tipificados nessas alíneas terão de preencher essa cláusula, ou seja, terão de atingir um nível de gravidade e gerar consequências tais que não seja razoavelmente exigível àquele senhorio (de um ponto de vista objetivo) a manutenção do contrato com aquele arrendatário.
Aqui se concretiza a ideia de que o princípio da boa-fé postula a exigência de um incumprimento resolutivo suficientemente grave a determinar a resolução do contrato de arrendamento.
A inexigibilidade da manutenção do arrendamento, como resultado da gravidade ou das consequências do incumprimento, terá que ser aferida em atenção às concretas condutas assumidas pela outra parte na relação contratual e considerando as suas concretas consequências, concluindo-se por tal inexigibilidade quando, perante aquele específico incumprimento, não mais pode ser exigido a um locador normal a manutenção do contrato.
Como se refere no acórdão da RL de 12.9.2019, consultado, igualmente, no Site da dgsi, “o que implica a valoração, em concreto, da factualidade provada, de forma a apreciar se a mesma constitui, ou não, incumprimento, primeiro e, depois, se pela sua gravidade ou consequências, torna inexigível ao senhorio a manutenção do contrato.
Os critérios de valoração da conduta apontando para princípios gerais, não podem deixar de ser casuísticos e como tal estar balizados pelas concretas circunstâncias da execução contratual, das partes, do facto – incumprimento, da sua gravidade, da implicação deste na confiança reciproca na manutenção regular do vinculo e de todas as demais circunstâncias que possam servir para melhor ajuizar dos interesses em conflito e da natureza do facto ilícito do incumprimento.
Como refere Gravato Morais, Novo Regime do Arrendamento Urbano Comercial, 2ª edição, 209, “(…) é necessário que o incumprimento seja de per si grave ou que se afira pelas consequências que faz operar” e “(…) imprescindível que qualquer dos elementos assinalados seja complementado com o conceito indeterminado de “inexigibilidade” da manutenção do arrendamento (…)”.
Se já vimos que, no caso, não há incumprimento, fica afastada, desde logo, a possível verificação do âmbito de previsão do artigo 1083.7 1 e 2 Ccivil.
E, resulta prejudicada a apreciação das consequências da actuação do inquilino, acerca da sua gravidade e da eventual inexigibilidade para a senhoria manter o contrato.
Consequências, reportadas ao atraso na conclusão do negócio, desde logo – sem alegada perda de chance ou da melhor oportunidade para a sua concretização, em moldes mais vantajosos.
Mas que não tendo origem em qualquer incumprimento contratual ou legal, dos deveres que a que o inquilino está obrigado, não merecem a tutela do direito.
E, que mesmo que tivessem sido originadas pelo incumprimento do inquilino, dificilmente seriam suficientes para integrar a noção e atingir o patamar de gravidade a tornar inexigível a manutenção do contrato por parte da senhoria.
O que pressuporia, sempre e, em qualquer caso, a existência de um prejuízo económico assinalável, na base da perda de confiança na manutenção do contrato.

II. 3. 3. O assédio por parte do senhorio.
Apesar de, da mesma forma, resultar prejudicado o conhecimento da questão que o réu suscita de assédio da autora, sempre diremos o seguinte.
Apesar de invocado pelo réu, cremos bem que a singela, básica e razoavelmente justificada, conduta da autora - que pretendendo levar a cabo a venda do locado, viu o 1.° réu não facultar a realização de visitas ao mesmo pelos potencias compradores - não é susceptível de integrar o novel conceito de assédio no arrendamento -que é certo, bem pode se entendido, como uma nova obrigação para o senhorio.
Como é sabido, a Lei 12/2019, de 12 de fevereiro, veio proibir e punir o assédio no arrendamento, através do aditamento ao NRAU, aprovado pela Lei 6/2006 de 27 de Fevereiro, sucessivamente alterada pelas Leis 31/2012, de 14 de agosto, 79/2014, de 19 de dezembro, 42/2017, de 14 de agosto e 43/2017, de 14 de agosto, dos artigos 13,°-A e 13.°-B, com a seguinte redacção:
- artigo 13.º-A - Proibição de assédio,
"É proibido o assédio no arrendamento ou no subarrendamento, entendendo-se como tal qualquer comportamento ilegítimo do senhorio, de quem o represente ou de terceiro interessado na aquisição ou na comercialização do locado, que, com o objetivo de provocar a desocupação do mesmo, perturbe, constranja ou afete a dignidade do arrendatário, subarrendatário ou das pessoas que com estes residam legitimamente no locado, os sujeite a um ambiente intimidativo, hostil, degradante, perigoso, humilhante, desestabilizador ou ofensivo, ou impeça ou prejudique gravemente o acesso e a fruição do locado".
- artigo 13.º-B - Intimação para tomar providências,
1 - Sem prejuízo da responsabilidade civil, criminal ou contraordenacional decorrente dos atos e omissões em que se consubstancie o comportamento previsto no artigo anterior, o arrendatário pode intimar o senhorio a tomar providências ao seu alcance no sentido de:
a) Cessar a produção de ruído fora dos limites legalmente estabelecidos ou de outros atos, praticados por si ou por interposta pessoa, suscetíveis de causar prejuízo para a sua saúde e a das pessoas que com ele residam legitimamente no locado;
b) Corrigir deficiências do locado ou das partes comuns do respetivo edifício que constituam risco grave para a saúde ou segurança de pessoas e bens;
c) Corrigir outras situações que impeçam a fruição do locado, o acesso ao mesmo ou a serviços essenciais como as ligações às redes de água, eletricidade, gás ou esgotos.
2 - A intimação prevista no número anterior é feita nos termos do artigo 9.º e deve conter a exposição dos factos em que se fundamenta.
3 - Independentemente da apresentação da intimação prevista no n.° 1, o arrendatário pode requerer à câmara municipal competente a realização de uma vistoria ao locado para verificação das situações previstas no n.° 1, a qual possui natureza urgente e deve ser realizada no prazo máximo de 20 dias, devendo o respetivo auto ser emitido até 10 dias após a sua realização.
4 - No prazo de 30 dias a contar da receção da intimação prevista nos n.os 1 e 2, o senhorio deve, mediante comunicação a enviar ao arrendatário nos mesmos termos, demonstrar a adoção das medidas necessárias para corrigir a situação visada ou expor as razões que justifiquem a não adoção do comportamento pretendido pelo arrendatário.
5 - Em caso de falta de resposta nos termos previstos no número anterior, ou caso a situação se mantenha injustificadamente por corrigir, sem prejuízo da responsabilidade civil ou criminal que possa resultar dos mesmos factos e da possibilidade de recurso aos demais meios judiciais ou extrajudiciais ao seu dispor, o arrendatário pode:
a) Requerer uma injunção contra o senhorio, destinada a corrigir a situação exposta na intimação; e
b) Exigir ao senhorio o pagamento de sanção pecuniária no valor de 20 (euro) por cada dia a partir do final do prazo previsto no número anterior, até que o senhorio lhe demonstre o cumprimento da intimação nos termos do artigo 9.º ou, em caso de incumprimento, até que seja decretada a injunção prevista na alínea anterior.
6 - A sanção pecuniária prevista na alínea b) do número anterior é elevada em 50 /pret. quando o arrendatário tenha idade igual ou superior a 65 anos ou grau comprovado de deficiência igual ou superior a 60 /pret..
7 - A intimação prevista nos n.ºs 2 e 3 caduca, extinguindo-se a respetiva sanção pecuniária, se a injunção prevista na alínea a) do n.° 5 não for requerida no prazo de 30 dias a contar do termo do prazo previsto no n.° 4, ou se for indeferida".
Como é bom de ver, resulta manifesto, ostensivo, mesmo que a situação delineada nos autos não é - muito longe, disso - susceptível de ser caracterizada, sequer, como de assédio, sequer, de conduta ilegítima.
Com efeito, desde logo, perturbar, constranger, afectar, sujeitar a um ambiente intimidativo, hostil, degradante, perigoso, humilhante, desestabilizador ou ofensivo, impedir ou prejudicar gravemente o acesso e a fruição do locado, apesar de poder traduzir num acto isolado, o certo é que, pela própria natureza das coisas e da definição etimológica da expressão "assédio" - comportamento desagradável ou incómodo a quem alguém é sujeito repetidamente - pressupõe uma continuação, a prática de actos plúrimos, uma reiteração uma persistência na actuação do agente activo.
O que nem sequer foi alegado pelo réu, sobre quem, atentas as regras de repartição do ónus da prova, contidas no artigo 342.º CCivil, incumbia o ónus da prova.
A actuação da senhoria apesar de não ter enquadramento e suporte legais, está justificada, em termos de senso comum, de razoabilidade e, não tem a dimensão, o sentido, nem a ressonância aqui prevista pelo legislador e, que o réu, lhe pretende emprestar, de forma, absoluta, grosseira e gritantemente injustificada.
Ademais, ainda que tivesse - como o réu se apercebeu, dado que nenhuma consequência prática retirou da invocação do texto legal - tal não teria a virtualidade, o efeito, de se traduzir num facto modificativo, impeditivo ou extintivo do alegado direito da autora.
As consequências seriam as previstas no artigo 13.º-B e nenhuma delas se aproxima, sequer, dessa previsão - da possibilidade de ser oposto ao pedido de resolução do contrato de arrendamento - consabidamente - estruturado em incumprimento por parte do inquilino. Salvo, porventura, numa situação de abuso de direito, por parte do senhorio.

II. 3. 4. Finalmente, no seguimento da invocação da violação, por erro de interpretação, do disposto nos artigos 1038.º alínea b) e 1081.º/3 e 4 CCivil, defende que a interpretação dada a tais normas, no sentido em que,
- nada se estipulando no contrato de arrendamento, ao senhorio e/ou terceiros interessados na aquisição do imóvel seu objecto (do contrato),
- está vedado o exame da coisa locada tendo em vista a transmissão da sua propriedade,
- quer porque tal pretensão não se encontra abrangida pelo estatuído na alínea b) do artigo 1038.º CCivil,
- quer porque o arrendatário apenas está obrigado a facultar o pretendido acesso nos termos do artigo 1081.º/3 e 4 do mesmo diploma,
é inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 20.º e 60.º da CRP.
Para o que alinha o seguinte raciocínio:
- o artigo 62.º da Constituição consagra o direito de propriedade, abrangendo o mesmo, pelo menos, quatro componentes: a) o direito a adquirir; b) o direito a usar e fruir dos bens de que se é proprietário; c) o direito de a transmitir; d) o direito de não ser privado dela;
- um dos aspetos explicitamente garantidos é, assim, a liberdade de transmissão, inter vivos ou mortis causa, não podendo haver bens vinculados ou sujeitos a interdição de alienação;
- o impedimento do acesso ao arrendado (do senhorio, dos terceiros eventualmente interessados na sua aquisição) afecta, só por si, o conteúdo constitucionalmente reconhecido ao direito de propriedade, na sua componente de "transmissão";
- vendo-se afectado no seu conteúdo essencial o o direito a transmitir a propriedade - no caso, o réu impediu a senhoria de vender durante mais de dois anos, colocando em causa a liberdade de alienação / transmissão de propriedade;
- viu-se privada (ou gravemente afetada) no seu direito de propriedade, e, cumulativamente, a adoptada interpretação comprime, de modo desproporcionado, o direito à tutela jurisdicional efetiva do seu direito de propriedade.
Vejamos.
Defende a autora que o disposto na alínea b) do artigo 1038.° CCivil abrange as situações em que o senhorio e/ou terceiros interessados na transmissão da propriedade do imóvel o pretendem examinar, desde que tal faculdade seja exercida em termos moderados e sem perturbação do gozo do local pelo arrendatário, a quem deverá ser concedida a faculdade de designação de dia e hora para o efeito.
Como já dissemos supra, exame significa, investigação, análise, inspecção, pesquisa, minuciosas e detalhadas para verificação de um facto ou de uma situação.
Não está nem na literalidade nem na "ratio" da norma, o dever de o locatário permitir a visita ao locado a potenciais compradores, no caso de o senhorio o colocar à venda.
Constitui uma situação, que o legislador poderia ter previsto - a par da situação prevista no caso de pretender dar de arrendamento e reportada aos 3 últimos meses do contrato vigente, em que o inquilino deve mostrar o local a que o pretende dar de arrendamento - mas o que é certo é que não previu.
Entende a autora que a interpretação sufragada é inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 20.° e 60.° da CRP, expendendo depois acerca do âmbito da previsão do artigo 62.°, donde se deve entender que a invocação da violação do artigo 60.°, atinente com os direitos dos consumidores se terá ficado a dever a mero lapso de escrita.
Com efeito, é o artigo 62 °1 que dispõe que, "a todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição".
Sem margem para dúvida que o direito de propriedade abrange, no que aqui releva, o direito de o proprietário a transmitir.
Como se decidiu no recente acórdão do Tribuna Constitucional 695/2022, proferido a 25.10.2022, no processo 388/2021, a propósito de normas legais que introduziram simplicidade e celeridade na tramitação dos procedimentos expropriativos e de constituição de servidões administrativas que, para a sua concretização, seja necessário realizar», tendo em conta «(...) a relevância e a urgência na concretização dos investimentos considerados e, bem assim, o impacto esperado dos mesmos no robustecimento da economia e das finanças portuguesas (...)», bem como «(...) os constrangimentos identificados nos procedimentos de expropriação e de constituição de servidões administrativas (...)",
"o artigo 62.° da Constituição, tal como declarou o Tribunal Constitucional no Acórdão n.° 299/2020, na sequência, aliás, de jurisprudência anterior, tem vindo a ser interpretada pela doutrina e jurisprudência constitucional «como estabelecendo uma dupla garantia da propriedade privada: uma garantia institucional, que se traduz na proteção da propriedade como instituto jurídico; e uma garantia individual, que protege como direito fundamental posições jurídicas sobre bens de valor patrimonial».
A garantia da propriedade privada, na sua dimensão subjetiva, abrange não apenas o direito de propriedade em sentido jurídico-real - aquele aqui diretamente em causa -, mas vai ainda além disso, albergando todos os direitos de conteúdo patrimonial. Como assinala MIGUEL NOGUEIRA DE BRITO, «os direitos de conteúdo patrimonial adquiridos com base na lei são protegidos contra posteriores lesões pelo poder público do Estado, efetuadas designadamente através da lei, sem que isso envolva qualquer resultado paradoxal. Enquanto direito fundamental, isto é, direito subjetivo dos indivíduos, o artigo 62.º, n.° 1, garante a estes a existência de bens e direitos em face do poder do Estado, nos termos em que eles foram adquiridos, em conformidade com as normas vigentes no momento relevante» - cf. A Justificação da Propriedade Privada numa Democracia Constitucional, Coimbra, 2007, p. 852.
Posição esta que o Tribunal Constitucional vem também assumindo uniformemente: «Resulta, assim, claro que o direito de propriedade a que se refere aquele artigo da Constituição não abrange apenas a proprietas rerum, os direitos reais menores, a propriedade intelectual e a propriedade industrial, mas também outros direitos que normalmente não são incluídos sob a designação de 'propriedade", tais como, designadamente, os direitos de crédito e os "direitos sociais" - incluindo, portanto, partes sociais como as ações ou as quotas de sociedades» (cf. Acórdão n.° 491/2002).
Na vertente objetiva também assinalada, e conforme se lê no Acórdão n.° 421/2009, «(...) a "garantia" que vai reconhecida no n.° 1 do artigo 62.º tem uma importante dimensão institucional e objetiva, que se traduz, antes do mais, em injunções dirigidas ao legislador ordinário. Por um lado, e negativamente, estará este proibido de aniquilar ou afetar o núcleo essencial do instituto infraconstitucional da "propriedade" (nos termos amplos atrás definidos). Por outro lado, e positivamente, estará o mesmo legislador obrigado a conformar o instituto, não de um modo qualquer, mas tendo em conta a necessidade de o harmonizar com os princípios decorrentes do sistema constitucional no seu conjunto. É justamente isso que decorre da parte final do n.° 1 do artigo 62.º, em que se diz que "a todos é garantido o direito à propriedade privada (...) nos termos da Constituição"».
Já quanto ao conteúdo do direito de propriedade privada, o Tribunal Constitucional tem-lhe reconhecido um valor jusfundamental. Nesta última vertente, têm sido identificadas, pelo menos, quatro dimensões: o direito de aceder à propriedade; o direito de não ser arbitrariamente privado da propriedade; o direito à transmissão da propriedade inter vivos ou mortis causa; e, se bem que sem referência expressa no texto constitucional e sujeitando-se a limites particularmente intensos (v.g., no domínio do ordenamento do território), a liberdade de usar e fruir dos bens de que se é proprietário — cf., entre muitos outros, os Acórdãos n.°s 425/2000, 187/2001, e 496/2008, e, na doutrina, GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4ª ed., Coimbra, 2007, p. 802., RUI MEDEIROS, anotação sub artigo 62.°, in Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, 2 a ed., Coimbra, 2010, p, 1242) e MARIA LÚCIA AMARAL, Responsabilidade do Estado e Dever de Indemnizar do Legislador, Coimbra, 1998, p. 540.
Em jurisprudência constante (cf., inter alia, os Acórdãos n°s. 44/99; 329/99; 205/2000; 263/2000; 425/2000; 187/2001; 57/2001; 391/2002; 139/2004; 159/2007; 421/2009), o Tribunal Constitucional tem mesmo reconhecido a «propriedade» como um pressuposto da autonomia das pessoas e afirmado que, não obstante a inclusão do direito que lhe corresponde no título respeitante aos «Direitos e deveres económicos, sociais e culturais», a sua natureza e relevância fundamentam, pelo menos parcialmente, a respetiva inclusão no leque dos clássicos direitos de defesa, revestindo, nalguma medida, natureza análoga aos chamados direitos, liberdades e garantias.
Como se lê, aliás, no Acórdão n.° 421/2009, «que assim é demonstra-o, afinal, a própria História do constitucionalismo, em que a defesa da propriedade ocupou sempre um lugar central: no plano individual, contra as investidas arbitrárias dos poderes públicos no património de cada um; no plano coletivo, quanto à própria possibilidade da existência de uma sociedade civil diferenciada do Estado, e assente autonomamente na apropriação privada de uma ampla gama de bens que permita o estabelecimento de relações económicas à margem do poder político».
No mesmo sentido, assinalam GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA que «revestindo o direito de propriedade, em vários dos seus componentes, uma natureza negativa ou de defesa, ele possui natureza análoga aos "direitos, liberdades e garantias", compartilhando por isso do respetivo regime específico (cfr. art, 17°), nomeadamente para efeito do regime de restrições» -ob. cit., p. 802. Consequentemente, tais restrições, como escrevem os mesmos Autores, podem «(...) vir a revelar-se injustificadas por violação dos princípios da adequação, necessidade e proporcionalidade (...)» - ob. cit., p. 803.
Entre as possíveis restrições ao direito de propriedade, o n.° 2 do artigo 62.º da Constituição prevê expressamente as figuras da requisição e da expropriação por utilidade pública, as quais, como sintetizam ainda GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, «(…) consistem essencialmente na privação, por ato de autoridade pública e por motivo de utilidade pública, da propriedade ou uso de determinada coisa» - ob. cit., p. 806. Além de fundadas em razões de utilidade pública e sujeitas ao crivo geral em matéria de restrição de direitos fundamentais, a requisição e a expropriação só podem ser efetuadas, mesmo quando lícitas e nos expressos termos do n.° 2 do artigo 62.° da Constituição, «mediante o pagamento de justa indemnização», o que constitui uma garantia adicional dos particulares, sem deixar de coenvolver uma certa convolação do direito à propriedade num direito ao respetivo valor patrimonial. Convolação esta, todavia, que só é constitucionalmente admissível quando o sacrifício da propriedade privada qua tale se ache justificado pela tutela e prossecução de outros valores e bens jurídicos dotados de igual ou superior dignidade, à luz da Lei Fundamental.
Na situação vertente, além da figura da expropriação, estão em causa outras formas de compressão do direito de propriedade privada, nomeadamente, a constituição de servidões administrativas e um direito de atravessamento ou ocupação de prédios particulares. Importa sublinhar, portanto, e diversamente do que parecem entender os requerentes, que os instrumentos de compressão do direito de propriedade constitucionalmente admitidos seguramente não se cingem às figuras da expropriação e da requisição.
Nesse sentido se pronunciou este Tribunal, designadamente, no Acórdão n.° 391/02, recordando que «na ordem axiológica constitucional é possível, pois, encontrar fundamento legítimo para a restrição de dimensões mais ou menos abrangentes do direito de propriedade. Com efeito, consubstanciando a Constituição uma multiplicidade de valores, há que proceder à compatibilização e harmonização desses valores, o que implicará, em determinados casos, compressões ou afetações, em face de uma ponderação de interesses assente em critérios também eles constitucionalmente relevantes. Não é, portanto, procedente sustentar (...) que a Constituição apenas admite limitações ao direito de propriedade no caso de expropriação por utilidade pública». E já no Acórdão n.° 471/2001, o Tribunal Constitucional, confrontando o artigo 101.º do Código dos Processos Especiais de Recuperação de Empresas e Falência com o artigo 62.º da Constituição, considerara que «o facto de o texto constitucional não estabelecer restrições explícitas à propriedade privada não significa que elas não possam existir».
Também no Acórdão n.° 491/2002 se afirmou que «o Tribunal Constitucional tem, pois, afastado a ideia de que os únicos atos "ablativos" do direito de propriedade (os quais configuram a restrição máxima que esse direito pode sofrer) consentidos pela Constituição sejam os previstos no artigo 62.°, n.° 2, desta última. Pode haver outros, inclusive no interesse de privados: ponto é que encontrem cobertura ou justificação constitucional».
Embora não suscite qualquer dúvida razoável que as normas sindicadas se mostram compressoras ou restritivas do direito de propriedade, mesmo quando não impõem a sua pura e simples ablação, essa constatação não torna as normas sindicadas incompatíveis com a Constituição, antes as sujeitando ao crivo constitucional incidente sobre as leis restritivas dos direitos, liberdades e garantias ou direitos análogos.
Com efeito, como cristalinamente se afirmou ainda no referido Acórdão n.° 391/02, «não é incompatível com a tutela constitucional da propriedade a compressão desse direito, desde que seja identificável uma justificação assente em princípios e valores também eles com dignidade constitucional, que tais limitações ou restrições se afigurem necessárias à prossecução dos outros valores prosseguidos e na medida em que essas limitações se mostrem proporcionais em relação aos valores salvaguardados».
Trata-se de uma posição que encontra acolhimento na doutrina especializada e que se prende com uma relatividade do direito fundamental de propriedade, conforme refere RUI MEDEIROS. Como lapidarmente sintetiza este último Autor, «somente numa quimérica Constituição liberal radical se pretenderia que a propriedade não pudesse ser restringida senão nos casos nela direta e expressamente contemplados e se entenderiam proibidas quaisquer normas legais restritivas ou delimitadoras que lhes não correspondessem. Pelo contrário, quando o artigo 62.° contempla a propriedade "nos termos da Constituição", isto significa, não tanto que ela só seja garantida dentro dos limites e dos termos previstos e definidos noutros lugares da Constituição, quanto que ela não é reconhecida aprioristicamente, como princípio independente e autossuficiente, sendo antes reconhecida e salvaguardada no âmbito da Constituição e em sintonia com os princípios, valores e critérios que a enformam (...)» - loc. cit., p. 1254.
É, aliás, a única posição que se coaduna com o Estado Social, caracterizado pelo intervencionismo estadual com fins de solidariedade e justiça social, com a admissibilidade - ou, melhor, inevitabilidade - do sacrifício de algumas liberdades. Já não é o Estado neutro da tradição liberal, simples quadro para o jogo das liberdades, antes um Estado que tem como primeiro objetivo a igualdade social, contraposta à igualdade jurídica, da visão liberal, que não é inerente às pessoas nem preexiste ao Estado, antes se cumpre essencialmente através de prestações por este devidas aos indivíduos, e se reconhece o direito - e o dever - de intervir nas relações económicas entre estes e para o qual esse dever existe, ainda que tal intervenção sacrifique a liberdade individual e as suas projeções na liberdade contratual e na propriedade privada.
Reconhecendo-se que, tão importante como a outorga de certos direitos formais e o reconhecimento de uma liberdade puramente jurídica, é a atividade promotora de benefícios sociais e económicos que, garantindo aos indivíduos os meios indispensáveis ao desenvolvimento pleno da sua existência, assegure uma liberdade efetiva, o Estado passa a fazer acompanhar o respeito das liberdades clássicas da definição e execução de políticas económicas, sociais e culturais que convertam a liberdade abstrata numa liberdade autêntica, numa liberdade das pessoas concretas.
No Estado democrático contemporâneo, perdura a ideia de que a pessoa, pelo facto de o ser, tem um certo número de direitos e que o poder deve respeitar esses direitos. A pessoa é o "principio e fim da sociedade e do Estado", o primeiro valor social e político. Como lapidarmente dispunha o artigo 1 do Projeto (de Lei Fundamental) de Herrenchiemsee, "der Staat ist um des Menschen willen da, nicht der Mensch um des Staates willen" ("o Estado existe para a pessoa, não a pessoa para o Estado"). Assegurar o respeito da dignidade humana continua a ser o fim da sociedade política. Só que essa dignidade é vista, não como liberdade do indivíduo isolado, mas sim como desenvolvimento da personalidade de pessoas concretas, integradas no corpo social e perante ele responsáveis, sendo, por isso, (também) em relação a este que se justificam os direitos que lhes são reconhecidos. A consagração desses direitos não procura somente salvaguardar a individualidade de cada um, definir a situação jurídica de poder das pessoas, dando-lhes a titularidade ativa de determinadas posições jurídicas subjetivas, mas também, e por outro lado, conformar o sentido da ordenação (jurídica) das relações sociais, implicando isso a construção de uma ordem, de um conjunto de princípios e normas que regulam (objetivamente) a realidade sob um ponto de vista jurídico (constitucional). Acentuam-se considerações objetivas que contribuem para definir o seu conteúdo e limites, reconhece-se-lhes uma função social.
Por isso, contra a tradição oitocentista, certas liberdades, nomeadamente de ordem económica, aparecem limitadas em função de finalidades que devem servir, até porque a igualdade social se cumpre sobretudo pela ação estadual de definição e execução de politicas (de trabalho, habitação, saúde, ensino, etc.) que facultem e garantam o gozo efetivo de um pleno desenvolvimento da existência individual e dos bens constitucionalmente protegidos (sobre o ponto, cf. JOSÉ JOÃO ABRANTES, Contrato de trabalho e direitos fundamentais, Coimbra, 2005, pp. 24-31, e bibliografia aí citada).
É assim que, à luz da ideia de vinculação social da propriedade - direito que, aliás, e conforme já se referiu, está incluído no título respeitante aos "Direitos e deveres económicos, sociais e culturais" -, presente na sua dimensão institucional-objetiva e que decorre da parte final do n.° 1 do artigo 62.° da CRP, em que se diz que "a todos é garantido o direito de propriedade privada (...) nos termos da Constituição", o legislador pode subtrair poderes e faculdades ao direito de propriedade, desde que para tal encontre cobertura e justificação constitucional.
O reconhecimento dessa vinculação social é, como diz o Acórdão n.° 299/202 «constante na jurisprudência do Tribunal Constitucional, que admite restrições ao direito de propriedade baseadas na "cláusula legal de conformação social da propriedade", mas sem que tal dispense a invocação dos parâmetros constitucionais que acolhem os interesses que lhe subjazem (Acórdãos n.°s 76/1985, 486/1997, 194/1999, 329/1999, 322/2000, 138/2003, 148/2005)».
Na determinação do conteúdo e limites da propriedade, «nos termos da Constituição», o legislador tem uma liberdade de conformação que cresce na medida em que aumenta a relação social do objeto de propriedade, a ser avaliada a partir da peculiaridade e função deste. Voltando a citar o Acórdão n.° 299/2020, «a margem de liberdade do legislador para determinar o conteúdo e limites da propriedade é tanto mais alargada quanto mais o objeto da propriedade estiver ao serviço da satisfação de um conjunto diversificado de necessidades sociais e económicas, de acordo com o programa constitucional. Nesses casos, a prossecução dos interesses sociais só pode ser efetuada com diminuição do âmbito dos poderes e faculdades que formam o conteúdo subjetivo da propriedade privada. Por isso, quando a utilização e a decisão sobre um bem não se circunscrevem à esfera do proprietário, antes tocam interesses do todo social, a cláusula de conformação social da propriedade contida no artigo 62.° da CRP possibilita ao legislador ordinário tomar em consideração interesses dos não proprietários contrapostos aos interesses dos proprietários, modelando ou restringindo o direito de propriedade de acordo com parâmetros constitucionais pertinentes» - e, nomeadamente, colocando os interesses do proprietário e os aspetos do interesse geral (o bem comum) numa relação justa de equilíbrio e compensação, com satisfação das exigências jurídico-constitucionais estabelecidas nos n.°s 2 e 3 do artigo 18." da CRP.

(...)
Em suma, de comum às várias formas de potencial compressão (constitucionalmente admissível) do direito de propriedade privada, encontra-se, em princípio, a contrapartida de uma indemnização a favor do titular do direito sacrificado ou comprimido.
Assim, há de ser em face do princípio da proporcionalidade e da exigência de uma justa indemnização (ou, numa formulação mais ampla, de uma contrapartida indemnizatória ou compensatória) que virá a situar-se, fundamentalmente, a decisão dos presentes autos.
O princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso
Alcançada a conclusão de que a compatibilidade com a Constituição das normas sindicadas dependerá, fundamentalmente, do respeito pelo crivo por esta imposto na restrição de direitos, liberdades e garantias ou direitos análogos - cf. artigos 17.º e 18.º -, importa recordar, ainda que sumariamente, o regime dessas restrições e a jurisprudência constitucional sobre o mesmo.
Assim, relevam, sobretudo, os n.°s 2 e 3 do artigo 18.º da Constituição. Começando por este último, aí se determina que «as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstrato e não podem ter efeito retroativo, nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais». No que respeita à matéria dos autos, não estão em causa a generalidade e a abstração das normas impugnadas, nem a atribuição de efeito retroativo às mesmas. E também não parece que o caso vertente convoque ou que, de alguma forma, pudesse revelar- se útil embrenharmo-nos na inesgotável controvérsia relativa aos contornos e à operatividade da noção de conteúdo essencial dos direitos fundamentais, ainda para mais quando o direito de propriedade privada, tal como acolhido no artigo 62.º da Constituição, não deixa de evidenciar evidentes marcas de plasticidade.
Decisivos, portanto, serão o sentido e o alcance do n.° 2 do artigo 18.º, segundo o qual «a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos».
Antes de mais, cumpre esclarecer que a limitação literal das restrições aos direitos, liberdades e garantias aos casos expressamente previstos na Constituição não permite alicerçar qualquer reserva às normas aqui sindicadas, sendo a compressão do direito de propriedade privada constitucionalmente permitida com relativa amplitude. Na verdade, deve recordar-se que, na formulação do artigo 62.º, o direito de propriedade privada é garantido apenas nos termos da Constituição. Embora de forma vaga ou imprecisa, portanto, é a própria Lei Fundamental que contempla a por vezes necessária compressão do direito de propriedade privada, em vista da prossecução de fins também constitucionalmente atendíveis, sem que pareça sequer necessário fazer apelo a uma resetva geral imanente de ponderação - cf. REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais Não Expressamente Autorizadas pela Constituição, Coimbra, 2003, maxime 581 e ss.
A averiguação da compatibilidade das normas sindicadas com a Constituição, no que concerne ao regime plasmado no respetivo artigo 18.°, acha-se, portanto, limitada à identificação e aplicação ao caso dos autos dos ditames em que se desdobra o princípio da proporcionalidade (a par, como adiante se verá, do conteúdo e procedimento conexos com a exigência constitucional de atribuição de uma justa indemnização em caso de sacrifício lícito da propriedade privada).
Ora, como sintetizam GOMES CANOTILHOA/ITAL MOREIRA, «o princípio da proporcionalidade (também chamado princípio da proibição do excesso) desdobra-se em três subprincípios: (a) princípio da adequação (também designado por princípio da idoneidade), isto é, as medidas restritivas legalmente previstas devem revelar-se como meio adequado para a prossecução dos fins visados pela lei (salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); (b) princípio da exigibilidade (também chamado princípio da necessidade ou da indispensabilidade), ou seja, as medidas restritivas previstas na lei devem revelar-se necessárias (tornaram-se exigíveis), porque os fins visados pela lei não podiam ser obtidos por outros meios menos onerosos para os direitos, liberdades e garantias; (c) princípio da proporcionalidade em sentido restrito, que significa que os meios legais restritivos e os fins obtidos devem situar-se numa «justa medida», impedindo-se a adoção de medidas legais restritivas desproporcionadas, excessivas, em relação aos fins obtidos» - cf. Constituição..., cit., pp. 392-393.

Esta densificação do princípio da proporcionalidade tem sido, no essencial e ao longo do tempo, acolhida em múltiplos arestos do Tribunal Constitucional, de que é exemplo o Acórdão n.° 123/2018, onde se lê que «o princípio da proibição do excesso analisa-se em três subprincípios: idoneidade, exigibilidade e proporcionalidade. O subprincípio da idoneidade determina que o meio restritivo escolhido pelo legislador não pode ser inadequado ou Inepto para atingir a finalidade a que se destina; caso contrário, admitir-se-ia um sacrifício frívolo de valor constitucional. O subprincípio da exigibilidade determina que o meio escolhido pelo legislador não pode ser mais restritivo do que o indispensável para atingir a finalidade a que se destina; caso contrário, admitir-se-ia um sacrifício desnecessário de valor constitucional. Finalmente, o subprincípio da proporcionalidade determina que os fins alcançados pela medida devem, tudo visto e ponderado, justificar o emprego do meio restritivo; o contrário seria admitir soluções legislativas que importem um sacrifício líquido de valor constitucional".
Dito isto, cremos bem resultar na ponderação prática dos interesses aqui em conflito, já supra delineados, por um lado, o do inquilino gozar na plenitude e sem perturbação o gozo da coisa locada e o do senhorio, enquanto proprietário, de dela dispor e de concretizar a sua alienação, não pode deixar de se entender que, o legislador não consagrar a solução propugnada pela autora andou bem, deixando transparecer, de forma absolutamente inequívoca, qual o seu entendimento sobre a matéria.
E, por outro lado, será de salientar que a aplicação extensiva por analogia da norma contida na referida alínea b) do artigo 1038.º CCivil à situação da permissão da visita do locado aos potenciais compradores - que não consta de qualquer previsão legal - não merece acolhimento nem o mesmo tratamento.
Nada impede, desde logo, a concretização da venda do locado quando está ocupado.
Não é o facto de o inquilino não estar obrigado a permitir as visitas que o impede. Ou que viola o direito de propriedade do senhorio, por não poder dele dispor.
De resto, o caso delineado nos autos é absolutamente paradigmático. A autora, não obstante a posição, irredutível do réu, logrou concretizar o negócio. Ao fim de dois anos, mas conseguiu.
Improcede, pois, também, este segmento do recurso.
E, melhor sorte não merece o segmento reportado à violação do artigo 20.º da CRP, que a autora estrutura no facto de que a interpretação acolhida da norma contida na alínea b) do artigo 1038.º CCivil, comprimir, de modo desproporcionado, o direito à tutela jurisdicional efetiva do seu direito de propriedade.
Se está aqui em causa o direito fundamental de acesso ao direito e aos Tribunais e a um processo justo e equitativo, a instauração da presente acção, a sua normal tramitação, a interposição do presente recurso, da decisão que a julgou improcedente - e o que mais se lhe seguirá - é bem elucidativa de que a autora nenhum constrangimento sofreu no seu direito de aceder e de litigar em Tribunal, na defesa dos direitos e interesses a que se arroga, sem qualquer compressão.
Sem beliscar, afectar, alterar, modificar, influir o exercício que vem fazendo.
Questão diferente é se os direitos a que se arrogou merecem acolhimento, o que nada contende com a violação do direito de acesso aos Direito e aos Tribunais.
E, assim, improcede, na totalidade o recurso da autora, não merecendo a decisão recorrida as críticas que lhe dirige e, mormente a - aqui não colocada - de que se justificaria a continuação do processo para a fase de julgamento, para tentar provar a restante factualidade que alegou.

III. Sumário - artigo 663.º/7 CPCivil.
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IV. Decisão.
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em negar provimento à apelação e, em consequência, manter a decisão recorrida, nos segmentos impugnados.
Custas pela apelante.
Elaborado em computador. Revisto pelo Relator, o 1.º signatário.

Porto, 20/04/2023
Ernesto Nascimento
Carlos Portela
António Paulo Vasconcelos