Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2800/13.2TAVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: VÍTOR MORGADO
Descritores: ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
CRIME MAIS GRAVE
COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL SINGULAR
CONDENAÇÃO
Nº do Documento: RP201801102800/13.2TAVNG.P1
Data do Acordão: 01/10/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIMENTO PARCIAL
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º1/2018, FLS.155-164)
Área Temática: .
Sumário: No caso de mera alteração da qualificação jurídica na audiência de julgamento perante o tribunal singular que implique imputação de crime punível com pena superior a 5 anos de prisão, o mesmo tribunal pode condenar pela nova incriminação, após ter dado cumprimento ao disposto no artº 358º 3 CPP, apenas lhe sendo vedado aplicar pena de prisão superior a cinco anos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso nº 2800/13.2TAVNG.P1
Origem: comarca do Porto, V.ª N.ª de Gaia- juízo local criminal- J2
I – RELATÓRIO
Para julgamento em processo comum e intervenção de Tribunal Singular, o Ministério Público deduziu acusação contra B…, nascida a 12 de setembro de 1952, imputando-lhe a prática dos factos descritos na douta acusação de folhas 319 e seguintes, passíveis de integrarem a autoria material, pela mesma arguida, de um crime de coação, previsto e punido pelo artigo 154º, nº1, do Código Penal.
Marcada a audiência de julgamento, após a produção das provas indicadas pelos sujeitos processuais, a Ex.ma Juíza proferiu despacho em que manifestou o seu entendimento no sentido de que os factos da acusação configuravam, não um só crime de coação, mas antes cinco crimes de coação (atendendo ao número de ofendidos), ordenando, consequentemente, a notificação de todos os sujeitos processuais para os efeitos previstos no nº 3 do artigo 358º do Código de Processo Penal.
Como todos estes disseram nada terem a opor, a Ex.ma Juíza optou por proceder, de imediato, à leitura da sentença, em que decidiu:
- condenar a arguida B… como autora material e em concurso real de cinco crimes de coação, previstos e punidos pelo artigo 154º, nº1, do Código Penal, na pena de 180 (cento e oitenta dias) de multa, por cada um deles, à razão diária de €7 (sete euros) e, em cúmulo jurídico, na pena única de 650 (seiscentos e cinquenta) dias de multa, à mesma razão diária de €7 (sete euros), no total de €4550 (quatro mil quinhentos e cinquenta euros);
- julgar procedente o pedido de indemnização civil formulado por C…, D…, E…, F… e G…, e, em consequência, condenar a demandada B… a pagar a cada um dos demandantes a quantia de €350 (trezentos e cinquenta euros) a título de indemnização por danos não patrimoniais.
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Inconformada com o assim decidido, veio a arguida interpor o presente recurso, em que sintetizou a sua motivação através das seguintes conclusões:
«a) A arguida vinha acusada da prática de um crime de coação previsto e punido pelo artigo 154°, n° 1 do Código Penal, punível com pena de prisão até 3 anos ou pena de multa.
b) O tribunal “a quo” condenou a arguida pela prática de cinco crimes de coação.
c) Atenta a moldura penal prevista para o crime de coação e a condenação da arguida pela prática de cinco crimes de coação, sempre o Tribunal Singular seria incompetente para julgar o presente processo.
d) O tribunal “a quo” proferiu decisão num processo em que estava em causa a possibilidade de aplicação abstrata de uma pena de prisão superior a cinco anos e sem que o Ministério Público tivesse requerido a intervenção do Tribunal Singular, violando, assim, as regras da competência.
e) A Sentença de que ora se recorre é nula por violação do disposto no artigo 16º do Código de Processo Penal
f) Ocorreu, assim, uma nulidade insanável, por violação das regras da competência do tribunal, prevista no artigo 119°, alínea e), do Código de Processo Penal.
g) Deve declarar-se a nulidade da sentença recorrida, nos termos dos artigos 119°, alínea e), e 16º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
h) Dos factos provados da sentença recorrida apenas se sabe que a arguida sobrevive com um rendimento líquido que corresponde a pouco mais do que o salário mínimo nacional.
i) Nenhum facto dado como provado elucida ou indicia a situação económica e social da arguida.
j) O tribunal recorrido não dispôs de qualquer elemento objetivo suficiente para apuramento do quantum da multa aplicada.
k) Com a agravante de ser elemento que está no cerne do objeto do recurso e é determinante no apurar do montante da multa aplicada.
l) Enquanto responsável civil, a situação económica da arguida é também determinante para a fixação dos danos não patrimoniais.
m) Sobrevém, pois, a impossibilidade de fazer aplicação do disposto no nº 2 do artigo 47º do Código Penal e no disposto no artigo 496º do Código Civil por ausência dos factos pertinentes.
n) Ocorre, pois, o vício previsto no artigo 410º, nº 2, alínea a) do Código de Processo Penal, de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, uma vez que se não consegue saber, com um mínimo de objetividade, se a razão diária fixada para a multa é justa ou não é justa e se os danos não patrimoniais estão fixados com equidade.
o) A pena aplicada é excessiva.
p) Conforme estipula o artigo 71°, nº 1 do Cód. Penal, a determinação concreta da pena far-se-á dentro dos limites da moldura penal abstrata fixada na lei, tendo em conta a culpa do agente e as exigências de prevenção de futuros crimes, de harmonia com os fatores de ponderação ínsitos no n° 2 do citado artigo 71°, desde que tais fatores não constituam elementos do tipo ou elementos qualificativos do crime.
q) Devemos ter em atenção que a recorrente é primária e aufere pouco mais do que o salário mínimo nacional.
r) A pena encontrada pelo Tribunal recorrido para a arguida é excessiva e violadora do princípio consagrado no artigo 71º do Cód. Penal.
s) Deverá a medida da pena ser reduzida.
t) Entende-se que a quantia fixada a título de danos morais é também ela excessiva, pelo que tal valor deverá ser reduzido para quantia inferior.
u) O tribunal "a quo" violou o disposto nos artigos 40º, 47º, 71º e 72º do Código Penal vigente, e, ainda o disposto nos artigos 483º e 496º do Código Civil.
v) Ao aplicar a pena de 650 dias de multa pela prática de cinco crimes de coação, ainda que com uma única resolução criminosa, o tribunal recorrido violou o disposto no artigo 40º do Código Penal, por ser excessiva.»
Terminou a arguida este seu recurso pedindo a revogação da decisão recorrida e a sua substituição “por outra que:
a) Declare nula a sentença recorrida, por ocorrer uma nulidade insanável nos termos dos artigos 119°, alínea e), e 16º, n.º 3, do Código de Processo Penal, e, em consequência, que determine a realização de novo julgamento mediante tribunal coletivo, ao abrigo do artigo 16º, nº 3, do Código de Processo Penal e, em seguida, em cumprimento dos artigos 312º e 313º, Código de Processo Penal, designe data para julgamento. Caso assim se não entenda, o que não se concede,
b) Anule parcialmente o julgamento e, em consequência, determine o reenvio parcial do processo ao tribunal recorrido – nos termos da parte final do artigo 426º nº 1 do Código de Processo Penal – o qual deverá reabrir a audiência exclusivamente para apurar os rendimentos e despesas efetivas ou médias da recorrente, após o que deverá ser lavrada nova sentença para fixação das penas e dos danos não patrimoniais; Ou, caso assim se não entenda,
c) Reduza a pena aplicada à recorrente, bem como o montante que foi condenada a pagar a título de danos não patrimoniais, para montantes mais adequados e proporcionais à gravidade dos factos praticados pela arguida e ainda suficientes para atender às necessidades de prevenção geral e especial (…)”.
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O Ministério Público apresentou resposta em que que entendeu que assiste razão à arguida, no que toca à arguição da nulidade insanável decorrente da incompetência material do Tribunal, porquanto, por força da “alteração dos factos” (número de crimes de coação imputados à arguida, que passou de um crime de coação, para cinco), operada nos termos do artigo 358º, nº 3, do Código de Processo Penal e considerando a moldura penal abstratamente aplicável, por força das regras da punição do concurso de crimes, a competência para o julgamento caberia ao Tribunal Coletivo (artigo 14° nº 2 alínea b) do Código de Processo Penal), pelo que deve ser reconhecida tal nulidade, com as legais consequências, tornando-se despicienda a pronúncia sobre todas as outras questões suscitadas.
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Já nesta 2ª instância, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer em que se pronunciou, igualmente, no sentido da procedência da invocada nulidade de incompetência material.
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Cumpre decidir.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
Questão prévia
Além de recorrer quanto à parte criminal, a arguida inclui, no seu recurso, um último segmento que se prende com o pedido cível contra si deduzido pelos ofendidos/demandantes.
O valor peticionado por cada um destes, a título de indemnização civil, foi de 350,00 euros, num total de 1.750,00 euros, sendo certo que a arguida/demandada acabou por ser condenada no pagamento de uma indemnização de 350,00 euros a cada um dos demandantes, perfazendo um montante global de 1.750,00 euros.
Dispõe o nº 2 do artigo 400º do Código de Processo Penal que (…) o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.
De acordo com o disposto com o nºs 1 e 3 do artigo 44º da Lei nº Lei 62/2013, de 26/8 ([1]), em matéria cível, a alçada dos tribunais de 1ª instância era já de 5.000,00 euros.
Evidencia-se, pois, que nenhum dos requisitos cumulativos exigidos pela lei processual penal para a admissibilidade do recurso em matéria de indemnização civil se encontra preenchido no caso vertente.
Portanto, basta esta simples constatação, para ter que se entender que a parte cível do recurso não deveria ter sido admitida pela 1ª instância, e vai rejeitada por este Tribunal da Relação, que de tal parte não pode conhecer.
Custas cíveis a cargo da arguida/demandada cível/recorrente.
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O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar [2], sem prejuízo das de conhecimento oficioso.
As questões a decidir são, assim, as de saber:
- se a sentença recorrida enferma da nulidade insanável por violação daa regras de competência material do tribunal singular – artigos 119º, alínea e) e 16º, n.º 3, do Código de Processo Penal;
- se a sentença recorrida padece do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no artigo 410º, nº 2, alínea a) do Código de Processo Penal, por falta de indagação de factos respeitantes às condições pessoais e económicas da arguida;
- se a pena aplicada é excessiva, devendo ser reduzida
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Previamente, porém, à apreciação das já enunciadas questões, importa conhecer o teor da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida, que é o seguinte:
«2. Dos Factos
2.1. Provados
Com relevância para a decisão da causa provou-se que:
2.1.1. Os ofendidos C…, e mulher, D…, E…, F… e G…, são comproprietários do prédio urbano designado por “H…”, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o n.º 01535/280593, da freguesia de …, inscrito na matriz predial sob o n.º 3092.
2.1.2. Tal prédio, como resulta da inscrição matricial respetiva e inscrição na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, é constituído por um terreno com 1.582 m2, e confronta por Norte com terreno pertencente à arguida (e anteriormente, a si e ao seu falecido marido, I…).
2.1.3. Em ordem a dirimir o conflito existente entre os ofendidos e a arguida quanto à propriedade de parte de tal prédio - cerca de 500 m2 - correu, pelo 6º Juízo Cível do Tribunal de Vila Nova de Gaia, a ação 5765/09.1TBVNG, sentenciada a 14 de junho de 2011, confirmada por acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24 de janeiro de 2013, tudo conforme certificado nos documentos de fls. 67 a 100.
2.1.4. A sentença em apreço reconheceu que os autores, aqui ofendidos, eram legítimos proprietários do prédio urbano acima identificado, condenando a ré, ora arguida, a abster-se de nele entrar bem como de se abster de perturbar a posse daqueles.
2.1.5. No dia 9 de março de 2013, pelas 10 horas, não sendo já a decisão suscetível de recurso, quiseram os ofendidos, dando-lhe execução factual e substantiva, vedar o perímetro do terreno do prédio com rede.
2.1.6. Todavia, os ofendidos C…, E… e F…, chegados ao local – onde se deslocaram acompanhados por outras pessoas e, nomeadamente, por aquelas que executariam os trabalhos de vedação – foram surpreendidos pela arguida que nele se encontrava, e que, exaltada, lhes disse, de modo que tiveram por sério, que, caso dessem início à vedação, faria explodir uma botija de gás que guardava na sua propriedade, que é contígua, e que só por cima do seu cadáver entrariam no terreno que sabia pertencer-lhes – pelo menos desde que havia sido notificada da predita sentença bem como do acórdão do Tribunal da Relação, que a confirmou, e do qual não recorreu.
2.1.7. Mais lhes reiterou, sempre de forma exaltada, que se persistissem no desígnio que ali os havia levado, se faria explodir com uma botija de gás, declaração que fez já na presença dos agentes da PSP entretanto chamados ao local.
2.1.8. Para evitar a concretização de tais afirmações, e reconhecendo que a vida da arguida era um bem precioso, e que a sua perda constituiria, enquanto bem jurídico fundamental, um mal importante para a comunidade, decidiram abandonar o local sem concretizar a intenção que ali os havia levado.
2.1.9. A arguida atuou com o propósito de constranger os ofendidos, através das descritas condutas, a não praticarem ação legítima, e necessária, à defesa da sua propriedade, impondo-lhes que suportem uma posse ofensiva e ilegítima de parcela de terreno que lhes pertence.
2.1.10. Agiu deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
2.1.11. Em consequência da conduta da arguida, os demandantes sentiram-se nervosos durante várias semanas….
2.1.12…sentindo-se perturbados no seu espírito, sobressaltados e ansiosos.
2.1.13. A arguida aufere pensão de viuvez no valor mensal de €187….
2.1.14...aufere pensão atribuída pelas autoridades francesas no valor de cerca de €43.
2.1.15. mensalmente aufere rendas no valor de €255...
2.1.16…e outra pensão no valor de €280
2.1.17. Vive em casa de pessoa amiga.
2.1.18. Não tem antecedentes criminais.
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2.2. Não provados
Com relevância para a decisão da causa não se provou que:
2.2.1. Anos decorridos, encontram-se ainda os ofendidos privados do uso de parte daquele seu prédio
2.2.2. Os demandantes, em consequência da conduta da arguida, não conseguiram dormir descansados por várias semanas…
2.2.3…..passando noites inteiras acordados…
2.2.4….ou acordando várias vezes durante a noite….
2.2.5….não conseguindo conciliar o sono.
2.2.6. Os demandantes são cidadãos pacatos, sensatos, discretos, nada habituados a ver posto em crie o seu quotidiano….
2.2.7…tratando-se de pessoas calmas e de elevada sensibilidade.
2.2.8. A arguida disse que fazia explodir duas botijas de gás.
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3. Motivação
No que concerne aos factos provados, o tribunal alicerçou a convicção no conjunto da prova produzida em audiência, concatenada com as regras da experiência comum. Vejamos.
Da certidão de fls. 67 a 100, concluímos pelo processo cível que opôs arguida e demandantes, fundamentos e decisão proferida quanto à propriedade do terreno mencionado nos autos.
O ofendido C…, de forma simples, coerente, espontânea e credível, esclareceu em que circunstancias se deslocou ao local, quantas pessoas o acompanhavam e que a dado momento a arguida, quando se encontrava em cima de uma botija de gás, de cor vermelha, anunciou que se faria explodir se persistissem na intenção de entrar no prédio. Mias esclareceu que a arguida segurava um isqueiro, o que motivou se convencesse da seriedade do seu anunciou, bem assim que abandonaram o local a fim de evitar um mal maior.
Admitiu que apenas tomaram posse do terreno três anos depois da sentença proferida no âmbito do processo cível ter transitado em julgado, donde conluiamos que já estão na sua posse, ao contrário do que fora alegado na douta acusação.
Deste depoimento não resulta que a arguida se tenha referido a duas botijas de gás.
- E… revelou conhecimento pessoal dos factos, dado ter-se deslocado ao local para vedar o terreno, esclarecendo das razões porque tal não sucedeu.
Porém, nega ter-se apercebido da efetiva existência de botijas e gás, por do local onde se encontrava não conseguir ter a perceção exata do objeto sobre o qual a arguida estava de pé.
F…, depôs de forma serena, coerente, credível, sendo um dos demandantes que se deslocou ao local e depôs de forma coincidente, no essencial, com o demandante C….
J…, agente da PSP que se deslocou ao local, confirmou ser o subscritor da participação de fls. 123, recordando-se que a D. B… ameaçava fazer-se explodir.
L… e M…, filha e genro do demandante C…, de forma simples confirmaram os efeitos dos atos da arguida na vida dos demandantes, sendo que a ansiedade, nervosismo, sobressalto que afirmam ter sido sentidos pelos demandantes revelam-se compatíveis com as regras da experiência.
Valoraram-se, ainda, as declarações da arguida quanto à sua situação económica e pessoal e o CRC a fls. 358.
Quanto aos factos do pedido cível que resultaram não provados, resultaram:
- de ausência de prova (2.2.1. 2.6. e 2.7), uma vez que em audiência nenhuma testemunha os confirmou.
- quanto à circunstancia de os demandantes não conseguirem conciliar o sono, passando noites inteiras acordados ou acordarem diversas vezes durante a noite, salvo o sempre devido respeito, pese embora a testemunha L… tenha referido que assim sucedeu com os seus pais, a verdade é que não se afigura credível que o cidadão comum, perante uma tal situação, assim se mantivesse por várias semanas e, por outro lado, subsiste a duvida se esse estado de coisas não se radicaria, antes, no facto de se verem privados do seu terreno.
Não se valoram as declarações da arguida, pese embora admitisse ter-se deslocado ao terreno e procurado evitar que os demandantes ali acedessem, uma vez que refere que os demandantes e as pessoas que os acompanhavam eram em numero de 60, o que foi infirmado pela restante prova produzida, além de que o seu depoimento se apresentou claramente defensivo e incoerente. Com efeito apesar de negar ter proferido quaisquer ameaças, ou ter botijas de gás, refere ter-se munido de uma lata como as vulgares que dizem “brise”, para se defender. Questionada como se defenderia, admite que se acendesse um fósforo, explodiria. Salvo o devido respeito por opinião contrária, os demandantes C… e F…, de forma imparcial, infirmam esta versão. Se nada disse, porque entenderiam os demandantes que com a mera detenção de uma lata a arguida pretendia fazer-se explodir? E porque seria a sua mera afirmação de não os deixar entrar sem falar com o seu advogado suficiente para impedir os demandantes, privados há vários anos do terreno, na posse de uma sentença transitada em julgado que lhes reconhecia o direito de propriedade sobre o mesmo, de ali entrarem?
A verdade é que o depoimento dos demandantes, não obstante a sua qualidade processual, se revelou imparcial e sincero, enquanto o da arguida se apresentou pouco coerente
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A) A invocada nulidade insanável, por incompetência material do tribunal singular
Como primeiro fundamento do seu recurso, alega a arguida que a sentença impugnada enferma da nulidade insanável prevista no artigo 119º, alínea e), do Código de Processo Penal, por violação das regras de competência material do tribunal singular, definidas no artigo 16º, nºs 1 e 2, com referência ao artigo 14º, nº 2/a), ambos do mesmo Código.
No presente caso, na sessão de julgamento de 16 de março de 2017 (folha 425 e verso), foi comunicado à arguida, nos termos do disposto no artigo 358°, nº 3, do Código de Processo Penal, que os factos alegados na acusação (e que acabaram por ser dados como provados) configuravam "(, ..) a prática, não de um crime de coação, mas, em concurso real, de 5 (cinco) crimes de coação, previstos e punidos pelo artigo 154°, nº 1, do Código Penal, considerando que são 5 (cinco) os ofendidos e o bem jurídico protegido pela norma incriminadora é a liberdade pessoal de cada um daqueles “.
E, na verdade, na sequência dessa alteração superveniente da qualificação jurídica, o Ministério Público não usou – pelo menos expressamente – da faculdade prevista no nº 3 do artigo 16° do Código de Processo Penal: no caso concreto, o acusador público (à semelhança, aliás, de todos os restantes sujeitos processuais) apenas declarou nada ter a opor à referida alteração da qualificação jurídica.
É com base nestas ocorrências processuais que a recorrente sustenta, em primeira linha, que, nestas circunstâncias, não poderia o tribunal singular substituir-se ao promotor da ação penal na formulação do juízo de oportunidade previsto em tal disposição legal.
Curiosamente, em ambas as instâncias, o Ministério Público pronuncia-se, sem quaisquer reticências ([3]), no sentido desta pretensão cassatória da recorrente, omitindo até qualquer pronúncia sobre as demais questões subsidiariamente colocadas.
Vejamos.
Começaremos por reconhecer que a posição da impugnante logra um não negligenciável apoio literal no que se dispõe no artigo 16º, nº 3, do Código de Processo Penal e – embora tal não tenha sido invocado por qualquer dos sujeitos processuais – algum conforto doutrinário [4] e até jurisprudencial.
Assim, segundo a recorrente (e de acordo com o próprio recorrido), para que o Tribunal de 1ª instância pudesse conhecer do mérito da causa, impor-se-ia que o Ministério Público manifestasse, expressa e fundamentadamente, o intuito de usar tal prerrogativa perante o acréscimo de crimes imputados à arguida [5].
Não bastaria que o arguido e o acusador público apenas tivessem declarado nada terem a opor à referida alteração da qualificação jurídica, pelo que restaria ao Tribunal singular declarar a nulidade insanável prevista no artigo 119°, alínea e), do Código de Processo Penal, tornando inválido os atos em que a mesma se verificou e os que dela dependessem, ou que por ela fossem afetados (artigo 122º, n° l, do mesmo Código), incluindo, naturalmente, a sentença e a própria audiência de julgamento.
Afigura-se-nos, porém, que esta não é a solução que corresponde à melhor interpretação dos textos legais em causa, nem a que mais acautela o conjunto dos interesses verdadeiramente envolvidos.
Na verdade, como vem entendendo a melhor doutrina, no caso de mera alteração da qualificação jurídica na audiência de julgamento perante o tribunal singular que implique a imputação de crime punível com pena superior a cinco anos de prisão, o mesmo tribunal pode condenar pela nova incriminação, após ter dado cumprimento ao disposto no artigo 358º, nº 3, apenas lhe sendo vedado aplicar pena de prisão superior a cinco anos [6].
De resto, a solução consagrada no nº 3 do artigo 358º do Código de Processo Penal (inciso aditado pela Lei nº 59/98, de 25/8) – de equiparação da mera alteração da qualificação jurídica à alteração não substancial dos factos da acusação – veio na linha do entendimento já anteriormente consolidado pelo S.T.J. face às anteriores redações do mesmo artigo, designadamente, no “Assento” nº 3/2000, de 15/9/1999, publicado no D.R., Série I-A, de 11/2/2000 [7].
Nem outra interpretação mais restritiva se nos afigura compatível com o disposto no nº 4 do artigo 339º do Código de Processo Penal, onde se consigna que, “sem prejuízo do regime aplicável à alteração dos factos, a discussão da causa tem por objeto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, bem como as soluções jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultante da acusação ou da pronúncia (…)”.
Mesmo Damião da Cunha, apesar de fortemente crítico da solução legislativa adotada [8], acaba por considerar como preferível, “de jure condito”, que, quando o tribunal singular, em virtude de uma diferente qualificação jurídica, entender que a medida abstrata da pena ultrapassa o limite máximo de 5 anos de prisão, não deve declarar a sua incompetência e deve continuar a julgar o facto, não podendo, no entanto, aplicar pena superior à estabelecida para a sua competência.
Assim, na citada obra “O caso julgado parcial…”, a página 237 (nota 247), explicando: “se o MP deduz acusação por um crime que deva ser julgado em tribunal singular e se este tribunal entender que, em virtude de uma diferente qualificação jurídica, a medida da pena ‘ultrapassa’ o limite máximo da sua competência e, por isso, deveria ser um tribunal coletivo a julgar, nesta situação duas hipótese se
equacionam: a) ou o tribunal singular continua a julgar o facto, mas não pode aplicar pena superior à estabelecida para a sua competência – e, tanto quanto julgamos, esta solução é a que é legalmente imposta; (…[9])”.
Também a melhor jurisprudência dos tribunais superiores se vem inclinando no sentido de que, se a questão da incompetência do tribunal singular apenas se poderia vir supervenientemente a revelar, a sua relevância e o seu efeito têm de analisar-se perante a condenação que veio a ser proferida em razão da limitação imposta à pena aplicada, numa analogia, ainda consentida, com a previsão do artigo 16.º, n.º 3, do Código de Processo Penal [10].
Pelo exposto, entendemos dever julgar improcedente a invocada exceção de incompetência em razão da matéria.
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B) O alegado vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto
Em primeira via subsidiária, argui a recorrente o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, enunciado no artigo 410º, nº 2, alínea a), do Código de Processo Penal, por alegada falta de indagação de factos respeitantes às condições pessoais e económicas da arguida.
Vejamos.
Sobre as condições sociais e económicas da arguida, apurou-se, como acima já transcrito, que: “(…) 2.1.13. A arguida aufere pensão de viuvez no valor mensal de €187….
2.1.14...aufere pensão atribuída pelas autoridades francesas no valor de cerca de €43.
2.1.15. mensalmente aufere rendas no valor de €255...
2.1.16…e outra pensão no valor de €280
2.1.17. Vive em casa de pessoa amiga. (…)
Verifica-se que a arguida não apresentou contestação escrita, quer sobre a matéria criminal, quer sobre a cível.
Ora, na verdade, se ninguém alegou os factos supostamente em falta e se nenhuma prova deles foi feita, onde poderia residir o vício de julgamento invocado?
Aliás, como decorre do inciso legal invocado, o vício tem que resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, o que de modo nenhum se verifica no caso concreto.
Com efeito, só existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando o tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a factualidade relevante, de forma que tal base factual não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do juiz [11].
Não se vê, pois, como o Tribunal recorrido possa ter incorrido no alegado vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, cuja arguição se julga, consequentemente, improcedente.
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C) O alegado excesso das penas aplicadas – parcelares e única
Nas suas conclusões de recurso, invoca a recorrente a excessividade da pena aplicada – parecendo que se estará a referir à pena única, se atendermos a que usa o singular – alegando, basicamente, nas conclusões q), r) e s), que é primária e aufere pouco mais do que o salário mínimo nacional, que a pena encontrada pelo Tribunal recorrido para o caso é excessiva e violadora do princípio consagrado no artigo 71º do Código Penal (aqui, pela disposição legal citada, parece já estar a referir-se às penas parcelares…) e que, por isso, deverá ser reduzida.
A ambivalência quanto à pena ou às penas a que se quer referir, não é esclarecida, aliás, pelo texto da motivação do seu recurso, onde alega que: (31) “o tribunal a quo, ao aplicar a pena de 650 dias de multa pela prática de cinco crimes de coação, ainda que com uma única resolução criminosa, violou o disposto no artigo 40º do C.P., por ser excessiva; (32) o grau de ilicitude é mediano, atento o meio onde os factos foram praticados; (33) a arguida está inserida familiar e profissionalmente; (34) sendo que o crime em que foi condenado não está ligado a qualquer tendência criminosa, antes decorre de circunstâncias que o propiciaram, sendo a arguido pessoa com hábitos de trabalho, com uma vida familiar estabilizada e sem quaisquer antecedentes criminais, o que significa que as necessidades de prevenção especial não impõem que a pena se fixe muito acima do mínimo exigido pela prevenção geral.”
Pois bem.
Considerando que quer o critério de determinação das penas parcelares, quer o da fixação da pena do concurso influenciam, cada um da sua forma específica, o resultado final, passaremos ao escrutínio de ambos.
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C).1 – Penas parcelares
Cada um dos crimes de coação praticados pela arguida é punível, nos termos do artigo 154º, nº 1, do Código Penal, é punível com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa, tendo o Tribunal recorrido optado – e bem, no âmbito do artigo 70º do Código Penal – pela pena de 10 a 360 dias de multa (cfr. também artigo 47º do Código Penal).
No que tange à determinação das penas parcelares, pode ler-se na sentença recorrida, designadamente, que:
“(…) A prevenção especial não é um valor absoluto, mas duplamente limitado pela culpa e pela prevenção geral: pela culpa já que o limite máximo da pena não pode ser superior à medida da culpa; pela prevenção geral que dita o limite máximo correspondente à garantia da manutenção da confiança da comunidade na efetiva tutela do bem violado e na dissuasão dos potenciais prevaricadores.
No caso em apreço, há a considerar:
- o grau de ilicitude do facto, que embora não seja particularmente significativo, assume alguma relevância, dado o meio utilizado: botijas de gás e possibilidade de as fazer explodir;
- o grau de culpa, também ele significativo, considerando as razões que estiveram na origem da conduta – a posse de terreno – e o facto de a arguida atuar procurando impedir acesso a terreno cuja propriedade estava definitivamente reconhecida a favor dos ofendidos por sentença transitada em julgado;
- o modo de execução da conduta: com uma única ação a arguida violou bens jurídicos de cinco pessoas distintas.
A seu favor há a considerar que, ainda que de forma indireta, admitiu a censurabilidade da sua conduta, mostrando-se pessoalmente inserida e que, apesar de contar mais de sessenta anos de idade, este é o primeiro contacto com o sistema judicial.”
Embora se concorde, no essencial, com o segmento acima transcrito da decisão recorrida, entendemos que ele merece, ainda assim, algumas complementares considerações.
As razões de prevenção geral são, no caso, apreciáveis, atendendo a que não nos podemos alhear de que estava concretamente em causa o não acatamento, pela arguida, de uma decisão judicial definitiva sobre o litígio civil que a havia oposto aos ofendidos.
O grau de ilicitude é efetivamente – diríamos que consensualmente – mediano.
Porém, importa deixar claro que a circunstância de a arguida, com uma única ação, ter violado bens jurídicos de cinco pessoas distintas não constitui um fator de agravação, mas antes de atenuação, visto que, indubitavelmente, houve uma única resolução, tendo todo o potencial agravativo sido, necessariamente, ‘exaurido’ na própria tipificação inerente ao concurso ideal/real de crimes. Parece ter sido deste equívoco que se alimentou algum excesso na graduação das penas parcelares, mas, sobretudo, como abaixo melhor se verá, na determinação da pena conjunta ou única.
Por outro lado, diríamos que também será pacífico que as razões de prevenção especial são, em concreto, pouco relevantes, atendendo ao passado criminal impoluto da arguida e à circunstância de as probabilidades de perpetração de novos crimes idênticos serem, aparentemente, poucas.
Assim, entendendo nós que as penas parcelares devem ser determinadas abaixo do ponto médio do âmbito de variação dentro da moldura abstrata, mas suficientemente distanciadas do seu limite mínimo, cada uma delas deve ser fixada em 120 dias de multa (isto é, no limite do primeiro terço da referida variabilidade). Nesta vertente da dosimetria concreta das penas parcelares (dias de multa), merece, pois, parcial provimento o recurso interposto.
Quanto à razão diária de 7 euros por cada dia de multa encontrada pelo Tribunal recorrido, se algo houvesse a censurar, não seria o exagero, mas a parcimónia: a arguida não terá uma situação económica desafogada, mas está algo acima do limiar da carência económica extrema. No entanto, não poderemos alterar aquela razão diária, quanto mais não seja, face à proibição da “reformatio in pejus”, expressamente consagrada no artigo 409º do Código de Processo Penal.
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C).2 – Pena conjunta
Temos, assim, por adquirido que a arguida cometeu, em concurso ideal e efetivo, cinco crimes de coação punidos com cinco penas de 120 dias de multa à razão diária de 7 euros.
Na atual versão do artigo 77º do Código Penal (correspondente ao artigo 78º da versão originária do mesmo diploma), o legislador consagrou, para as hipóteses em que o mesmo agente tenha praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, um sistema de pena conjunta obtida através de um cúmulo jurídico.
Os limites que balizam essa pena são estabelecidos no nº 2 do mesmo preceito: “A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar (...) 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
Temos, assim, uma moldura de concurso com um mínimo de 120 dias de multa à razão diária de 7,00 euros e um máximo 600 dias de multa à mesma razão diária – cfr. o citado nº 2 do artigo 77º do Código Penal.
Conforme resulta do nº 1 do artigo acima citado, na medida da pena única devem ser considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
Não se trata, bem entendido, de uma operação de determinação da medida de pena reconduzível à usada para o achamento de uma pena isolada ou das diversas penas parcelares, cujos critérios vêm balizados no artigo 71º (na sua atual redação) do Código Penal.
Aplica-se aqui um critério especial que, não assumindo o rigor e a extensão pressupostos no mencionado artigo 71º, implica, ainda assim, uma adequada fundamentação, como é pressuposto pelas disposições conjugadas dos artigos 77º, nº 1, e 71º, nº 3, do Código Penal.
Escreve Figueiredo Dias [12] que “[t]udo deve passar-se (...) como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (...) criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta.”
Como já acima se referiu, a tarefa de determinação da medida da pena do concurso – não sendo, em termos legais, tão rigidamente balizada como a determinação das penas isoladas ou das penas parcelares passíveis de cúmulo jurídico – não pode ser entendida, apesar de tudo, como uma atividade isenta de regras e que dispense fundamentação.
“O modelo de fixação da pena no concurso de crimes rejeita uma visão atomística dos vários crimes e obriga a olhar para o conjunto. (…) O conjunto dos factos indica a gravidade do ilícito global, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão entre os factos concorrentes” [13].
Considerando os factos no seu conjunto, importa mencionar que, sendo a arguida primária e tendo atuado no quadro de uma única resolução, se encontra fora de cogitação e do nosso horizonte de cognição a clássica distinção entre a verificação de uma tendência criminosa ou de uma mera pluriocasionalidade, seguro sendo que nem aquela nem sequer esta são descortináveis.
Ora, o Tribunal recorrido – provavelmente pela equivocada consideração (já acima detetada) de que a resolução e a ação únicas da arguida concitariam uma agravação e não uma atenuação das necessidades de prevenção especial (como deve, a nosso ver, acontecer) – optou por adicionar ao mínimo legal da moldura do cúmulo jurídico cerca de 2/3 da soma de todas as penas restantes, o que, constituindo uma solução que ainda respeita os limites legais, não colhe, a nosso ver, qualquer apoio doutrinal ou jurisprudencial.
Com efeito, tratando-se de um concurso ideal de crimes absolutamente homogéneo – que são autonomizados apenas face à pluralidade de vítimas e por os bens atingidos serem de natureza pessoal – cometidos por uma arguida sem antecedentes criminais, a representação das penas ‘restantes’ ou ‘menores’ na pena conjunta não deve exceder metade do seu ‘peso’, não devendo também, em regra, a sua soma material exceder a moldura penal abstrata de cada um dos crimes concorrentes – no caso, 360 dias de multa [14].
Justifica-se, assim, a nosso ver, a aplicação de uma pena única de 360 dias de multa, à razão diária de 7,00 euros, consideravelmente diversa, pois, da aplicada na sentença recorrida.
Assim, também procede parcialmente esta vertente do recurso da arguida.
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III – DECISÃO
Por tudo o exposto, acordam os Juízes desta 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar parcialmente provido o recurso interposto pela arguida B…, revogando a sentença recorrida e condenando agora a arguida – como autora material e em concurso ideal/efetivo de 5 (cinco) crimes de coação, previstos e punidos pelo artigo 154º, nº1, do Código Penal – na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à razão diária de €7 (sete euros), por cada um dos crimes e, em cúmulo jurídico, na pena única de 360 (trezentos e sessenta) dias de multa, à mesma razão diária de €7 (sete euros), no total de €2.520 (dois mil quinhentos e vinte euros);
No demais, mantém-se o decidido pela 1ª instância (designadamente quanto ao pedido civil de indemnização).
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Sem custas criminais, nesta instância (artigo 513º nº 1, “a contrario sensu”, do Código de Processo Penal, quanto ao arguido; isenção pessoal, quanto ao Ministério Público).
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Custas cíveis, como já acima decidido, a cargo da arguida/demandada/recorrente.
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Porto, 10 de janeiro de 2018
Vítor Morgado
Alexandra Pelayo
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[1] LOSJ vigente à data da dedução do pedido.
[2] Tal decorre, desde logo, do disposto no nº 1do artigo 412º dos nºs 3 e 4 do artigo 417º. Ver também, nomeadamente, Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, III, 3ª edição (2009), página 347 e jurisprudência uniforme do S.T.J. (por exemplo, os acórdãos. do S.T.J. de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, página 196, e de 4/3/1999, CJ/S.T.J., tomo I, página 239).
[3] Sendo certo que, em nenhum momento anterior à prolação da sentença (e, mormente, ao ser notificado da alteração da qualificação jurídica, na parte final da audiência de julgamento) deduziu qualquer oposição ao prosseguimento do processo como comum perante tribunal singular ou suscitou a questão da ora pretendida declaração de incompetência material do Tribunal recorrido, assumindo uma postura que – não pondo nós em causa a autonomia técnico-jurídica de cada um dos seus diversos Magistrados – se nos afigura pouco consentânea com a congruência de posicionamento que se expeta deste peculiar sujeito processual.
[4] Embora a montante desta específica problemática (do uso ou concretização do princípio da oportunidade) – por entenderem que a mera modificação qualificação jurídica se traduz numa alteração substancial da matéria da acusação, sendo vedada tal modificação, sob pena de violação dos princípios constitucionais do direito de defesa e do contraditório – alinham-se Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal, volume III, 3ª edição/2009, páginas 276-277) e Damião da Cunha (O caso julgado parcial, questão da culpabilidade e questão da sanção num processo de estrutura acusatória, Porto, 2002, Publicações Universidade Católica, páginas 233-234).
[5] Em semelhante sentido, podem ver-se o acórdão da Relação de Coimbra de 19/06/2013, processo 675/11.5GBTMR-A.C1, in www.dgsi.pt, bem o acórdão da Relação de Lisboa de 18/11/2015, in Col.Jur., nº 266, ano XL, tomo V, páginas 114-116.
[6] Assim, Paulo Pinto de Albuquerque, em Comentário do Código de Processo Penal (…), 4º edição, Lisboa, 2011, anotação nº 17 ao artigo 16º, página 96.
[7] Neste ‘assento’, fixou-se a seguinte jurisprudência: “Na vigência do regimes dos Códigos de Processo Penal de 1987 e de 1995, o tribunal, ao enquadrar juridicamente os factos constantes da acusação ou da pronúncia, quando esta existisse, podia proceder a uma alteração do correspondente enquadramento, ainda que em figura criminal mais grave, desde que previamente desse conhecimento ao arguido da possibilidade de tal ocorrência, e, se requerido, prazo para que o mesmo pudesse organizar a sua defesa.”
[8] Por, em sua tese, não respeitar a estrutura acusatória do processo com reconhecimento constitucional.
[9] E prossegue: (…) b) ou, então, o tribunal singular tem que declarar a sua incompetência, aplicando-se as regras que decorreriam dessa declaração de incompetência, que conduziriam à anulação de todos os atos praticados (cf. art. 32º.°/33,°).
Esta segunda solução seria admissível, mas apenas se o legislador a tivesse expressamente previsto. Não se pode deduzir esta incompetência do art 32.°/33.° do CPP – isto é, não se pode fundamentar este caso de incompetência naquelas regrasporque, no caso concreto, se trata de uma mera incompetência ‘superveniente’ e ‘eventual’. Superveniente, porque, de facto, a acusação é remetida para o tribunal competente; eventual, porque só opera se a decisão for condenatória (pois, sendo absolutória, não se coloca qualquer problema) e se alterar a qualificação jurídica” (‘carregado’ e sublinhados nossos).
[10] Neste preciso sentido, veja-se o acórdão da Relação de Évora de 18/02/2014, proferido no recurso 1012/09.4PBSXL.E1, relatado por Carlos Berguete Coelho, acedido em www.dgsi.pt; em sentido semelhante, vejam-se ainda os acórdãos da Relação do Porto de 16/2/2011, no recurso 437/06.1TAVNF.P1, relatado por Eduarda Lobo (também acedível em www.dgsi.pt) e do S.T.J. de 2/4/2009, in Col.Jur./STJ, XVII, II, página 186.
[11] Neste exato sentido, ver o acórdão do S.T.J. de 29/2/1996, in BMJ 454º-531 e seguintes.
[12] Direito Penal Português, Parte Geral, II, As consequências jurídicas do crime, Aequitas, 1993, página 291.
[13] Com esta formulação, veja-se o acórdão do S.T.J. de 27/6/2012, proferido no processo nº 70/07.0JBLSB-D.S1, relatado por Henriques Gaspar, atualmente consultável em www.dgsi,pt.
[14] No sentido desta última limitação, veja-se o texto da conferência proferida pelo o Conselheiro Carmona da Mota no Colóquio de Direito Penal e Processo Penal, realizado no STJ no dia 3 de junho de 2009, disponível em www.stj.pthttp://www.stj.pt/nsrepo/cont/Coloquios/Pena%20conjunta%20Contributo%20jurisprudencial.pdf.