Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
49/15.9T8GVA.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDA ALMEIDA
Descritores: FALTA DE PODERES DE REPRESENTAÇÃO
INEFICÁCIA DO NEGÓCIO
INVALIDADE
Nº do Documento: RP2022102449/15.9T8GVA.P1
Data do Acordão: 10/24/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Pedindo o autor a invalidade do negócio celebrado por quem não detinha direitos de representação, mas tratando-se de negócio ineficaz relativamente ao putativo representado (art. 268.º, n.º 1 CC), deve o tribunal corrigir oficiosamente esse erro e declarar tal ineficácia, nos termos do art. 5.º, n.º 3 CPC.
II - Não sendo ilícito nem inválido o negócio celebrado sem poderes de representação, o mesmo é ineficaz (art. 268.º, n.º1 CC), abrindo-se então uma situação de pendência durante a qual não se sabe se o ato produzirá ou não efeitos, pendência da qual se sai através de ratificação pelo dominus ou de revogação ou rejeição pela outra parte.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc.º 49/15.9T8GVA.P1

Sumário do acórdão elaborado pela sua relatora nos termos do disposto no artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil:
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Acordam as juízas abaixo-assinadas da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:
RELATÓRIO
Autores: AA e marido, BB, entretanto falecido e habilitados a A., cônjuge sobrevivo, com domicílio na Rua ..., Porto, e CC, residente no mesmo local.
Rés: R..., Ld.ª, com sede em Praceta ..., ..., Braga.
DD, com domicílio na Rua ..., Porto.
EE, advogada, com domicílio profissional na Rua ..., ..., Porto.

Por via da presente ação declarativa pretendem os AA. seja declarada nula ou anulada a compra e venda celebrada entre as duas primeiras Rés e ordenado o cancelamento do registo de aquisição a favor da primeira Ré e registos subsequentes, devendo ser-lhe restituído o imóvel sobre que versa o negócio e as Rés condenadas a indemnizar os AA. de todos os danos patrimoniais, no montante de €5.500,00, e dos danos não patrimoniais, no montante de 3.000 euros.
Subsidiariamente, provando-se a venda a terceiro de boa-fé, sejam as Rés condenadas a restituir o valor patrimonial que se vier a apurar, nunca inferior ao valor da venda.
Para tanto alegaram ter a Ré DD, munida de procuração falsificada, vendido à sociedade Ré imóvel dos AA, intervindo a terceira Ré, como advogada, no reconhecimento presencial das assinaturas da procuração.

Contestou a sociedade Ré impugnando parcialmente a pi, pugnando pela improcedência da ação, dizendo ter agido de boa-fé, não tendo suspeitado da falsidade da procuração; ser o preço acordado superior ao valor da avaliação fiscal do imóvel; ter pago, em cumprimento do pagamento do preço, dívidas dos AA.
Terminou a contestação afirmando “a título subsidiário, na hipótese de procedência da acção, ser restituída à 1.ª Ré a quantia paga pela aquisição do imóvel” (fls. 111).

A terceira Ré contestou impugnando parcialmente a matéria de facto e pugnando pela improcedência da ação.

Mediante despacho de 22.11.2016 (fls. 268), foram os AA. notificados para se pronunciarem “sobre matéria de excepção e pedidos de litigância de má-fé”, tendo estes respondido nos termos constantes de fls. 273 e ss.

Realizado julgamento, veio a ser proferida sentença, datada de 14.3.2022 com o seguinte dispositivo:
«julgando a presente ação parcialmente procedente:
a) declaro a ineficácia em relação aos autores da compra e venda, celebrada em 3 de abril de 2014, relativamente à fração descrita na Conservatória do Registo Predial ..., sob o n.º ... (...), inscrita na respetiva matriz sob o artigo ...; e determino o cancelamento do registo efetuado a favor da 1.ª ré.
b) absolvo as rés do demais peticionado.»

Foram aí dados como provados os seguintes factos:
A) Por escritura pública outorgada a 3 de abril de 2014, DD declarou que outorgava na qualidade de procuradora dos autores e pelo preço global de 35.000 euros, declarou vender à R..., Ld.ª, o prédio urbano composto por um edifício de onze divisões e um quintal sito na Rua ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o n.º ... e inscrito na respetiva matriz sob o artigo ... (v. artigo 1.º e doc. 1.º da petição inicial, fls. 68 e ss).
B) Simultaneamente, foi celebrado um «contrato de arrendamento para habitação, com prazo certo e opção de compra», entre a 1.ª ré e a 2.ª ré, esta em nome dos autores, nos termos do qual: a 1.ª ré deu de arrendamento aos autores, o prédio descrito na alínea A), pelo prazo certo de cinco anos, pelo montante de €525, mensais, e com opção de compra pelo montante final de €35.000, do mesmo prédio (artigo 2.º e doc. 2 da petição inicial, fls. 78 e ss).
C) Os autores contavam com 72 e 71 anos de idade, respetivamente (artigo 3.º da petição inicial).
D) Dada a avançada idade dos autores e o seu deteriorado estado de saúde (doc. 3 e 4) os autores começaram a residir com o filho e nora, CC e DD (2.ª ré) (artigo 4.º da petição inicial).
E) Os autores não conhecem a 1.ª ré, nunca foram contactados pela mesma, nem para a compra e venda do imóvel, nem para a outorga do contrato de arrendamento ou qualquer outro assunto relacionado com o identificado imóvel (artigo 7.º da petição inicial).
F) A 1.ª ré tem como objeto «compra e venda de bens imobiliários e revenda dos adquiridos para esse fim. Arrendamento de imóveis próprios. Promoções imobiliárias» (artigo 8.º da petição inicial e doc. fls. 46 e ss).
G) Está representada por dois gerentes, com experiência negocial, e acionistas da S..., SA, sócias da ré (docs. 46 e ss) (artigo 9.º da petição inicial).
H)- A 1.ª ré tem como sócios, P..., SGPS, SA; V... SGPS, SA (v. artigo 10.º da petição inicial).
I) À data da instauração da presente, ação a 2.ª ré era cônjuge do filho dos autores, CC (artigo 11.º da petição inicial).
J) A 2.ª ré compareceu na escritura referida na alínea A), munida de procuração e termo de autenticação que não foram assinados pelos autores (artigo 12.º da petição inicial).
L) As assinaturas apostas na procuração não são do punho dos autores (artigo 13.º da petição inicial).
M) Os autores não assinaram o reconhecimento presencial da assinatura, bem como no termo de autenticação (artigo 14.º da petição inicial).
N) Do reconhecimento presencial verifica-se que a autora não possuía documento de identificação cuja validade terminava a 23-12-2018 (artigo 15.º da petição inicial).
O) Encontrando-se o documento identificativo da autora com a validade expirada desde 23-12-2013 (artigo 16.º da petição inicial).
P) As assinaturas apostas no termo de autenticação também não são do punho dos autores, sendo desconformes com as dos autores e nunca lhes foi lido, nem explicado qualquer documento (artigo 17.º da petição inicial).
Q) O prédio foi sujeito a uma avaliação por parte do serviço de finanças para efeitos de IMI tendo-se sido atribuído o valor patrimonial de €19.110,00 (artigo 15.º da contestação da 1.ª ré).
R) A verificação formal da procuração foi também realizada pela notária, Sr.ª Dr.ª FF, que celebrou a escritura e não levantou qualquer objeção à procuração (artigo 22.º da contestação da 1.ª ré).
S) Dias antes da realização da escritura. a procuradora dos autores informou a 1.ª ré que sobre o prédio recaiam vários ónus (hipoteca e penhora) (artigo 28.º da contestação da 1.ª ré).
T) Ónus estes que os proprietários do prédio à data, os autores, tinham interesse em ver cancelados com brevidade, cancelamento que ocorreu aquando a celebração do negócio (artigo 29.º da contestação da 1.ª ré). a) Hipoteca voluntária do Banco 1..., S.A. (Ap. 1 de 2001/03/14) no valor de €5.000,00 – cfr. Doc. 1; b) Penhora no âmbito do processo executivo nº 6400/13.9YYPRT- 1º Juízo – 3ª Secção, dos Juízos de Execução do Porto, no valor de € 18.497,83 euros, cujo pagamento foi assegurado pela 1ª Ré - cfr. Doc. 2; c) Dívida à Segurança social no valor de € 2.970,53, cujo pagamento foi assegurado pela 1ª Ré - cfr. Doc. 3.
U) Montantes estes, referidos em b) e c) que foram liquidados pela 1ª ré (artigo 30.º da contestação da 1.ª ré).
V) E que correspondiam a dívidas contraídas pelos autores e não da sua procuradora (artigo 31.º da petição inicial).
X) Os autores são do conhecimento pessoal da 3.ª ré, desde há muitos anos, com recíproca relação de confiança, que também existe com a 2.ª ré, com quem a 1ª ré mantinha relações profissionais (artigo 13.º da contestação da 3.ª ré).
Z) A intervenção profissional da ré na circunstância descrita na petição inicial passou pela elaboração do termo de autenticação da procuração (artigo 14.º da contestação da 3.ª ré).
A)’A 3.ª ré sabia que os autores e a 2ª ré viviam dificuldades financeiras, emergentes de processos executivos (artigo 15.º da contestação da 3.ª ré).

Foram dados como não provados os factos seguintes:
1.º- Os autores não receberam o valor relativo ao preço que consta da escritura (artigo 6.º da petição inicial).
2.º- Os autores nunca comparecerem no escritório identificado (artigo 14.º da petição inicial).
3.º- A 1.ª ré devia ter percebido que o documento de identificação da autora perdeu a validade desde 23-12-2013 (artigo 28.º da petição inicial).
4.º- A 1.ª ré estava em conluio com as restantes rés (artigo 33.º da petição inicial).
5.º- O negócio que a autora pretendia celebrar com os réus seria um contrato de mútuo, com hipoteca, correspondendo as rendas mensais estipuladas ao pagamento dos juros (usurários) devidos pela celebração do alegado mútuo apetecido celebrar entre a 1.ª ré e a 2.ª ré, esta em nome dos autores (artigo 37.º da petição inicial).
6.º- Tal expediente será utilizado, pela 1.ª ré, em operações de financiamento que visam ilidir a falta de autorização para atividade e exercício da concessão de crédito (artigo 38.º da petição inicial).
7.º- Resultando, na prática, de contratos de mútuo onde se verificam juros de quase 100% face ao incumprimento de uma só prestação, e existe perda imediata da fração (artigo 39.º da petição inicial).
8.º- Que o imóvel tivesse data agendada para a sua venda (artigo 42.º da contestação da 1.ª ré).
9.º- O facto de os autores, especialmente a autora, que nasceu, cresceu e casou na fração ter visto a mesma ser colocada à venda e posteriormente ser alvo de uma ação de despejo, numa pequena comunidade, causou-lhes grande embaraço e desgosto (artigo 45.º da petição inicial).
10.º- O factos relatados causaram aos autores enorme consternação, e angústia (artigo 46.º da petição inicial).
11.º- Em consequência dos referidos negócios, os autores tiveram que liquidar impostos, mais valias, certidões, taxas de justiça, procedimentos registrais, honorários, deslocações, procedimentos judiciais, despesas (artigo 47.º da petição inicial).
12.º- A 1.ª ré liquidou o montante relativo à hipoteca voluntária do Banco 1... (artigo 30.º da contestação da 1.º ré).
13.º- Todos os pagamentos foram efetuados de acordo com as indicações da procuradora dos autores a saber: (artigo 1.º do requerimento apresentado pela 1.ª ré a 17-10-2017 – Ref.ª 27069307).
c) Pagamento da quantia de €7.600 através de cheque bancário entregue em mão ao credor (P..., ld.ª) aquando da celebração da escritura – doc. 1;
d) Pagamento da quantia de €684,85 através da rede multibanco ao credor (Tesouraria –Finanças Porto 6) em momento anterior à escritura de forma a poder liquidar IMT - doc. 4;
e) Pagamento da quantia de €1.234,77 referentes aos custos notariais com a escritura cujo pagamento de acordo com as indicações da sua procuradora ficou a cargo dos autores –doc. 4;
f) Pagamento da quantia de €2.707,22 através de cheque pessoal do gerente da 3.ª ré, emitido ao portador e entregue à 2.ª ré, aquando da celebração da escritura de compra e venda – doc. 5.
14.º- esta agiu no único e exclusivo interesse dos autores (artigo 31.º da contestação da 1.ª ré).
15.º- O prédio tinha data agendada para a sua venda no âmbito do processo de execução (artigo 42.º da contestação da 1.ª ré).
16.º- O que foi do conhecimento generalizado dos vizinhos dos autores (artigo 43.º da contestação da 1.ª ré).
17.º- Os autores deduziram uma pretensão cuja falta de fundamento não deviam ignorar, pois autorizaram a mencionada venda (artigo 49.º da contestação da 1.ª ré).
18.º- Os autores alteraram dolosamente a verdade dos factos, com a alegada falsidade da procuração (artigo 50.º da contestação da 1.ª ré).
19.º- Ocorreu erro de leitura, porquanto a 3.ª- ré está convicta de que o documento de identificação era válido até 2018 (artigo 12.º da contestação da 3.ª ré).
20.º- “limitou-se”; “que nem sequer cobrou aos autores mercê da amizade que por eles nutria” (artigo 14.º da contestação da 3.ª ré).
21.º- que aquela ré vinha negociando com terceiros a forma de pagamento das dívidas pelo património dos autores (artigo 15.º da contestação da 3.ª ré).
22.º- Estas diligências da 2ª ré eram do conhecimento dos autores, visto que todos residiam juntos e de forma harmoniosa, e sempre agiram concertadamente para solucionar os problemas comuns (artigo 16.º da contestação da 3.ª ré).
23.º- A compra e venda foi a forma que encontraram para pagar as dívidas (artigo 17.º da contestação da 3.ª ré).

Desta sentença recorre a primeira Ré, visando a sua revogação, mediante os seguintes argumentos conclusivos (expurgados do que neles constitui texto irrelevante e dispensável):
1ª. (…)
2ª. (…)
3ª. (…)
4ª. (…)
5ª. (…)
6ª. Entende a Recorrente que face ao produzido em sede de audiência de julgamento, documentação junta com a petição inicial, contestação, e demais documentos juntos aos autos, não podia o Tribunal a quo ter dado como provados os pontos L), M), N), O) e P) supra, assim como, não podia o Tribunal a quo ter dado como não provada os pontos 1º, 3º, 8º, 12º, 13º, 14º 15º, 17º, 18º e 23º.
7ª. (…)
8ª. (…)
10ª. Salvo o devido respeito, que é muito, não pode de forma alguma a Ré/Recorrente aceitar que tenha sido considerado provado que que as assinaturas constantes na procuração em apreço não sejam do punho do autor BB e da sua esposa AA.
11ª. Nem concorda com a motivação do tribunal.
12ª. Uma vez que o depoimento da Ré DD foi um depoimento duvidoso, parcial, contraditório e pouco credível, tentando ajustar o seu discurso às perguntas que lhe eram feitas sobre os factos narrados nos autos de forma a proteger a sua família, fazendo todos os esforços para que o imóvel adquirido aqui pela Ré, regresse ao património dos autores.
13ª. O depoimento da Ré DD foi feito com o único objectivo de proteger o património familiar, tal como já o tinha feito quando na qualidade de procuradora dos Autores vendeu o imóvel à aqui Recorrente.
14ª. A Ré DD tem um interesse directo no desfecho da presente acção, pugnado pela sua procedência de forma a proteger os Autores.
15ª. Motivo pelo qual alegou que falsificou as assinaturas dos seus sogros Autores, na procuração utlizada para vender o imóvel objecto de venda em 3 de abril de 2014.
16ª. Enquanto as declarações da Ré EE foram claras, assertivas e desinteressadas afirmando de forma peremptória que a procuração em apreço foi assinada pelos Autores.
17ª. E que estes eram conhecedores de todo o seu conteúdo e ainda assim de forma livre e consciente concederam poderes à sua nora a Ré DD para em nome deles, vender o supra descrito imóvel sito na freguesia ..., concelho ....
18ª. Além do que não se vislumbra a Ré EE qualquer beneficio patrimonial decorrente da presente acção.
19ª. O mesmo não se pode dizer da Ré DD que a manter-se a decisão do tribunal a quo, o que apenas, por mera hipótese académica se concebe, vê o patrónimo da sua família ser incrementado de forma totalmente injustificada.
20ª. Pelo que, do confronto destes dois depoimentos impunha-se ao tribunal a quo uma decisão diferente da proferida.
21ª. Da mesma forma, não entende o recorrente como pode o tribunal a quo considerar que não se fez prova relativamente aos pagamentos efectuados pela 1ª Ré e que todos estes pagamentos foram feitos no exclusivo interesse dos autores.
22ª. Dos depoimentos da Ré DD e da Ré EE resulta de forma clara e objectiva que a 1ª Ré pagou todas as dividas existentes à data da celebração da escritura.
23ª. Dívidas que eram dos Autores.
24ª. Pelo que, da conjugação dos depoimentos prestados pela Ré DD e pela Ré EE, impunha-se que o tribunal a quo desse como provados os factos com os nº 1º, 3º, 8º, 12º, 13º, 14º, 15º, 17º, 18º e 23º, constantes da matéria não provada.
25ª. Até porque todos os pagamentos efectuados pela 1ª Ré, encontram-se devidamente documentados nos autos e, mesmo que não fosse esse o caso, a verdade é que todos os ónus do imóvel foram cancelados em momento prévio à escritura de compra e venda, o que por si só já comprova os pagamentos.
26ª. Além do mais, as depoentes foram unânimes em referir que as dividas eram dos Autores pelo que a venda do imóvel e o pagamento aos credores beneficiou única e exclusivamente os Autores.
27ª. A recorrente está convencida que esta é uma clara situação de abuso de direito (“venire contra factum proprium”) provocada, intencional e culposamente, pelos Autores e a sua nora a Ré, que a vieram invocar depois.
28ª. Ora, a Ré/Recorrente ao adquirir o imóvel confiou e criou legítimas expectativas que a procuração a conferir poderes à Ré DD pelos Autores foi por estes assinada e agora vêm os mesmos autores por em causa a referida assinatura.
29ª. A Ré/Recorrente, ao adquirir o imóvel, estava de boa-fé, confiou e criou legítimas expectativas que a procuração a conferir poderes à Ré DD pelos Autores foi por estes assinada e agora vêm os mesmos autores pôr em causa a referida assinatura.
30ª. Resulta da prova produzida em julgamento que a venda do imóvel à Ré/Recorrente foi efectuada com o único propósito de pagar e saldar dividas a várias instituições (Finanças, segurança social, credores etc…).
31ª. Dívidas que eram dos Autores e não da procuradora.
32ª. Pelo que não deixa de ser estranho que só depois de todas estas dívidas saldadas é que os Autores venham alegar a falsidade da procuração.
33ª. Além do que, durante todo o tempo que decorreu este processo (atente-se que a acção é de 2015), os Autores nunca quiseram ressarcir a Ré das despesas decorrentes com o imóvel tais como IMI, seguros obrigatórios, etc. Tudo suportado pela Recorrente.
34ª. Pretendendo a anulação do negócio e o subsequente cancelamento do registo de aquisição a favor da aqui Recorrente.
35ª. O Tribunal a quo não podia com base nas regras da experiencia, ignorar o contexto em que a escritura de compra e venda foi celebrada.
36ª. Assim, apreciando criticamente a prova produzida, cumpre referir que o tribunal a quo, no nosso modesto entendimento, esteve mal quando considerou provado que as assinaturas da procuração em apreço não foram exaradas pelos punhos dos Autores, sem dar relevância ao facto dos Autores terem perfeito conhecimento de toda a situação que deu origem à venda do imóvel, sendo eles os beneficiários de todo este enredo em prejuízo da Ré, que sempre foi alheia a todos estes contornos.
Sem prescindir;
37ª. Discute-se nos autos se deve ser declarada nula ou anulada a escritura de compra e venda celebrada em 3 de Abril de 2014 bem como o cancelamento do registo de aquisição a favor da 1º Ré.
38ª. O tribunal a quo, no nosso modesto entendimento, andou mal na sua decisão quando entendeu que no caso sub judice não existe uma nulidade do negócio jurídico de compra e venda, mas antes uma ineficácia da referida venda em relação aos Autores.
39ª. Desta forma seria aplicado ao caso o regime jurídico da “Representação Voluntária” legalmente previsto nos artigos 262º e seguintes do Código Civil, nomeadamente, o disposto no art. 268º do Código Civil.
40ª. E não o regime da nulidade e anulabilidade do negócio jurídico previsto nos artigos 285º e seguintes do Código Civil.
41ª. Alegando para o efeito o seguinte: “que a 2.ª ré quando outorgou a escritura de compra e venda, fez uso de poderes de representação que não tinha, ou seja, agiu sem poderes de representação, sendo aplicável ao caso vertente o regime previsto no artigo 268.º do Código Civil. É que, não estamos perante qualquer venda de bens alheios, porquanto tal regime jurídico apenas se aplica à venda de coisa alheia como própria (v. artigo 904.º do Código Civil). Ora, a 2.ª ré não vendeu coisa alheia, como se fosse própria. Do exposto, resulta que inexiste qualquer nulidade do negócio jurídico de compra e venda, mas antes uma ineficácia em relação aos autores. Nos termos do artigo 268.º, n.º 1 do Código Civil: «o negócio que uma pessoa sem poderes de representação, celebre em nome de outrem é ineficaz em relação a este, se não for por ele ratificado.» Assim, o negócio celebrado é ineficaz em relação aos autores, salvo a hipótese de ratificação, o que não foi invocado, nem apurado.
42ª. Com esta alteração, entende a Recorrente que o tribunal a quo violou o disposto no art. 609.º n.º do Código do processo civil que proíbe a condenação em objecto diverso do que se pedir.
43ª. O que acarreta a nulidade da decisão proferida. nos termos do artigo 615º/1, e) do CPC.
44ª. É ao Autor que, incumbe definir a sua pretensão, requerendo ao tribunal o meio de tutela jurisdicional adequado a satisfazê-la.
45ª. É na petição inicial que o autor deve formular esse pedido – art. 552º/1, e) do CPC –, dizendo "com precisão o que pretende do tribunal e qual o efeito jurídico que quer obter com a acção”.
46ª. É o pedido, assim formulado, que vinculará o tribunal quanto aos efeitos que pode decretar a final.
47ª. Posto isto, na sua petição inicial os Autores formularam o seguinte pedido: “ser declarada nula ou anulada a escritura de compra e venda, celebrada em 3 de Abril de 2014, e ordenado o cancelamento do registo de aquisição a favor da 1.' R, bem como eventuais registos subsequentes”;
48ª. Pelo que, o tribunal a quo, deve ater-se aos limites definidos pela pretensão formulada na acção pelos Autores.
49ª. É a pretensão formulada pelos Autores que o tribunal está adstrito, não podendo decretar um outro efeito, alternativo, apesar de legalmente previsto.
50ª. Tal vinculação também se justifica por questões de certeza e segurança jurídica, mas essencialmente, na protecção e tutela do demandado, permitindo a este defender-se do conteúdo concreto daquele pedido.
51ª. Pois só assim se assegura e cumpre o princípio do contraditório (cfr. art. 3º do CPC) que o principio da condenação em objecto diverso do peticionado visa igualmente preservar.
52ª. Ora, foi com base no pedido formulado pela Autora que a Ré/Recorrente formulou a sua contestação.
53ª. Toda a contestação foi elaborada e apresentada em resposta à causa de pedir e pedidos formulados pelos Autores.
54ª. Pelo que, a condenação da Ré em pedido diferente daquele que foi peticionado, sem que lhe tenha sido conferido o direito ao contraditório, prejudica a sua defesa.
55ª. O tribunal a quo, considera que a escritura de compra e venda celebrada é ineficaz em relação aos Autores, condenando assim em pedido diverso ao pedido por estes formulado.
56ª. Ao decidir desta forma o tribunal a quo prejudica o direito de defesa da Ré.
57ª. Pois a Ré em resposta ao pedido dos Autores solicita o seguinte: “Na eventualidade da presente acção ser julgada procedente por provada, e consequentemente ser declarada nula a venda da procuradora dos Autores à 1ª Ré, sempre seria esta que ser considerada terceiro para efeitos do disposto no artigo 291º do Código Civil, uma vez que é adquirente de boa fé, pois no momento da aquisição desconhecia, sem culpa, o “vicio” do negócio”.
58ª. Alegando ainda que em caso de procedência da acção ou seja, caso a escritura de compra e venda celebrada em 3 de Abril de 2014, seja considerada nula e, consequentemente cancelado o registo de aquisição a favor da 1ª Ré, que os Autores sejam condenados a devolver a esta o valor pago pela aquisição, ou seja, a quantia de €35.000,00.
59ª. Ora, o tribunal a quo, ao condenar em pedido diverso do peticionado, impediu à aqui Ré que fosse considerada 3º de boa-fé e dessa forma permitir que o seu registo de aquisição prevalecesse intacto por esse instituto,
60ª. assim como também impediu que a Ré/Recorrente fosse ressarcida do preço pago pois, entende o tribunal a quo que tal deveria ser feito ao abrigo das regras do enriquecimento sem causa e, em sede de reconvenção.
61ª. Ademais, além de nula por falta de fundamentação a decisão do tribunal a quo não pode prevalecer.
62ª. A posição perfilhada pelo tribunal é, salvo o devido respeito, descabida pois iria forçosamente obrigar qualquer demandado ao apresentar a sua contestação a peticionar também em reconvenção qualquer valor que entenda ser titular, ao abrigo das regras do enriquecimento sem causa, como mera medida preventiva á eventualidade do tribunal condenar em objecto diverso do peticionado.
63ª. Aos olhos da Recorrente, tal mostra-se totalmente inviável e violador dos mais elementares princípios de direito.
64ª. A alteração do pedido por parte do tribunal a quo deixou sem suporte o pedido da Ré/Recorrente, impedindo que lhe fosse restituído tudo o que prestou.
65ª. Sucede que, nos presentes autos, independentemente da declaração de ineficácia ou da declaração de nulidade do negócio, dúvidas não restam que os autores foram beneficiados pelos pagamentos efectuados pela Ré/Recorrente.
66ª. Desta forma, entende o recorrente que haverá lugar à restituição do prestado, não em enriquecimento sem causa, mas por força do determinativo do artigo 289.° do Código Civil, conforme na sua contestação e tudo isso por ser da incumbência do tribunal a qualificação jurídica da situação concreta e ao julgar com base em fundamento jurídico diferente do enunciado pelos Autores e dos quais a Ré/Recorrente é alheia.
67ª. Cuja solução nos parece mais acertada e legalmente adequada.
68ª. Até porque, caso assim não se entenda, há também uma clara violação do principio da economia processual, por parte do tribunal a quo ao decidir como decidiu.
69ª. Dispõe o nº 1 do artigo 473º do Código Civil: “Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou.”
70ª. Dispondo o seu nº 2 “A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou.”.
71ª. Assim, independentemente do negócio ser declarado ineficaz em relação aos Autores, ficou provado que foi a Ré/Recorrente que em momento prévio à realização da escritura liquidou as dividas dos Autores o que permitiu cancelar os ónus e encargos do imóvel objecto da compra e venda.
72ª. Encontrando-se assim cumpridos os requisitos do instituto do enriquecimento sem causa.
73ª. Pelo que, os montantes cujo pagamento ficou provado, não obstante o regime jurídico a aplicar ao caso (nulidade ou ineficácia), teriam sempre que ser restituídos à Ré/Recorrente.
74ª. Isto é, os efeitos seriam os mesmos.
75ª. Ao decidir como decidiu, o tribunal a quo não só prejudicou o direito de defesa da Ré/Recorrente como ainda lhe impôs o ónus de propor nova acção com tónica na ineficácia do negocio e consequente enriquecimento ilegítimo dos Autores e cujos efeitos e fins seriam os mesmos, do ora pretendidos.
76ª. Violando desta forma o princípio da economia processual.
77ª. Pelo que caso o douto tribunal da relação entenda considera a escritura de compra e venda celebrado nos autos ineficaz em relação ao Autores, deverá pugnar pela restituição à Ré dos montantes pagos em beneficio dos Autores.

Contra-alegaram os AA., opondo-se à procedência do recurso.

Questões a decidir tendo em conta o objeto do recurso delimitado pela recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 635.º, nºs 3 e 4 e 639.º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil):
- da impugnação da matéria de facto.
- da nulidade da sentença e da natureza do negócio celebrado pelo falsus procurator.
- da ineficácia relativa do negócio celebrado sem poderes de representação.

Fundamentos de facto
A recorrente impugna a decisão de primeira instância, desde logo, na vertente dos factos demonstrados e não demonstrados.
Ao contrário do que contrapõem os recorridos, aquela deu cumprimento ao disposto no art. 640.º, n.º 2 al. a) CPC, uma vez que consta do corpo alegatório a indicação das passagens concretas dos depoimentos da Ré DD (p. 7 a 10, 15 e 16) e da Ré EE (p. 11 a 14), prova eleita pela recorrente para lograr ver não provada a factualidade relativa à não assinatura da procuração pelos putativos vendedores (A. e falecido marido) e para ver demonstrado a liquidação de dívidas daqueles como forma de pagamento do preço.
Coisa distinta é a de saber se existem elementos bastantes para colocar por terra o juízo de indicação alcançado em primeira instância.
É por demais sabido que, ao levar a cabo a atividade cognitiva relativa à descoberta da verdade material e ao conhecimento ou apreensão do ocorrido no passado, o julgador é subjetivamente influenciado por elementos de pendor nem sempre diretamente objetivável.
Quando se concede credibilidade a um depoimento e não a outro, por impressão recolhida através do contato imediato com a atitude e a personalidade demonstrada pelo depoente, ou com a forma como reagiu quando inquirido, não pode afirmar-se existir erro na escolha se a mesma se mostra coadjuvada por todo um circunstancionalismo que a justifica.
Assim, desde que tenham sido observadas as regras quanto à valoração e à força probatória das provas e que a decisão de facto se apresenta coerente em si ou se não mostre manifestamente contrária às regras da experiência de vida e à logica das coisas, a convicção do tribunal a quo, colocado numa posição privilegiada por força do princípio da imediação, em princípio, não é de alterar.
Por isso se concorda com Luísa Geraldes[1] para quem “em caso de dúvida, face a a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida em 1.ª instância, em observância dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte”, o que significa que «nessa reapreciação de prova feita pela 2.ª instância, não se procura obter uma nova convicção a todo o custo, mas verificar se a convicção expressa pelo Tribunal “a quo” tem suporte razoável, atendendo aos elementos que constam dos autos, e aferir se houve erro de julgamento na apreciação (…).
O que o controlo de facto em sede de recurso não pode fazer é, sem mais, e infundadamente, aniquilar a livre apreciação da prova do julgador construída dialecticamente na base dos referidos princípios da imediação e da oralidade
O que ora se expôs tem especial pertinência na situação que nos ocupa, no que tange à impugnação dos factos dados como provados em L), M), N), O) e P), todos eles relativos à demonstração de que as assinaturas apostas na procuração usada pela segunda Ré para outorgar a venda não foram escritas pelo punho da A. e do falecido marido.
É que, antes de se confiar mais no depoimento da terceira Ré, em detrimento do produzido pela segunda – contrariamente ao que sucedeu em primeira instância – avulta a prova pericial feita às assinaturas. Os autos aguardaram durante tempo demais a conclusão desta prova, arrastando-se durante mais de sete anos em primeira instância, para poder agora fazer-se tábua-rasa das suas conclusões.
A 13.12.2019, foi junto o relatório de exame de escrita manual (fls. 603 e ss.), acompanhado de cópia da procuração datada de 27.4.2014 e do termo de autenticação verificado pela terceira Ré (fls. 618 e 619) e considerando provável (correspondendo este ao grau de certeza oitavo numa escala de onze graus em que o primeiro significa a probabilidade próxima da certeza científica não e o último a probabilidade próxima da certeza científica) não serem as assinaturas ali constantes dos punhos de BB e AA.
Não se exigindo aqui a certeza científica, é evidente que esta probabilidade de as assinaturas não serem de A. e marido impede se dê como demonstrado terem aqueles assinado os documentos em apreço. Mesmo sem recurso à perícia, é notório para qualquer um terem as duas assinaturas sido apostas pela mesma pessoa.
E esta prova bastaria para que o pertinente facto – os pretensos representados não assinaram a procuração a favor da segunda Ré – ficasse dado como provado, como ficou.
E que dizer dos depoimentos das duas Rés por cujas mãos passou esta procuração?
A recorrente pretende se não valide o discurso da então nora da A., a Ré DD, mas o certo é que foi esta quem se apresentou com a procuração perante o notário, sendo ainda verdade que a sociedade Ré não contactou nunca com os AA., como referiu o seu legal representante, GG, pelo que está demonstrado não terem os AA. intervindo fisicamente no negócio nem – face à prova pericial – assinado a procuração. E isto independentemente de se saber quem, por eles, apôs as assinaturas no documento.
Mesmo que assim não fosse, estamos com o tribunal de primeira instância, que aceitou o depoimento da segunda Ré, face ao produzido pela terceira, pois é inequívoco ter sido esta última quem redigiu os dois documentos (procuração e termo de autenticação), na qualidade de advogada. Veja-se que, na época, a segunda Ré prestava serviço para a primeira, como todos admitiram, incluindo o marido da segunda Ré, HH, o que justifica o envolvimento das duas nos factos que possibilitaram a escritura. Que o relacionamento entre as segunda e terceira Ré era próximo é atestado pelo facto, admitido por esta última, de ter acompanhado aquela à escritura onde a procuração foi exibida.
Não se pode, assim, concordar com a recorrente quando alega ser desinteressado o depoimento da Ré EE. Não o é. De todo! Admitir a falsificação das assinaturas pela co-Ré DD significaria, da parte daquela outra demandada, a assunção da co-autoria no crime de falsificação da procuração e a autoria no crime de falsificação do termo de autenticação, crimes que estarão prescritos mas que podem não eximir a Ré de responsabilidade civil extracontratual perante a recorrente.
Estando demonstrado não terem sido apostas pela A. e falecido marido as assinaturas em causa, que valor tem o depoimento da terceira Ré que lançou no termo de autenticação os dizeres “Pelos outorgantes foi outorgado o documento anexo a este termo que é uma procuração, tendo declarado que o leram e assinaram e esta exprime a sua vontade”? E que crédito atribuir ao seu depoimento quando afirma ter a minuta da procuração sido lida e explicada ao casal?
Os AA. terão beneficiado com a escritura, pois parecem ter sido saldadas dívidas pendentes, mas daí não resulta um conluio entre aqueles e as Rés DD e EE, com a reserva mental de, posteriormente, proporem contra a primeira Ré a presente ação.
O que se nos afigura plausível é a exclusiva intervenção destas Rés, ainda que – provavelmente – com a intenção de beneficiarem a A. e seu marido.
Sendo assim, mantêm-se estes factos entre os provados, improcedendo a impugnação.
Já no que tange aos factos não provados, a recorrente pretende seja dado como demonstrado o que consta em 1º, 3º, 8º, 12º, 13º, 14º 15º, 17º, 18º e 23º.
Relativamente aos factos 1.º, 3.º e 8.º não se vê qual o interesse da primeira Ré em vê-los dado como provados.
Não pretenderá a recorrente – cremos – ver dado como provado que os AA. não receberam o valor do preço constante da escritura (sendo certo que, mesmo na alegação desta Ré, os AA. nada receberam, tendo sido, isso sim, empregue o dinheiro para solver dívidas daqueles).
Igualmente se não vê em que é que alteram a decisão os factos laterais e inúteis contidos em 3.º, 8.º, 15.º, 18.º e 23.º (deste se não tendo feito prova alguma).
Finalmente, não alegou a recorrente qual a prova que sustentaria como provado o que consta em 17.º e 18.º (matéria lateral e apenas relativa à pretensão de condenação por litigância de má-fé).
Nesta parte improcede a impugnação.
Resta a apreciação da matéria dos pontos 12.º, 13.º e 14.º.
Trata-se dos pagamentos que terão sido efetuados pela primeira Ré diretamente a credores dos AA.
Como veremos em sede de aplicação do direito aos factos, ainda que demonstrados estes factos, nesta ação nenhuma consequência isso teria.
Mas vejamos em termos probatórios.
Quanto à prova que lhes subjaz, é bem verdade ter a primeira Ré junto alguns documentos para justificar pagamentos que alega.
Porém, olhando mais de perto, vemos que, quanto ao ponto 12.º (liquidação da hipoteca ao Banco 1..., no valor de €5.000,00), foi dado como provado ter este valor sido pago ao credor aquando da escritura dos autos (al. T), mas não foi junto pela Ré qualquer documento relativo a este pagamento, nem foi inquirida qualquer testemunha do Banco 1... ou outra que tenha recebido este valor para aquele desiderato.
O ponto 13 refere-se a pagamentos a credores dos AA. (P..., Ld.ª, e Finanças), bem como dos valores referentes à escritura, que os vendedores deveriam suportar, e cheque entregue diretamente à Ré DD.
Para o primeiro, foi junto o cheque de fls. 390 v.º, mas não foi feita prova de que esta empresa era credora dos AA., em que montante, e que foi paga pela recorrente, sendo essencial inquirir alguém da empresa em causa no sentido de o averiguar.
Para o segundo, foi junto o doc. de fls. 391 que, além de impercetível, revela as mesmas dúvidas já apontadas: se os AA. deviam algo às Finanças, o quê, se a Ré pagou por eles.
Para a terceira quantia – que, a ser a ação procedente, como o foi, não seria devida pelos AA. à primeira Ré, posto ter-se dado como provado não terem celebrado o negócio e, por via disso, não lhes ser imputável aquela despesa – é insuficiente o doc. de fls. 391.
O doc. de fls. 392 v.º, alegadamente entregue à segunda Ré, ignora-se se foi, de facto, por esta recebido e qual o fim do mesmo, sendo certo que pelo mesmo seria esta Ré a responder e não os AA.
Improcede, assim, in totum, a impugnação da matéria de facto.

Do Direito
Os AA. peticionam a declaração de nulidade ou a anulação do negócio celebrado pela segunda Ré que, ao vender imóvel daquele em nome dos mesmos, não dispunha de poderes de representação.
Entendeu o tribunal que a consequência aplicável a tal contrato não é a de invalidade, mas a da ineficácia, como decorre do art. 268.º, n.º 1, CC: O negócio que uma pessoa, sem poderes de representação, celebre em nome de outrem é ineficaz em relação a este, se não for por ele ratificado.
Alega a recorrente constituir este distinto enquadramento do vício uma violação do disposto no art. 609.º, n. 1 CPC (a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir) a qual geraria a nulidade do ato decisório, nos termos do art. 615.º, n.º 1 e) CPC (é nula a sentença quando o juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido).
Sem cuidar, ainda, de averiguar se a solução alcançada – ineficácia em vez de invalidade – se acha correta, impõe-se verificar se existe uma condenação extra vel ultra petitum.
Na definição do art. 581.º, n.º, CPC, o pedido é o efeito jurídico que se pretende obter com a ação, sendo, com a causa de pedir, o seu objeto jurídico, o espaço dentro do qual o tribunal é chamado a dirimir os interesses conflituantes.
Se é certo que o princípio do pedido domina o processo privado, impedindo que o tribunal decida para além ou diversamente do que foi pedido, isso “não obsta a que profira uma decisão que se inscreva no âmbito da pretensão formulada” (ac. STJ, de 11.02.2015, Proc. 607/06.2TBCNT.C1.S1).
É, por isso, de admitir “o suprimento ou correcção de um deficiente enquadramento normativo do efeito prático-jurídico pretendido pelo autor ou requerente, admitindo-se a convolação do juiz para o decretamento do efeito jurídico ou forma de tutela jurisdicional efectivamente adequado à situação litigiosa” (Lopes do Rego, O princípio do dispositivo e os poderes de convolação do juiz no momento da sentença, in “Estudos de Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, Vol. I, Coimbra Editora, 2013, pág. 794).
Antunes Varela, a seu tempo, já o ensinava (RLJ,122, p. 255) e o STJ, em Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 3/2001, firmou jurisprudência no sentido de que «Tendo o autor, em acção de impugnação, pedido a declaração de nulidade ou a anulação do acto jurídico impugnado, tratando-se de erro na qualificação jurídica do efeito pretendido, que é a ineficácia do acto em relação ao autor (nº1 do artigo 616º do Código Civil), o juiz deve corrigir oficiosamente tal erro e declara tal ineficácia, como permitido pelo artigo 664º do Código de Processo Civil».
Este entendimento foi considerado legítimo pelo Tribunal Constitucional, no Ac. 33/00, que entendeu ser conforme à Constituição a norma do art. 661.º, n.º 1 do CPC (na redação anterior à Reforma de 2013) enquanto interpretada no sentido de permitir que uma decisão jurisdicional condene em algo qualitativamente diverso do pedido formulado, não estando impedido o R. de exercer a defesa nessas situações[2].
Assim, para o caso dos autos, temos que, pedindo os AA. a invalidade do negócio celebrado por quem não tinha direitos de representação, mas tratando-se de negócio ineficaz relativamente ao putativo representado (art. 268.º, n.º 1 CC), deve o tribunal corrigir oficiosamente esse erro e declarar tal ineficácia, nos termos do art. 5.º, n.º 3 CPC.
Não se verifica, assim, a repontada nulidade.
Aqui chegados, não subsistem dúvidas de que a solução da ineficácia é, de facto, a correta.
A atuação em nome de outrem constitui o ponto central da representação em sentido próprio. O representante age para vincular o representado com contemplatio domini (art. 258.º CC).
A procuração é o ato pelo qual se concedem poderes de representação (art. 262.º CC) e o documento em que esse negócio é exarado, de modo que “a efetiva concretização dos poderes implicados por uma procuração pressupõe, pois, um negócio nos termos do qual eles sejam exercidos: o negócio-base” (Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, V, 2011, p. 92).
Mas o ato pode ser praticado em nome e por contra de outra pessoa sem que, para tanto, existam os necessários poderes de representação. Nesse caso, rege o art. 268.º, nº1 CC: o negócio é ineficaz relativamente ao dominus, se este o não ratificar.
É certo que, à partida, por falta de legitimidade do procurador, o negócio deveria ser nulo, mas a verdade é que pode ser favorável ao dominus e, se o for, este pode ratificá-lo e o negócio segue válido e eficaz.
A ineficácia distingue-se da invalidade (nulidade e anulabilidade) uma vez que na primeira o negócio, sendo válido, não produz os efeitos ou todos os efeitos a que tenderia, segundo as declarações negociais que o compõem. Na invalidade, verifica-se a total ausência de efeitos jurídicos, desde a respetiva formação.
No caso da representação sem poderes, a ineficácia não é absoluta, não operando erga omnes, mas relativa, verificando-se apenas em relação ao representado, falando-se assim em inoponibilidade.
Deste modo, os negócios feridos de ineficácia relativa produzem efeitos “mas não estão dotados de eficácia relativamente a certas pessoas. Daí que sejam, por vezes, apelidados de negócios bifronte ou com cabeça de Jano (C. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª Ed., p. 607).
Não sendo ilícito nem inválido o negócio celebrado sem poderes de representação, salienta Oliveira Ascensão que «celebrado o acto, abre-se uma situação de pendência, durante a qual não se sabe se o acto produzirá ou não efeitos. Dessa pendência sai-se através de:
- ratificação
- revogação ou rejeição pela outra parte.
De facto, não se compreenderia que a outra parte ficasse permanentemente na indefinição. A lei dá-lhe assim dois meios de sair daquela situação:
a) Fixar prazo para a ratificação, sem o que a ratificação se considera negada (art. 268/3)
b) pôr termo potestativamente à situação, revogando ou rejeitando o negócio (art. 268/4).
c) Mas não poderá exercer esta última faculdade se, ao celebrar o negócio, conhecia a falta de poderes de representação» (Direito Civil, Teoria Geral, Vol. II, 1999, p. 257)[3].
A solução da ineficácia do negócio sem poderes de representação é aceite pela maioria da doutrina e da jurisprudência, como se salienta no ac. RL, de 29.6.2017, Proc. 5003/14.5T2SNT.L1-2z, onde se indicam argumentos doutrinários e jurisprudenciais vários, e, mais recentemente, com exaustão, o ac. STJ, de 16.10.2018, Proc. 23839/15.8LSB.L1.S1.
Tratando-se de uma situação de ineficácia, não lhe é aplicável o disposto no art. 291.º CC que se refere a negócios inválidos, protegendo, não os contraentes no negócio invalidado, mas os terceiros adquirentes.
Vemos, por isso, não ter fundamentos a defesa da Ré recorrente.
A procuração utilizada pela segunda Ré achava-se falsificada e não representava os donos do imóvel, pelo que, quanto a estes a venda é ineficaz e não nula.
Quid iuris quanto à posição da compradora que desconhece a falta de poderes do falso procurador?
Como vimos, não sendo o negócio nulo, o mesmo mantém-se, quanto a si, válido, apenas sendo ineficaz relativamente aos donos do bem vendido.
Sendo assim, relativamente a estes, não pode a Ré sociedade, por ora, pretender exercer qualquer direito, uma vez que não declarou nos articulados não pretender manter-se vinculada ao negócio e nem resulta que o tivesse feito extrajudicialmente. E, como vimos, em caso de negócio sem poderes de representação que não seja ratificado pelo dominus, o terceiro que desconhecia aquela falta de poderes mantém-se vinculado pelo negócio, mas poderá, a todo o tempo, revogá-lo ou rejeitá-lo.
Mas o certo é que nestes autos, a primeira Ré também não formulou qualquer pretensão válida contra os AA. que o tribunal pudesse conhecer.
Para que pudesse ser apreciada qualquer pretensão que visasse obter dos AA. o pagamento ou devolução do que quer que fosse (nomeadamente dos valores que terão sido pagos pela Ré, em vez daqueles no cumprimento de dívidas suas, obviamente não se incluindo aqui as despesas com a escritura que não lhes diz respeito e o que terá entregue à falsa procuradora, a menos que esta o tenha despendido também na satisfação daquelas dívida, o que não foi alegado), deveria a mesma de ser deduzida sob a forma de pedido reconvencional e, além de ter de se atribuir valor a este (que seria somado ao valor da ação), fosse paga a correspondente taxa de justiça.
É o que resulta do art. 266.º CPC que disciplina a forma como o réu pode deduzir pedidos contra o autor, devendo fazê-lo de modo expresso na contestação (art. 266.º CPC).
Tratando-se de uma ação cruzada, à reconvenção aplicam-se as regras da petição inicial, entre as quais sobressai a do art. 186.º, n.ºs 1 2 al. a) CPC, que determina a nulidade do processado (no caso da reconvenção) quando falte ou seja ininteligível o pedido ou a causa de pedir.
Afirmar-se no final do articulado de contestação - sem formular pedido reconvencional, sem indicar o respetivo valor e sem pedir a condenação dos reconvindos - “a título subsidiário, na hipótese de procedência da acção, ser restituída à 1.ª Ré a quantia paga pela aquisição do imóvel”, não é suficiente para configurar uma reconvenção.
Também não é deduzir pedido reconvencional a alegação contida no corpo do articulado de contestação, como se de alegação de facto se tratasse, o que se lê no art. 48.º de fls. 110: Sem conceber, por mera cautela e dever de patrocínio, caso a escritura de compra e venda celebrada em 3 de Abril de 2014, seja considerada nula e consequentemente cancelado o registo de aquisição a favor da 1ª Ré, deverão os autores serem condenados a devolver a esta o valor pago pela aquisição, ou seja, a quantia de €35.000,00.
Em suma: nem foi deduzida reconvenção pela Ré recorrente, nem a mesma, nesta fase, poderia julgar-se procedente, posto não se ter demonstrado encontrar-se a demandada desvinculada do negócio que, para si, continua válido e eficaz.
Apenas depois de revogar ou rejeitar o negócio pode a recorrente exercer qualquer direito relativamente aos AA. e, outrossim, em relação à falsa procuradora e terceira, também Ré, que com aquela colaborou possibilitando a autenticação das assinaturas falsamente apostas na procuração.
Quanto aos primeiros, mediante alegação e prova de ter solvido os respetivos débitos, valendo-se do instituto do enriquecimento sem causa; em relação à segunda Ré, mediante o instituto da culpa in contraindo[4]; relativamente à terceira poderá equacionar-se a responsabilidade civil extra-contratual.
Nesta ação, porém, a pretensão dos AA. procede, sendo o recurso improcedente.

Dispositivo
Pelo exposto, decidem as Juízas deste Tribunal da Relação julgar o recurso improcedente e confirmar a sentença recorrida.

Custas pela recorrente.

24.10.2020
Fernanda Almeida
Maria José Simões
Teresa Fonseca
_______________________
[1] IMPUGNAÇÃO e REAPRECIAÇÃO da DECISÃO da MATÉRIA de FACTO, p. 17-18, em Microsoft Word - Ana Luísa Geraldes. Impugnação e Reapreciação da Decisão da Matéria de Facto.doc (cjlp.org)
[2] não se vê que a interpretação normativa adoptada pela decisão recorrida afecte o direito de defesa dos recorrentes ou o seu direito ao contraditório, não contendendo também com a igualdade de armas. Com efeito, sempre os réus e ora recorrentes puderam exercer os seus direitos processuais ao longo da tramitação processada nas diferentes instâncias, puderam alegar o que entenderam em total igualdade de armas processuais. Também não ocorre nos autos qualquer situação de proibição de indefesa, consistente na privação ou limitação do direito de defesa da parte perante os órgãos judiciais durante a discussão das questões que lhes respeitem. A decisão, ao optar pela declaração de ineficácia da doação feita pelos réus e pela possibilidade de execução dos créditos da autora na medida dos seus interesses mais não fez do que optar pela posição doutrinal dominante e que se encontra legalmente consagrada, sem que uma tal interpretação tenha afectado o direito de defesa dos réus.
[3] Cfr., ainda, Código Civil Anotado, Vol. I, Parte Geral, Coord. de Menezes Cordeiro, 2020., p. 786: A ineficácia do negócio, relativamente ao representado, mantém-se, não havendo ratificação. Como foi praticado em nome e por conta dele, enquanto se mantiver essa ineficácia, o negócio poucos efeitos práticos irá surtir. De todo o modo, o próprio terceiro fica vinculado a ele. Para não protelar esta situação, a lei distingue duas hipóteses: (1) a de o terceiro ter conhecimento da falta de poderes do representante, no momento da conclusão; (2) a de dele não ter tal conhecimento.
(1) No primeiro caso, o terceiro pode fixar um prazo para que sobrevenha a ratificação: se o prazo for ultrapassado, considera-se negada a ratificação (art. 268.º/3), ficando o negócio sem efeito. (…)
(2) No segundo caso, o terceiro pode, a todo o tempo, revogar ou rejeitar o negócio em causa. Sendo recusada a ratificação, o negócio cai.
[4] Explicam Raul Guichard, Catarina Proença e Ana Ribeiro, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, o. 655: “A lei nada regula explicitamente sobre a segunda questão aludida, a de saber em que termos (…) o procurador que age sem poderes responde perante a contraparte (…). O silêncio foi propositado e teve intenção de relegar a solução do problema para o âmbito da culpa in contrahendo (regime especial está consagrado no art. 8.º da LULL e no art. 11.º da LUC)”. No mesmo sentido, P. Mota Pinto, Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, Vol. II, p. 1306.