Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
597/13.5TTMAI.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA JOSÉ COSTA PINTO
Descritores: PRESUNÇÃO DE LABORALIDADE
SOCIEDADE COMERCIAL
CÔNJUGE
Nº do Documento: RP20150209597/13.5TTMAI.P1
Data do Acordão: 02/09/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: I - A base da presunção legal de laboralidade estabelecida no Código do Trabalho de 2009 é constituída pela verificação de, pelo menos, duas das características indicadas.
II – Só assim a lei presume que haverá um contrato de trabalho e faz recair sobre a contraparte a prova do contrário.
III – Enquadra-se no dever de cooperação entre ambos os cônjuges, afastando a possibilidade de se qualificar a relação estabelecida como um contrato de trabalho ou, sequer como um contrato de prestação de serviço, a relação estabelecida entre a autora e a ré, sociedade de que a autora e o seu marido são os únicos sócios, provando-se que, quer a autora, quer o seu marido, adquiriram as respectivas quotas em execução de um plano de vida em comum por ambos delineado com vista a retirar dos proventos do restaurante explorado pela ré a fonte de rendimento para suportar os encargos da vida familiar e iam trabalhando no estabelecimento de restauração e retirando os proventos gerados pela ré de acordo com a disponibilidade desta e para prover às despesas de ambos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 597/13.5TTMAI.P1
4.ª Secção

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto
II
1. Relatório
1.1. B…, intentou a presente acção declarativa com processo comum no Tribunal do Trabalho da Maia contra C…, Lda., pedindo a condenação da ré no pagamento da quantia de € 12.296,12 (doze mil, duzentos e noventa e seis euros e doze cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa legal de 4%, contados desde a citação até integral pagamento.
Para tanto, alegou, em síntese: que tem uma quota de 5% na sociedade ré, sociedade esta da qual o ainda seu marido, detentor dos restantes 95%, é o único gerente; que casou em Agosto de 2007 e logo em Setembro de 2007 começou a trabalhar no restaurante de tal sociedade como ajudante de cozinheira, tendo durante mais de seis anos desempenhado as funções de chefe de cozinha; que, apesar de desempenhar tais funções, estava classificada como empregada de mesa, auferindo uma retribuição mensal de € 532,00 em vez dos € 877,00 que deveria receber segundo o instrumento de regulamentação colectiva que entende aplicável; que a ré não lhe pagou o subsídio de Natal de 2012 e as remunerações dos meses de Janeiro a Abril de 2013 e que invocou estes factos na carta através da qual resolveu com justa causa o contrato de trabalho, enviada em 14 de Maio de 2013. Pede a condenação da ré no pagamento do valor mencionado, referente às verbas a que se refere na carta e a 11 dias de Maio de 2013, mês de férias e respectivo subsídio vencidos em 01 de Janeiro de 2013, proporcionais de férias e subsídios de férias e de Natal do ano da cessação e uma indemnização pela resolução com justa causa, no valor de € 4.750,41.
Na contestação apresentada a fls. 48 e ss., a R. invocou, em suma: que a autora é detentora de uma quota de 5% e o seu gerente é detentor dos restantes 95%, mas nunca houve qualquer relação laboral entre a autora e a sociedade ré; que a aquisição das quotas da sociedade por parte do casal se deveu a uma decisão conjunta de ter no restaurante a fonte de rendimentos para custear a vida em comum; que nunca a autora esteve sujeita a dever de obediência ou responsabilidade disciplinar, a horário de trabalho fixo ou dever de assiduidade, além de nunca lhe ter sido paga retribuição, o que também nunca foi por si exigido. Conclui pedindo a sua absolvição do pedido
A A. apresentou articulado de resposta que foi considerado inadmissível por despacho proferido a fls. 67 e 68.
Proferido despacho saneador e dispensada a enunciação do objecto do litígio e dos temas da prova. O valor da acção foi aí fixado em € 5.302,33.
Uma vez realizado o julgamento, o Mmo. Juiz a quo proferiu sentença que julgou improcedente a acção e absolveu a R. do pedido.
1.2. A A., inconformada interpôs recurso desta decisão, tendo formulado, a terminar as respectivas alegações, as seguintes conclusões:
«A. A decisão de facto proferida deve ser alterada na medida em que na sentença em apreciação se tomaram como provados factos que careciam de fundamento probatório, e se ignoraram provas que consubstancia factos provados que por serem importantes para a boa decisão da causa, teriam de ter sido considerados.
B. Do facto J) dado como provado na douta sentença, deve ser eliminada a frase “ou exercido qualquer actividade profissional”na medida em que nenhuma prova neste sentido foi produzida, pelo contrário, o que ficou provado foi que “A autora, àquela data era estudante do ensino superior no H..., nunca tendo chegado a concluir aquela formação e trabalhava como empregada de escritório na empresa de Limpezas de seu pai”
C. Do facto N) dado como provado na douta sentença, deve ser eliminada a frase “que a aquisição das quotas seria feita exclusivamente com o dinheiro do D...” na medida em que nenhuma prova neste sentido foi produzida, pelo contrário, o que ficou provado foi que em 2006 a sociedade “C..., Lda” foi adquirida pela Recorrente e seu marido, tendo sido inicialmente paga por este uma parcela do valor global e, posteriormente, o valor remanescente, por ambos, através dos proventos da exploração do negócio hoteleiro pertencente à sociedade.
D. Os factos R), V), X), Z), FF) e HH) dados como provados na douta sentença, devem ser todos considerados não provados, por a prova produzida em audiência ter sido de sentido contrário
E. Devem ser considerados provados os seguintes factos:
- A Autora trabalhou de sol a sol na sociedade Recorrida, cumprindo um horário de trabalho desde a abertura (6h30m) até ao fecho (2h)
-Era a autora que tratava da higiene da cozinha, dos respectivos equipamento e dos utensílios
- Era a autora a responsável pela conservação dos alimentos e pelo aprovisionamento da cozinha
- A Autora recebia ordens e instruções do gerente da Ré, D..., estando por isso subordinada à sua autoridade.
- A Autora não tinha liberdade para se ausentar ou faltar sem qualquer justificação.
- A Ré contabilizava os salários da Autora como custos, e a Autora assinava os respectivos recibos de vencimento como empregada de mesa, no valor base mensal de 532,00€ mensais.
F. Da matéria de facto provada resulta que o local onde a Recorrente trabalhava pertence à sociedade Recorrida; os equipamentos e instrumentos de trabalho pertencem também à sociedade Recorrida; os horários de abertura e fecho realizados pela Recorrente eram ordenados pelo gerente da sociedade Recorrida; e a Recorrente tinha um vencimento fixado em 532,00 € mensais, ainda que efectivamente não o recebesse.
G. Assim, a Recorrente reunia quatro das cinco características indicadas pelo CT, que fundamentam a presunção de existência de um contrato de trabalho, tendo a douta sentença recorrida, ao não considerar a existência deste, violado o artigo 12º/1 do Código do Trabalho
H. A Declaração de Situação de Desemprego junta aos autos a fls. 14 e 15, foi emitida pela recorrida de livre e espontânea vontade e, nos presentes autos reconheceu a sua autoria e daí que faça prova plena quanto às declarações que à recorrida têm de ser atribuídas, as quais têm de ser consideradas provadas na medida em que sejam contrárias aos interesses da declarante – artigos 376º nºs 1 e 2 do CC que a douta sentença violou
I. Ao mesmo tempo representa uma confissão extrajudicial, pelo que tem força probatória plena contra o confitente, nos termos do artigo 358º/1 do CC que foi igualmente violado
J. Acresce que, tendo essa declaração confessória sido feita à recorrente, como parte contrária, tem força probatória plena, nos termos do artigo 358º/2 do CC, normativo que a douta sentença não considerou.
K. Ou seja, tem que se dar como provado que existia um contrato de trabalho e que a resolução do contrato teve por fundamento a existência de retribuições em mora (salários em atraso) desde Janeiro de 2013.
L. Atentas as funções que exercia no estabelecimento da recorrida, à recorrente deve ser reconhecida a categoria profissional de “chefe de cozinha”, à qual, à data da resolução do contrato de trabalho, correspondia o vencimento mensal base de 877,00€ - cfr. CTT publicado a páginas 176 e seguintes do BTE (digital) nº 3, Volume 79 de 22.01.2012, nomeadamente o seu artigo 3º (Classificação dos Estabelecimentos) e Anexo I (Tabela de Remunerações mínimas pecuniárias de base).
M. Consequentemente, a recorrida deve, e por isso tem de pagar, à recorrente, a quantia peticionada de 12.296,12€, descriminada no artigo 12. da petição inicial, acrescida de juros de mora contados desde a citação até integral e efectivo pagamento.»
Termina pedindo a procedência da acção.
1.3. A R. apresentou contra-alegações em que defendeu a rejeição do recurso por ser exclusivamente impugnada a decisão sobre a matéria de facto sem que a recorrente tenha dado cumprimento ao disposto no art. 640.º do CPC
1.4. O recurso foi admitido com efeito devolutivo (vide fls. 281).
1.5. Recebidos os autos neste Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se no sentido de ser negado provimento ao recurso.
1.6. Notificadas as partes deste Parecer, nenhuma delas se pronunciou.
Cumprido o disposto na primeira parte do nº 2 do artigo 657º do Código de Processo Civil aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, aplicável “ex vi” do art. 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho, e realizada a Conferência, cumpre decidir.
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2. Objecto do recurso
Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – artigo 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, aplicável “ex vi” do art. 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho –, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam à apreciação deste tribunal prendem-se com a análise:
1.ª – da impugnação da decisão de facto quanto aos factos indicados nas conclusões B. a E. e do relevo para a decisão de facto da declaração de situação de desemprego emitida pela R. e na qual a mesma funda a impugnação nas conclusões H. a K.;
2.ª – de saber se entre as partes se estabeleceu um vínculo contratual de natureza laboral, o que pressupõe a análise da sub-questão de saber se, no caso, pode presumir-se a existência de um contrato de trabalho subordinado, nos termos do disposto no art. 12.° do Código do Trabalho;
3.ª – em caso de resposta afirmativa à questão antecedente, de saber se deve ser reconhecida à recorrente a categoria de "chefe de cozinha" com o inerente direito a diferenças salariais;
4.ª – no mesmo pressuposto da resposta afirmativa à 3.ª questão, aferir da justa causa de resolução contratual.
Previamente haverá que analisar a questão suscitada pela recorrida no que diz respeito à pretendida rejeição da impugnação da decisão de facto deduzida pela recorrente.
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3. Fundamentação de facto
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3.1. A decisão da 1.ª instância
A sentença recorrida enunciou a factualidade provada que resultou da discussão da causa nos seguintes termos:
«[...]
A) A autora e D… casaram um com o outro em 04/08/2007;
B) E… nasceu em 17/12/2011 e está registado como sendo filho da autora e de D…;
C) A ré é uma sociedade comercial que tem como objeto o exercício da indústria hoteleira e similares, a comercialização de jornais, revistas, tabaco e jogos da Santa Casa da Misericórdia;
D) Tem o capital social de 5.000,00€, no qual a autora tem uma quota no valor nominal de 125,00€ e o seu marido D… tem duas quotas nos valores nominais de 2.500,00€ e 2.375,00€;
E) A ré foi constituída em 1979, com o capital social de 5.000€;
F) Teve como sócios originários F… e G…, casados entre si no regime da comunhão de bens, sendo cada um titular de uma quota de 2.500€ no capital social.
G) No ano de 2006, a autora e o mencionado D… mantinham uma relação de namoro;
H) Perspetivavam, àquele tempo, construir um projeto de vida em comum que passava pelo casamento e constituição de uma família;
I) Tal propósito de ambos passava necessariamente pela obtenção de meios de sustento que permitissem garantir uma fonte de rendimento para suportar os encargos inerentes à vida familiar;
J) A autora, àquela data, era estudante do ensino superior no H…, nunca tendo chegado a concluir aquela formação ou exercido qualquer atividade profissional;
K) D… estava ligado ao ramo da indústria hoteleira e similares, tendo exercido a profissão de empregado de mesa e gerente hoteleiro, durante mais de 14 anos;
L) Face às perspetivas e experiências profissionais de cada um, decidiram, de comum acordo, aproveitar a experiência de D… no ramo da hotelaria e apostar num negócio de índole familiar que permitisse formar as bases de sustentabilidade do projeto de vida em comum;
M) Tendo surgido a oportunidade de comprar as quotas da ré, a qual era proprietária de um estabelecimento de restauração, a autora e D… decidiram avançar para a sua compra, sendo que os proveitos produzidos por tal estabelecimento serviriam para suportar os encargos da família que perspetivavam constituir;
N) Tendo em conta que ambos, à data, eram solteiros, que a aquisição das quotas seria feita exclusivamente com o dinheiro do D…, que este era a pessoa com experiência no ramo, mas que apesar disso se tratava de um projeto comum em que ambos participariam, designadamente com a sua dedicação, empenho e trabalho, acordaram que à autora seria atribuída uma quota correspondente a 5% do capital social da ré e a D… os restantes 95%, bem como a titularidade como gerente;
O) Em execução do combinado, a autora e D…, juntamente com os sócios originários da ré, outorgaram, em 27/06/2006, um contrato divisão e cessão de quotas, pelo qual concretizaram o concertado;
P) A partir dessa data, a autora e D…, passaram em conjunto e comunhão de esforços a preparar e posteriormente a trabalhar no estabelecimento de restauração;
Q) O identificado marido da autora é o único gerente da sociedade;
R) Tanto a autora como o seu marido, gerente da ré, gozaram as férias e os descansos sempre em simultâneo, dividindo entre si as várias tarefas necessárias para a atividade desenvolvida pela ré;
S) Era a autora quem organizava e dirigia todos os trabalhos de confeção de alimentos;
T) Era a autora quem, tendo em atenção os víveres existentes, colaborava para a elaboração das ementas, indicando, também, os que tinham de ser adquiridos;
U) Era a autora quem dava instruções ao restante pessoal da cozinha (quando havia) sobre a preparação dos pratos, sua apresentação, tipos de guarnições, acompanhando o andamento dos cozinhados;
V) A autora e D… prestaram a sua atividade na ré sem direito a qualquer retribuição fixa, paga de forma reiterada no tempo, retirando os proventos produzidos pela sociedade na medida da sua existência e disponibilidade para acorrer às despesas de ambos;
W) De modo a assegurar assistência no âmbito da segurança social em caso de qualquer infortúnio, como doença, desemprego, incapacidade para o trabalho ou reforma, ambos declaram auferir uma retribuição, sobre a qual incidiam os descontos a fazer para a Segurança Social;
X) A ré nunca pagou à autora qualquer quantia a título de retribuição, em dia e montante certos;
Y) Ambos iam retirando os proveitos gerados pela ré de acordo com a disponibilidade desta, nunca tais valores tendo sido fixos, constantes, pré-determinados, garantidos ou retirados com periodicidade certa;
Z) A autora podia ausentar-se ou não comparecer ao serviço sem que estivesse obrigada a justificar tais faltas ou o tenha feito;
AA) Em 31/07/2007, a autora e D… procederam à compra conjunta, em partes iguais, de uma habitação na …, em Valongo, tendo contraído, em simultâneo com a compra, dois empréstimos bancários junto do I…, no valor de 125.000,00€;
BB) Embora sejam casados, a autora e seu marido encontram-se separados de facto desde Maio de 2013;
CC) A autora enviou à ré em 14/05/2013 uma carta registada com A/R, na qual declarou que “atenta a falta culposa de pagamento da minha retribuição, desde janeiro de 2013, venho (…) comunicar a minha iniciativa de resolução do contrato de trabalho, com efeitos imediatos e justa causa. Esta iniciativa teve também em consideração o facto de me não serem dadas quaisquer previsões de regularização da situação” (documento junto a fls. 10v., que aqui se dá por integralmente reproduzido);
DD) A carta foi devolvida por não ter sido pela ré reclamada na Estação dos CTT, tendo sido pela autora reexpedida em 30/05/2013, sendo desta vez recebida pela ré;
EE) A ré emitiu e entregou à autora a “Declaração de Situação de Desemprego” junta a fls. 14v. e 15v. (que aqui se dá por integralmente reproduzida), datada de 14/05/2013, da qual consta como motivo de cessação do contrato de trabalho “resolução com justa causa por retribuições em mora (salários em atraso”;
FF) A autora sempre teve conhecimento e consciência de que a atividade que desempenhou na ré nunca teve como pressuposto ou condição o recebimento efetivo de qualquer retribuição;
GG) Mas que essa atividade, em conjunto com a que era prestada pelo seu marido, tenderia a produzir rendimentos, os quais, como tal, integrariam o património comum do casal permitindo dessa forma assegurar o sustento familiar;
HH) A atividade desenvolvida pela autora e pelo seu marido, no âmbito da ré, sempre o foi na qualidade de sócios da sociedade, interessados nos resultados da mesma.
[...]».
Em fundamento da sua convicção probatória, exarou o Mmo. Juiz a quo as seguintes considerações:
«[...]
Os factos resultantes de documentos autênticos (casamento de autora e gerente da ré; nascimento do filho de ambos; contrato de divisão e cessão de quotas; contrato de aquisição da casa de morada de família; objeto social, data de constituição, sócios originários, divisão e titularidade das quotas – original e atual – e identidade do gerente da ré) foram diretamente retirados dos respetivos documentos, juntos pelas partes com os seus articulados. No que toca ao envio e receção da carta de resolução do contrato de trabalho e à emissão da declaração de desemprego por parte da ré, as partes admitiram por acordo tais factos nos articulados. Também por acordo (art.º 52.º da contestação) foi admitida a matéria alegada nos arts. 9.º a 11.º da petição inicial.
Para além da matéria de facto vinda de referir, considerou o tribunal também como provados os factos objeto de confissão por parte da autora em sede de depoimento de parte, nos termos da assentada lavrada em ata de audiência de julgamento, a fls. 80 e ss.. Entrando na análise dos factos controvertidos, a grande questão em discussão nos autos prendia-se com a qualidade na qual a autora teria desempenhado a sua atividade no restaurante da ré, sendo que a ré não punha em causa que a autora efetivamente tivesse estado à frente da cozinha desse estabelecimento durante vários anos. Ora, desde logo a admissão por parte da autora dos factos alegados pela ré relativos ao modo como foi decidido por aquela e pelo seu marido adquirir as quotas da sociedade aponta para que a presença da ré no estabelecimento tenha acontecido não no âmbito de uma relação laboral, sujeita à autoridade e direção da ré, mas sim em execução do plano de vida em comum por ambos delineado, que tinha nos proveitos daquele restaurante o modo de custeio das despesas do casal. Veja-se a admissão por parte da autora de que nunca lhe foi paga qualquer quantia a título de retribuição (e não apenas as retribuições alegadas na petição inicial), apesar de tal estar declarado à Segurança Social (como se comprova pela análise do documento de fls. 61 e ss.), o facto de todas as despesas do casal serem custeadas pelos rendimentos gerados pela sociedade e o facto de não ter necessitado de apresentar justificação para a ausência que relatou.
Para além disso, foi uma constante em todos os depoimentos prestados as testemunhas referirem-se à autora como “patroa”, dizendo que apesar de ser o gerente da ré “quem mandava”, encaravam a autora como sua patroa e empregavam tal termo de forma espontânea nos seus depoimentos quando a ela se referiam – veja-se os depoimentos das testemunhas arroladas pela própria autora, J… (cozinheira da ré entre Março e Novembro de 2008) que afirmou “para mim, ela era minha patroa” e K… (chefe de cozinha durante um ano, em 2011) que afirmou que “apesar de ser patroa, eu acho que a autoridade principal era do Sr. D…”.
O depoimento do pai da autora (L…), apesar de evidenciar alguma animosidade para com o gerente da ré, foi revelador quando relatou as conversas que teve com este, aconselhando-o a dar “alguma coisa” à autora, mas deixando transparecer nesse depoimento que não se tratava de um conselho no sentido de atribuir uma retribuição mensal fixa que fosse devida à autora por ser trabalhadora da ré, mas sim de lhe entregar algumas quantias que lhe permitissem ter algum dinheiro – ou seja, apesar do que afirmou sobre ser a sua filha ”simplesmente uma empregada”, transpareceu do seu depoimento que a sua preocupação não se prendia com a falta de pagamento de um salário à filha, mas sim com a dinâmica entre o casal e com o facto de o gerente da ré não “atribuir” nenhuma quantia à mulher na gestão dos dinheiros do casal.
Deste conjunto de elementos de prova gerou-se a convicção no tribunal de que a atuação da autora no restaurante da ré não se enquadrou em nenhuma relação de trabalho subordinado, mas sim no âmbito da exploração normal do restaurante por parte da sociedade da qual ela própria e o marido eram sócios e de onde retiravam todo o dinheiro com que faziam face às despesas do dia-a-dia enquanto casal.
Não está aqui em causa que a autora tenha efetivamente trabalhado arduamente e sem horários, e até em medida muito superior ao seu marido e desempenhando tarefas mais exigentes – os depoimentos acima citados e o de M… (ajudante de cozinha no restaurante em 2008) não deixaram dúvidas quanto a essa realidade. Também não ficaram dúvidas quanto a ser ao marido da autora (até pela sua qualidade de gerente) que cabia a gestão corrente do restaurante no que ia para além da cozinha, como ficou claro dos depoimentos de N… (músico que atuava no restaurante e referiu ter sempre acordado as suas atuações e pagamentos com o marido da autora), O… (cliente do restaurante que tratava frequentemente apenas com o gerente da ré de assuntos relacionados com “raspadinhas”) e P… (empregado de mesa da ré, que afirmou ter sempre tratado apenas com o marido da autora as questões relacionadas com atrasos ou faltas por acidente). Contudo, não ficou de modo algum evidente para o tribunal que a atividade da autora fosse prestada sob a autoridade e direção da ré, ao mesmo nível de qualquer dos empregados ouvidos em audiência, mas sim no âmbito da divisão de tarefas que na sociedade foi acertada entre si e o seu marido. Mais se diga que é certo que ficou claro de todos os depoimentos que a autora teria uma relação de subserviência em relação ao marido - contudo, tal sucedia não por este ser o gerente da sociedade ré, mas sim por força da dinâmica do relacionamento conjugal de ambos.
Em suma, o tribunal não concluiu pela prova do que a autora alegava quanto a ter sido admitida como ajudante de cozinha e ter passado posteriormente a ser chefe de cozinha, antes tendo ficado convencido do que alegava a ré quanto a ter a autora sempre prestado a sua atividade no restaurante na sua qualidade de sócia da ré, interessada nos resultados desta e com plena consciência de que a sua atividade assim desempenhada não pressupunha o pagamento de qualquer retribuição fixa periódica. As conclusões que se poderiam retirar da declaração de desemprego emitida pela ré ficam, pois, prejudicadas face à demais prova produzida, nos termos vindos de expor.
[...]».
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3.2. A impugnação da decisão de facto
*
3.2.1. Questão prévia
3.2.1.1. A recorrida, nas contra-alegações, suscita a questão prévia da rejeição do recurso invocando que a recorrente impugna exclusivamente a decisão proferida sobre a matéria de facto e não deu cumprimento ao ónus fixado no artigo 640.º, do Código de Processo Civil em vigor, por não ter indicado com exactidão as passagens da gravação em que se funda o recurso e, quanto às conclusões F a K nem tampouco especificou os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados.
A propósito dos requisitos para a impugnação da matéria de facto, estabelece o artigo 640.º do Código de Processo Civil aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, o seguinte:
«Artigo 640.º
Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto

1 — Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 — No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) (…).
3 — (…).»
Para sindicar o cumprimento destas especificações legais, tal como sempre decidimos à luz do correspondente artigo 685.º-B do Código de Processo Civil revogado, cabe ter presente o objectivo da sua previsão.
Com as normas relativas à interposição de recurso e apresentação da motivação, o legislador pretendeu criar um conjunto de regras de natureza prática a observar pelos recorrentes e que permitam ao tribunal ad quem apreender, de forma clara, as razões que levam o recorrente a atacar a decisão recorrida, de modo a que possam ser apreciadas com rigor (nem mais, nem menos do que é pedido, com ressalva das matérias de conhecimento oficioso). Actualmente, tornou-se claro que é necessária a formulação de um pedido concreto quanto à alteração da decisão de facto, com a indicação pelo recorrente da “decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.
Assim, o critério subjacente à definição da conformidade das conclusões com o comando dos artigos 639.º e 640.º do CPC está necessariamente relacionado com a respectiva aptidão para exercerem a sua função delimitadora e sinalizadora do campo de acção interventiva do tribunal de recurso. É esta função das conclusões que legitima a existência de normas processuais que as exijam.
Na mesma lógica delimitadora e sinalizadora da intervenção do tribunal de recurso se situam os requisitos legais para a impugnação da matéria de facto, cuja inobservância, atenta a especificidade desta impugnação, justifica a rejeição do recurso no que se refere a tal matéria, com vista a prevenir o uso injustificado do recurso e a delimitar o seu objecto e os termos da cognição do tribunal ad quem (pela identificação, precisa, dos pontos de discordância e das razões da discordância), tudo na perspectiva do uso racional e justificado do meio recursório.
Além disso, cabe ter presente que, uma vez que as conclusões delimitam o objecto do recurso – artigos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC, aplicáveis ex vi do disposto nos artigos 1.º, n.º 2, alínea a), e 87.º do Código de Processo do Trabalho, na redacção aprovada pelo Decreto-Lei n.° 295/2009, de 13.10 –, é necessária a indicação, nas conclusões, pelo menos, dos concretos pontos de facto de cuja decisão o recorrente discorda, embora se admita que a indicação dos meios de prova em que o recorrente sustenta a sua discordância possa ter lugar nas alegações, pois que consubstancia matéria relativa à correspondente fundamentação.
3.2.1.2. No caso em análise, quanto às conclusões B. a E. não está em causa a indicação dos concretos pontos de facto que a recorrente considera incorrectamente julgados. Resulta com clareza de tais conclusões que se trata dos factos provados sob as alíneas J), N), R), V), X), Z), FF) e HH) na sentença – que a recorrente defende se devem considerar total ou parcialmente não provados, por a prova produzida em audiência ter sido de sentido contrário aos factos que pretende ver suprimidos – e dos factos que são referenciados na conclusão E. que a recorrente pretende, por via do presente recurso, se considerem “provados” (vide fls. 120-121).
Está em causa, sim, a falta de indicação das passagens das gravações dos depoimentos em que a recorrente se funda para alcançar uma diferente decisão de facto.
A exacta indicação das passagens da gravação que se exige agora no artigo 640.º, n.º 2, a), do NCPC, não se identifica com a mera indicação do local, no suporte de registo áudio disponibilizado ao Tribunal de recurso, onde começa e termina cada um dos depoimentos em causa (o que se traduz na indicação de todo o depoimento e não propriamente das passagens), sendo mister indicar, por referência ao suporte em que se encontra gravado o depoimento que pretende utilizar, o início e o termo da passagem ou das passagens, desse depoimento, em que se funda o seu recurso[1].
Deve pois considerar-se que, quanto aos pontos de facto cuja análise implica a reapreciação de prova pessoal (depoimento de parte ou prova testemunhal), a recorrente não cumpre cabalmente os ónus que a lei coloca a cargo de quem impugne a decisão relativa à matéria de facto em via de recurso, no que diz respeito à alínea a) do n.º 2, do artigo 640.º do Código de Processo Civil, pois não indica com exactidão as passagens da gravação em que se funda por referência à gravação efectuada no CD apenso (que permite a fácil identificação dos ficheiros respeitantes a cada depoimento, seu início e fim e possibilita a concretização do momento do depoimento em que cada testemunha se pronunciou sobre uma determinada matéria, identificando a hora, minutos e segundos).
Verifica-se, contudo, que a recorrente concretiza a prova pessoal em que se baseia, não só identificando os meios de prova com a referência ao seu depoimento de parte ou aos depoimentos das testemunhas que vai identificando, como transcrevendo os excertos dos depoimentos em que se fundamenta, para além da demais argumentação que aduz, para ver alterada a decisão de facto no que diz respeito aos pontos que assinala.
Embora a redacção da alínea a) do artigo 640.º, n.º 2, do Código de Processo Civil indicie a necessidade de, em primeira mão, se indicarem as passagens da gravação em que se funda o recurso, constituindo a transcrição um “mais” de que o recorrente pode lançar mão, entendemos que se mostra suficientemente cumprido o ónus prescrito naquela norma se o recorrente identifica correctamente as testemunhas cujo depoimento pretende ver reapreciado, se os factos indicados são precisos, não demandando particulares dificuldades no sentido da sua concreta identificação, e se a transcrição efectuada é, em si, elucidativa quanto aos fundamentos por que o recorrente pretende uma decisão de facto diversa, como sucede no caso vertente.
Assim, apesar da apontada deficiência da alegação da recorrente – e sem prejuízo de, pontualmente, analisarmos da suficiência da fundamentação do recurso em sede de matéria de facto, entendemos não ser caso de rejeição do recurso em matéria de facto quanto à impugnação deduzida nas conclusões B. a E., pois que resulta claramente das mesmas quais os pontos de facto que contêm a decisão de que a recorrente discorda, sendo possível descortinar da peça recursória globalmente considerada (alegações e das conclusões), apesar do seu menor rigor formal, os meios probatórios que, no seu entender, demonstram os erros de julgamento que considera ocorrer, bem como a decisão (“não provado”, total ou parcialmente, ou “provado”) que defende dever ser proferida sobre os pontos de facto impugnados.
Tendo em consideração que constam do processo todos os elementos de prova que serviram de base à decisão do tribunal a quo sobre os referidos pontos da matéria de facto, conhecer-se-á do recurso interposto, tendo em mira que o que é proposto ao tribunal de segunda instância não é que proceda a um “novo julgamento” – desprezando o juízo formulado na primeira instância sobre as provas produzidas e a expressão do processo lógico que conduziu à pronúncia sobre a demonstração (ou não) dos factos ajuizados –, mas que, no uso dos poderes próprios de tribunal de recurso, averigúe – examinando a decisão da primeira instância e respectivos fundamentos, analisando as provas produzidas e procedendo ao confronto do resultado desta análise com aquela decisão e fundamentos – se o veredicto alcançado pelo tribunal recorrido quanto aos concretos pontos impugnados assentou num erro de apreciação.
Julga-se improcedente a questão prévia suscitada quanto às conclusões B. a E.
3.2.1.3. Já quanto às conclusões H. a K., a decisão é distinta pois que, efectivamente, a recorrente não individualiza quais os pontos de facto que, com base no documento ali indicados, entende que se devem considerar “não provados” ou “provados”.
Segundo Lopes do Rego, “[a] expressão ‘ponto da matéria de facto’ procura acentuar o carácter atomístico, sectorial e delimitado que o recurso ou impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto em regra deve revestir, estando em harmonia com a terminologia usada pela alínea a) do nº 1 do art. 640º: na verdade, o alegado ‘erro de julgamento’ normalmente não inquinará toda a decisão proferida sobre a existência, inexistência ou configuração essencial de certo ‘facto’, mas apenas sobre determinado e específico aspecto ou circunstância do mesmo, que cumpre à parte concretizar e delimitar claramente”.[2]
A questão aqui não tem já a ver com a indicação das passagens da gravação – pois que é apenas invocada prova documental – mas com a própria identificação dos pontos da matéria de facto que a recorrente entende mal julgados.
Com efeito, a recorrente a este propósito limita-se a alegar que a Declaração de Situação de Desemprego junta aos autos a fls. 14 e 15, foi emitida pela recorrida de livre e espontânea vontade, que a mesma reconheceu a sua autoria nos presentes autos e daí que faça prova plena quanto às declarações que à recorrida têm de ser atribuídas, as quais têm de ser consideradas provadas na medida em que sejam contrárias aos interesses da declarante nos termos dos artigos 376.º n.ºs 1 e 2 do CC e, ao mesmo tempo representa uma confissão extrajudicial feita à recorrente, pelo que tem força probatória plena contra o confitente, nos termos do artigo 358.º, n.ºs 1 e 2 do CC.
Daqui conclui que “tem que se dar como provado que existia um contrato de trabalho e que a resolução do contrato teve por fundamento a existência de retribuições em mora (salários em atraso) desde Janeiro de 2013” (conclusão K.).
Ou seja, o que a recorrente pretende é que se considerem “provadas” conclusões que contendem directamente com o thema decidendum da acção, vg. a existência de um contrato de trabalho, e não quaisquer factos concretos que o referido documento fosse apto a demonstrar (eventualmente caracterizadores do conceito legal de contrato de trabalho ou indiciadores da sua existência) e que a recorrente não identifica.
Tanto basta para que se rejeite a impugnação da decisão de facto quanto a esta matéria.
Deve acrescentar-se contudo, que, como se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Setembro de 2007, as declarações que o empregador faz constar do impresso da Segurança Social preenchido com vista à obtenção de subsídio de desemprego, não têm força probatória plena nos termos do art. 376.º, n.º 2 do Código Civil para dar como assente os factos a que as mesmas se reportam[3].
Bem se compreende que assim seja.
Na verdade, aquela declaração foi emitida nos termos e para os efeitos dos artigos 10º, nº 4, e 74º do Decreto-Lei n.° 220/2006, de 03.11, visando a obtenção do subsídio de desemprego e tendo como destinatária a entidade competente para a concessão de tal subsídio.
Trata-se, pois, de um documento particular que, ainda que não impugnada a letra e assinatura e fazendo, por isso, prova plena de que o seu autor emitiu a declaração nele inserta (art. 376º, nº 1, CC), não tem, contudo, a força probatória prevista no nº 2 do citado preceito, ou seja, não faz prova plena da veracidade dos factos contidos nessa declaração, sendo certo que, como se tem entendido, doutrinal e jurisprudencialmente, carecem de tal força os documentos que tenham como destinatários terceiros.
Ou seja, a declaração em questão faz prova plena de que a R declarou o que dela consta, mas não faz já prova plena quanto à verificação dos factos ali relatados, designadamente quanto à qualidade de trabalhadora da A., quanto ao vencimento, à profissão desempenhada – que, aliás, a recorrente diz não corresponder à realidade – data e motivo da cessação do contrato, valor da retribuição, sendo que, nesta parte, o documento está sujeito à livre apreciação do julgador.
Seja como for, uma vez que no caso vertente a recorrente não identificou os factos concretos que, com o contributo probatório daquela declaração, intentava ver “provados” – por referência aos alegados no seu articulado que se não reflectiram na sentença – ou “não provados” –, por referência aos que se consideraram provados na sentença com a sua discordância, cabe rejeitar a impugnação da decisão de facto neste aspecto Nos termos do preceituado no artigo 640.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Civil, aplicável “ex vi” do art. 1.º, n.º 2 al. a) do Código de Processo do Trabalho.
*
3.3. Reapreciação da decisão de facto
Cabe assim apreciar o recurso interposto quanto aos pontos da matéria de facto assinalados nas conclusões B. a E., aferindo se o veredicto alcançado pelo tribunal recorrido quanto aos mesmos assentou num erro de apreciação.
Para o efeito, procedemos à análise da documentação junta aos autos, bem como à audição integral do depoimento de parte da A. e dos depoimentos das testemunhas J… (cozinheira da ré entre Março e Novembro de 2008), K… (chefe de cozinha durante um ano, em 2011), M… (ajudante de cozinha no restaurante em 2008), L… (pai da autora), N… (músico que actuava no restaurante), O… (cliente do restaurante) e P… (empregado de mesa da ré), conferindo particular atenção aos excertos indicados nas alegações de recurso.
Vejamos pois.
3.3.1. Quanto à alínea J) dos factos provados
Alega a recorrente que do facto J) dado como provado na douta sentença, deve ser eliminada a frase “ou exercido qualquer actividade profissional”, na medida em que nenhuma prova neste sentido foi produzida e, pelo contrário, o que ficou provado foi que “A autora, àquela data era estudante do ensino superior no H…, nunca tendo chegado a concluir aquela formação e trabalhava como empregada de escritório na empresa de Limpezas de seu pai”.
Invoca que trabalhara anteriormente com os pais, tendo assinado contrato de trabalho e descontado para a Segurança Social, conforme resulta do documento nº 2 junto com a resposta à contestação, do seu depoimento de parte e do depoimento da testemunha L….
O facto J) ficou com a seguinte redacção:
J) A autora, àquela data, era estudante do ensino superior no H…, nunca tendo chegado a concluir aquela formação ou exercido qualquer atividade profissional;
Reproduz o mesmo a matéria alegada no artigo 24.º da contestação, que o tribunal considerou provada, e reporta-se ao ano de 2006, no qual, como se provou sem que a A. houvesse impugnado tal matéria, a autora e D… mantinham uma relação de namoro (G), perspectivavam construir um projecto de vida em comum que passava pelo casamento e constituição de uma família (H), o que passava necessariamente pela obtenção de meios de sustento que permitissem garantir uma fonte de rendimento para suportar os encargos inerentes à vida familiar (I) e ambos decidiram de comum acordo, face às perspectivas e experiências profissionais de cada um, aproveitar a experiência de D… no ramo da hotelaria e apostar num negócio de índole familiar que permitisse formar as bases de sustentabilidade do projecto de vida em comum (K e L), avançando para a compra das quotas da ré, que era proprietária de um estabelecimento de restauração com vista a que os proveitos produzidos por tal estabelecimento servissem para suportar os encargos da família que perspectivavam constituir (M).
Tendo presente o objecto da presente acção e estes factos que agora devem considerar-se como assentes, não se vislumbra desde logo qual o interesse da recorrente em ver suprimido do facto J) o excerto que assinala. É absolutamente irrelevante para aferir se houve uma vinculação laboral entre a A. e a sociedade R. o facto de a A. ter, ou não, anteriormente trabalhado na empresa do pai, como agora a mesma pretende que se considere provado, apesar de o não ter alegado no único articulado atendível (pois que a resposta à contestação foi considerada inadmissível pelo despacho de fls. 68, transitado em julgado).
Ora, atendendo a que a alteração pretendida nada adiantaria para a solução do caso sub judice, não deve admitir-se a impugnação deduzida neste aspecto em via de recurso.
Com efeito, qualquer que seja a decisão de facto, ainda que com ela não concorde a parte, não deve esta lançar mão do expediente de impugnação da decisão relativa à matéria de facto se a pretendida alteração da resposta nenhuma influência vai ter para a decisão do mérito da causa. No fundo trata-se de praticar o princípio da economia processual, devendo cada processo comportar tão só os actos e formalidades indispensáveis ou úteis[4].
Acresce que o documento de fls. 63 que a recorrente invoca foi junto com o articulado da resposta, pelo que não pode também ser considerado, face ao teor do douto despacho de fls. 68, transitado em julgado, que declarou a inadmissibilidade legal desse articulado.
Mantém-se a alínea J) dos factos provados, improcedendo a pretensão da sua alteração.
3.3.2. Quanto à alínea N) dos factos provados
Alega a recorrente que do facto N) dado como provado na douta sentença, deve ser eliminada a frase “que a aquisição das quotas seria feita exclusivamente com o dinheiro do D…” na medida em que nenhuma prova neste sentido foi produzida e, pelo contrário, o que ficou provado foi que em 2006 a sociedade “C…, Lda” foi adquirida pela recorrente e seu marido, tendo sido inicialmente paga por este uma parcela do valor global e, posteriormente, o valor remanescente, por ambos, através dos proventos da exploração do negócio hoteleiro pertencente à sociedade, pelo que o pagamento integral foi concluído com dinheiro do casal.
Invoca para sustentar a alteração pretendida o seu depoimento de parte e a Cláusula 4.ª do Contrato de Divisão e Cessão de Quotas, junto aos autos com a Contestação que mostra que as quotas não foram pagas de forma integral, tendo os sócios procedido ao pagamento faseado das mesmas após o casamento.
O facto N) tem a seguinte redacção:
N) Tendo em conta que ambos, à data, eram solteiros, que a aquisição das quotas seria feita exclusivamente com o dinheiro do D…, que este era a pessoa com experiência no ramo, mas que apesar disso se tratava de um projeto comum em que ambos participariam, designadamente com a sua dedicação, empenho e trabalho, acordaram que à autora seria atribuída uma quota correspondente a 5% do capital social da ré e a D… os restantes 95%, bem como a titularidade como gerente;
Analisado o documento que titula o Contrato de Divisão e Cessão de Quotas de fls. 30 verso e ss., vg. a sua cláusula 4.ª, verifica-se que ficou convencionado em 27 de Junho de 2006 o pagamento do preço das quotas, para além de um valor inicial, em 36 prestações mensais e sucessivas.
E, analisando o depoimento de parte da recorrente, verifica-se que a mesma precisa que, além de um pagamento inicial feito com o dinheiro do D…, depois do casamento continuaram os dois a pagar, faseadamente, com o fruto do trabalho dos dois no restaurante e com o dinheiro que este gerava (a partir do minuto 8.00 do seu depoimento), pelo que haverá um menor rigor na transcrição da assentada que ficou a constar da acta de fls. 80, ao ali se referir ter a A. declarado que “a aquisição das quotas seria feita exclusivamente com o dinheiro do D…”.
Não obstante, também neste aspecto se não deverá proceder à alteração pretendida, na medida em que, também aqui, o segmento de facto que a recorrente pretende ver suprimido - “que a aquisição das quotas seria feita exclusivamente com o dinheiro do D…” - é insusceptível de determinar qualquer alteração da decisão recorrida. Dir-se-á, até, que a alteração pretendida seria desfavorável à A., na medida em que a exclusiva afectação de verbas do sócio D… às duas quotas adquiridas, se acompanhada de outros factos, poderia confortar a tese da recorrente de que, no âmbito da sociedade R., era mera trabalhadora, não tendo sequer adquirido com dinheiro seu a quota de que era titular.
Deve deixar-se consignado que esta afirmação de facto que se mantém apenas releva neste processo, na medida em que a força de caso julgado de uma decisão de mérito não abrange o julgamento da matéria de facto efectuado na acção em que a mesma foi proferida. O que a lei permite é, nos termos do disposto no artigo 421º do Código de Processo Civil, a utilização de “depoimentos e perícias produzidos num processo com audiência contraditória”, num “processo contra a mesma parte, cabendo depois a respectiva apreciação ao juiz do segundo processo[5].
Improcede a impugnação dirigida ao facto N), que se mantém tal como fixado na 1.ª instância.
3.3.3. Quanto às alíneas R), V), X), Z), FF) e HH) dos factos provados
Alega a recorrente que os factos R), V), X), Z), FF) e HH) dados como provados na sentença, devem ser todos considerados não provados, por a prova produzida em audiência ter sido de sentido contrário.
Invoca nas alegações para sustentar a alteração pretendida o seu depoimento de parte e os depoimentos das testemunhas cujos excertos vais transcrevendo.
3.3.3.1. Quanto à alínea R) – “Tanto a autora como o seu marido, gerente da ré, gozaram as férias e os descansos sempre em simultâneo, dividindo entre si as várias tarefas necessárias para a atividade desenvolvida pela ré – alega a recorrente que nunca qualquer testemunha referiu esta situação, relativamente ao gozo das férias e descansos do casal, não se percebendo, por isso, como o Mmo. Juiz do tribunal “a quo” formou esta convicção, pelo que deve ser considerado não provado o facto R).
Ouvidos os depoimentos prestados, deve reconhecer-se razão à A. quanto a este segmento do facto R) reportado ao gozo de férias e descansos, pois que se não descortina prova bastante de que tanto a autora como o seu marido gozaram as férias e os descansos sempre em simultâneo.
Mas já quanto ao segmento final do facto, cremos que da própria audição do depoimento de parte da A., designadamente no seu início, resulta com clareza que a A. e o seu marido, gerente da R., dividiram entre si as várias tarefas necessárias para a actividade desenvolvida pela ré, o que aliás está em consonância com os factos provados na 1.ª instância que a recorrente acatou e dos quais resulta que no ano de 2006, a autora e o mencionado D… perspectivavam construir um projecto de vida em comum que passava pelo casamento e constituição de uma família, o que passava necessariamente pela obtenção de meios de sustento que permitissem garantir uma fonte de rendimento para suportar os encargos inerentes à vida familiar e decidiram, de comum acordo, aproveitar a experiência de D… no ramo da hotelaria e apostar num negócio de índole familiar que permitisse formar as bases de sustentabilidade do projecto de vida em comum, tendo adquirido as quotas da ré que era proprietária de um estabelecimento de restauração, sendo que os proveitos produzidos por tal estabelecimento serviriam para suportar os encargos da família que perspectivavam constituir e que se tratava de um projecto comum em que ambos participariam, designadamente com a sua dedicação, empenho e trabalho, tendo passado a partir de 27 de Junho de 2006, em conjunto e comunhão de esforços, a preparar e posteriormente a trabalhar no estabelecimento de restauração, sendo o marido da autora o único gerente da sociedade e sendo esta quem organizava e dirigia todos os trabalhos de confecção de alimentos, colaborava para a elaboração das ementas, tendo em atenção os víveres existentes, indicava os que tinham de ser adquiridos, dava instruções ao restante pessoal da cozinha (quando havia) sobre a preparação dos pratos, sua apresentação, tipos de guarnições, acompanhando o andamento dos cozinhados, retirando ambos os proventos produzidos pela sociedade na medida da sua existência e disponibilidade para acorrer às despesas de ambos [vide os factos G) a V) na parte não impugnada].
Assim, suprime-se da alínea R) dos factos provados a sua assinalada parte inicial, passando a mesma a ter a seguinte redacção:
«R) A autora e o seu marido, gerente da ré dividiram entre si as várias tarefas necessárias para a actividade desenvolvida pela ré;»
3.3.3.2. Quanto à alínea V) – “A autora e D… prestaram a sua atividade na ré sem direito a qualquer retribuição fixa, paga de forma reiterada no tempo, retirando os proventos produzidos pela sociedade na medida da sua existência e disponibilidade para acorrer às despesas de ambos” – alega a recorrente que qualquer casal, quando contrai matrimónio, tem em vista sustentar a vida em comum, mas o que formava as bases financeiras de sustentabilidade do projecto de vida em comum eram os salários retirados da sociedade que o casal detinha, e não a sociedade em si e que o facto de ambos serem sócios da entidade empregadora não lhes retira a categoria de trabalhadores da mesma. E conclui que o facto V), dado como provado na sentença, não corresponde à verdade, porque os dois tinham direito a essa retribuição, mas a recorrente não a recebia já que a recorrida não disponibilizava à recorrente o seu salário.
Volta a invocar o seu depoimento de parte.
Ora neste aspecto da impugnação cremos que a recorrente dá por demonstrado o que falta demonstrar: o direito à retribuição. Aliás, é curioso notar que a mesma refere no seu depoimento, referindo-se ao gerente seu marido, que “por mais que eu lhe pedisse um salário, ou uma verba para eu me conseguir guiar, esse dinheiro nunca foi estabelecido, nunca foi dado”, o que vai ao encontro, quer da conclusão de que nunca foi pago ou, sequer, estabelecida, uma contrapartida remuneratória para retribuir a actividade que a recorrente prestava no restaurante, quer das considerações já expendidas quanto ao projecto comum de exploração do restaurante para acorrer às despesas da família com os seus resultados.
Seja como for, tendo em consideração que o facto em causa se mostra descrito em termos manifestamente conclusivos ao referenciar que aquelas pessoas prestaram a sua actividade “sem direito a qualquer retribuição” – o que se mostra desconforme com o comando de individualização factual constante do artigo 607.º do Código de Processo Civil, aplicável “ex vi” do art. 1.º, n.º 2 al. a) do Código de Processo do Trabalho – proceder-se-á à sua concretização.
Altera-se pois a alínea V) dos factos provados nos seguintes termos:
V) A autora e D… prestaram a sua actividade na ré sem que houvessem estabelecido o pagamento de uma retribuição, retirando os proventos produzidos pela sociedade na medida da sua existência e disponibilidade para acorrer às despesas de ambos;
3.3.3.3. Quanto à alínea X) – “A ré nunca pagou à autora qualquer quantia a título de retribuição, em dia e montante certos” – alega a recorrente que, ainda que nunca a tenha recebido directamente, sempre assinou os respectivos recibos de vencimento, que eram contabilizados pela sociedade saindo dos respectivos apuros (receitas) e sendo contabilizado como custo, pelo que formalmente pagava à recorrente um ordenado mensal, uma retribuição como empregada de mesa.
Resulta desde logo desta alegação a sua falência, pois que, ao alegar que nunca recebeu da R. retribuição, apenas assinando os recibos, a recorrente tem como pressuposto a verdade do que ficou provado.
O que ficou provado foi, justamente, que a ré nunca pagou à autora qualquer quantia a título de retribuição, em dia e montante certos, não sendo a circunstância de “formalmente” constar nos recibos que houve tal pagamento de molde a que se afirme terem sido efectivamente pagos os valores ali feitos constar. Aliás, este facto é consentâneo com o que se provou – e a recorrente não impugnou – quanto à razão de ser de terem a A. e o seu marido declarado auferir uma retribuição sobre a qual incidiam os descontos a fazer para a Segurança Social: fizeram-no com vista a assegurar assistência no âmbito da segurança social em caso de qualquer infortúnio, como doença, desemprego, incapacidade para o trabalho ou reforma [facto W)].
Acresce que o depoimento de parte da A. (“por mais que eu lhe pedisse um salário, ou uma verba para eu me conseguir guiar, esse dinheiro nunca foi estabelecido, nunca foi dado”) confirma que ré nunca lhe pagou qualquer quantia a título de retribuição, muito menos em dia e montante certos, sendo certo que os depoimentos invocados a este propósito apenas se referem aos salários ou outras verbas pagos pelo gerente da R. às próprias testemunhas (M…, N…, P…) e não à recorrente,
Nada justifica pois que, como pretende a recorrente, se elimine o facto X) dos factos provados.
3.3.3.4. Quanto à alínea Z) – “A autora podia ausentar-se ou não comparecer ao serviço sem que estivesse obrigada a justificar tais faltas ou o tenha feito” – alega a recorrente que não podia ausentar-se ou não comparecer ao serviço sem que estivesse obrigada a justificar as faltas, porque das duas vezes que declarou faltar (ataque de asma e parto), disso deu conhecimento ao marido, gerente, e naturalmente lhe mostrou os comprovativos, nunca tendo faltado noutras ocasiões.
Invoca o seu depoimento e os depoimentos das testemunhas M… e L….
Ora, analisados estes depoimentos, também aqui não podemos acompanhar a recorrente.
Com efeito, a A., no excerto invocado nas alegações da apelação, apenas referiu que tinha que estar sempre e não podia deixar de abrir o estabelecimento ou vir embora. Por seu turno as referidas testemunhas limitaram-se a afirmar, a primeira (a testemunha M…, trabalhadora da R.) que a A. ía sempre trabalhar, estava sempre lá mesmo doente e a segunda (a testemunha L…, pai da A.) que no dia em que deu à luz, a A. trabalhou até à meia-noite no restaurante e o marido obrigou-a a ir para lá outra vez duas ou três semanas depois do parto.
Daqui resulta haver uma presença da recorrente quase constante no restaurante, mas nada se retira quanto a haver uma obrigação de justificar as faltas, não tendo qualquer respaldo na prova produzida a afirmação da recorrente de que “naturalmente” mostrou os comprovativos dos factos que a levaram a faltar nas duas ocasiões que assinalou.
Acresce que no depoimento de parte a A. referiu expressamente quanto ao artigo 11.º da contestação, que veio a dar origem à alínea Z) dos factos provados, que se recorda de ter estado ausente por doença (asma) durante um período e que não entregou justificação à Ré, (ao minuto 06.05 do seu depoimento) esclarecendo depois que, por ser casada com o gerente, este tinha conhecimento dos motivos da ausência, como fidedignamente ficou a constar da acta de fls. 80.
Mantém-se, pois, a alínea Z) dos factos provados.
3.3.3.5. Quanto à alínea FF) – “A autora sempre teve conhecimento e consciência de que a actividade que desempenhou na ré nunca teve como pressuposto ou condição o recebimento efectivo de qualquer retribuição” – alega a recorrente que a prova oferecida, toda se posiciona de forma contrária a este facto, desde a emissão de recibos de vencimento, declarações desses vencimentos e respectivos descontos efectuados para a Segurança Social, bem como o depoimento de parte da Autora, que referiu a exigência de salário e a expectativa de o receber.
Igualmente aqui não podemos acompanhar a recorrente.
Com efeito, como resulta do já exposto, a emissão de recibos de vencimento e a declaração dos mesmos e efectivação dos correspondentes descontos para a Segurança Social não é suficiente para que se afirme o contrário do afirmado no facto FF). Não se esqueça que ficou provado – sem a discordância da A. – que a razão de ser de terem a A. e o seu marido declarado auferir uma retribuição sobre a qual incidiam os descontos a fazer para a Segurança Social foi assegurar assistência no âmbito da segurança social em caso de qualquer infortúnio, como doença, desemprego, incapacidade para o trabalho ou reforma [facto W)].
Quanto ao depoimento de parte da A., para além das naturais reservas que merece na afirmação de factos que lhe são favoráveis – pois estranho seria que, depois de intentar a acção a alegar a existência de um contrato de trabalho e a pedir retribuições, viesse a tribunal dizer que tinha consciência de que a sua actividade não tinha como pressuposto o recebimento de uma retribuição –, a verdade é que mesmo a A. não é absolutamente clara quando refere que pedia ao marido “um salário”, ou “uma verba para eu me conseguir guiar” dinheiro este que “nunca foi estabelecido, nunca foi dado”.
Acresce que o relato inicialmente feito pela A. e que levou o tribunal a dar como provado que a autora e D… prestaram a sua actividade na ré sem que houvessem estabelecido o pagamento de uma retribuição, retirando os proventos produzidos pela sociedade na medida da sua existência e disponibilidade para acorrer às despesas de ambos [facto V)] e que a ré nunca pagou à autora qualquer quantia a título de retribuição, em dia e montante certos [facto X)], são consentâneos com a afirmação sob censura de que a autora tinha conhecimento e consciência de que a actividade que desempenhou na ré não teve como pressuposto ou condição o recebimento efectivo de qualquer retribuição.
O facto psicológico que agora se impugna constitui uma decorrência lógica daqueles factos provados [V) e X)], podendo afirmar-se a sua verificação por presunção natural segundo as regras da experiência (artigo 351.º do Código Civil).
Nada justifica, pois, se considere o mesmo como “não provado”, o que, aliás, poderia acarretar uma contradição com aqueles referidos factos V) e X).
Improcede, também neste aspecto, a impugnação.
3.3.3.6. Quanto à alínea HH) – “A atividade desenvolvida pela autora e pelo seu marido, no âmbito da ré, sempre o foi na qualidade de sócios da sociedade, interessados nos resultados da mesma” – alega a recorrente o depoimento da testemunha J… que referiu que “em questões de trabalhar a D. B… era como minha colega de trabalho, porque acompanhou-me sempre ali nos trabalhos, é isso que eu estou a dizer”, referindo também que “o Sr. D… era diferente, foi mais aquele respeito de ser mais o meu patrão, mais a respeitar as ordens, mais… é isso.”.
Ouvido integralmente o depoimento desta testemunha (trabalhadora da R. como cozinheira entre Março e Novembro de 2008) verifica-se que a mesma apelida essencialmente a autora de “patroa”, tendo dito espontaneamente antes das expressões transcritas na apelação que “para mim era minha patroa…como o sr. D… era meu patrão”, o que reiterou (a partir do minuto 16.22. do seu depoimento), embora a instâncias do mandatário interrogante, tenha proferido as expressões que se transcreveram e que não deixam de estar em consonância com o que provado ficou relativamente ao tipo de actividades que a A. exercia na cozinha do restaurante. Como também disse esta testemunha, a A. praticamente “vivia lá”, o que só se compreende no âmbito de um empenhamento pessoal e autónomo da mesma, por interessada nos lucros que a sociedade retirava da exploração do restaurante e com que fazia face às despesas do seu casal, em contexto bem diferente da execução de um contrato de trabalho em que o trabalhador exerce a sua actividade num horário determinado, sob as ordens, direcção e fiscalização de outrem, mediante o pagamento de uma retribuição.
Não se justifica, pois, a eliminação dos factos provados da sua alínea HH).
3.3.4. Quanto aos factos que pretende ver provados.
Invoca a recorrente que devem ser considerados provados determinados factos que descreve, dedicando aos mesmos esparsas considerações no corpo das alegações, de forma não estruturada e misturada com a alegação atinente a outros factos já analisados e que entendia deverem considerar-se não provados, o que dificulta a sua apreciação.
Mas vejamos cada um, de per si.
3.3.4.1. “A Autora trabalhou de sol a sol na sociedade Recorrida, cumprindo um horário de trabalho desde a abertura (6h30m) até ao fecho (2h)”.
Invoca a recorrente que alegou no artigo 6º. da sua petição inicial que “durante 6 anos trabalhou, como uma escrava, de manhã à noite, sem descanso e sem férias” e radica a alteração factual que pretende, que não abrange já a referência final ao descanso e às férias, no seu próprio depoimento de parte e nos depoimentos das testemunhas J…, K… e M….
Ora, reconduzindo-nos à alegação da petição inicial – aquela que foi submetida a instrução – desde logo se verifica que a alegação da A. se reveste de carácter conclusivo e vago (como uma escrava?) e despida de qualquer concretização (de manhã, ou à noite, a que horas?), pelo que nunca poderia o tribunal a quo, adstrito que se mostra ao comando normativo do artigo 607.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, fazer incluir tal alegação no elenco dos factos provados.
Acresce que os meios probatórios invocados não sustentam a prova dos factos que a recorrente quer ver provados. Ouvidos os depoimentos da A. (“eu entrava na abertura e saía no fecho”, situando nas 6.30 as horas a que ía para o estabelecimento) e das testemunhas J… (“A D. B… praticamente vivia lá”, situando nas 8.00 as horas a que ambas chegavam ao estabelecimento), K… (“Ela não tinha que cumprir o horário de trabalho, a patroa estava lá de manhã à noite. Era o horário de trabalho”) e M… (“Não, não cumpria horário. Eu quando lá chegava ela já lá estava. Eu vinha embora, ela ficava, às 16, 16 e pouco, ela ficava sempre”), não só se fica com dúvidas quanto à efectiva hora a que a recorrente se dirigia para o restaurante e ali iniciava a sua actividade, como se torna ainda mais sustentada a ideia já antes aflorada no âmbito desta reapreciação da prova de que a recorrente se empenhava pessoal e autonomamente no desenvolvimento da actividade do estabelecimento comercial que a sociedade R. explorava, por ser directamente interessada nos lucros que a sociedade de que é sócia retirava da exploração do restaurante e com que a própria e o seu marido faziam face às despesas do seu casal, passando lá praticamente todo o dia. O que revela um contexto bem diferente, repetimo-lo, da execução de um contrato de trabalho em que o trabalhador exerce a sua actividade num horário determinado, sob as ordens, direcção e fiscalização de outrem, mediante o pagamento de uma retribuição.
Que a recorrente trabalhou no restaurante da sociedade R. é facto incontestável que resulta vg. das alíneas P), R), S), T), U) e V) dos factos provados, mas de modo algum pode dizer-se que no mesmo a recorrente cumpria um horário de trabalho.
Improcede esta vertente da pretensão da recorrente.
3.3.4.2. “Era a autora que tratava da higiene da cozinha, dos respectivos equipamentos e dos utensílios”.
Trata-se de facto alegado no artigo 12.º da petição inicial, que não foi impugnado, pelo que se deve ter como assente nos termos do preceituado no artigo 574.º, n.º 2 do Código de Processo Civil.
Acrescentar-se-á, pois, à decisão de facto sob a alínea U-1).
3.3.4.3. “Era a autora a responsável pela conservação dos alimentos e pelo aprovisionamento da cozinha”.
Trata-se também de facto alegado, desta feita no artigo 13.º da petição inicial, que não foi impugnado, pelo que se deve ter como assente nos termos do preceituado no artigo 574.º, n.º 2 do Código de Processo Civil.
Acrescentar-se-á, pois, à decisão de facto sob a alínea U-2).
3.3.4.4. “A Autora recebia ordens e instruções do gerente da Ré, D…, estando por isso subordinada à sua autoridade”.
Quanto a esta pretensão da recorrente, deve desde logo dizer-se que a mesma encerra conceitos de direito, como bem refere a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, e manifestamente relacionados com o thema decidendum da acção, designadamente no seu segundo segmento, pelo que nunca poderiam fazer parte do elenco de factos provados.
Além disso, trata-se de alegação que a A. não fez constar da sua petição inicial e que este tribunal de recurso não pode averiguar oficiosamente, independentemente do seu eventual interesse para uma melhor caracterização da relação estabelecida entre as partes.
Com efeito, tratando-se de factos não alegados com interesse para a decisão da causa, sempre poderia o juiz de 1.ª instância nos termos do art. 72.º, n.º 1 do CPT, caso surgissem no decurso da produção da prova e os reputasse de relevantes, ampliar a base instrutória com tal matéria ou, não havendo base instrutória, tomá-los em consideração na decisão da matéria de facto, desde que sobre eles tivesse incidido discussão.
Mas só poderia lançar mão deste poder-dever, que constitui uma especialidade do processo laboral, até ao momento em que se finalizam os debates, ou seja, ao momento do encerramento da discussão em 1.ª instância – cfr. o artigo 72.º, n.ºs 1 e 4 do Código de Processo do Trabalho.
Não o tendo feito o tribunal da 1.ª instância, mostra-se vedado ao Tribunal da Relação, em recurso da sentença final ampliar por si a decisão de facto ou, mesmo, determinar a anulação do julgamento a fim de ser ampliada a matéria de facto a tais factos não articulados, mesmo que a prova tenha sido gravada, em face do disposto no n.º 4 do referido artigo 72.º, que restringe à matéria articulada a possibilidade de se ampliar a matéria de facto uma vez findos os debates[6].
Assim, porque ultrapassado o momento processual em que é possível a ampliação da matéria de facto por referência a factos não articulados, não pode este Tribunal da Relação proceder à pretendida ampliação da matéria de facto.
Improcede, também aqui, a impugnação.
3.3.4.5. “A Autora não tinha liberdade para se ausentar ou faltar sem qualquer justificação.”
Igualmente a pretensão de aditamento deste facto se considera improcedente, pois que se reporta a alegação que a A. não fez constar da sua petição inicial e que este tribunal de recurso não pode averiguar oficiosamente, independentemente do seu eventual interesse para uma melhor caracterização da relação estabelecida entre as partes.
Deve aliás dizer-se que o eventual atendimento deste facto entraria em contradição com a alínea Z) dos factos provados, sobre a qual já incidiu a nossa atenção e que se mantém como provada.
3.3.4.6. “A Ré contabilizava os salários da Autora como custos, e a Autora assinava os respectivos recibos de vencimento como empregada de mesa, no valor base mensal de 532,00€ mensais”.
Trata-se também de factualidade não alegada que, por isso, não pode agora ser acrescentada à decisão de facto.
Assim, e sem necessidade de mais considerações, não se atende a pretensão do seu aditamento.
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Procede, parcialmente, a deduzida impugnação da decisão de facto do tribunal da 1.ª instância.
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3.4. Os factos a atender para a decisão jurídica do pleito, após a intervenção deste Tribunal da Relação, são, assim, os seguintes:
A) A autora e D… casaram um com o outro em 04/08/2007;
B) E… nasceu em 17/12/2011 e está registado como sendo filho da autora e de D…;
C) A ré é uma sociedade comercial que tem como objeto o exercício da indústria hoteleira e similares, a comercialização de jornais, revistas, tabaco e jogos da Santa Casa da Misericórdia;
D) Tem o capital social de 5.000,00€, no qual a autora tem uma quota no valor nominal de 125,00€ e o seu marido D… tem duas quotas nos valores nominais de 2.500,00€ e 2.375,00€;
E) A ré foi constituída em 1979, com o capital social de 5.000€;
F) Teve como sócios originários F… e G…, casados entre si no regime da comunhão de bens, sendo cada um titular de uma quota de 2.500€ no capital social.
G) No ano de 2006, a autora e o mencionado D… mantinham uma relação de namoro;
H) Perspetivavam, àquele tempo, construir um projeto de vida em comum que passava pelo casamento e constituição de uma família;
I) Tal propósito de ambos passava necessariamente pela obtenção de meios de sustento que permitissem garantir uma fonte de rendimento para suportar os encargos inerentes à vida familiar;
J) A autora, àquela data, era estudante do ensino superior no H…, nunca tendo chegado a concluir aquela formação ou exercido qualquer atividade profissional;
K) D… estava ligado ao ramo da indústria hoteleira e similares, tendo exercido a profissão de empregado de mesa e gerente hoteleiro, durante mais de 14 anos;
L) Face às perspetivas e experiências profissionais de cada um, decidiram, de comum acordo, aproveitar a experiência de D… no ramo da hotelaria e apostar num negócio de índole familiar que permitisse formar as bases de sustentabilidade do projeto de vida em comum;
M) Tendo surgido a oportunidade de comprar as quotas da ré, a qual era proprietária de um estabelecimento de restauração, a autora e D… decidiram avançar para a sua compra, sendo que os proveitos produzidos por tal estabelecimento serviriam para suportar os encargos da família que perspetivavam constituir;
N) Tendo em conta que ambos, à data, eram solteiros, que a aquisição das quotas seria feita exclusivamente com o dinheiro do D…, que este era a pessoa com experiência no ramo, mas que apesar disso se tratava de um projeto comum em que ambos participariam, designadamente com a sua dedicação, empenho e trabalho, acordaram que à autora seria atribuída uma quota correspondente a 5% do capital social da ré e a D… os restantes 95%, bem como a titularidade como gerente;
O) Em execução do combinado, a autora e D…, juntamente com os sócios originários da ré, outorgaram, em 27/06/2006, um contrato divisão e cessão de quotas, pelo qual concretizaram o concertado;
P) A partir dessa data, a autora e D…, passaram em conjunto e comunhão de esforços a preparar e posteriormente a trabalhar no estabelecimento de restauração;
Q) O identificado marido da autora é o único gerente da sociedade;
R) A autora e o seu marido, gerente da ré dividiram entre si as várias tarefas necessárias para a actividade desenvolvida pela ré;
S) Era a autora quem organizava e dirigia todos os trabalhos de confeção de alimentos;
T) Era a autora quem, tendo em atenção os víveres existentes, colaborava para a elaboração das ementas, indicando, também, os que tinham de ser adquiridos;
U) Era a autora quem dava instruções ao restante pessoal da cozinha (quando havia) sobre a preparação dos pratos, sua apresentação, tipos de guarnições, acompanhando o andamento dos cozinhados;
U-1) Era a autora que tratava da higiene da cozinha, dos respectivos equipamentos e dos utensílios.
U-2) Era a autora a responsável pela conservação dos alimentos e pelo aprovisionamento da cozinha.
V) A autora e D… prestaram a sua actividade na ré sem que se houvesse estabelecido uma retribuição para o efeito, retirando os proventos produzidos pela sociedade na medida da sua existência e disponibilidade para acorrer às despesas de ambos;
W) De modo a assegurar assistência no âmbito da segurança social em caso de qualquer infortúnio, como doença, desemprego, incapacidade para o trabalho ou reforma, ambos declaram auferir uma retribuição, sobre a qual incidiam os descontos a fazer para a Segurança Social;
X) A ré nunca pagou à autora qualquer quantia a título de retribuição, em dia e montante certos;
Y) Ambos iam retirando os proveitos gerados pela ré de acordo com a disponibilidade desta, nunca tais valores tendo sido fixos, constantes, pré-determinados, garantidos ou retirados com periodicidade certa;
Z) A autora podia ausentar-se ou não comparecer ao serviço sem que estivesse obrigada a justificar tais faltas ou o tenha feito;
AA) Em 31/07/2007, a autora e D… procederam à compra conjunta, em partes iguais, de uma habitação na …, em Valongo, tendo contraído, em simultâneo com a compra, dois empréstimos bancários junto do I…, no valor de 125.000,00€;
BB) Embora sejam casados, a autora e seu marido encontram-se separados de facto desde Maio de 2013;
CC) A autora enviou à ré em 14/05/2013 uma carta registada com A/R, na qual declarou que “atenta a falta culposa de pagamento da minha retribuição, desde janeiro de 2013, venho (…) comunicar a minha iniciativa de resolução do contrato de trabalho, com efeitos imediatos e justa causa. Esta iniciativa teve também em consideração o facto de me não serem dadas quaisquer previsões de regularização da situação” (documento junto a fls. 10v., que aqui se dá por integralmente reproduzido);
DD) A carta foi devolvida por não ter sido pela ré reclamada na Estação dos CTT, tendo sido pela autora reexpedida em 30/05/2013, sendo desta vez recebida pela ré;
EE) A ré emitiu e entregou à autora a “Declaração de Situação de Desemprego” junta a fls. 14v. e 15v. (que aqui se dá por integralmente reproduzida), datada de 14/05/2013, da qual consta como motivo de cessação do contrato de trabalho “resolução com justa causa por retribuições em mora (salários em atraso”;
FF) A autora sempre teve conhecimento e consciência de que a atividade que desempenhou na ré nunca teve como pressuposto ou condição o recebimento efetivo de qualquer retribuição;
GG) Mas que essa atividade, em conjunto com a que era prestada pelo seu marido, tenderia a produzir rendimentos, os quais, como tal, integrariam o património comum do casal permitindo dessa forma assegurar o sustento familiar;
HH) A atividade desenvolvida pela autora e pelo seu marido, no âmbito da ré, sempre o foi na qualidade de sócios da sociedade, interessados nos resultados da mesma.
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4. Fundamentação de direito
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4.1. A questão fundamental a analisar nos presentes autos consiste em saber se se estabeleceu entre as partes uma relação contratual de natureza laboral.
Segundo a alegação da A., a relação entre a A. e a R. estabeleceu-se em Setembro de 2007 e cessou em Maio de 2013, período de tempo em que estiveram em vigor dois regimes laborais sucessivos.
A noção de contrato de trabalho manteve-se incólume na lei civil ao longo deste tempo – artigo 1152º do Código Civil – e não sofreu igualmente alterações, no que diz respeito à sua essência, nas definições constantes, sucessivamente, do artigo 10.º do Código do Trabalho aprovado pela Lei n.º 99/2003 de 27 de Agosto, que entrou em vigor em 1 de Dezembro de 2003 (artigo 3.º, n.º 1 desta lei) e do artigo 11.º do Código do Trabalho aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, que entrou em vigor em 17 de Fevereiro de 2009.
Os elementos constitutivos da noção de contrato de trabalho, em qualquer destes textos normativos, são: a prestação de actividade, a retribuição e a subordinação jurídica.
Como decorre do disposto no artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil, recai sobre o trabalhador que pretende ver reconhecida a existência de um contrato de trabalho, o ónus de alegar e provar os factos necessários ao preenchimento dos elementos constitutivos de tal figura contratual[7].
Perante as dificuldades muitas vezes inerentes ao cabal cumprimento deste ónus, a jurisprudência que se firmou no âmbito do Decreto-Lei n.° 49.408 de 24 de Novembro de 1969 (LCT) passou a recorrer ao denominado “método indiciário”, lançando mão de vários índices – cuja verificação tinha igualmente de ser demonstrada por quem estava onerado com o ónus da prova do contrato – sobre os quais formulava um juízo global sobre a qualificação contratual, extraindo a conclusão pela autonomia na prestação do trabalho ou pela subordinação jurídica, a partir de factos índice essencialmente emergentes da fase de execução do contrato, como o local de trabalho, o horário de trabalho, a modalidade da remuneração, a titularidade dos instrumentos de trabalho, a eventual situação de exclusividade do prestador de serviços, o nomen juris escolhido, o enquadramento fiscal e de Segurança Social, etc.
A partir de 2003, e com o mesmo objectivo de obviar às dificuldades de prova dos elementos que preenchem a noção de contrato de trabalho, bem como de facilitar a operação qualificativa nas denominadas “zonas cinzentas” entre o trabalho autónomo e o trabalho subordinado, nesta matéria, o artigo 12º do Código do Trabalho de 2003, na sua redacção inicial, estabeleceu uma “presunção” de que as partes celebraram um contrato de trabalho assente no preenchimento cumulativo dos requisitos nela enunciados.
Este preceito foi alterado pela Lei n.º 9/2006 – que lhe conferiu uma nova redacção, entrada em vigor em 25 de Março de 2006 –, passando a dispor que “[p]resume-se que existe um contrato de trabalho sempre que o prestador esteja na dependência e inserido na estrutura organizativa do beneficiário da actividade e realize a sua prestação sob as ordens, direcção e fiscalização deste, mediante retribuição”. Se a primeira redacção do preceito veio a revelar-se de uma extrema exigência e trouxe pouca utilidade à presunção de laboralidade ali estabelecida, também esta redacção se não furtou a críticas da doutrina, já que, afinal, os factos base da presunção coincidiam integralmente com os factos cuja conclusão se pretendia alcançar com a prova dos primeiros e ainda acrescentava mais alguns (a dependência do beneficiário da actividade e a inserção na estrutura organizativa deste)[8].
Actualmente, o Código do Trabalho de 2009 regressou a uma norma presuntiva com uma estrutura semelhante à redacção originária de 2003, mas aligeirando o esforço do trabalhador que não terá que provar cumulativamente os vários factos-base, mas apenas alguns, para que se possa aferir a existência dos elementos caracterizadores do contrato de trabalho.
Caso não funcione a presunção de laboralidade prevista na lei, por não preenchimento de algum dos requisitos cumulativos enunciados em 2003 ou pelo preenchimento de um só dos requisitos enunciados em 2009, ou porque o contrato foi firmado na vigência da redacção introduzida pela Lei n.º 9/2006 – que verdadeiramente não estabelece uma presunção, como acontece in casu – pode o trabalhador provar que estão preenchidos os elementos constitutivos do contrato de trabalho tal como o mesmo se mostra definido no preceito que o define (actualmente o artigo 11.º do Código do Trabalho), caso demonstre factos que os integrem ou que constituam índice relevante da sua verificação[9].
No caso sub judice as relações contratuais estabelecidas entre as partes foram firmadas em plena vigência do Código do Trabalho de 2003, na sua versão de 2006, pelo que a tarefa de qualificação contratual terá que ser feita por reporte aos elementos constitutivos do contrato de trabalho.
Vejamos, pois.
4.2. Das definições legais de contrato de trabalho e de contrato de prestação de serviço (artigo 1154.º do Código Civil) resulta que os elementos que essencialmente os distinguem são: o objecto do contrato (prestação de actividade ou obtenção de um resultado) e o relacionamento entre as partes (subordinação ou autonomia).
O contrato de trabalho tem como objecto a prestação de uma actividade e como elemento típico e distintivo a subordinação jurídica do trabalhador, traduzida no poder do empregador conformar através de ordens, directivas e instruções, a prestação a que o trabalhador se obrigou. Diferentemente, no contrato de prestação de serviço, o prestador obriga-se à obtenção de um resultado, que efectiva por si, com autonomia, sem subordinação à direcção da outra parte.
Através do critério do objecto do contrato, nem sempre constitui tarefa fácil a de distinguir o contrato de trabalho do contrato de prestação de serviço previsto no art. 1154º do Código Civil, na medida em que muitas vezes não se pode verdadeiramente saber se se promete o trabalho ou o seu resultado, pois que todo o trabalho conduz a um resultado e este não existe sem aquele[10].
Em última análise, o relacionamento entre as partes - a subordinação ou autonomia - é que permite caracterizar a “locatio operarum”, ou contrato de trabalho, e a “locatio operis”, ou contrato de prestação de serviço[11]. Esta característica fundamental do vínculo laboral implica uma posição de supremacia do credor da prestação de trabalho e a correlativa posição de subordinação do trabalhador cuja conduta pessoal na execução do contrato está necessariamente dependente das ordens, regras ou orientações ditadas pelo empregador dentro dos limites do contrato e das normas que o regem.
Existem muitas vezes dificuldades no juízo qualificativo, vg. em situações que contêm elementos enquadráveis em diferentes figuras contratuais por se situarem em zonas de fronteira entre o contrato de trabalho e outras espécies de contratos para cuja execução é necessária a prestação da actividade intelectual ou manual de alguém.
Contudo, tendo em consideração que o contrato de trabalho é um negócio meramente consensual (artigo 102.º do Código do Trabalho de 2003), o que igualmente sucede com o contrato de prestação de serviço (art. 219º do CC), é possível alcançar a determinação da sua existência e dos seus contornos pelo comportamento das partes, pela análise da situação de facto[12], sendo comummente invocado nesta matéria o denominado “princípio da primazia da realidade”, segundo o qual “os contratos são o que são e não o que as partes dizem que são”[13].
Nesta análise, e perante a dificuldade da prova de elementos fácticos nítidos de onde resultem os elementos caracterizadores do contrato de trabalho, a jurisprudência tem lançado mão do método indiciário a que já nos referimos, procedendo à identificação da relação laboral (vg. para a distinguir de outras formas de negociar) através de indícios que reproduzem elementos do modelo típico do trabalho subordinado, por modo a poder-se concluir pela coexistência no caso concreto dos elementos definidores do contrato de trabalho.
Como indícios negociais internos a captar apontam-se, geralmente, a vinculação a horário de trabalho, a prestação da actividade em local definido pelo empregador, a utilização de bens ou utensílios fornecidos pelo mesmo, a retribuição em função do tempo, a obediência a ordens, a sujeição à disciplina da empresa, o pagamento das férias, subsídios de férias e de Natal e a inserção na organização produtiva.
Como indícios externos do contrato, aponta-se a exclusividade do empregador, a inscrição, ou não, na Repartição de Finanças como trabalhador dependente, o tipo de recibos emitidos, o tipo de declaração de IRS, o registo na Segurança Social, com os respectivos descontos, no fundo a observância dos regimes fiscal e de segurança social, próprios dos trabalhadores por conta de outrem[14].
Estes indícios a ponderar têm um valor relativo se individualmente considerados[15] e têm sempre que reconduzir-se ao único critério incontroversamente diferenciador e verdadeiramente típico do contrato de trabalho, ou seja, a subordinação jurídica pressuposta na norma laboral definidora desta figura contratual.
4.3. A sentença recorrida, a este propósito, e depois de tecer considerações sobre o regime legal aplicável e a fundamental distinção entre contrato de trabalho e contrato de prestação de serviço, debruçando-se já sobre a factualidade apurada no caso concreto, exarou o seguinte:
«[...]
Atenta a regra constante do art.º 342.º, n.º 1 do Código Civil, cabia à autora a prova dos factos conducentes à qualificação do contrato que invocou como de trabalho.
Ora, do que já acima ficou dito em sede de resposta à matéria de facto facilmente se conclui não ter a autora logrado fazer a prova dos factos necessários para a conclusão pela existência de um contrato de trabalho, antes tendo a ré demonstrado não ser essa a realidade da relação material controvertida aqui em apreço.
Desde logo ficou provado que nunca à autora foi paga pela ré qualquer retribuição de forma regular e periódica, apesar do que formalmente foi declarado à Segurança Social. Para além disso, ficou demonstrado que a autora não foi admitida pela ré para exercer a atividade de ajudante (e posteriormente chefe) de cozinha, antes tendo a autora começado a desempenhar tarefas na cozinha do restaurante da ré na sequência da decisão tomada em conjunto por si e pelo seu marido (gerente da ré) de explorarem tal restaurante e dele retirarem os rendimentos necessários para custear as despesas familiares. Por outro lado, apesar de não ser gerente da sociedade, a autora é detentora de uma quota de 5% (sendo os restantes 95% detidos pelo seu marido), tendo exercido as suas funções com vista à obtenção de lucros por essa sociedade, dos quais retiraria o sustento familiar, facto do qual tinha perfeita consciência. Ora, neste enquadramento dificilmente se pode concluir pela existência de qualquer autoridade ou direção por parte da ré sociedade sobre a autora. Não estamos perante uma relação caracterizada pela sujeição da autora no desempenho da sua atividade às ordens e instruções de um terceiro, antes sendo ela própria sócia de tal entidade.
Poderá eventualmente no âmbito do divórcio haver motivos para que a autora lance mão do disposto no art.º 1676.º, n.º 2 do Código Civil, caso entenda ter contribuído para os encargos da vida familiar de forma consideravelmente superior ao marido. Contudo, tal eventual direito da autora não tem origem numa relação laboral, mas sim no regime próprio do casamento.
Em conclusão, não se provou que entre a autora e a ré tenha sido celebrado um contrato de trabalho. Não o tendo sido, não podem proceder os pedidos deduzidos pela autora nesta ação, todos eles emergentes de uma relação laboral e da sua violação por parte da ré.
[...]»
A recorrente, por seu turno, queda-se em sede de recurso da decisão de direito, em alegar que da matéria de facto provada resulta que o local onde a recorrente trabalhava pertence à sociedade recorrida; os equipamentos e instrumentos de trabalho pertencem também à sociedade recorrida; os horários de abertura e fecho realizados pela recorrente eram ordenados pelo gerente da sociedade recorrida; e a recorrente tinha um vencimento fixado em 532,00 € mensais, ainda que efectivamente não o recebesse.
E daqui conclui que reunia quatro das cinco características indicadas pelo Código do Trabalho, que fundamentam a presunção de existência de um contrato de trabalho, tendo a sentença recorrida, ao não considerar a existência deste, violado o artigo 12.º, n.º 1 do Código do Trabalho.
4.4. Como resulta do já dito, quando se estabeleceram as relações contratuais entre as partes não estava ainda em vigor o Código do Trabalho de 2009 – cuja vigência se iniciou apenas em 17 de Fevereiro de 2009 – mas o Código do Trabalho de 2003, na versão de 2006, pelo que a norma presuntiva a atender é a que resulta do artigo 12.º do Código do Trabalho de 2003 nessa sua segunda versão que, ao estabelecer que “[p]resume-se que existe um contrato de trabalho sempre que o prestador esteja na dependência e inserido na estrutura organizativa do beneficiário da actividade e realize a sua prestação sob as ordens, direcção e fiscalização deste, mediante retribuição”, nos reconduz à noção de contrato de trabalho estabelecida na lei.
Ora, analisando a factualidade apurada no âmbito do presente processo, mesmo já depois da intervenção deste Tribunal da Relação, podemos adiantar que o juízo de globalidade a que se procede não permite a afirmação de que a recorrente prestava trabalho de modo juridicamente subordinado quando desenvolvia a sua actividade no estabelecimento comercial explorado pela recorrida.
Sem necessidade de grandes considerações, pois que a decisão de facto já foi suficientemente escalpelizada neste texto, resulta patente do circunstancialismo dos autos a escassez de indícios de subordinação jurídica, tudo apontando para que a prestação de actividade da A. no estabelecimento comercial da R., de que a A. é também sócia com o seu marido, se desenrolou em execução de um plano de vida delineado pela A. e pelo marido, que tinha nos proventos daquele estabelecimento de restauração a fonte de rendimento para custear as despesas da família de ambos.
Os factos provados denotam que a prestação de actividade da recorrente se inscreveu no âmbito do dever de cooperação, a que os cônjuges se acham reciprocamente vinculados nos termos dos artigos 1672.º e 1674.º do Código Civil, dever que, na sua vertente do “socorro e auxílio mútuos”, estabelece uma obrigação que não se esgota na resolução comum dos problemas quotidianos da sociedade familiar, mormente nos cuidados exigidos pela vida e saúde de um dos cônjuges, antes abarca também a colaboração necessária ao exercício das respectivas profissões[16].
Assim, apesar de a prestadora se encontrar inserida na estrutura organizativa do sociedade beneficiária da actividade, não pode dizer-se que realizasse a sua prestação “sob as ordens, direcção e fiscalização dest[a], mediante retribuição”.
Aliás, é de notar que, para além de nada ter sido alegado quanto ao exercício de poderes de autoridade sobre a recorrente, que esta nunca recebeu qualquer retribuição da recorrida [facto X)] e que, quer a recorrente, quer o seu marido, ambos os únicos sócios da recorrida, iam trabalhando no estabelecimento de restauração por ela explorado e retirando os proveitos gerados pela ré de acordo com a disponibilidade desta e para prover às despesas de ambos, nunca tais valores tendo sido fixos, constantes, pré-determinados, garantidos ou retirados com periodicidade certa [factos P), V) e Y)].
Este modo de proceder mútuo enquadra-se, claramente, no dever de cooperação entre ambos os cônjuges, afastando a possibilidade de se qualificar a relação estabelecida como um contrato de trabalho ou, sequer como um contrato de prestação de serviço.
E de modo algum permite se considere preenchida a hipótese da presunção de laboralidade que vimos analisando e que, afinal, se reconduz à própria noção de contrato de trabalho.
Mas, também à luz da hipótese presuntiva estabelecida no Código do Trabalho de 2009 a que a recorrente se reporta, a matéria de facto provada, mesmo depois da alteração introduzida por este Tribunal da Relação – que se concretizou essencialmente em considerar “não provado” que a A. e o gerente da R. gozassem em simultâneo descansos e férias e em considerar “provadas” mais tarefas realizadas pela A. no restaurante, conexas com as que a 1.ª instância dera já como provadas –, não pode considerar-se preenchida a referida presunção.
Na verdade, analisando a matéria de facto provada, dela apenas se descortina que a actividade realizada pela recorrente o foi em local pertencente à recorrida [factos M) e P)] – alínea a) do artigo 12.º do Código do Trabalho de 2009.
No que diz respeito às demais características, entendemos que as mesmas se não verificam, pois:
- quanto à alínea b) – que os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertençam ao beneficiário da actividade” – nada resulta dos factos provados susceptível de o demonstrar;
- quanto à alínea c) – que “o prestador de actividade observe horas de início e de termo da prestação, determinadas pelo beneficiário da mesma” – também nada resulta dos factos provados susceptível de o demonstrar;
- quanto à alínea d) – que seja “paga, com determinada periodicidade, uma quantia certa ao prestador de actividade, como contrapartida da mesma” – resulta do facto X) que não era paga pela R. à A. qualquer quantia a título de retribuição;
- quanto à alínea e) – que “o prestador de actividade desempenhe funções de direcção ou chefia na estrutura orgânica da empresa” –, não se infere dos factos provados que a A. exercesse funções deste tipo, não sendo suficiente para o efeito, a nosso ver, ter-se provado que a A. desse instruções ao restante pessoal da cozinha sobre a preparação dos pratos, sua apresentação e tipos de guarnições [facto U)].
Resulta da lei que a base da presunção legal de laboralidade estabelecida no Código do Trabalho de 2009 é constituída pela verificação de, pelo menos, duas das características indicadas. Só assim a lei presume que haverá um contrato de trabalho e faz recair sobre a contraparte a prova do contrário[17].
No caso, verificando-se uma só das características, não pode considerar-se operante a presunção de contrato de trabalho, ainda que fosse de considerar que poderia chamar-se à colação a hipótese presuntiva prevista no Código do Trabalho de 2009.
Em suma, a factualidade provada não se compagina minimamente com a existência de um contrato de trabalho, devendo afirmar-se que o sinalagma típico do vínculo laboral de modo algum se verifica na relação que se desenvolveu entre a recorrente e a sociedade de que é sócia, a par do seu marido.
Porque este vínculo constituía pressuposto necessário da procedência dos pedidos formulados pela recorrente, devem julgar-se improcedentes as conclusões da apelação relacionadas com a qualificação contratual e quedam prejudicadas as questões de saber se deve ser reconhecida à recorrente a categoria de "chefe de cozinha" com o inerente direito a diferenças salariais e de aferir da justa causa de resolução contratual, as quais tinham como pressuposto a vigência de um contrato de trabalho entre a recorrente e a recorrida.
Mantém-se o juízo decisório final contido na sentença sob censura.
*
4.4. Ficando vencida no recurso que interpôs, incumbe à recorrente o pagamento das custas respectivas (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil), não se autonomizando as vertentes do recurso em que foi acolhida a sua pretensão, uma vez que a alteração verificada não teve qualquer influência no resultado final do mérito da acção. Atender-se-á a que a mesma beneficia de apoio judiciário.
*
5. Decisão
Em face do exposto,
5.1. rejeita-se o recurso em matéria de facto quanto às conclusões H. a K.;
5.2. julga-se improcedente a questão prévia da rejeição do recurso em matéria de facto quanto às conclusões B. a G.
5.3. julga-se parcialmente procedente a impugnação da matéria de facto deduzida e, em consequência:
5.3.1. alteram-se as alíneas R) e V) da matéria de facto, que passarão a ter o seguinte teor:
«R) A autora e o seu marido, gerente da ré dividiram entre si as várias tarefas necessárias para a actividade desenvolvida pela ré;»
«V) A autora e D… prestaram a sua actividade na ré sem que houvessem estabelecido o pagamento de uma retribuição, retirando os proventos produzidos pela sociedade na medida da sua existência e disponibilidade para acorrer às despesas de ambos;»
5.3.2. aditam-se à matéria de facto os seguintes:
«U-1) Era a autora que tratava da higiene da cozinha, dos respectivos equipamentos e dos utensílios.»
«U-2) Era a autora a responsável pela conservação dos alimentos e pelo aprovisionamento da cozinha.»
5.4. decide-se, quanto ao mais, negar provimento à apelação e confirmar a sentença recorrida.
Custas pela recorrente, atendendo-se a que beneficia de apoio judiciário.
Nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil, anexa-se o sumário do presente acórdão.

Porto, 9 de Fevereiro de 2015
Maria José Costa Pinto
João Nunes
António José Ramos
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[1] Vide o Acórdão da Relação de Coimbra de 17 de Dezembro de 2014, processo n.º 213/08.0TBLRA.C1, in www.dgsi.pt.
[2] Carlos Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, vol. I, Coimbra: Coimbra Editora, 2004, pág. 608.
[3] Segundo tal aresto, proferido na Revista n.º 4722/06 - 4.ª Secção, o impresso da Segurança Social preenchido com vista à obtenção de subsídio de desemprego, em que o empregador fez constar que a cessação do contrato foi motivada por “inadaptação por incapacidade para o desempenho das funções para que foi contratada, após doença prolongada”, não tem força probatória plena nos termos do art. 376.º, n.º 2 do CC para dar como assente que o empregador fez cessar o contrato por inadaptação da trabalhadora nos termos do DL n.º 400/91, de 16-10.
[4] Vide o Acórdão da Relação de Lisboa de 2011.09.20, Processo n.º 7711/08.0TMSNT.L1-1, in www.dgsi.pt, citando Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1979, p. 388 e, entre outros, o Acórdão da Relação do Porto de 8 de Setembro de 2014, Processo n.º 2/12.4TTMAI.P1, relatado pela ora relatora
[5] Vide o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2008.09.23, Processo: 08B2022,.in www.dgsi.pt. e o Acórdão do mesmo tribunal de 2010.03.02, Processo:690/09.9.YFLSB, no mesmo sítio, segundo o qual os fundamentos de facto nunca, formam, por si só, caso julgado, de molde a poderem impor-se extraprocessualmente.
[6] Vide neste sentido o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 2005.03.10, Recurso n.º 3788/04 - 4.ª Secção, sumariado in www.stj.pt. Também o Ac. do mesmo tribunal de 2005.07.13, Recurso n.º 677/05 - 4.ª Secção, sumariado no mesmo sítio, decidiu que o poder de ampliar a matéria de facto atendendo oficiosamente a factos não articulados, é um poder inquisitório que incumbe ao juiz da causa e que ele apenas pode exercitar no decurso da audiência de julgamento, por sugestão da parte interessada ou por iniciativa própria, em função dos elementos que resultem da instrução e discussão da causa e da sua pertinência para a decisão jurídica e com vista ao apuramento da verdade material e da justa composição do litígio - arts. 264.º, n.º 2 do CPC, 66.º do CPT/81 e 72.º do Código de Processo do Trabalho actualmente em vigor.
[7] Entre muitos outros, afirmou que incumbe ao trabalhador, nos termos do artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil, a alegação e prova dos factos reveladores da existência de uma relação de natureza jurídico-laboral, porque são constitutivos do direito que pretende ver reconhecido, os Acs. do Supremo Tribunal de Justiça de 2012.05.30, Recurso n.º 270/10.6TTOAZ.P1.S1- 4.ª Secção e de 2010.03.03, Recurso n.º 4390/06.3TTLSB.S1 - 4.ª Secção, ambos sumariados in www.stj.pt.
[8] Vide João Leal Amado, O contrato de trabalho entre a presunção legal de laboralidade e o presumível desacerto legislativo, in Temas Laborais 2, Coimbra, 2007, pp. 9 e ss..
[9] Vide nesse sentido os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 2007.05.02, Processo 06S4668, de 2010.05.12, Processo 1394/06.0TTPNF.P1.S1, e de 2010.12.16, Processo n.º 996/07.1TTMTS.P1.S1, todos disponíveis in www.dgsi.pt, à luz do Código do Trabalho de 2003.
[10] Galvão Teles, Contratos Civis (in B.M.J. 63/165), Mário Pinto, Furtado Martins, e N Carvalho, in Comentário às Leis do Trabalho, I, p 28.
[11] Galvão Teles, in ob. cit., p 166, Albino Mendes Baptista, in Jurisprudência do Trabalho Anotada, 3ª edição, pp. 21 e ss e os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 2000.04.06 (in B.M.J. 496/139), de 2002.01.09 (proferido na Rev. n.º 881/01 da 4ª Secção), de 2002.04.30 (proferido na Rev. n.º 4278/01 da 4ª Secção), de 2002.05.29 (proferido na Rev. n.º 2419/01 da 4ª Secção), de 2003.01.29 (proferido na Rev. n.º 3497/02 da 4ª Secção), de 2003.05.21 (proferido na Rev. n.º 191/03 da 4ª Secção), todos sumariados in www.stj.pt.
[12] Vide os Acs. do STJ de 90.9.26 (in A.D. 1990, p.1622), de 2005.02.23 (Revista n.º 2268/04), de 2007.05.02 (Rev. n.º 2567/06) e de 2008.01.16 (Rev. n.º 2713/07), todos da 4ª Secção). Repare-se que muitas vezes só mesmo pela execução efectiva do contrato é possível determinar a vontade das partes que o celebraram. Também no sentido de que prevalece a qualificação jurídica “dos factos efectivamente sucedidos” sobre a qualificação dos contratos escritos o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2003.05.28 (Rev. n.º 3302/02 da 4ª Secção).
[13] Vide João Leal Amado, in estudo citado, p. 12.
[14] Vide o Ac. do STJ de 2003.03.27 (Revista n.º 4672/02, da 4.ª Secção).
[15] Nenhum deles é decisivo, e não é pelo número de indícios que se procede à qualificação, exigindo-se sempre um juízo de valoração relativamente ao tipo enunciado no art.º 10.º do Código do Trabalho de 2003.
[16] Vide Antunes Varela in “Direito de Família”, 2ª edição, p. 336.
[18] Vide João Leal Amado, in Contrato de Trabalho, 3.ª edição, p. 79, Pedro Romano Martinez, in Código do Trabalho Anotado, sob a coordenação de Pedro Romano Martinez e outros, 8.ª edição, Coimbra, 2009, p. 137, Monteiro Fernandes, in Direito do Trabalho, 14.ª edição, p. 153 e o citado Acórdão da Relação de Coimbra de 2013.07.10.
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Nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil, na redacção do Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, lavra-se o sumário do antecedente acórdão nos seguintes termos:
I - A base da presunção legal de laboralidade estabelecida no Código do Trabalho de 2009 é constituída pela verificação de, pelo menos, duas das características indicadas.
II – Só assim a lei presume que haverá um contrato de trabalho e faz recair sobre a contraparte a prova do contrário.
III – Enquadra-se no dever de cooperação entre ambos os cônjuges, afastando a possibilidade de se qualificar a relação estabelecida como um contrato de trabalho ou, sequer como um contrato de prestação de serviço, a relação estabelecida entre a autora e a ré, sociedade de que a autora e o seu marido são os únicos sócios, provando-se que, quer a autora, quer o seu marido, adquiriram as respectivas quotas em execução de um plano de vida em comum por ambos delineado com vista a retirar dos proventos do restaurante explorado pela ré a fonte de rendimento para suportar os encargos da vida familiar e iam trabalhando no estabelecimento de restauração e retirando os proventos gerados pela ré de acordo com a disponibilidade desta e para prover às despesas de ambos.

Maria José Costa Pinto