Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
810/15.4PFPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: NETO DE MOURA
Descritores: CONCURSO APARENTE DE CRIMES
CRIME DE CONDUÇÃO DO VEÍCULO EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ
CRIME DE DESOBEDIÊNCIA
PRINCIPIO NE BIS IN IDEM
Nº do Documento: RP20160603810/15.4PFPRT.P1
Data do Acordão: 06/03/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 1008, FLS.102-109)
Área Temática: .
Sumário: I - A conduta do arguido que depois de fiscalizado e detido pelos agentes policiais por conduzir um veículo automóvel na via publica sob influência do álcool com uma TAS superior a 1,20g/l e de ter sido advertido de que não podia conduzir nas 12 horas imediatamente seguintes e vem a fazê-lo ainda com uma TAS superior a 1,20 g/l comete apenas um crime de condução de veículo em estado de embriaguez e um crime de desobediência.
II - Tal conduta (não observância do dever de omitir a condução) é dominada por um único sentido de desvalor jurídico social, e ao conduzir novamente ainda com álcool é movido pelo propósito de não acatar a proibição temporária de conduzir.
III – Ocorre por isso um concurso aparente de crimes, pois que autonomizar o conteúdo de ilícito desta (segunda) condução com álcool significaria uma dupla valoração do mesmo substrato de facto, em violação do artº 29º5 CRP: punir o arguido duas vezes mesmo facto.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 810/15.4 PFPRT.P1
Recurso penal
Relator: Neto de Moura

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto

IRelatório
No âmbito do processo especial sumário que, sob o n.º 810/15.4 PFPRT, corre termos pela Secção de Pequena Criminalidade da Instância Local do Porto, Comarca do Porto, B…, devidamente identificado nos autos, foi submetido a julgamento, acusado pelo Ministério Público da prática, em autoria material e em concurso real, de dois crimes de condução de veículo automóvel em estado de embriaguez e de um crime de desobediência qualificada.
Realizada a audiência, com documentação da prova nela oralmente produzida, foi proferida sentença (fls. 46 e segs.), datada de 12.11.2015 e depositada na mesma data, com o seguinte dispositivo:
“Por tudo o exposto, julgo a acusação parcialmente procedente e decido:
a) Absolver o arguido B… da prática em 05/11/2013, pelas 03h00m, em autoria material, de 1 (um) crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelos artigos 292º, nº 1 e 69º, nº 1, alínea a) do Código Penal.
b) Condenar o arguido B… pela prática em 05/11/2013, pelas 01h20m, em autoria material, de 1 (um) crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelo artigo 292º, nº 1 do Código Penal, na pena de 3 (três) meses de prisão, que nos termos do artigo 43º, nº 1 do Código Penal substituo por 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de €5,00, no montante global de €450,00 (quatrocentos e cinquenta euros).
c) Condenar o arguido B…, pela prática, em autoria material, de um crime de desobediência qualificada p. e p. pelos artigos 348º, nº 2 do Código Penal e 154º, nº 2, do Código da Estrada, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de €5,00, no montante global de €600,00 (seiscentos euros).
d) Condenar, também, o arguido B… na pena acessória de proibição de condução de veículos com motor, pelo período de 7 (sete) meses, nos termos do artigo 69º, nº 1, alínea a) do Código Penal, devendo o mesmo proceder à entrega da carta de condução neste tribunal ou em qualquer posto policial, no prazo de dez dias após o trânsito em julgado da presente sentença, (artºs 69º, nrs.2 e 3 do CP e 500º nr.2 do CPP), sob pena de não o fazendo incorrer na prática de um crime de desobediência (cfr. Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 2/2013, de 09/01)”.
Inconformada, veio a digna magistrada do Ministério Público no tribunal recorrido interpor recurso da sentença condenatória para este Tribunal da Relação, com os fundamentos explanados na respectiva motivação, que condensou nas seguintes conclusões (em transcrição integral):
1. Os factos dados como provados integram os elementos objectivos e subjectivos de dois crimes de condução de veículo em estado de embriaguez e um crime de desobediência qualificada, uma vez que o arguido conduziu por duas vezes, um veículo automóvel na via pública, sendo da primeira vez submetido a análise toxicológica de quantificação de álcool no sangue, acusando a taxa de álcool no sangue de pelo menos 1,564g/l e na segunda vez acusou uma taxa de álcool no sangue de pelo menos 1,352g/l, tudo conforme decorre dos factos dados como provados sob os números 1, 2, 3, 5, 6, 7, 9 e 11. Por outro lado, o arguido foi devidamente notificado de que ficava impedido de conduzir pelo período de 12 horas sob pena de incorrer no crime de desobediência qualificada, mesmo assim conduziu o referido veículo, contra o que lhe tinha sido ordenado, conforme decorre dos factos dados como provados sob os números 4, 8, 10 e 11.
2. Não ocorrendo qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, teremos de concluir que o arguido cometeu os três crimes pelos quais foi acusado.
3. Analisando os factos dados como provados e os elementos de prova considerados pelo Tribunal temos duas resoluções criminosas, tanto mais que, após a intercepção e a detenção ocorrida pelos factos de 5 de novembro de 2015, pelas 01h20m, foi o arguido advertido pelo Agente da P.S.P. que não poderia conduzir no espaço temporal de 12 horas, sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência.
4. Mais, após ter sido intercetado e detido pela P.S.P. uma primeira vez conforme descrito, o arguido, manifestou indiferença para com o Direito e apesar da advertência que lhe havia sido dirigida, o que denota uma maior culpa, conduziu novamente sob a influência de uma taxa de álcool no sangue superior à legalmente permitida no nosso Código Penal.
5. O que gera a responsabilidade penal do arguido não é a ingestão de bebidas alcoólicas, mas ao facto de ter conduzido, por duas vezes, veículo com motor na via pública em diferentes circunstâncias de tempo e lugar, em estado de embriaguez, uma no dia 5 de novembro de 2015, pelas 01h20m, na Rua … e outra no mesmo dia pelas 03h00m, na Rua …, pelo que não se mostra violado o princípio plasmado no artigo 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, pelo que, nesta parte, deve igualmente também por este motivo a sentença ser alterada.
6. Conforme se refere no Acórdão da Relação do Porto, proferido em 9 de setembro de 2015, disponível em www.dgsi.pt: “Julgamos verificada a prática de dois crimes de condução de veículo em estado de embriaguez porquanto propugnamos que a génese de tal crime é - não a ingestão de bebidas alcoólicas em excesso (se assim o entendêssemos, como o artigo 154.º, n.º 1, do Código da Estrada, fixa em 12 horas o efeito desta ingestão, sendo o arguido encontrado a conduzir por diversas vezes durante tal período e sujeito a testes de alcoolemia positivos, seria autuado e submetido a julgamento mais do que uma vez com base na mesma fonte geradora de responsabilidade criminal) – mas sim a ingestão de bebidas alcoólicas em excesso agregada à condução automóvel por parte do agente. Por tal, ainda que se demonstre que a ingestão de bebidas alcoólicas em excesso é ainda a mesma e não foi reforçada no entretanto com novos consumos, atenta a génese da comissão do crime tal segunda condução, no período de 12 horas após a primeira verificada, é considerada no âmbito da problemática do concurso de crimes e de crime continuado ou do crime único, a qual se encontra regulada no artigo 30.º do Código Penal. No n.º 1 do artigo 30.º, referem-se as situações de pluralidade de crimes cometidos pelo mesmo agente. Na primeira parte, consagra-se que o número de crimes se determina pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos pela conduta do agente (concurso heterogéneo) e na segunda parte, declara-se que o número de crimes também se determina pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente (concurso homogéneo), sendo que em ambos os casos o comportamento do agente tanto se pode consubstanciar num só facto ou numa só acção, como em vários factos ou várias acções. Mas, em qualquer dos casos, estamos perante concurso de crimes uma vez que este ocorre desde que o agente cometa mais do que um crime, quer mediante o mesmo facto, quer através de vários factos. Por seu turno consagra o n.º 2 do referido artigo 30.º que “constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crimes que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa.” Ora, havendo uma única resolução, há um único delito e tendo havido mais do que uma resolução, a regra será o concurso de crimes, constituindo a continuação uma exceção a aceitar quando a culpa se mostre consideravelmente diminuída mercê de factos exógenos que facilitem a recaída ou recaídas. O crime de condução de veículo em estado de embriaguez é um crime cometido no exercício da condução e para o seu preenchimento, conforme supra exposto, basta, pelo lado objetivo, a condução na via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l. Assim, consuma-se o crime quando, já sob a influência do álcool, o agente inicia o acto da condução ou se coloca nessa situação de excesso durante tal acto da condução. Como resulta da matéria de facto provada, o arguido foi fiscalizado por duas vezes, a primeira pelas 23h41m, tendo sido restituído à liberdade, após a realização de exame de pesquisa de álcool no sangue, que revelou ser portador de uma taxa de 3,03 g/l e notificação de que ficava impedido de conduzir pelo período de doze horas, sob pena de incorrer no crime de desobediência qualificada; e a segunda pelas 00h47m, quando circulava naquele mesmo veículo, revelando, então, após a realização do competente exame, uma taxa de 2,72 g/l de álcool no sangue. A consumação da primeira resolução cessou quando o arguido foi fiscalizado, pela primeira vez, e libertado o arguido formulou um novo desígnio para voltar a conduzir, diferente do primeiro e temporalmente dele separado. Uma vez que temos duas resoluções criminosas, ambas consumadas em atos independentes, e não se vislumbrando que a prática do primeiro ato haja favorecido a decisão ulterior (seria continuada), há dois crimes praticados, independentemente de o arguido ter ou não ingerido álcool entre as suas duas resoluções». O recorrente contrapõe à fundamentação do tribunal a quo a alegação de que à sua conduta global presidiu uma só resolução criminosa, traduzida na pretensão de conduzir ébrio no dia em causa, não existindo, na sua ótica, concurso de crimes. Mais invoca o disposto no n.º 1 do artigo 154.º do Código da Estrada para afirmar que após uma primeira interceção o condutor automóvel alcoolizado apenas pode ser sancionado pela prática do crime de desobediência. Ora, antes de mais importa salientar que o recorrente não impugnou a matéria de facto provada na qual se descrevem dois momentos temporais distintos, apesar de sucessivos, que relatam igualmente duas autónomas atuações do arguido[2]. Assim, num primeiro momento o arguido conduzia na via pública um veículo automóvel quando se encontrava afetado de uma TAS de 3,03 g/l e na segunda ocasião, cerca de uma hora depois, conduzia na via pública um veículo automóvel quando se encontrava afetado de uma TAS de 2,79 g/l. Sucede que a existência de um só desígnio criminoso não está refletida na matéria de facto provada, pois que não consta dos factos provados que o arguido se tenha decidido de uma só vez a conduzir, sob o efeito do álcool, o veículo na via pública, de modo a poder concluir-se que às suas sucessivas atuações apenas essa resolução tenha presidido. Na verdade é o inverso que resulta dos factos apurados, ou seja, extrai-se dessa factualidade que o arguido decidiu e executou, na primeira situação, a condução em determinada estrada após a ingestão de bebidas alcoólicas e sob o seu efeito. Entretanto detido e alertado para a alcoolémia que apresentava, o arguido tomou nova decisão, que executou, de conduzir o veículo quando ainda estava sob os efeitos do álcool que ingerira. Portanto, a matéria de facto provada, repita-se não impugnada, infirma a presença de uma só resolução criminosa a aglutinar toda a atuação do arguido ao conduzir em estado de embriaguez. Depois, a conduta do arguido ao conduzir nesse estado de embriaguez não tem por base uma única e mesma «fonte geradora de responsabilidade criminal»[3] que possa abranger a condução durante todo o período de tempo considerado necessário pela lei para a eliminação dos efeitos do álcool no organismo humano. Sucede antes que a tipicidade do crime de condução em estado de embriaguez exige que o agente pratique a condução de veículo automóvel na via pública após a ingestão de bebidas alcoólicas e sob o efeito das mesmas, conforme se explanou na sentença recorrida. Ademais, a atuação contrária à ordem ínsita na norma do artigo 154.º, n.º 1, do Código da Estrada basta, por si só, para o preenchimento do crime de desobediência, que prescinde da verificação de efetiva embriaguez durante a condução automóvel, além do que, sendo diverso o bem jurídico protegido por cada um dos tipos de crimes, a punição daquele ilícito não abrange a condução em estado de embriaguez. Por conseguinte, reitera-se a fundamentação jurídica vertida na sentença recorrida e conclui-se que a atuação do arguido foi objeto de correta e adequada subsunção jurídica. Nesta perspetiva carece de fundamento, em absoluto, a invocada violação do preceituado no artigo 29.º, n.º 5 da CRP, não existindo qualquer atropelo do princípio ne bis in idem.”
7. Na matéria de facto provada consta que o arguido decidiu por duas vezes a conduzir, sob o efeito do álcool, um veículo na via pública. O arguido decidiu e executou, na primeira situação, a condução na Rua … do veículo de matrícula ..-..-ND após a ingestão de bebidas alcoólicas e sob o seu efeito. Entretanto foi detido e alertado para a taxa de álcool no sangue que apresentava, e ainda assim, o arguido tomou nova decisão, que executou, de conduzir o veículo de matrícula ..-..-ND na Rua … quando ainda estava sob os efeitos do álcool que ingerira. Portanto, a matéria de facto provada, repita-se não impugnada, é demonstrativa que o arguido cometeu dois crimes de condução de veículo em estado de embriaguez.
8. Sempre se dirá que qualquer que seja a decisão a proferir e atendendo a que já foram proferidas decisões em sentidos opostos quanto à mesma questão pelo Tribunal da Relação do Porto, tendo as mesmas transitado em julgado, a questão que aqui se suscita, salvo o devido respeito por opinião em contrário, poderá oportunamente ser colocada ao Supremo Tribunal de Justiça, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 437º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal.
9. Por todo o exposto, deve a sentença proferida ser alterada na parte que absolveu o arguido da prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, devendo o arguido ser condenado também por tal crime”.
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Admitido o recurso (despacho a fls. 80) e notificado o arguido (único sujeito processual por ele afectado), veio este apresentar resposta à respectiva motivação, que sintetizou assim:
1. “O M.P. fundamenta o presente recurso, alegando que o arguido, para além de ter sido condenado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez e de um crime de desobediência qualificada, deveria também ter sido condenado pela prática do segundo crime de condução em estado de embriaguez.
2. Todavia, bem esteve a douta sentença, uma vez que o segundo crime de condução de veículo em estado de embriaguez é consumido pelo crime de desobediência qualificada, pelo qual o arguido foi também condenado.
3. Neste sentido, versa o douto Acórdão do TRP de 11/11/2009 (proc. n.º 516/09.3 PTPRT. P1) entendendo que não poderia ser imputado novo crime de condução em estado de embriaguez, “até completa eliminação pelo organismo dos efeitos do álcool, convencionada pelo legislador em 12 horas, restando a imputação do crime de desobediência se o arguido for encontrado a conduzir durante tal período”, em observância do “princípio consagrado no art.º 29º n.º 5, da Constituição da República Portuguesa. É que, o acto (…) é único”.
4. Assim sendo, a douta sentença recorrida fez uma correcta aplicação da Lei, não sendo passível de qualquer censura, devendo, por conseguinte, ser integralmente confirmada”.
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Ordenada a subida dos autos ao tribunal de recurso, e já nesta instância, na vista a que alude o artigo 416.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer em que, secundando a posição do Ministério Público na 1.ª instância e assinalando que é a posição que tem prevalecido na jurisprudência, se pronuncia pela procedência do recurso.
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Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, sem resposta do arguido.
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Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo apreciar e decidir.

IIFundamentação
São as conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões do pedido, que recortam o thema decidendum (cfr. artigos 412.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal e, entre outros, o acórdão do STJ de 27.05.2010, www.dgsi.pt/jstj)[1] e, portanto, delimitam o objecto do recurso, assim se fixando os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso.
O recorrente limita a sua discordância da sentença à subsunção jurídico-penal dos factos considerados provados.
O arguido foi detido porque, nas circunstâncias de tempo e lugar que infra se descrevem, foi fiscalizado e o teste de pesquisa de álcool no sangue pelo método do ar expirado revelou uma TAS de 1,70 g/l, que corresponde, após dedução do erro máximo admissível, ao valor apurado de 1,56 g/l.
Apesar de advertido de que não poderia conduzir qualquer veículo na via pública no período de 12 horas imediatamente a seguir, logo que foi libertado, ou seja, ainda nesse espaço temporal, voltou a conduzir um veículo automóvel e, tendo sido, novamente, submetido a teste de pesquisa de álcool no sangue revelou uma TAS de 1,47 g/l, que corresponde, após dedução do erro máximo admissível, ao valor apurado de 1,352 g/l.
Como valorar jurídico-penalmente estes factos? Quantos crimes cometeu o arguido?
Que o condutor (desde que devidamente advertido com a cominação legal) comete um crime de desobediência qualificada é ponto que não suscita controvérsia.
A questão que, pertinentemente, se coloca é saber quantos crimes de condução de veículo em estado de embriaguez comete, ou melhor, se ao voltar a conduzir nas 12 horas imediatamente a seguir à detecção do estado de embriaguez (com uma TAS igual ou superior a 1,20 g/l) comete um segundo crime (naturalmente, se o valor apurado da TAS continuar a ser igual ou superior a 1,20 g/l).
É para decidir essa questão que foi suscitada a intervenção deste tribunal de recurso.
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Identificada a questão a decidir e, assim, delimitado o objecto do recurso, importa conhecer a factualidade em que assenta a condenação proferida.
Factos Provados:
1 – No dia 5 de Novembro de 2015, pelas 01h20m, na Rua …, no Porto, o arguido B… conduzia o veículo de matrícula nº ..-..-ND, após ter ingerido bebidas alcoólicas.
2 – O arguido foi fiscalizado por agentes da P.S.P., tendo sido submetido de imediato ao exame de pesquisa de álcool no sangue, pelo método do ar expirado, através do aparelho de marca Drager Alcotest, modelo 7110 MKIII P, ARMA, nº 0024, devidamente certificado e aprovado pelo I.P.Q., acusando uma taxa de álcool no sangue de 1,70g/l, a que corresponde, após dedução do erro máximo admissível, o valor apurado de 1,564g/l. 3 – O arguido não desejou contraprova.
4 – Em seguida foi o arguido notificado e advertido pelo agente da P.S.P., devidamente uniformizado, que não poderia conduzir por um período de doze horas, sob pena de o fazendo cometer o crime de desobediência.
5 – No dia 5 de Novembro de 2015, pelas 03h00, na Rua …, no Porto, o arguido conduzia o veículo de matrícula nº ..-..-ND.
6 – O arguido foi fiscalizado por agentes da P.S.P., tendo sido submetido de imediato ao exame de pesquisa de álcool no sangue, pelo método do ar expirado, através do aparelho de marca Drager Alcotest, modelo 7110 MKIII P, AREN, nº 0005, devidamente certificado e aprovado pelo I.P.Q., acusando uma taxa de álcool no sangue de 1,47g/l, a que corresponde, após dedução do erro máximo admissível, o valor apurado de 1,352g/l.
7 - O arguido não desejou contraprova.
8 - O arguido em momento anterior a iniciar a condução não solicitou que lhe fosse efectuado um teste de pesquisa de álcool no sangue.
9 – Agiu o arguido livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que não lhe era permitido conduzir veículos automóveis em via pública com a TAS que possuía em ambas as circunstâncias descritas, como fez.
10 – O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, com o intuito de conduzir o referido veículo automóvel, não obstante saber que se encontrava proibido de conduzir durante o período de doze horas, conforme notificação efectuada no âmbito do processo registado sob o nº 239/15.4PPPRT, cujo teor o arguido compreendeu perfeitamente e lhe foi transmitida por Agente da P.S.P. devidamente uniformizado.
11 – O arguido agiu, ainda, livre e lucidamente, com a perfeita consciência de que todas as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
12 – O arguido actualmente está desempregado e não aufere qualquer rendimento.
13 – O arguido vive com os pais.
14 – O arguido possui uma viatura de marca Mercedes do ano de 1998.
15 – O arguido tem o 6º ano de escolaridade.
16 - O arguido confessou os factos e demonstrou-se arrependido.
17 – Do certificado de registo criminal do arguido consta que o mesmo já foi julgado e condenado no âmbito do processo nº 171/14 da Comarca do Porto – Santo Tirso – Inst. Local – Secção Criminal – J1, por decisão de 05/06/2014, transitada em julgado em 14/07/2014, pela prática em 24/05/2014, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de €5,00 e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 4 meses e 15 dias, que se mostram extintas.
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Aparentemente simples, a solução para o caso convoca, no entanto, a temática, verdadeiramente complexa, da unidade ou pluralidade de infracções.
Em tese, o conglomerado de factos que ficaram descritos permite equacionar estas três hipóteses:
- ocorre a realização plúrima do mesmo tipo legal e o arguido comete, em concurso real, dois crimes de condução de veículo em estado de embriaguez;
- há um só crime de condução de veículo em estado de embriaguez (ainda que em concurso real com o crime de desobediência) porque existe uma só resolução criminosa;
- a situação configura um crime continuado de condução de veículo em estado de embriaguez.
É bem sabido que a figura do crime continuado vai buscar o seu fundamento à diminuição da culpa do agente em virtude da facilidade criada por determinadas circunstâncias para a prática de novos actos da mesma natureza.
É mais ou menos consensual que o crime continuado impõe a verificação, cumulativa, dos seguintes requisitos:
● realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que protejam, fundamentalmente, o mesmo bem jurídico;
● que essa realização seja executada de forma essencialmente homogénea;
● que ela se realize no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior;
● que essa solicitação diminua consideravelmente a culpa do agente.

Segundo o Professor Eduardo Correia (“Direito Criminal”, vol.II, 209), “… pressuposto da continuação criminosa será, verdadeiramente, a existência de uma situação que, de fora, e de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito”.
Está bem de ver que ocorre a exigida unidade do bem jurídico violado e não é difícil encontrar homogeneidade na actuação do arguido.
Mas, existe o circunstancialismo exógeno diminuidor da culpa do arguido?
A mediação de um período de tempo dilatado entre os factos criminosos permite ao agente “mobilizar os factores críticos da sua personalidade para avaliar a sua anterior conduta de acordo com o Direito e distanciar-se da mesma”, pelo que, não o fazendo, não pode falar-se em diminuição sensível da culpa (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código Penal”, UCE, 2.ª edição actualizada, p. 161).
Mas o que importa realçar, sendo isto um ponto pacífico, é que, ainda que demonstrada a repetição do mesmo crime e a utilização de um procedimento idêntico, num quadro temporal bastante circunscrito, se o agente concorre para a existência daquele quadro ou condicionalismo exterior, está a criar condições de que não pode aproveitar-se para que possa dizer-se verificada a figura legal do crime continuado.
Como se ponderou no acórdão do STJ de 15.12.2007 (disponível em www.dgsi.pt/jstj; Relator: Cons. Maia Costa), se “o elemento nuclear e substancial do instituto do crime continuado é a mitigação da culpa resultante de uma situação exógena à vontade do agente que induza ou facilite a repetição da conduta ilícita por parte daquele”, não poderá subsumir-se os factos ao crime continuado quando esses mesmos factos “revelam que a reiteração criminosa resulta antes de uma predisposição do agente para a prática de sucessivos crimes, ou que estes resultam de oportunidades que ele próprio cria”.
Assim sendo, e descortinando-se na conduta do arguido pluralidade de resoluções criminosas, não poderia falar-se em continuação criminosa porque terá sido o próprio arguido a criar a situação propiciadora da sucessão de crimes.
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Ficam-nos, então, as duas primeiras hipóteses: concurso real de crimes de condução de veículo em estado de embriaguez ou um só crime porque há unidade de resolução criminosa.
Na primeira instância, como decorre da sentença recorrida, concluiu-se pela segunda hipótese da alternativa - o arguido cometeu um só crime de condução de veículo em estado de embriaguez -, adoptando-se a solução do acórdão desta Relação de 11.11.2009 (disponível em www.dgsi.pt), que é justificada com os seguintes argumentos:
- o legislador estabeleceu no artigo 154.º, n.º 1, do Código da Estrada, o impedimento de conduzir pelo período de 12 horas após obtenção de resultado positivo no exame de pesquisa de álcool no ar expirado, cominando a violação de tal comando com crime de desobediência qualificada no n.º 2 do mesmo preceito legal;
- é um só o acto (ingestão de bebidas alcoólicas) que constitui a génese do crime, mas os seus efeitos prolongam-se no tempo, pelo que, sendo o arguido encontrado a conduzir, por diversas vezes, durante tal período e sujeito a testes de alcoolemia positivos, seria autuado e submetido a julgamento mais que uma vez, com base na mesma fonte geradora da responsabilidade criminal, resultado que constituiria uma violação do princípio ne bis in idem, que tem consagração constitucional no artigo 29.º, n.º 2, da CRP.
Pela solução do concurso real de crimes de condução de veículo em estado de embriaguez se bate o recorrente Ministério Público, fazendo seus os argumentos esgrimidos no acórdão, também desta Relação, de 09.09.2015 (acessível em www.dgsi.pt)[2], que podem ser assim resumidos:
- o que gera a responsabilidade penal do arguido não é a ingestão de bebidas alcoólicas, mas o facto de conduzir um veículo na via pública em estado de embriaguez;
- estamos perante concurso efectivo de crimes porque temos duas resoluções criminosas, consumadas em actos independentes entre si: “a consumação da primeira resolução cessou quando o arguido foi fiscalizado pela primeira vez”; quando libertado, “formulou um novo desígnio para voltar a conduzir, diferente do primeiro e temporalmente dele separado”.
No douto parecer que emitiu, o Ex.mo PGA sufraga e reforça esse entendimento, invocando o acórdão da Relação de Évora de 21.12.2011 (proc. n.º 237/09.7 GBPSR.E1).
Da mesma Relação, o acórdão de 21.06.2011 (proc. n.º 441/10.5 GTABF.E1), sublinha que “a ingestão de bebidas alcoólicas em excesso não é, só por si, a génese de coisa alguma criminalmente tipificada”.
Também o estado de embriaguez, por si só, não tem relevância criminal, mas é elemento do tipo objectivo do crime em causa e, obviamente, é provocado pela ingestão excessiva de bebidas alcoólicas. Por isso pode dizer-se que a conduta criminosa, o iter criminis, se inicia com a ingestão de bebidas alcoólicas (e, nessa perspectiva, que o crime tem a sua “génese” nesse acto) até o agente atingir o estado de embriaguez (que para a tipicidade criminal exige um grau de alcoolemia de, pelo menos, 1.20 g/l no sangue) e consuma-se quando ele, nesse estado, inicia a condução do veículo na via pública.
Mas, como bem se frisa na decisão da Relação de Évora de 21.06.2011, o ponto axial da quaestio decidendi está em determinar se podemos autonomizar na conduta do arguido duas decisões criminosas que fundamentem a imputação de dois crimes ou se, diferentemente, há unidade de “desígnio criminoso”.
A tese da pluralidade de decisões criminosas é aí justificada nos seguintes termos[3]:
A consumação de um primeiro desígnio cessou quando foi fiscalizado pela primeira vez (...) no âmbito do processo 1303/10.1 GBABF, no âmbito de um procedimento ritualizado que leva o seu tempo a ser celebrado: há que soprar no alcoolímetro, há perguntas a responder, há documentos a apreciar, há papeis a preencher e a assinar, etc., etc. Não se trata propriamente de um momento agradável para o cidadão fiscalizado e processado por conduzir alcoolizado.
Recuperada a liberdade de movimentação, o arguido teve necessariamente, de acordo com a experiência da vida, de formular um novo desígnio criminoso para voltar a conduzir, diferente do primeiro e dele separado por um assinalável lapso de tempo preenchido por acontecimentos especialmente relevantes para um normal cidadão.
Havendo duas decisões de delinquir, ambas consumadas em actos interruptos e independentes, e não se vislumbrando que a prática do primeiro acto haja favorecido a decisão ulterior, há dois delitos”.
Que a existência de uma só ou de várias decisões criminosas tem de estar, explicitamente, reflectida na matéria de facto provada é ponto que não suscita discussão.
Ora, do conglomerado factual que se deu por provado não decorre, expressamente, nem uma coisa nem outra e a afirmação de que resulta da experiência comum que o arguido, depois de fiscalizado, teve de tomar uma nova decisão de conduzir, apesar de continuar em estado de embriaguez, é tão válida como a afirmação de sentido contrário.
O que deve entender-se por resolução criminosa?
Segundo o Professor Eduardo Correia, a resolução corresponde ao “termo daquele específico momento do processo volitivo em que o «eu» pondera o valor e o desvalor, os prós e os contras dum projecto concebido”, pelo que “se diversas resoluções foram tomadas para o desenvolvimento da actividade criminosa, diversas vezes deixa a norma de alcançar concretamente a eficácia determinadora a que aspirava e vários serão os fundamentos para o juízo de censura em que a culpa se analisa” (Unidade e Pluralidade de Infracções, 1968, pág. 94). Teremos unidade de resolução criminosa (que não é o mesmo que resolução criminosa única), quando, segundo o senso comum sobre a normalidade dos fenómenos psicológicos, se puder concluir que os vários actos são o resultado de um só processo de deliberação, sem serem determinados por nova motivação.
Sendo uma questão do foro subjectivo, normalmente, só por via indirecta, através da análise e ponderação de elementos indiciários poderemos concluir num ou noutro sentido.
«O índice da unidade ou pluralidade de determinações volitivas e, por aí, a solução da questão da unidade ou pluralidade de infracções hão-de provir fundamentalmente não apenas da ausência ou verificação de uma “descontinuidade” na actuação do agente, mas de uma análise global da “forma como o acontecimento exterior se desenvolveu, olhando fundamentalmente à conexão temporal que liga os vários momentos da conduta do agente. Na verdade, “(…) a experiência e as leis de psicologia ensinam-nos que, em regra se entre os diversos actos medeia um largo espaço de tempo, a resolução que porventura inicialmente os abrangia a todos se esgota no intervalo da execução, de tal sorte que os últimos não são já a sua mera descarga, mas supõem um novo processo deliberativo” (Eduardo Correia, Ob. Cit., 94 a 98).
Se bem que o crime de condução de veículo em estado de embriaguez se consume logo que o agente, tendo uma TAS igual ou superior a 1.2 g/l, inicia a condução, não se esgota nesse momento. A consumação prolonga-se no tempo, persiste enquanto se mantiver o exercício da condução nesse estado. Por isso pode qualificar-se como um crime duradouro, que se caracteriza justamente por o estado antijurídico ter “uma certa duração e se protrair no tempo enquanto tal for vontade do agente, que tem a faculdade de pôr termo a esse estado de coisas” (Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, p. 296).
Retornando ao caso concreto, quando iniciou o exercício da condução, depois de se ter colocado em estado de embriaguez, o arguido, certamente, projectou fazê-lo até atingir o seu destino (provavelmente, dada a hora tardia, o seu domicílio).
Se, a meio caminho, tivesse uma avaria na sua viatura (ou uma indisposição provocada pela embriaguez) e fosse obrigado a imobilizá-la, ninguém dotado de razoabilidade e bom senso diria que ele teve de renovar o respectivo processo deliberativo (é dizer, renovar a intenção de agir) ao retomar o exercício da condução automóvel.
A decisão criminosa é uma só e o dolo do arguido abarca, ab initio, uma pluralidade de actos sucessivos que ele se dispôs logo a praticar até ao destino final.
Ora, as coisas não deixam de ser assim só porque foram agentes policiais que o obrigaram a interromper o exercício da condução para o fiscalizarem.
O que aqui temos é um processo resolutivo inicial que não se esgota com a detenção pelo OPC, mas sim com a chegada ao destino que o arguido tinha em mente quando iniciou a viagem.
Há um único dolo a abranger todas as condutas sucessivamente praticadas e essa unidade de determinação volitiva, a par da manifesta homogeneidade das condutas e da sua proximidade temporal levam-nos a concluir pela unidade no crime de condução de veículo em estado de embriaguez.
Mas, que assim não seja, mesmo que se entenda, como na jurisprudência atrás citada, que há, necessariamente, renovação da decisão criminosa, nem por isso se poderá, afoitamente, concluir pela pluralidade de infracções.
Frequentemente, ocorrem situações em que o comportamento do agente é subsumível a vários tipos ou o mesmo tipo legal é várias vezes preenchido pelo mesmo comportamento e, quando assim sucede, a essa pluralidade tanto pode corresponder uma pluralidade de sentidos sociais de ilicitude típica (caso em que teremos concurso efectivo de crimes) como poder retirar-se do comportamento global do agente um sentido de ilicitude dominante, ou (quando o mesmo tipo é preenchido várias vezes) um único sentido de ilicitude.
Perfilhamos, pois, o entendimento de que decisivo para a determinação da unidade ou pluralidade de crimes é a “unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica, existente no comportamento global do agente submetido à cognição do tribunal” (Figueiredo Dias, “Direito Penal –Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2007, 1018/1019). E na “apreensão do conteúdo de ilicitude material do facto” desempenha papel fundamental o julgador, que não poderá ficar-se pela simples aplicação automática das normas sobre concurso de crimes, sobretudo das normas do artigo 30.º do Código Penal.
Como identificar a unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica no comportamento global do agente?
Seguindo, de perto, o ensinamento daquele Mestre (Ob. Cit.), dir-se-á que, se o facto global, apenas, preenche um tipo legal, será de presumir que estamos perante uma unidade de facto punível. Presunção que pode ser elidida se se mostrar que o mesmo tipo legal de crime foi preenchido várias vezes pelo comportamento do agente.
Se, face às normas efectivamente aplicáveis, o comportamento global do agente preencher vários tipos legais, haverá concurso, que, no entanto, pode ser aparente ou efectivo.
Cristalinamente, a pluralidade de normas típicas concretamente aplicáveis ao comportamento global do agente constitui sintoma legítimo ou presunção prima facie de uma pluralidade de sentidos de ilícito autónomos daquele comportamento global e, por conseguinte, de um concurso de crimes efectivo, puro ou próprio.
Porém, tal presunção pode ser elidida se e quando os sentidos singulares de ilicitude típica presentes no comportamento global se conexionam, se intercepcionam ou parcialmente se cobrem de forma tal que, em definitivo, se deve concluir que aquele comportamento é dominado por um único sentido de desvalor jurídico-social; por um sentido de tal modo predominante, quando lido à luz dos significados socialmente relevantes – dos que valem no mundo da vida e não apenas no mundo das normas -, que seria inadequado e injusto incluir tais casos na forma de punição prevista pelo legislador quando editou o artigo 77.º do Código Penal.
Assim acontece nos casos de relacionamento entre um crime instrumental (crime-meio) e o crime-fim correspondente, ou seja, quando um ilícito singular surge, perante o ilícito principal, unicamente como meio de o realizar e nesta realização esgota o seu sentido e os seus efeitos.
Parece aqui particularmente claro – afirma o Autor que vimos seguindo – que uma valoração autónoma e integral do crime-meio representaria uma violação da proibição jurídico-constitucional da dupla valoração; enquanto, do outro lado, a sua consideração como conformadora de um concurso impuro não viola o mandamento (também ele jurídico-constitucional) de esgotante apreciação porquanto ele deverá influenciar a medida da pena do concurso (…). Impõe-se, por isso, a conclusão de princípio favorável a um concurso aparente. Sem que importe, uma vez mais, a existência ou não de uma conexão objectiva (parentesco dos bens jurídicos violados) ou subjectiva (unidade ou pluralidade de resoluções) entre os tipos legais violados pelo comportamento global”.
O comportamento global do arguido depois que foi fiscalizado e detido pelos agentes policiais por conduzir um veículo automóvel na via pública sob influência do álcool e de ter sido advertido de que não poderia conduzir nas 12 horas imediatamente seguintes preenche os tipos legais de desobediência e de condução de veículo em estado de embriaguez.
Mas esse comportamento do arguido deverá considerar-se dominado por um único sentido de desvalor jurídico-social, pois é patente que ele agiu movido pelo propósito de não acatar a proibição temporária de conduzir. A condução do veículo surge como o meio necessário de concretizar a desobediência e nesta se esgota a sua danosidade social[4].
Temos, então, um concurso aparente de crimes, pois o sentido de ilícito da desobediência surge como absolutamente dominante e subsidiário o sentido de ilícito da condução automóvel sob influência do álcool, pelo que autonomizar o conteúdo de ilícito desta (condução) significaria uma dupla valoração do mesmo substrato de facto.
Sujeitar o caso à incidência das regras da punição do concurso de crimes contidas no artigo 77.º do Código Penal afigura-se desproporcionado e politico-criminalmente desajustado.
Seria violar a proibição, constitucionalmente consagrada (artigo 29.º, n.º 5, da CRP), de punir o arguido duas vezes pelo mesmo facto.

IIIDispositivo
Em face do exposto, acordam os juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao presente recurso e confirmar a sentença recorrida.
Sem tributação.
(Processado e revisto pelo primeiro signatário, que rubrica as restantes folhas).

Porto, 03/06/2016
Neto de Moura
Maria Luísa Arantes
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[1] Cfr., ainda, o acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ n.º 7/95, de 19.10.95, DR, I-A, de 28.12.1995.
[2] Na mesma linha, o acórdão, ainda desta Relação, de 20.04.2016, também acessível em www.dgsi.pt
[3] Nos demais acórdãos citados que adoptaram a mesma solução, a argumentação é, essencialmente, idêntica.
[4] Danosidade social que já é valorada ao punir-se a condução em estado de embriaguez cometida antes da detenção.