Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
423/10.7JAPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DO CARMO SILVA DIAS
Descritores: HOMICÍDIO
INFLUÊNCIA PERTURBADORA DO PARTO
INFANTICÍDIO
DESESPERO
EMOÇÃO VIOLENTA
Nº do Documento: RP20131023423/10.7JAPRT.P1
Data do Acordão: 10/23/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Tendo a arguida actuado sob intensa perturbação emocional, com alteração do estado de consciência (embora, sem perder a consciência da ilicitude), despersonalização e desrealização associada ao puerpério, sendo sob esse estado que decidiu matar a filha recém-nascida, daí não decorre que, por a ter matado logo a seguir ao parto, agiu sob a influência perturbadora do parto.
II - A associação feita ao puerpério não se traduz em associação a perturbação puerpural (sabido que o puerpério pode ocorrer sem perturbações); não se apurando que a perturbação emocional a que a arguida estava sujeita estivesse relacionada com perturbação puerpural, não pode concluir-se que, ao matar a filha recém-nascida, estivesse sob a influência perturbadora do parto, razão pela qual a sua conduta não se enquadra no crime de infanticídio.
III - O estado de afecto que dominava a arguida na altura em que decidiu matar a filha recém-nascida, não se enquadra no “desespero”, enquanto elemento típico do crime previsto no art. 133º do CP. Não se pode falar em “desespero” quando o agente escolhe a solução errada, como aqui sucedeu quando a arguida, pressentindo a aproximação do parto, resolveu ficar em casa, apesar de poder sair, não se tendo preparado para essa situação, sabendo que no quarto ao lado estava a mãe, na fase terminal da vida, a quem não queria desgostar. Mesmo que se considerasse que actuara dominada pelo “desespero”, a atitude anterior da arguida (designadamente quando não se preparou para o parto, nem sequer querendo pensar, desde que soube que estava grávida, que esse dia ia chegar, escondendo a sua gravidez até final) afasta a diminuição sensível da culpa exigida também pelo art. 133º do CP.
IV - A intensa perturbação emocional que vivenciou é de qualificar como emoção violenta e, tendo-a determinado a matar a filha, existe relação de causalidade entre a dita emoção violenta que a dominou e o referido crime cometido. O problema que se coloca a seguir é apurar (i) se essa emoção violenta é compreensível e, em caso afirmativo, além disso, (ii) apurar se esse estado que a dominou diminuiu sensivelmente a sua culpa.
V - Apurou-se que a emoção violenta que dominou a arguida e a levou a matar a própria filha teve origem em não se ter preparado, como podia e devia, para a situação do parto, na forma como reagiu quando pressentiu o parto, apesar de saber que tinha ali no quarto ao lado a mãe, que estava na fase final da vida e de não a (à mãe) querer desiludir, tudo isso sendo determinado pela forma como encarou a gravidez. Tendo sido a arguida que criou (causou) a situação geradora do estado de afecto em que ficou, retirou compreensibilidade a essa emoção violenta que a dominou, para além de, considerando a imagem global dos factos (incluindo contexto em que tudo se passou, razões da emoção e características da arguida) não diminuir sensivelmente a sua culpa (a conduta da arguida é censurável por ter sido só ela que provocou o forte abalo emocional que a dominou, sendo exigível outro comportamento para se poder considerar que havia uma diminuição sensível da sua culpa).
VI - O Direito não pode deixar de censurar a conduta da arguida pelo crime de homicídio p. e p. no art. 131º do CP, desde logo porque as circunstâncias em que matou a filha recém-nascida, tal como resultam dos factos apurados, ainda que dominada por aquela forte emoção violenta (e, mesmo que se considerasse compreensível essa emoção violenta) não diminuem sensivelmente a sua culpa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: (proc. n º 423/10.7JAPRT.P1)
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Acordam, em conferência, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto:
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I- RELATÓRIO
1. Na secção única do Tribunal Judicial de Resende, nos autos de processo comum (Tribunal Colectivo) nº 423/10.7JAPRT, foi proferido acórdão, em 25.2.2013 (fls. 512 a 541 do 2º volume), constando do dispositivo o seguinte:
Por todo o exposto e em conformidade, acordam os juízes que compõem este tribunal colectivo em julgar procedente a pronúncia, por provada [embora com alteração da qualificação jurídica dos factos, no que concerne ao crime de homicídio], e em consequência:
a) Condenar a arguida B…, pela prática, em autoria material e em concurso efectivo, de um crime de homicídio p. e p. no artº. 131º do C.P. e de um crime de profanação de cadáver p. e p. pelo artº. 254º, nº. 1, al. a), nas penas [especialmente atenuadas, nos termos do disposto nos artigos 72º, nº. 1 e nº. 2, al. c) e 73º, nº. 1, als. a) e b), ambos do C.P.], respectivamente, de 6 (seis) anos e 4 (quatro) meses de prisão e de 5 (cinco) meses de prisão;
b) Em cúmulo jurídico das penas parcelares referidas em a), condenar a arguida na pena única de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão;
c) Mais, condenar a arguida no pagamento das custas criminais, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC’s (reduzindo-se a taxa de justiça a metade, atenta a confissão pela arguida, nos termos do disposto no artº. 344º, nº. 2, al. c), do C.P.P).
(…)
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2. A arguida B… recorreu (fls. 546 a 573 do 2º volume) desse acórdão, apresentando as seguintes conclusões:
1. O douto acórdão recorrido não cumpriu os limites que lhe são impostos, caracterizando, adaptando e enquadrando, de forma extrapolada elementos técnicos, circunstanciais e temporais que serviram para fundar a sua decisão, imputando-as de forma leviana displicente absolutamente desproporcional à Recorrente, acabando por condenar em termos que não podem considerar-se provados.
2. O douto acórdão recorrido assenta toda a sua génese em elementos circunstanciais meramente optativos sem qualquer fio condutor que os legitime e vazios de fundamento.
3. Concordar com os argumentos aduzidos e que serviram de fundamentação ao douto acórdão é desvirtuar e menorizar o sentido e alcance de todo o sucedido, convertendo-o numa apreciação arbitrária em que se subverte e deturpa o essencial da questão a que aqui nos reportamos, sendo que o relegar para segundo plano dos pressupostos valorativos na obediência a critérios de experiência comuns, limitou o carácter motivacional do Tribunal a quo na correcta fundamentação fáctica da decisão que elaborou e conheceu afinal do objecto da questão.
4. O Tribunal a quo limitou-se entre dois pareceres técnicos, a optar pelo parecer que implicitamente poderia estar mais próximo de retirar à arguida o elemento da compreensível emoção violenta da compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social sujeitando-a assim à impossibilidade de suspensão da sua pena;
5. O Tribunal recorrido não cumpriu o disposto no n.º 2 do art.º 374.º do CPP ao não realizar um exame crítico da prova produzida em Audiência de Discussão e Julgamento, sofrendo o acórdão de que ora se recorre de falta de fundamentação e indo contra a prova produzida, pelo que o Colectivo condena com base em questões suscitadas que não obtiveram resposta.
6. O Sr. Perito Dr. C… afirmou que é de aceitar que na altura a examinanda fruto de várias circunstâncias estaria acometida de um estado emocional de muita tensão e de muita ansiedade.
7. Contrariamente ao fundamentado pelo Colectivo, e como referiu a Sr.ª Perita Médica, para a arguida a hierarquia está no peso da família prévia, está na mãe, está no medo, está numa série de fenómenos que ela não entende mas que nela me transmite a noção de sentido para ela. Isto parece que hierarquicamente a dominava.
8. Ao contrário ao alegado pelo Tribunal a quo no seu douto acórdão os pareceres técnicos não são discordantes entre si.
9. O Tribunal a quo não fez um exame critico na apreciação da conduta da participação da arguida no referido crime, na medida em que fundamenta a sua decisão com base na opção pelo parecer que penalmente podia ser mais desfavorável à Arguida.
10. Com tal conduta pretendeu o Tribunal a quo nada mais do que impedir a possibilidade de suspensão da pena.
11. Pelas razões invocadas, à arguida não deveria ter sido aplicada pena superior a 4 anos de prisão.
12. A recorrente foi assim erradamente condenada pelo crime de homicídio simples, p. e p. pelo artigo 131.º do C. Penal.
13. A conduta da Recorrente encontra-se confinada ao tipo legal do artigo 133.º do C. Penal, e nunca ao tipo do artigo 131.º.
14. O crime de homicídio privilegiado tem por fundamento uma diminuição sensível da culpa, ao nível da exigibilidade, que tanto pode decorrer de uma situação de compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social.
15. No âmbito do recurso, a recorrente pretende ver sindicada a reapreciação da prova gravada, insuficiência para a decisão da matéria dada como provada, erro na apreciação da prova, errada qualificação jurídica e medida da pena.
16. Muitas dúvidas se colocam sobre o preenchimento do tipo legal de crime de homicídio simples, imputado à recorrente.
17. A arguida ora recorrente não tem qualquer antecedente criminal de relevo, goza de bom comportamento, é de humilde condição sócio económica e no meio onde vive é respeitada e respeitadora, estando bem inserida familiarmente.
18. Conquanto tudo o que consta os autos, não apresenta qualquer perigosidade, sendo bem aceite na localidade onde reside, reconhecendo a censura que lhe cabe face ao comportamento delituoso cometido que atribui a uma conduta que ainda hoje não consegue explicar, mas que deve ficar longe da punição infligida.
19. Andou mal o tribunal a quo na interpretação da letra e de um espírito encarnado no artigo 127º, do CPP, que não admite decisões arbitrárias e sem fundamento, como é aludido em toda a doutrina.
20. Sendo que, como já se referiu, in casu, estão falidos os pressupostos do artigo 131º, do C. Penal, devendo, desde logo, e no que diz respeito ao ora recorrente, deveria ter sido feita a convolação ad minus para o artigo 133º, do citado diploma.
21. Sem prescindir, entende a defesa que foi erradamente fixada a medida concreta da pena, sendo violados os artigos 40.º, 50.º, 70.º, 71.º e 72 do Código Penal.
22. Houve erro notório na apreciação da prova, a que alude o art.º 410.º, n.º 2.º do CPP.
23. Retirou-se de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiencia comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida.
24. Logo, a pena aplicada ao ora recorrente é excessiva, desproporcionada e de severidade injustificada, tendo sido ultrapassada em muito na medida da culpa.
25. Pelo que o Tribunal errou ao considerar a prova, presumindo factos e questões que não encontram sustento factual, nem qualquer resposta.
26. O tribunal a quo não operou um exame crítico da prova uma vez que não fundamentou com exactidão e precisão a sua decisão, contrariando e relegando para segundo plano a prova pericial que foi apresentada em audiência.
27. O Tribunal a quo partiu de premissas em razão das regras de experiência incorrectas, não fundamentando a razão de não ter valorado, sem que o explicasse, alguma da prova que foi oferecida em sede de Audiência de Julgamento, pelo que a sentença deverá ser declarada nula.
28. Relativamente à matéria dada como não provada, também o douto acórdão não fundamentou devidamente o que esteve na base da sua decisão em dar aqueles factos como não provados, não tendo por isso realizado um exame crítico da prova.
29. A pena deverá ser reformada e substancialmente reduzida.
30. Não se aludem a condenações do género ou de qualquer outro imputados à arguida e o tribunal a quo deveria ter retirado disso a necessária consequência, como, aliás, manda o artigo 71.º, n.º 2, alíneas a), b) e d), do Código Penal. Com efeito, como ensina o Prof. Figueiredo Dias, nos factos relativos à conduta do agente se perfilham a vida anterior, o passado criminal, o dano “tout court” causa que in casu não foi nenhuma.
31. Não foram tomadas em devido relevo as circunstâncias externas redutoras da culpa.
32. Assim, e em suma, o recorrente deveria ter sido condenado numa pena no mínimo de 4 anos de prisão suspensa por igual período: é o que se requer.
33. Nestes termos, reparando a sentença, de molde a corrigir os erros cometidos pelo Tribunal recorrido, farão V. Ex.ªs Justiça.
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3. Na 1ª instância, o MºPº respondeu ao recurso (fls. 576 a 580 do 2º volume), concluindo pela manutenção da decisão impugnada.
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5. Nesta Relação, a Srª. PGA pronunciou-se nos termos que constam de fls. 595 e 596 do 3º volume, afigurando-se-lhe que a recorrente deveria ser convidada a completar as conclusões de recurso, quanto à questão da impugnação da matéria de facto que suscita na motivação, sob pena de o recurso não ser conhecido nessa parte.
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6. Apesar da posição da Srª. PGA entendeu-se ser antes caso de dar cumprimento ao disposto no art. 417º, nº 2, do CPP.
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7. Por não ter atentado devidamente no teor da notificação que lhe foi feita (cf. fls. 599 e art. 417º, nº 2, do CPP e não o invocado nº 3 do mesmo artigo), a recorrente em resposta resolveu completar as conclusões de recurso nos termos que constam de fls. 601 a 608.
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8. Colhidos os vistos legais realizou-se a conferência.
Cumpre, assim, apreciar e decidir.
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9. No acórdão sob recurso foram considerados provados os seguintes factos:
a) Em 04 de Abril de 2009, a arguida manteve relacionamento sexual, ocasional, com um indivíduo chamado D…, cuja identidade não se logrou apurar.
b) Dias depois a arguida suspeitou que estava grávida, o que confirmou nesse mês, através do resultado positivo de teste de gravidez.
c) A arguida decidiu não contar a ninguém que estava grávida e esconder de todos esse seu estado.
d) Em conformidade com tal resolução, a arguida nunca se dirigiu a um médico ginecologista ou obstetra, durante toda a gravidez, nem comprou quaisquer artigos próprios para esse seu estado ou para o nascituro.
e) Tendo a arguida diligenciado, durante os meses de gravidez, para que a mesma não fosse visível ou perceptível a terceiros, nomeadamente pelos seus pais e demais familiares e pelos amigos, o que efectivamente conseguiu, tendo para o efeito, no último mês de gestação comprado, numa loja sita em Castro Daire, uma cinta abdominal.
f) Logrou, desse modo, a arguida dissimular a gravidez, durante todo o respectivo tempo.
g) No dia 03 de Janeiro de 2010, pelas 04:00 horas, quando se encontrava deitada no quarto, onde também dormiam duas das suas irmãs, menores, em casa dos seus pais, sita no …, Resende, a arguida começou a sentir dores de barriga e contracções, o que a levou a prever que se encontrava próxima a altura do parto.
h) Pelas 09:00 horas desse dia, que era Domingo, as duas irmãs da arguida levantaram-se, para ir à missa e a arguida ficou deitada na cama.
i) As irmãs da arguida regressaram pelas 10h30m e perguntaram-lhe porque é que ainda estava deitada, ao que a arguida lhes respondeu que estava enjoada e com dores na coluna, razão pela qual não iria conseguir fazer o almoço, como habitualmente fazia, e iria permanecer deitada durante todo o dia.
j) A arguida não almoçou nesse dia, tendo pedido aos seus familiares que não a incomodassem durante todo o dia, e trancou a porta do seu quarto pelo interior.
k) Ao princípio da tarde desse mesmo dia as dores intensificaram-se e a arguida, perdendo sangue e líquido amniótico, entrou em trabalho de parto, que terminou com o nascimento de um bebé, do sexo feminino, com vida.
l) Imediatamente, após o nascimento, a arguida cortou o cordão umbilical que a unia à recém-nascida, sua filha.
m) Nas circunstâncias descritas, a mãe da arguida encontrava-se no quarto ao lado daquele onde a arguida estava, estando aquela acamada, em fase terminal de uma doença do foro oncológico.
n) A arguida não queria que os seus pais e, especialmente a sua mãe, que era muito conservadora e crítica face aos comportamentos sexuais fora do casamento, nomeadamente, por perfilhar princípios religiosos cristãos (segundo os quais a arguida foi também educada), tomassem conhecimento de que, sendo solteira e não tendo sequer relação de namoro assumida com alguém, engravidara e tivera um filha, não querendo a arguida desiludir a mãe e pretendendo evitar que sofresse o desgosto de saber desses factos, sobretudo, numa situação em que estava na fase final da sua vida.
o) Durante o parto, no circunstancialismo descrito, a arguida sentiu-se extremamente ansiosa e sob grande tensão, sentindo-se perdida, não querendo, acima de tudo, provocar uma desilusão à mãe.
p) Vivenciando o estado emocional descrito nas als. n) e o), a arguida decidiu matar a sua filha e esconder o corpo/cadáver.
q) Na concretização de tal desígnio, após ter cortado o cordão umbilical, de imediato, a arguida colocou as suas mãos sobre a boca e nariz da recém-nascida, tapando-os, mantendo-se em cima da cama, por um período de cerca de dez minutos.
r) Constatando que a filha, recém-nascida, continuava a mexer as pernas, a arguida apertou-lhe o pescoço com as mãos, acção que acabou por reforçar com o recurso a uma meia de lã que atou ao redor do pescoço da recém-nascida, ao mesmo tempo que lhe introduzia um lenço de papel na boca.
s) A recém-nascida poucos minutos depois, morreu, apercebendo-se a arguida desse facto, uma vez que a mesma já não respirava e tombava a cabeça.
t) Após, a arguida embrulhou o corpo da sua filha, recém-nascida, numa manta em cima da qual se havia dado o parto, e colocou-o numa caixa normalmente utilizada para o acondicionamento de fruta, que estava debaixo da sua cama, contendo calçado, com o intuito de esconder o cadáver.
u) A arguida manteve o cadáver da sua filha debaixo da cama, desde o dia 3 de Janeiro de 2010, dia em que nasceu, até ao dia 20 de Março de 2010, data em que aquele foi encontrado, pelas irmãs da arguida.
v) Na sequência da descoberta do cadáver, compareceram no local inspectores da Polícia Judiciária e o Delegado de Saúde, que providenciaram pela remoção do cadáver da recém-nascida, filha da arguida, para o Gabinete Médico-Legal de Vila Real, onde foi autopsiado, estando já em adiantado estado de putrefacção.
w) A criança que a arguida deu à luz encontrava-se em termo de gestação, com ausência de malformações internas ou externas, tendo nascido com vida, tendo havido respiração extra-uterina.
x) A morte da recém-nascida, filha da arguida, ficou a dever-se a asfixia, mediante sufocação, por oclusão das vias respiratórias, em consequência directa e necessária da conduta da arguida descritas nas als. q) e r).
y) A arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua filha, recém-nascida, nascera com vida e que ao tapar-lhe, com as mãos, a boca e o nariz, bem como ao apertar-lhe o pescoço, com as mãos, e introduzir-lhe um lenço na boca e ao atar-lhe uma meia de lã à volta do pescoço, iria impedi-la de respirar, asfixiando-a, e que, dessa forma, lhe produziria a morte, resultado este que a arguida previu e quis, ciente de que a sua descrita conduta é proibida e punida por lei.
z) Ao esconder o cadáver da recém-nascida, sua filha, embrulhando-o numa manta, e tendo colocado o mesmo dentro de uma caixa, debaixo da cama, com vista a ocultá-lo, a arguida agiu igualmente de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que essa sua descrita conduta era proibida e criminalmente punível.
Quadro socio-económico, condições de vida e personalidade da arguida:
aa) A arguida nasceu num agregado de cinco filhos, desenvolvendo-se num ambiente familiar coeso e conservador, permitindo-lhe a interiorização de regras.
bb) A subsistência da família era assegurada pelos rendimentos do progenitor, agricultor, através do cultivo do campo e da criação de gado, sendo a respectiva situação económica remediada.
cc) A arguida completou o 12º ano com 18 anos de idade e poucos meses depois começou a trabalhar, como empregada de balcão/mesa, num restaurante, situado na zona de Cinfães (…), posto de trabalho que mantém até à actualidade.
dd) Á época dos factos, durante o período de trabalho, a arguida habitava, sozinha, numa casa arrendada, na localidade onde trabalhava (e continua a trabalhar), atento o seu horário laboral e as dificuldades com as deslocações, uma vez que não dispunha, então, de transporte próprio e permanecia junto do agregado familiar nas folgas e nas férias.
ee) A autonomia que passou a ter, ao viver sozinha, permitiu à arguida sair à noite com os amigos, ir a festas, divertir-se e ter relacionamentos, sem que os pais soubessem, não aprovando os mesmos tal tipo de comportamentos.
ff) A mãe da arguida veio a falecer no dia 03/03/2010, vitima da doença oncológica de que padecia.
gg) Após a morte da mãe, a arguida voltou a viver na casa morada da família, passando a dispor de veículo automóvel, pelo que as deslocações para o restaurante onde trabalha ficaram mais facilitadas.
hh) A arguida aufere o salário de aproximadamente €500,00 mensais, paga €190,00 de prestação mensal para amortização do preço do veículo automóvel que adquiriu.
ii) O agregado familiar da arguida é constituído pelo pai, por um irmão e duas irmãs da arguida, respectivamente, com 21, 18 e 14 anos de idade e pela avó paterna da arguida, com 90 anos de idade, que já não é autónoma.
jj) O pai da arguida e o irmão são profissionalmente activos, pelo que, o agregado dispõe de suficientes recursos para sobreviver.
kk) A arguida estabeleceu uma relação de namoro há cerca de dois anos e seis meses.
ll) A arguida é proveniente de uma família bem conceituada na comunidade, não revelando a própria problemas no meio sócio residencial, nem tendo havido neste, nem no local de trabalho, qualquer rejeição e atitudes recriminatórias face à arguida, estando a mesma bem integrada na comunidade onde reside.
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mm) A arguida não tem antecedentes criminais;
nn) E confessou na sua materialidade os factos que resultaram provados, com relevância para a descoberta da verdade material, denotando profundo arrependimento e apresentando intenso sofrimento psicológico depressivo, auto-censurando-se e culpabilizando-se permanentemente por ter praticado os factos.

Quanto aos factos não provados consignou-se:
Não resultaram provados os factos que não se compaginam com os que foram dados por provados, nomeadamente, e com interesse para a decisão da causa:
Da acusação
Não se provou que:
1. Logo que confirmou que estava grávida a arguida tivesse decidido livra-se do nascituro, matando-o após o parto.
2. Ao esconder o cadáver debaixo da cama nos moldes em que o fez, a arguida tivesse o intuito de posteriormente se desfazer dele, fazendo-o desaparecer e não mais ser encontrado.
Da contestação
Não se provou que:
3. A arguida seja pessoa calma.

Na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto fez-se constar:
A convicção do Tribunal quanto à prova dos factos constantes das als. a) a u) formou-se com base nas declarações da arguida, que os confessou, de forma espontânea, descrevendo as condições em que engravidou, em que soube que estava grávida, o modo como diligenciou para esconder de todos, especialmente da sua família, a sua gravidez e relatando as circunstâncias em que ocorreu o parto e em que tomou a decisão de matar a filha, o que veio a concretizar, logo após o respectivo nascimento, praticando, para tanto, os actos que descreveu, por forma a causar-lhe a morte, e que o Tribunal deu como provados e escondendo, de seguida, o cadáver debaixo da cama, onde ficou até ter sido descoberto, no circunstancialismo que resultou apurado, atendendo, ainda, o Tribunal, na prova dos factos atinentes ao dolo da arguida – exarados nas als. y) e z) –, às regras da experiência comum e da normalidade da vida, em face da actuação desenvolvida pela arguida que resultou apurada.
O teor do relatório de perícia de investigação biológica de filiação realizado pelo IML e junto de fls. 78 a 82 dos autos, corrobora a maternidade da arguida relativamente à recém-nascida cujo cadáver foi encontrado/descoberto no quarto que a arguida e as suas duas irmãos mais novas ocupavam na casa dos pais da arguida.
Para prova do estado emocional vivenciado pela arguida na altura do parto e em que veio a matar a recém-nascida, sua filha, atendeu-se ao teor dos relatórios de perícia médico-legal de psiquiatria, realizados por peritos do IML, Drº. C… e E…, juntos aos autos, a fls. 153 a 157 e 327 a 329, complementados pelos esclarecimentos pelos mesmos prestados, na audiência de julgamento, existindo concordância no juízo pelos mesmos emitido, em relação a ter a arguida vivenciado na altura do parto, ocorrido no quadro circunstancial que a própria relatou, uma situação de marcada tensão e de grande ansiedade, divergindo apenas quanto à intensidade da perturbação emocional, pronunciando-se a Perita Drª. E… no sentido de que a perturbação emocional experimentada pela arguida foi de tal modo intensa que lhe determinou alteração do estado de consciência, despersonalização e desrealização (tratando-se de estados, segundo explicou a Srª. Perita médica, transitórios de alteração de consciência, em que o individuo perde referências constantes ao longo da vida, o que queremos, onde estamos, quem somos, ou seja, perde o contacto com a realidade mais pragmática, sem que, contudo, implique o desligar completo da realidade objectiva), ainda que admitindo tratar-se este de um caso muito difícil, que entra numa série de espaços de fronteira e que não tem um entendimento muito lógico, não existindo lógica na atitude da arguida; e emitindo, por seu lado, o Sr. Perito Dr. C…, juízo no sentido de não se lhe afigurar que o estado emocional vivenciado pela arguida, aquando da prática dos factos, fosse de despersonalização e desrealização, o que justificou relacionando tal situação com um estado dissociativo em que o sujeito perde o controle da existência como ele próprio, como que num sonho, como se não fosse real e estivesse a viver uma falsa realidade, não lhe parecendo ser esse o estado da arguida, que mantinha a noção de presença de si e dos outros e não como se fosse outra pessoa, acolhendo o Tribunal este último juízo, emitido pelo Sr. Perito Dr. C…, em detrimento daquele que, neste concreto ponto, foi emitido pela Srª. Perita Drª. E…, considerando, por um lado, a circunstância da arguida, pese embora sob grande stress emocional, tensão, angústia e ansiedade, quando decidiu matar a filha, recém-nascida e praticou os actos tendentes a alcançar tal desiderato, nunca perdeu a noção da realidade, nem se alheou do seu eu, considerando que durante o processo causal que provocou a morte da recém-nascida, sua filha, a arguida manteve presente a preocupação com a sua mãe, que estava acamada, paredes meias com o quarto onde se encontrava e tudo fez para que a mesma não se apercebesse do que se estava a passar, providenciou para poder ficar sozinha no quarto, apresentando desculpa credível, às irmãs, para não se levantar da cama e ficar no quarto ao longo do dia e para que não a incomodassem, estando a arguida atenta às batidas na porta do quarto onde estava, com a bebé, que já havia nascido – conforme a arguida relatou à Srª. Perita Médica e esta fez constar do relatório (cfr. fls. 328 verso que elaborou e confirmou na audiência de julgamento –, escondendo-a, debaixo da cama, após tê-la morto, bem como vestígios do parto.
Para prova de que a vítima, filha da arguida, nasceu com vida, tendo havido respiração extra-uterina, do tempo de gestação da bebé aquando do nascimento, do nexo de causalidade entre a actuação da arguida e a morte da bebé e do adiantado estado de decomposição/putrefacção em que se encontrava o cadáver da vítima, quando foi descoberto/encontrado e autopsiado – factualidade das als. v) a x) – atendeu-se também ao teor do relatório de patologia forense /autópsia, junto a fls. 144 a 150 dos autos, que conjugado com as declarações confessórias da arguida, levam o Tribunal a alicerçar a convicção segura de que a bebé nasceu com vida e que os actos praticados pela arguida, asfixiando-a/sufocando-a, foram causa directa e necessária da sua morte.
Na prova dos factos vertidos na al. v) atendeu-se também aos depoimentos das testemunhas F…, G… e H…, respectivamente, cabo da GNR, delegado de saúde de Resende e especialista Adjunta da Polícia Judiciária, que após ter havido notícia da descoberta do cadáver da recém-nascida e no âmbito das funções que respectivamente exercem, se deslocaram ao local onde foi encontrado, relatando o cenário com que se depararam e as condições em que se encontrava o cadáver, reportando-se as fotografias juntas a fls. 36 a 43 à ocorrência a que respectivamente aludiram.
Os factos atinente às condições de vida da arguida e a demais factualidade mencionada nas als. aa) a ll) provaram-se com base no teor do relatório social inserto a fls. 454 a 456 dos autos, atendendo-se, ainda, aos depoimentos conjugados das testemunhas de defesa I… e J…, respectivamente, tia e antiga colega de escola da arguida.
A ausência de antecedentes criminais da arguida mostra-se certificada a fls. 432 dos autos.
Por último, a factologia vertida na al. nn) provou-se com base nas declarações da arguida, na postura que assumiu na audiência de julgamento, como relatou os factos, cuja prática confessou, mostrando-se notoriamente emocional, sendo as suas palavras entrecortadas pelo choro e intercaladas com pausas, manifestando a arguida que ao pensar no que fez se vê como um monstro, surgindo o actual estado depressivo da arguida, a recomendar acompanhamento psiquiátrico e/ou psicológico corroborado pelo teor dos relatórios de perícia médico-legal de psiquiatria, juntos aos autos, a fls. 153 a 157 e 327 a 329,
*
Não resultaram provados os factos descritos sob o ponto 2.2. porquanto no referente à factualidade vertida nos pontos 1 e 2 não foi produzida qualquer prova que a confirmasse e no atinente à matéria factual do ponto 3, em face do conjunto da prova produzia e da respectiva apreciação crítica, considerando o quadro emocional vivenciado pela arguida, os motivos subjacentes ao mesmo e os actos por si praticados, não sedimentou o Tribunal a convicção de que a arguida seja uma pessoa calma, ainda que, perante terceiros, possa deixar transparecer essa aparência, tanto mais, que segundo afirmaram as testemunhas de defesa, I… e J…, a arguida é reservada.

Quanto ao enquadramento jurídico-penal escreveu-se:
Vem a arguida pronunciada pela prática, em autoria material e em concurso efectivo, de um crime de homicídio privilegiado p. e p. pelo artº. 133º do C.P. e de um crime de profanação de cadáver p. e p. pelo artº. 254º, nº. 1, do C.P.
Importa referir que no despacho de pronúncia foi alterada a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, imputando-se à arguida a prática de um crime de homicídio privilegiado p. e p. pelo artº. 133º do C.P., quando a mesma vinha acusada da pratica de um crime de homicídio qualificado p. e p. pelas disposições conjugadas dos artºs. 132º, nºs. 1 e 2, als. a), c) e j), do C.P., sendo dados por integralmente reproduzidos, no despacho de pronuncia, os factos descritos na acusação, pelo que, da pronuncia ficou a constar que logo durante a gravidez, a arguida tomou a resolução criminosa, de matar o nascituro e não tendo sido vertidos no despacho de pronuncia quaisquer factos relativos ao estado de perturbação emocional vivenciado pela arguida durante e/ou após o parto.
Assim e, antes de mais, cumpre tecer algumas considerações relativamente ao crime de homicídio:
Segundo a definição legal integra tal tipo de crime a conduta daquele que matar outra pessoa - cfr. artº. 131º do Código Penal - diploma legal a que pertencem todos os artigos que se venham seguidamente a citar sem indicação da origem.
O elemento objectivo do tipo consiste em matar outra pessoa e traduz-se num acto que seja causal da morte.
E o elemento subjectivo consiste na vontade de praticar o acto de que resultou a morte e no conhecimento de que esse acto a causaria. Exige-se, assim, o dolo, em qualquer das suas modalidades contempladas no artigo 14º: directo, necessário ou eventual.
O artigo 132º qualifica o crime de homicídio, em virtude do maior grau de culpa que considera existir sempre que a morte seja causada em circunstâncias que revelem uma especial censurabilidade ou perversidade do agente, enumerando, a título exemplificativo, algumas dessas circunstâncias, as quais não são de funcionamento automático (cf. Prof. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, págs. 203 a 205 e, entre outros, Ac. do STJ de 18/04/02 proferido no processo nº. 02P2577, in endereço www.dgsi.pt), querendo com isso significar que uma vez verificadas, não se pode, desde logo, concluir pela especial censurabilidade ou perversidade do agente.
Em todos os casos de qualificação do crime de homicídio, impõe-se uma análise das circunstâncias que o rodearam e a conclusão de que elas exprimem inequívoca e concretamente uma especial perversidade do agente ou são merecedoras de um severo juízo de censura. Por conseguinte só o apelo a essas circunstâncias pode conduzir ao juízo positivo ou negativo sobre o requisito da agravação especial.
Revertendo ao caso dos autos, dúvidas não existem de que a conduta da arguida, traduzida nos factos provados descritos sob as als. k), l), p) a s) e w) a y), integra os elementos objectivo e subjectivo que tipificam o crime de homicídio.
Com efeito, decorre da matéria factual provada que a arguida, tendo dado à luz uma criança do sexo feminino [que nasceu com vida, tendo havido respiração extra uterina], logo, após a mesma ter nascido e de lhe ter cortado o cordão umbilical, de imediato, colocou as suas mãos sobre a boca e nariz da recém-nascida, tapando-os, mantendo-se em cima da cama, por um período de cerca de dez minutos e, após, constatando que a filha, recém-nascida, continuava a mexer as pernas, a arguida apertou-lhe o pescoço com as mãos, acção que acabou por reforçar com o recurso a uma meia de lã que atou ao redor do pescoço da recém-nascida, ao mesmo tempo que lhe introduzia um lenço de papel na boca, tendo a recém-nascida, poucos minutos depois, falecido, prevendo e querendo a arguida provocar a morte à sua filha, recém-nascida e, causando-lhe asfixia, mediante sufocação, por oclusão das vias respiratórias, praticando actos idóneos a produzir esse resultado, o qual se verificou, forçoso é concluir que a conduta da arguida foi apta a causar a morte da bebé, recém-nascida, sua filha, e que a arguida agiu com dolo, na forma de dolo directo.
Afigura-se-nos não estarem verificadas as circunstâncias qualificativas do homicídio, por que a arguida vinha inicialmente acusada, previstas nas als. a), c) e j), do artigo 132º, pelas razões que passamos a enunciar:
No tocante à qualificativa prevista na al. a) do artigo 132º, no segmento que se prende com ser o agente ascendente da vítima, sufraga-se o entendimento de que não basta a existência de relação de parentesco com a vítima e que o agente tenha consciência dessa relação, para que funcione a qualificativa de que se trata, exigindo-se, ainda «que a prática do homicídio revele uma especial censurabilidade ou perversidade do agente, indiciada (mas não “automaticamente” verificada) por aquele ter vencido as “contra-motivações éticas relacionadas com os laços básicos de parentesco”» – Prof. Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Parte Especial, Tomo 1, Coimbra Editora, 1999, págs. 29 e 30.
Na al. c) do nº. 2 do artigo 132º prevê-se uma qualificativa que, no segmento que releva para o caso dos autos, se traduz em o agente “praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa em razão da idade”;
Por último, na al. j) do nº. 2 do artigo 132º releva para a qualificação do homicídio, na parte que in casu se mostra com pertinente, a circunstância de o agente ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas.
Em conformidade com o que se deixou referido supra, as circunstâncias previstas no nº. 2 do artigo 132º estão enunciadas a título meramente exemplificativo, levando tal técnica legislativa a que possa ocorrer um homicídio em que não obstante estar verificada alguma daquelas circunstâncias, não se trate de um homicídio qualificado, em virtude de, no caso concreto, tal circunstância não revelar “especial censurabilidade ou perversidade”, como pode suceder o contrário, ou seja, a circunstância não estar prevista no nº. 2 do artº. 132º, mas poder ser substancialmente análoga, e integrar-se no tipo especial de culpa do nº. 1.
Volvendo ao caso dos autos, em nosso entender, perante o quadro factual provado, entendemos não poderem ter-se por verificadas quaisquer das enunciadas circunstâncias qualificativas do homicídio
Com efeito:
Ainda que a arguida fosse mãe da vítima e esta sua filha, tratando-se de uma bebé recém-nascida, fruto de um relacionamento sexual ocasional, procurando a arguida ocultar perante terceiros, especialmente perante os pais, a sua gravidez, sendo esta não desejada, não chegou a estabelecer-se entre a arguida e a vítima os laços de afecto e de amor e a gerar-se o instituto de protecção que deve caracterizar a relação “mãe-filho”, pelo que, neste circunstancialismo, não é de excluir que a arguida não haja criado contra-motivações éticas derivadas da relação de filiação com a vítima, que teve de vencer, ao matar a sua filha, da forma como o fez, em termos de se poder concluir pela especial perversidade ou censurabilidade da conduta da arguida;
No que tange que à persistência da intenção de matar por mais de 24 horas, inexiste suporte factual provado que permita concluir nesse sentido;
E ainda que fluindo da factualidade provada que a arguida praticou os factos contra pessoa particularmente – absolutamente – indefesa e afigura-se-nos que, tendo a arguida matado a filha recém-nascida, logo após o parto, tendo tomado essa resolução num quadro emocional de intensa ansiedade e de grande tensão motivado pelas razões descritas nas als. m) e n) dos factos provados, não deve concluir-se pela especial censurabilidade ou perversidade da conduta da arguida.
Assim sendo, mostra-se afastada a subsunção da conduta da arguida ao crime de homicídio qualificado p. e p. pelo artigo 132º do C.P.
E em nosso entender os factos praticados pela arguida também não podem ser subsumíveis ao crime de infanticídio p. e p. pelo artigo 136º do C.P., dispondo o enunciado preceito legal: A mãe que matar o filho durante ou logo após o parto e estando ainda sob a sua influência perturbadora, é punida com pena de prisão de 1 a 5 anos.
Com efeito, embora a arguida tenha morto a sua filha, logo após o parto, inexiste suporte factual provado passível de poder levar a concluir que essa sua conduta tivesse lugar sob a influência perturbadora do estado puerperal, enunciando Maria Margarida Silva Pereira [in Textos, direito penal II, os homicídios …, vol. II, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1998, págs. 142 e 143], como paradigmáticas da perturbação sobre que se constrói o artigo 136º, as seguintes situações:
«a) Perturbação provocada por mecanismos físicos e psíquicos que o parto desencadeie (dor, perturbações nervosas).
A, mãe, sofre porque o seu parto foi muito difícil. Psicologicamente alterada, mata a criança. (…)
b) Perturbação durante ou após o parto, catalizadora de representações sociais nefastas e que alteram psicologicamente a mãe: familiares, profissionais, financeiras.
A, mãe, teme a reacção dos seus pais. No momento do parto ou, após, e devido às circunstâncias difíceis que o rodeiam, em estado de perturbação, representa esse cenário catastrófico e mata a criança.
A, mãe, sabe que não tem meios de subsistência para si e para o filho. O parto perturba-a e o transtorno é catalizador do medo da indigência; assim, mata a criança.
Vemos que a perturbação tem de ser provocada pelo parto. (…)».
Por conseguinte, sendo este um dos elementos do tipo do crime em causa, não estando demonstrado que a arguida ao matar a sua filha recém-nascida, logo após o parto, o tivesse feito sob a influência perturbadora deste, fica excluído, desde logo, o preenchimento, pela arguida, através da sua conduta, do tipo objectivo do crime de infanticídio p. e p. pelo artº. 136º.
Aqui chegados cumpre apreciar se a conduta da arguida, ora referenciada, integra o crime de homicídio privilegiado, tal como vem pronunciada:
De harmonia com o disposto no artigo 133º comete o crime de homicídio privilegiado, quem matar outra pessoa dominado por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou mora, que diminuam sensivelmente a sua culpa, sendo punido com pena de prisão de um a cinco anos.
A propósito do crime de homicídio privilegiado e citando o Ac. da R.G. de 19/11/2007, proferido no processo nº. 1052/07-2, acessível no endereço www.dgsi.pt, que, por sua vez, cita o sumário do Ac. do STJ de 03/10/2007, proferido no processo 07P2791, que aqui transcrevemos, diremos:
«I – O homicídio privilegiado assenta, como acentua Figueiredo Dias (Comentário Conimbricense do Código Penal, vol. I, pág. 47), numa cláusula de exigibilidade diminuída, concretizada em certos “estados de afecto”, vividos pelo agente, que diminuam sensivelmente a sua culpa.
II - Constituem esses elementos privilegiadores a compreensível emoção violenta, a compaixão, o desespero, ou o motivo de relevante valor social ou moral.»
III - A compreensível emoção violenta é um estado de afecto provocado por uma situação pela qual o agente não é responsável. Ela é, de certo modo, a resposta a uma provocação e, nessa medida, ela pode diminuir de forma sensível a culpa do agente. Mas terá de ser compreensível, exigência adicional de pendor objectivo não extensível aos outros elementos privilegiadores.
IV - Quanto ao desespero, ele abrangerá os estados de afecto asténicos, como a angústia e a depresão. (…).
VII - Contudo, a verificação do elemento privilegiador não basta para permitir a integração do crime no art. 133.º do CP. «Os estados ou motivos assinalados pela lei não funcionam por si e em si mesmos (hoc sensu, automaticamente), mas só quando conexionados com uma concreta situação de exigibilidade diminuída por eles determinada; neste sentido é expressa a lei ao exigir que o agente actue ‘dominado’ por aqueles estados ou motivos” (cf. Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, vol. I, pág. 48).
VIII - A ponderação da diminuição sensível de culpa, da diminuição da exigibilidade de conduta diferente, é indispensável para subsunção dos factos ao art. 133.º do CP: só se o “estado de afecto” que determina o crime for de molde a atenuar sensivelmente a exigibilidade de conformidade com o direito, mitigando notavelmente a culpa, o homicídio pode ser privilegiado.
IX - Tal ponderação terá de ser realizada à luz do que seria exigível a alguém colocado naquelas circunstâncias concretas; doutra forma, poderia dar-se relevância atenuativa a reacções violentas desproporcionadas e extravagantes, ou a condutas completamente reprováveis, com o álibi de serem desencadeadas por “estados de alma” fortemente emotivos. (…)»
Na doutrina, escreve Maria Margarida Silva Pereira [in ob. cit., págs. 84 e segs.], em relação aos tipos do artigo 133º e na parte que pode relevar para o caso vertente:
1. Agente que mata dominado por compreensível emoção violenta que diminua sensivelmente a sua culpa:
«Cabem no artº. 133º tanto as emoções asténicas (medo, desespero) com as emoções esténicas (ira, cólera, irritação). (…) são tanto emoções violentas aquelas que se revelam em explosões momentâneas como as que se prolongam por muito tempo, também conhecidas por estados de afecto, e coincidem com uma certa reflexão do agente. Os estados de afecto são os mais difíceis de avaliar e estão muito próximos das situações de desespero, facto que nos leva a não considerar os vários tipos de culpa como absolutamente autónomos. Nestas situações é criado o chamado efeito túnel, em que a emoção passa por diversas vicissitudes, por altos e baixos, mas que a qualquer momento pode explodir mesmo por efeito de factos insignificantes: o balde de água vai enchendo, e depois basta uma pequena gota de água para transbordar. O efeito túnel significa uma situação de domínio sobre o agente que se traduz numa fixação, numa como que atracção pelo abismo. (…) A emoção violenta deve ter um efeito de domínio sobre o agente. Esse domínio deve entender-se no sentido de que o agente emocionado age com a sua vontade e capacidade de discernimento afectadas.»
«A compreensibilidade é uma cláusula que se refere apenas à emoção e tem natureza normativa, isto é, implica uma valoração jurídica. (…). A jurisprudência tende a concretizar o conceito de compreensibilidade com recurso a duas ideias: a causa da emoção – esta será compreensível se tiver sido causada por provocação da vítima; além disso, deve haver proporcionalidade entre a ofensa da vítima e o crime praticado.» (…)
«A compreensibilidade dever ser referida aos motivos relacionados com a emoção e esses devem ser valorados. Além disso, deve referir-se a todas as circunstâncias que rodearam o seu surgimento e desenvolvimento: casos de humilhação prolongada; casos de afastamento de um perigo, putativo ou de evitar um mal maior; motivos que põem em causa o agente enquanto pessoa, etc.». (…)
2. Agente que mata dominado por desespero que diminua sensivelmente a sua culpa:
«O desespero não pode deixar de ser considerado como uma emoção asténica (…), tanto pode levar a estados depressivos que conduzem ao suicídio do agente, como pode levar a matar, como situação terminal em que, como a própria palavra refere, acabou toda a esperança, o agente não encontra outra saída que não seja matar. Também aqui se verifica o efeito túnel a que nos referimos acima, valendo para estes casos o que acima foi dito. Em regra, as situações de desespero têm a ver com estados de profunda solidão, de progressivo fechamento de portas para a resolução de determinado problema, com situações de repetida humilhação ou sofrimento. O desespero tem uma natureza intimista, coincidindo com um longo período de reflexão por parte do agente. Muitas vezes manifestam-se em tentativas de resolução, nem sempre exteriormente identificáveis ou compreensíveis. Cabem aqui (…) situações de enorme pressão e desorientação provocada pelo meio social, em particular pela própria família. (…). Também aqui se há-de verificar a situação de domínio do agente, isto é, a total afectação da sua vontade ou do seu discernimento. Tal manifesta-se através do efeito do túnel: o agente encontra-se num beco sem saída e é quase fatalmente empurrado para um determinado fecho pelo qual se sente atraído.»
3. Agente determinado por motivo de relevante valor social ou moral
«Esta é uma cláusula cujo conteúdo é manifesto e que tem a ver com sociedades concretas e com morais concretas. Não poderão estar em causa apenas os valores sociais dominantes ou a moral dominante. Em qualquer caso, a cláusula há-de ter conteúdo objectivo. Esse conteúdo deve ser positivamente valorado, sob pena de se abrir a porta a todo o tipo de fanatismos ou de fundamentalismos. Está aqui em causa uma menor ilicitude, dado o valor que a ordem jurídica atribui àqueles motivos. Porém esse grau de ilicitude não basta para fundamentar o privilégio, funcionando como mero indício da diminuição sensível da culpa. Também se exige que o agente esteja dominado pelos motivos em causa, para que eles revistam um carácter de essencialidade e, por isso, afectem o seu normal discernimento e a sua capacidade de se determinar de acordo com essa vontade.»
Tendo presentes as considerações que se deixam expendidas e atenta a matéria factual que resultou assente, ainda que se tenha provado que a arguida tentou esconder a gravidez, da generalidade das pessoas e, designadamente, dos seus pais, comprando uma cinta na fase final da gestação, para se apertar, sendo que a arguida, então com 22 anos de idade, concluíra o 12º ano de escolaridade, com 18 anos, tinha profissão estável e autonomia económica, vivia sozinha, em habitação arrendada, sita na localidade onde trabalhava e afastada do local da residência dos pais, não estando, por conseguinte, economicamente deles dependente, não se tendo provado que, assim que soube que estava grávida, tivesse formulado o propósito de matar o nascituro, logo após o parto, afigura-se-nos que o estado de perturbação emocional que a arguida vivenciou durante o parto [que ocorreu em casa dos pais, com estes e irmãos em casa, agonizando a mãe, no quarto ao lado, padecendo de doença do for oncológico e encontrando-se na fase terminal da vida, vindo a falecer precisamente dois meses depois da arguida praticado o acto de que se trata], de grande ansiedade e tensão, sentindo-se perdida, não querendo, acima de tudo, provocar uma desilusão à mãe, na fase final da sua vida, repercutindo-se, embora, na sua capacidade de autocensura, diminuindo-a, em certa medida, o mesmo não é de molde a poder levar a concluir que a arguida actuasse dominada por compreensível emoção violenta [podendo configurar-se uma situação passível de fazer desencadear uma emoção desse tipo, por exemplo, o caso de uma mulher que não tendo tido acompanhamento durante a gravidez, tem o parto sozinha e dá à luz uma criança com malformações de tal modo graves que não consegue sequer olhar para o bebé, ficando em estado de choque e dominada por esse estado emocional, mata o recém-nascido], pelo desespero [conforme se faz notar no ponto VII do sumário do Ac. do STJ de 09/09/2010, proferido no processo 1795/07.6GISNT.L1, acessível no endereço www.dgsi.pt, que se reporta a um caso semelhante ao dos presentes autos, «(…) dificilmente o desespero poderá diminuir a censura dirigida ao agente, quando ninguém mais, para além do homicida, contribuiu para essa situação de desespero, ou, sobretudo, quando ela radica em procedimentos do agente, antecedentes, que sejam, eles mesmos, censuráveis. A lei, mais uma vez, não exige apenas que o agente esteja desesperado, mas que tal desespero diminua sensivelmente a sua culpa.», afigurando-se-nos poder integrar situações de desespero atendíveis no âmbito da previsão do normativo de que se trata, v.g. o caso em que A., mãe da criança, recém-nascida, se encontra ameaçada de morte ou de grave ofensa à sua integridade física, no caso de ter a criança; o caso em que A., mãe solteira, muito jovem, sem meios de subsistência e impreparada para enfrentar a vida, com alguma debilidade intelectual ou física, teme enfrentar a reacção dos progenitores, manifestando-lhes os mesmos de antemão que a escorraçarão de casa, atirando-a para a rua com o filho, sem que conte com o apoio de alguém; o caso em que a criança é fruto de uma relação incestuosa ou de uma violação, não sendo esse acto e a gravidez dele resultante escondidos de todos, etc.] ou por motivo de relevante valor social ou moral [tendo a valoração da desonra, que antes estava integrada no artigo 137º do C.P., desaparecido com a Revisão do Código Penal operada pelo Dec.-Lei nº. 48/95, de 15 de Março], passível de integrar uma situação de exigibilidade diminuída, de diminuição sensível da culpa e, nessa medida, impõe-se concluir que fica afastada a subsunção da conduta da arguida ao crime de homicídio privilegiado.
Constituiu-se, assim, em nosso entender, a arguida, através da sua descrita conduta, autora material de um crime de homicídio p. e p. pelo artº. 131º do C.P., estando preenchidos todos os elementos objectivos e subjectivos deste tipo legal, conforme referenciado supra, inexistindo qualquer causa de exclusão da ilicitude e/ou da culpa e estando verificados os pressupostos da punibilidade.
Quanto ao crime de profanação de cadáver:
Decorre do disposto no artº. 254º, nº. 1, al. a), na parte que releva para o caso sub judice, que comete o enunciado crime quem sem a autorização de quem de direito (...) ocultar cadáver (...) de pessoa falecida.
Este tipo legal visa a protecção dos sentimentos de “piedade” para com defuntos, por parte da colectividade, prescindindo de uma qualquer fé religiosa e antes de referindo a um sentimento moral colectivo (cfr. J. M. Damião da Cunha, in Comentário Conimbricense ..., Tomo III, pág. 653.
A modalidade de conduta prevista na citada al. a) do nº. 1 do artº. 254º visa garantir o destino normal do cadáver, sendo este definido como o corpo de uma pessoa falecida .
Trata-se de um crime doloso.
In casu, confrontando os factos provados vertidos sob as als. t), u) e z), dos quais resulta que a arguida, após matar a filha, recém-nascida, enrolou o seu corpo/cadáver numa manta e colocou-a debaixo da cama, numa caixa normalmente utilizada para o acondicionamento de fruta e que continha sapatos, com o intuito de o esconder, mantendo o cadáver da filha, no local onde o colocou/escondeu, durante mais de dois meses, mais concretamente desde o dia 03/01/2010 até 20/03/2010, data em que foi descoberto/encontrado pelas irmãs da arguida, tendo esta última agido com a consciência de que esse seu comportamento é proibido por lei, impõe-se concluir que a descrita conduta da arguida, integra a prática do crime de profanação de cadáver por que vem pronunciada p. e p. pelo artº. 254º, nºs. 1, al. a).
Existe concurso real do crime de homicídio com o crime de ocultação de cadáver, perpetrados pela arguida.

Na fundamentação da pena fez-se constar:
O crime de homicídio perpetrado pela arguida é abstractamente punível com pena de prisão de 8 anos a 16 anos (cfr. artº. 131º).
E ao crime de profanação de cadáver pela mesma igualmente cometido corresponde a pena abstracta de 1 mês a até 2 anos ou pena de multa de 10 dias a 240 dias (cfr. artºs. 254º, nº, 1, al. a), 41º, nº. 1 e 47º, nº. 1).
Sendo este último ilícito punível com pena de prisão, ou em alternativa, com pena de multa, coloca-se o problema da opção entre a aplicação de uma ou por outra das penas.
De harmonia com o disposto no artigo 70º do C.P., o Tribunal deverá dar preferência à pena não privativa da liberdade "sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição" (exigências de prevenção e de reprovação do crime).
No caso concreto, atendendo a que o cadáver objecto da actuação da arguida respeitava ao corpo da vítima do crime de homicídio pela mesma perpetrado e que a arguida manteve o cadáver da filha, recém-nascida, debaixo da cama, no quarto onde dormiam duas das suas irmãs e onde a própria também dormia, quando se deslocava à casa dos pais, nas folgas e, dadas as acentuadas exigências de prevenção geral que se fazem sentir relativamente ao crime de que se trata, que, não raro, assume contornos verdadeiramente macabros, entendemos que a pena de multa não se mostra suficiente para satisfazer as finalidades da punição, maxime as exigências de prevenção, daí o decidirmos pela aplicação da pena de prisão.
Considerando que a arguida, que, à data dos factos, tinha 22 anos de idade, que havia completado há pouco mais de um mês, denota profundo arrependimento e apresenta intenso sofrimento psicológico depressivo, auto-censurando-se e culpabilizando-se permanentemente por ter praticado os factos, somos levados a concluir que as exigências de prevenção especial, em termos de necessidade da pena, mostram-se acentuadamente diminuídas e, nessa medida, ao abrigo do disposto no artigo 72º, nºs. 1 e 2, al. c), do C.P., decide-se atenuar especialmente as supra enunciadas penas.
Deste modo, a pena abstracta aplicável aos crimes cometidos pela arguida, operada a mencionada atenuação especial, e tendo em conta o disposto no artº. 73º, nºs. 1, als. a) e b), passa a ser de prisão de:
- 1 (um) ano 7 (sete) meses e 6 (seis) dias a 12 anos, no tocante ao crime de homicídio; e
- 1 (um) mês a 16 (dezasseis) meses
Posto isto, impõe-se importa determinar a medida concreta da pena a aplicar à arguida, pena essa que é limitada pela sua culpa revelada nos factos (cfr. art. 40º, n.º 2 do C.P.), e terá de se mostrar adequada a assegurar exigências de prevenção geral e especial, nos termos do disposto nos artºs. 40º, n.º 1 e 71º, n.º 1, ambos do C.P..
Culpa e prevenção são, pois, os dois termos do binómio com o auxílio do qual se há-de construir a medida da pena.
A culpa jurídico-penal vem traduzir-se num juízo de censura, que funciona, ao mesmo tempo, como um fundamento e limite inultrapassável da medida da pena (cf. Prof. Figueiredo Dias, Direito Penal Português – Das Consequências Jurídicas do Crime, pág. 215), sendo tal principio expressamente afirmado no nº. 2 do artº. 40º do C.P.
Com recurso à prevenção geral procurou dar-se satisfação à necessidade comunitária da punição do caso concreto, tendo-se em consideração, de igual modo a premência da tutela dos respectivos bens jurídicos (Ac. do STJ de 04.07.96, in CJ –STJ, Ano IV, t. 2, pág. 225).
Com o recurso à vertente da prevenção especial almeja-se responder às exigências de socialização do agente, com vista à sua integração na comunidade (cf. Ac. do STJ supra citado).
Dando concretização aos mencionados vectores, o nº. 2 do artº. 71º enumera, exemplificativamente, uma série de circunstâncias atendíveis para a graduação da pena, que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente.
Com vista à determinação da medida concreta da pena a aplicar ao arguido por cada um dos crimes por ele cometidos, importa, assim, valorar as seguintes circunstâncias:
O grau de ilicitude do facto, que se revela:
- Elevado, no que respeita ao crime de homicídio, tendo em conta que a vítima, recém-nascida era filha da arguida e absolutamente indefesa e o modo de execução dos factos, não se limitando a arguida a utilizar as mãos para asfixiar/sufocar a filha, servindo-se também de uma meia que atou ao redor do pescoço da bebé e introduzindo-lhe um lenço de papel na boca, prolongando-se por vários minutos o desenrolar do processo causal que conduziu à morte da vitima, agindo a arguida segundo uma hierarquia de valores distorcida e invertida, em que o propósito de poupar a sua progenitora, que se encontrava na fase final da vida, à desilusão e ao desgosto de saber que engravidara de um individuo com o qual não mantinha relacionamento assumido prevaleceu sobre o dever de protecção da vida da bebé, que acabara de dar à luz, não lhe poupando a vida;
- Medianamente acentuado, no que tange ao crime de profanação de cadáver, atendendo, designadamente, ao facto da arguida ter mantido o cadáver da bebé, debaixo da cama, durante mais de dois meses, no quarto onde dormiam as suas irmãs e a própria quando se deslocava a casa dos pais;
O dolo da arguida, que reveste, em qualquer das situações, a forma de directo, cuja intensidade se nos afigura medianamente acentuada, tendo em conta o circunstancialismo em que tomou a resolução de matar a filha, recém-nascida e de ocultar o respectivo cadáver, o que veio a concretizar [vivenciando a arguida sentimentos de angústia, ansiedade e tensão], denotando a ocultação de cadáver pouca reflexão e até alguma falta de ponderação quanto ao modo de execução do acto, deixando o cadáver debaixo da cama, ao longo de mais de dois meses, entrando o mesmo em decomposição, podendo exalar cheiros, não podendo a arguida, deixar de ponderar que poderia ser ali descoberto por terceiros, como veio a acontecer;
As condições pessoais da arguida e sua situação económica, que resultaram provadas e que aqui se dão por reproduzidas.
Militam a favor da arguida as circunstâncias de não ter antecedentes criminais e de ter confessado os factos, na sua materialidade, com relevância para a descoberta da verdade, sobretudo no que concerne ao crime de homicídio.
Por último, há que ponderar as exigências de prevenção, sendo que as de prevenção especial, revelam-se, à partida, medianas, pois que, a arguida mostra-se familiar, profissional e socialmente inserida, é primária, confessou os factos e denota arrependimento e auto-censura por tê-los praticado; e as prevenção geral, são prementes, atenta a objectiva gravidade jurídica dos crimes de que se trata, maxime do crime de homicídio, perpetrado pela arguida e a necessidade de defesa da sociedade perante este tipo de ilícito, sendo grande o alarme social que provoca.
Ponderando todos estes elementos julgamos adequada a aplicar à arguida a pena de:
- 6 (seis) anos e 4 (quatro) meses de prisão pelo crime de homicídio;
- 5 (cinco) meses de prisão pelo crime de profanação de cadáver.
Entende este Tribunal não substituir por multa, a pena de prisão fixada em 5 meses, nos termos previstos no artº. 44º, nº. 1, do C.P., pelas razões expendidas supra, que levaram a não aplicar à arguida ab inicio, pena de multa.
Operando o cúmulo jurídico de tais penas parcelares, sendo a moldura penal abstracta correspondente aos crimes em concurso a de prisão de 6 (seis) anos e 4 (quatro) meses a 6 (seis) anos e 9 (nove) meses; e, ponderando, em conjunto, os factos - que revestem acentuada gravidade - e a personalidade da arguida (cf. artº. 77º, nºs. 1 e 2, do C.P.), decidem os juízes que compõem este tribunal colectivo, condena-la na pena única de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão.
*
II- FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação que apresentou (art. 412º, nº 1, do CPP).
Neste caso concreto suscita-se a apreciação das seguintes questões:
1ª- Quanto à decisão proferida sobre a matéria de facto, verificar se padece de erro de julgamento na parte impugnada, se ocorrem os vícios previstos no art. 410º, nº 2, alíneas a) e c) do CPP e se o tribunal violou o disposto no art. 127º do CPP, recorreu a presunções ilegais, faltando a fundamentação e o exame crítico das provas;
2ª- Analisar se há erro de interpretação na subsunção dos factos ao direito quanto ao crime de homicídio pelo qual a arguida também foi condenado (na sua perspectiva cometeu antes um crime de homicídio privilegiado p. e p. no art. 133º do CPP);
3ª- Ponderar se a pena individual aplicada pelo crime de homicídio e a pena única impostas são excessivas (na sua perspectiva deveria ser condenada na pena de 4 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período).
Passemos então a apreciar cada uma das questões colocadas no recurso em apreço.
1ª Questão
A recorrente (arguida) invoca que a decisão proferida sobre a matéria de facto padece de erro de julgamento na parte impugnada, para além de ocorrerem os vícios previstos no art. 410º, nº 2, alíneas a) e c) do CPP, ter sido violado o disposto no art. 127º do CPP, ter o tribunal recorrido a presunções ilegais e faltar a fundamentação e o exame crítico das provas.
Fazendo particular referência apenas ao que foi dado como provado nas alíneas g), k), m), n), o) e p) e criticando a motivação de facto constante do acórdão em crise, alega a recorrente que há carência de factos por o Colectivo não ter averiguado com a devida minúcia e exactidão as circunstâncias concretas e reais em que estava envolvida aquando da prática do crime (tendo o tribunal desvalorizado e relegado para segundo plano factos e relatórios periciais demonstrativos de uma realidade diferente da dada como provada) e, fazendo apelo a extractos que transcreve dos esclarecimentos dos peritos C… e E…, conjugados com o teor dos respectivos relatórios periciais, concluiu que na génese dos factos está uma gravidez mantida em segredo, por pessoa maior de idade, que não recorreu à interrupção voluntária da gravidez e que os factos ocorreram “envoltos no mais profundo e perturbante estado psicológico jamais vivenciado pela arguida”, “caracterizado por um conjunto de circunstâncias e elementos factuais/temporais, aliados ao extremo descontrolo hormonal próprio e potenciado de quem está em trabalho de parto sem qualquer assistência médica e consequente distúrbio e perturbação psicológica”, tendo sido o “estado de petrificação que a impediu de sair” do quarto e de casa, agindo ela “debaixo de enorme sofrimento físico e psíquico, sofrendo dores agonizantes e dando à luz uma criança no termo do período de gestação, sem contar com o mais leve apoio médico ou mesmo humano”, sendo “uma mulher absoluta e profundamente perturbada, com uma noção muito própria e deturpada da realidade que a rodeia”, não lhe podendo “ser minimamente exigível qualquer controlo sobre os sentimentos e estados psicológicos” que entretanto nela se desencadearam e que tiveram como “fonte de ignição a debilidade e o avançado estado da doença oncológica da sua mãe”, o que tudo deveria levar à conclusão de que cometera o crime de homicídio privilegiado p. e p. no art. 133º, nº 1, do CP.
Argumenta, ainda, que houve erro notório na apreciação das provas, que o tribunal a quo avaliou erradamente os relatórios periciais (os quais entende não serem contraditórios, como considera o tribunal, antes sendo concordantes entre si, embora apresentando perspectivas e termos diferentes), optando pelo que podia ser mais desfavorável à arguida (para não ser possível a suspensão da pena), analisando arbitrariamente as provas produzidas, presumindo factos e questões que não encontram sustento factual, nem qualquer resposta, violando o disposto no art. 127º do CPP, evidenciando no juízo que fez um raciocínio meramente punitivo e condenatório, para além de ilógico (por contrário ao dos peritos) e frio, não fazendo um criterioso apuramento da matéria de facto, faltando na decisão a fundamentação e o exame crítico das provas, violando o disposto no art. 374º, nº 2, do CPP (devendo o acórdão ser declarado nulo), não tendo o Colectivo compreendido a conduta da arguida, colocada numa situação de exigibilidade diminuída, dominada pelo estado em que se encontrava que a levou a matar.
Vejamos então.
Como se verifica dos autos, procedeu-se à documentação (por meio de gravação) das declarações prestadas oralmente em audiência de julgamento, encontrando-se junto aos autos o respectivo suporte técnico.
Embora de forma pouco modelar, consideramos que a recorrente cumpriu minimamente os ónus de impugnação da decisão da matéria de facto, indicados no art. 412º, nºs 3 e 4 do CPP.
Atentos os poderes de cognição das Relações (art. 428º, nº 1, do CPP), uma vez que a prova produzida em audiência de 1ª instância foi gravada, constando dos autos o respectivo suporte técnico (art. 412º, nºs 3 e 4 do CPP), pode este tribunal conhecer da decisão proferida sobre a matéria de facto.
No entanto, convém aqui lembrar que “o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros.”[1]
A gravação das provas funciona como uma “válvula de escape” para o tribunal superior poder sindicar situações insustentáveis, situações limite de erros de julgamento sobre a matéria de facto[2].
Os elementos de que esta Relação dispõe, no caso em apreço, são apenas a gravação da prova produzida oralmente em audiência na 1ª instância e as provas documental e pericial juntas aos autos.
Assim, não obstante os seus poderes de sindicância quanto à matéria de facto, a verdade é que não podemos esquecer a percepção e convicção criada pelo julgador na 1ª instância, decorrente da oralidade da audiência e da imediação das provas.
O juízo feito pelo Tribunal da Relação é sempre um juízo distanciado, que não é «colhido directamente e ao vivo», como sucede com o juízo formado pelo julgador da 1ª instância.
Posto isto, tendo presente que o princípio da livre apreciação da prova (art. 127º do CPP) também se aplica ao tribunal da 2ª instância, importa “saber se existe ou não sustentabilidade na prova produzida para a factualidade dada como assente, e que é impugnada, sendo que tal sustentabilidade há-de ser aferida através da verificação da existência de prova vinculada, da verificação da existência de erros sobre a identificação da prova relevante e da constatação da inconsistência mínima de certo facto perante uma revelada fonte que o suporta”[3[.
E, claro, como sabido com as provas “pretende-se comprovar a realidade dos factos”, ou seja, pretende-se “comprovar a verdade ou a falsidade de uma proposição concreta ou fáctica”[4], criar no juiz um determinado convencimento.
Produzidas as provas em audiência de julgamento, o julgador (seja o tribunal singular, seja o tribunal colectivo) terá de as apreciar, com vista à sua valoração.
Quando procede à apreciação das provas, o julgador está sujeito a determinados limites que tem de respeitar, nomeadamente, decorrentes da vinculação temática e do funcionamento do princípio da livre apreciação da prova (art. 127º do CPP), bem como das respectivas “excepções” ou limitações.
A ideia da livre apreciação da prova, «uma liberdade de acordo com um dever»[5], assenta nas regras da experiência[6] e na livre convicção do julgador.
A decisão sobre a matéria de facto é “o resultado de todas as operações intelectuais, integradoras de todas as provas oferecidas e que tenham merecido a confiança do Juiz”[7].
De lembrar que, a impugnação da matéria de facto em sentido amplo, não se pode confundir com a invocação dos vícios previstos no art. 410º, nº 2, do CPP, como o faz o recorrente quando integra no alegado erro de julgamento o da insuficiência de factos para a decisão e o do erro notório na apreciação da prova.
Os vícios do art. 410º, nº 2, do CPP terão de resultar do texto da decisão recorrida na sua globalidade, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum[8].
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (artigo 410º, nº 2, al. a), do CPP) “supõe que os factos provados não constituem suporte bastante para a decisão que foi tomada, quer porque não permite integrar todos os elementos materiais de um tipo de crime, quer porque deixem espaços não preenchidos relativamente a elementos essenciais à determinação da ilicitude, da culpa ou outros necessários para a fixação da medida da pena. A insuficiência significa, por outro lado, que não seja também possível uma decisão diversa da que foi tomada; se não for o caso, os factos podem não ser bastantes para constituir a base da decisão que foi tomada, mas permitir suficientemente uma decisão alternativa, mesmo de non liquet em matéria de facto. Por fim, a insuficiência da matéria de facto tem de ser objectivamente avaliada perante as várias soluções possíveis e plausíveis dentro do objecto do processo, e não na perspectiva subjectiva decorrente da interpretação pessoal do interessado perante os factos provados e as provas produzidas que permitiram a decisão sobre a matéria de facto.”[9]
A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (art. 410º, nº 2, al. b), do CPP) “é somente aquela que é intrínseca ao próprio teor da sentença, “considerada como peça autónoma e não também as contradições eventualmente existentes entre a decisão e o que consta do processo, no inquérito ou na instrução”.
O erro notório na apreciação da prova (art. 410º, nº 2, al. c), do CPP) “constitui uma insuficiência que só pode ser verificada no texto e no contexto da decisão recorrida, quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou que traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio. A incongruência há-de resultar de uma descoordenação factual patente que a decisão imediatamente revele, por incompatibilidade no espaço, de tempo ou de circunstâncias entre os factos, seja natural e no domínio das correlações imediatamente físicas, ou verificável no plano da realidade das coisas, apreciada não por simples projecções de probabilidade, mas segundo as regras da "experiência comum". Na dimensão valorativa das "regras da experiência comum" situam-se, por seu lado, as descontinuidades imediatamente apreensíveis nas correlações internas entre factos, que se manifestem no plano da lógica, ou da directa e patente insustentabilidade ou arbitrariedade; descontinuidades ou incongruências ostensivas ou evidentes que um homem médio, com a sua experiência da vida e das coisas, facilmente apreenderia e delas se daria conta.”[10]
Feitas estas considerações teóricas vejamos agora, em concreto, a argumentação da recorrente.
De esclarecer, desde já, que lido o acórdão e ouvida a totalidade da prova oral produzida nas sessões de julgamento (e não apenas os segmentos transcritos pela recorrente), bem como analisadas as provas documentais e periciais juntas aos autos, não se vê (como alega a recorrente) que o Colectivo tivesse apreciado este caso e as provas produzidas partindo do pré juízo de garantir e justificar que a arguida viesse a ser condenada em pena de prisão que não admitisse a sua suspensão.
Ouvindo a totalidade das declarações que a arguida prestou em julgamento, delas resulta que, na sua versão, os factos que foi dizendo ter praticado em 3.1.2010 (quando tinha 23 anos e teve o parto), ocorreram por, na altura, quando aconteceu o parto, estar “completamente perdida, sem saber o que fazer”, agindo com o intuito de a mãe (que estava acamada em quarto ao lado do seu, sendo doente oncológica em fase terminal, acabando por falecer em 3.3.2010) não se aperceber do que se passava, actuando sobre a bebé nascida da forma descrita nos factos provados para impedir que chorasse e a mãe ouvisse.
Negou ter agido de forma premeditada, verbalizando não saber explicar o seu comportamento.
Confirmou que quando tomou conhecimento da sua gravidez, decidiu não contar a ninguém e esconder o seu estado (chegando mesmo a comprar cinta para não se notar que estava grávida) e que, durante o tempo da gravidez, não pensou no que iria fazer na altura do parto, a preocupação era que a mãe não soubesse porque era doente oncológica.
Não contou aos pais por medo e vergonha (vergonha de toda a gente e principalmente da família), continuando a fazer a sua vida (continuou a trabalhar no restaurante, indo a casa dos pais nas folgas e férias, dormindo então no quarto, onde ocorreu o parto, com as irmãs) sem que ninguém desse conta do que se passava.
Confirmou o que disse às irmãs para poder ficar sozinha no quarto naquele domingo de 3.1.2010, que ainda bateram à porta para a chamar para almoçar (não se recordando se, nessa altura, a bebé já tinha nascido, pensando que tal sucedeu a partir do meio dia), não tendo a noção do tempo que se passou entre o nascimento e a morte da bebé (achando que não foi coisa rápida), tendo saído do quarto a meio tarde momentaneamente, não tomou banho (só tomou banho no dia seguinte), as irmãs só entraram à noite no quarto (pensa que na altura dormia com as duas irmãs no quarto) e que nessa noite não dormiu nada.
Esclareceu ainda que, na altura do parto, estava de férias em casa dos pais e que pensava que só na semana a seguir é que regressou ao trabalho, mas ninguém (sequer no trabalho) suspeitou de nada, nem notaram nada nela.
Referiu também que embrulhou a bebé numa manta que estava lá no quarto, que a caixa (onde colocou o cadáver embrulhado) estava debaixo da cama com calçado usado e que, até ser descoberto o cadáver, continuava a ir a casa dos pais nas folgas, mas não todas, dormia lá naquele quarto (onde tinha o cadáver por baixo da cama, dentro da dita caixa), tal como as suas irmãs (que dormiram lá até ser descoberto o cadáver), não tendo conseguido desfazer-se do cadáver, apesar de admitir que cheirava, não sabendo como não se descobriu mais cedo.
Também reconheceu que está arrependida de tudo o que se passou, que se lembra todos os dias, está a sobreviver um dia de cada vez, se pudesse voltar atrás não voltava a fazer isto, tinha admitido tudo logo de início, acrescentando que, quando recorda, vê-se como um “monstro”.
Questionada sobre se nunca lhe passou pela cabeça dar à bebé a possibilidade de viver e ver o que havia de fazer quando a bebé nascesse (v.g. ter o bebé no meio do mato, entregar para adopção, colocá-la num altar), respondeu que “pensava que logo arranjava maneira de contar.”
Sobre a possibilidade de, quando soube estar grávida, poder desfazer-se do bebé, referiu que nunca pensou em fazer o aborto, que era contra os seus princípios e contra a sua educação desde sempre, mas se o quisesse fazer era uma questão de ir a Viseu.
A instâncias do seu Advogado, quando lhe foi perguntado porque pôs termo, quando o bebé nasceu, respondeu que estava perdida; questionada se estava perturbada, respondeu afirmativamente (sim), que sentia que não era real e, perguntada se sentia que estava num pesadelo, respondeu sim.
Também interpelada sobre se queria que se descobrisse o bebé (uma vez que nunca se desfez dele e não o enterrou, apesar do trajecto que fazia, quando se deslocava para o trabalho, ser mato e monte) respondeu “de certa maneira queria, sim”, mas não contando aos pais por medo, por vergonha.
Igualmente referiu que não teve acompanhamento psicológico, nem tem possibilidades de o ter, que continua a trabalhar no mesmo restaurante e que tem um relacionamento, namoro, há cerca de 2 anos.
Nas declarações que quis prestar em julgamento a arguida nunca referiu, nem deu a entender que tivesse sentido a sua gravidez como um “pecado” ou como uma “desonra”.
Note-se que o que a arguida foi verbalizando em julgamento (embora sempre com poucas palavras), no dia 17.1.2013 (passado pouco mais de 3 anos dos crimes cometidos em 3.1.2010), embora não correspondendo exactamente ao que relatou aos peritos médicos (psiquiatras) que a observaram respectivamente em 4.11.2010, no Gabinete Médico-Legal de Vila Real (Dr. C…, cujo relatório pericial consta de fls. 153 a 157[11]) e em 9.2.2012, no Porto, na Delegação do Norte do INML, IP (Drª. E…, cujo relatório pericial consta de fls. 327 a 329[12]), vai também coincidindo com descrições que fez àqueles, em aspectos com relevo, como seja o estado em que se encontrava durante o parto, na altura em que matou a filha, quando a escondeu debaixo da cama e, posteriormente a esses factos.
Por exemplo, o que a arguida referiu de nunca ninguém (portanto - considerando também o que consta do relatório social de fls. 453 a 456, realizado em 16.1.2013 e o que foi dito pelas testemunhas de defesa I…, tia, por ser irmã da mãe, e madrinha da arguida e J…, que foi sua colega de escola durante algum tempo, conhecendo-a desde essa altura - nem na família, nem no local de trabalho que era um restaurante conhecido, nem na aldeia dos pais, nem naquela outra onde viveu quando saiu de casa para estar mais perto do trabalho, dadas as dificuldades de deslocação) ter notado nada, quer durante a gravidez, quer depois do parto e até ser descoberto o cadáver, indicia que a mesma quis vivenciar a situação que atravessou como se nada se tivesse passado com ela ou como se nada tivesse a ver com ela.
Também, o facto de nunca ter querido pensar, mesmo considerando todo período de tempo em que esteve grávida e soube desse seu estado (sendo a gravidez em princípio de 9 meses uma vez que a filha que deu à luz e nasceu com vida, tendo havido respiração extra-uterina, encontrava-se em termo de gestação, com ausência de mal formações internas ou externas), o que iria fazer na altura do parto, nunca tendo ido a um médico, nem comprado artigos próprios para ela e para o nascituro (a não ser a cinta para esconder o aumento de volume da barriga), revela que quis ignorar a sua gravidez.
Aliás, como diz o perito Dr. C…, no relatório pericial de fls.153 a 157, “não se pode excluir a situação (parto) tenha provocado na Examinanda uma situação de tensão marcada para a qual ela não estava preparada. Embora soubesse que aquele dia fosse chegar não tinha preparado essa situação pelo que fica sem saber como resolvê-la. Consegue fazer o parto em silêncio e quando o filho nasce fica provavelmente centrada num dilema para o qual não acha resposta. É de aceitar que vivencie esse estado com bastante ansiedade e tensão. (…)”.
Adiantou, ainda, o mesmo perito nos esclarecimentos que prestou em julgamento, a propósito da questão colocada à arguida de ter todo o tempo da gravidez para pensar no que iria fazer na altura do parto, tendo tomado a atitude de não pensar e depois logo se via, que às vezes pensam que pode haver uma solução mágica, parecendo-lhe que, no caso, se houvesse alguém ao lado da arguida, não se tinha passado nada disto.
A circunstância de quando soube estar grávida ter a possibilidade de se desfazer do bebé, mas nunca ter pensado em fazer o aborto, que até era contra os seus princípios e contra a sua educação desde sempre (apesar de que se o quisesse fazer era uma questão de ir a Viseu) - relato que também fez a ambos os peritos médicos que a examinaram - mostra que por causa dos valores que tinha essa não era a solução para o seu problema da gravidez.
Visto o alegado em sede de recurso e, para melhor se compreender a postura da arguida em relação à sua gravidez, levar-se-á aos factos provados a sua posição em relação à interrupção voluntária da gravidez.
Ainda a evidenciar que não “aceitava” aquela gravidez no seu corpo, embora simultânea e contraditoriamente dissesse (como consta do relatório pericial da Drª. E…) que queria ter a criança, está também a decisão que tomou de esconder esse seu estado de todos e de não contar a ninguém.
Dir-se-á que essa decisão de esconder a gravidez, que tem implícito o não reconhecimento desta (ainda que fruto de um relacionamento sexual ocasional, ocorrido em 4.4.2009, data que recordava, como declarou em audiência, por ter sido a única vez, embora ao perito Dr. C… tivesse dito algo diferente, uma vez que este no item relativo à “personalidade prévia” do relatório fez constar que a arguida “tinha percepção da sexualidade, teve alguns relacionamentos nessa área” e à Drª. E… referiu que foi “relação casual e não protegida”, como consta do item discussão e conclusões do seu relatório) não é compatível com os princípios e educação que disse ter desde sempre, que lhe foram incutidos pelos pais, os quais naturalmente a deviam ter levado a aceitar o seu estado, pensar no que iria fazer quando chegasse a altura do parto, deixar nascer o filho e depois criá-lo e educá-lo (nem que fosse sozinha - já que até tinha emprego, salário mensal e casa arrendada - caso não viesse a ter o apoio da família, como temia).
Repare-se que a arguida, apesar de ter crescido na aldeia, em ambiente rural, no interior do país (natural da freguesia …, concelho de Resende, distrito de Viseu, onde residiu com os pais até ter arranjado emprego no restaurante, onde ainda trabalha), no seio de uma família coesa, embora conservadora, de situação económica remediada, completou o 12º ano de escolaridade aos 18 anos de idade (o que significa que seria pessoa esclarecida e informada, ainda que pudesse ter pouca experiência) e, poucos meses depois, começou a trabalhar, como empregada de balcão/mesa, no tal restaurante sito na …, Cinfães, passando então, durante o período de trabalho, a viver sozinha em casa arrendada, na localidade onde trabalhava (v.g. por dificuldades de deslocação, já que na altura não tinha transporte próprio), indo para casa dos pais nas folgas e nas férias.
Ou seja, trabalhava desde os 18/19 anos e ficou grávida aos 22 anos de idade, numa altura em que vivia autonomamente, fora do seio familiar (ia a casa dos pais nas folgas e nas férias).
Antes de ficar grávida e desde que passou a viver sozinha, a autonomia que passou a ter, permitia-lhe sair à noite com os amigos, ir a festas, divertir-se e ter relacionamentos, sem que os pais soubessem, não aprovando os mesmos tal tipo de comportamentos.
Isto é, apesar de saber que esse tipo de comportamentos que tinha, quando vivia sozinha, eram reprovados pelos pais, nem por isso a arguida se sentiu inibida ou deixou de conviver com os amigos e de ter relacionamentos, mesmo de natureza sexual, como sucedeu naquele dia 4.4.2009.
Portanto, nesse aspecto, podemos deduzir que a arguida era capaz de decidir por si, mesmo contra a vontade dos pais, apesar de não lhes dar conhecimento do que ia fazendo.
Aliás, no relatório pericial realizado pelo Dr. C… também se refere, no item “personalidade prévia” que a arguida seria (antes da gravidez) “pessoa muito expansiva, fazia facilmente amizades”, “sempre foi responsável, gostava de se divertir”, “tinha percepção da sua sexualidade”, “foi criada em princípios religiosos e em que a gravidez numa rapariga solteira era pecado”, embora apresentasse “algumas dificuldades em lidar com a sua autonomia e com a possibilidade dos pais não aceitarem alguns dos seus comportamentos como sair à noite com os amigos, ter relacionamentos e como tal ser criticada e mesmo rejeitada”, lidando “com alguma ansiedade com a doença da mãe e com o facto de poder desiludi-la na fase final da vida”.
Por sua vez, no relatório pericial realizado pela Drª. E… consta, nos antecedentes pessoais e familiares, que a opção por alugar acomodação quando foi trabalhar para um restaurante em aldeia próxima, “deveu-se à sua vontade de se afastar da aldeia de origem devido ao ambiente de rigidez conservadora familiar e social em que vivia”, acrescentando-se que “nunca teve doenças relevantes, demonstrando ter personalidade prévia com características de extroversão e razoavelmente equilibrada”, fazendo-se ainda referência, embora no exame directo e relato dos factos pela examinada, que esta “tinha fortes laços afectivos” com a mãe.
Essas referências dos peritos no sentido de que, na altura em que ficou grávida, a personalidade da arguida caracterizava-se pelo medo de ser rejeitada, pela insegurança e medo da crítica, lidando com a sua autonomia com algumas dificuldades, sendo certo que nunca teve doenças relevantes, demonstrando ter personalidade prévia com características de extroversão e razoavelmente equilibrada, devem constar dos factos provados, para melhor se compreender a maneira de ser da arguida.
De qualquer modo (apesar de algumas divergências entre o que declarou em audiência e o que relatou a cada um dos peritos, como se pode verificar conferindo ainda o teor dos respectivos relatórios periciais), fosse por dificuldades de deslocação para o trabalho, fosse também por querer libertar-se de um ambiente rígido e conservador, o certo é que a arguida antes de ficar grávida foi vivendo a maior parte do tempo (pelo menos durante cerca de 3 anos, apesar de ir a casa dos pais nas folgas e férias) autonomamente, o que lhe deu desenvoltura para no dia a dia tomar decisões sozinha, naturalmente pensando nas consequências, atento o seu nível intelectual e académico e idade que já tinha, não obstante ser uma jovem.
Poder-se-á contestar que nunca teve que tomar uma decisão tão importante, como é a da surpresa de uma gravidez não planeada e não desejada (apesar de a dever ter previsto), sabendo que isso poderia representar a quebra de relacionamento com os pais, principalmente com a mãe, o que a levou a ocultar aquele seu estado e a não querer pensar no assunto, deixando correr, com medo de ser rejeitada (mas, naturalmente, não podendo ignorar que o dia do parto iria chegar e que apenas estava a adiar um problema que iria ter que resolver).
No entanto, até porque tinha “bom nível intelectual e académico” como se diz no relatório pericial da Drª. E…, devia ter procurado ajuda em alguém da sua confiança ou recorrer a alguma instituição ou serviço público que lhe prestasse apoio, o que não fez.
A preocupação com a mãe, que era doente oncológica e estava na fase terminal, o não querer desiludi-la, sabendo (conforme relato que fez à perita Drª. E…) “que ia ser o maior desgosto da vida dela porque ela sempre disse que nunca ia perdoar a uma filha que engravidasse sem casar”, o medo de ser rejeitada pela família, mostra que a arguida vivia com sentimentos contraditórios dentro de si (e isso, não obstante antes de ficar grávida, também já ter uma vida com sinais contraditórios, na medida em que tinha de esconder aos pais, quando ia para casa deles, a vida que fazia quando estava fora de casa), ia voluntariamente adiando o problema, não querendo pensar muito no seu estado (apesar de ir escondendo a gravidez ao longo dos meses), refugiando-se por um lado no trabalho no restaurante e por outro na preocupação com o estado de saúde da mãe.
Ora, tendo a possibilidade de continuar a viver a sua vida, de forma autónoma, ainda que não quisesse confrontar os pais com a gravidez sem casamento e sem parceiro (por ter perdido o contacto deste e nem sequer ter perguntado a amigos por ele porque também não contou que estava grávida) podia, ao menos na altura em que pressentiu (pelas dores que, em audiência, disse começar a ter de madrugada, sem saber precisar a hora) que se aproximava a hora do parto, ter saído de casa, desculpando-se com um qualquer pretexto (assim como o fez para ficar sozinha no quarto durante todo o dia até à noite, quando as irmãs se foram deitar) para que ninguém se apercebesse do que se estava a passar e, depois de nascida a criança, arranjaria maneira (como também chegou a adiantar em audiência) de contar.
Em último recurso, era esse o comportamento que se esperava da arguida, uma vez que não assumira o seu estado de grávida publicamente (escondeu a gravidez de todos, mesmo de amigos, ainda que pudesse sentir, na “tradução” feita pela perita Drª E… do relato que a arguida lhe fez, “como transgressiva e não desculpável pela forte repressão familiar e social”) e também invocou os seus princípios para não interromper a gravidez.
Mesmo que considerasse a gravidez “como transgressiva e não desculpável pela forte repressão familiar e social” isso não a impedia de ter reflectido sobre o assunto e de pensar no que iria fazer quando chegasse a altura do parto (tanto mais que teve tempo para o fazer).
Note-se que ao perito Dr. C… chegou mesmo a dizer que, para ela, arguida, “fazer um aborto era a mesma coisa do que fiz” (querendo aqui referir-se ao que se passou quando matou a filha que acabara de nascer e depois a escondeu debaixo da cama).
Pelo que resulta do relato dos factos que fez aos peritos médicos, nos exames a que foi submetida, a arguida quando sabe que está grávida tem receio principalmente da atitude da mãe que era mais conservadora, a quem não queria desgostar na fase final da vida, por causa da sua doença oncológica, doença esta que a arguida vivia com ansiedade, até por manter com a mãe fortes laços afectivos.
Por isso, foi vivendo com aqueles dilemas (medo de desgostar a mãe na fase final da vida, medo de ser rejeitada pela família - o que mostra que apesar de viver autonomamente precisava do apoio familiar -, preocupação de esconder a gravidez de todos, talvez para não ser possível ser descoberta), não querendo pensar no que iria suceder quando chegasse a hora do parto e, daí não se ter preparado para essa situação e, quando chegou a altura do parto, acabou por encontrar a resposta/solução errada.
Seria de esperar que, sendo a arguida, antes da gravidez, uma pessoa com características de extroversão, com formação académica bastante ao menos para pensar em procurar auxílio, contasse a alguém (fosse mais próximo ou não) e pedisse ajuda; no entanto, não o fez, o que pode indiciar que, apesar do seu carácter expansivo da altura, o “choque” da gravidez (como relatou à perita Drª E…), tornou-a reservada neste assunto, sendo aquele um tema tabu, não partilhando com ninguém, talvez também para nunca chegar a notícia à família e, especialmente à mãe, a quem não queria desgostar por estar na fase terminal da doença oncológica de que padecia (mãe e família prévia que, como esclareceu a perita Drª. E… em julgamento, em termos de hierarquia, está primeiro do que a filha que acabou de nascer, o que para a arguida naquela altura fazia sentido, apesar de para outra pessoa não ser assim).
A inversão da hierarquia (colocando a família prévia e a mãe primeiro do que a filha recém-nascida) poderá compreender-se, tendo em atenção o que fazia sentido na altura para a arguida, uma vez que, escondendo a gravidez de tudo e de todos e alheando-se no trabalho e na ansiedade com que vivia a doença da mãe, acabou por nem sequer criar aparentemente (pelo menos durante a gravidez e parto) qualquer laço de afecto, nem desenvolveu sentimento de maternidade em relação ao bebé que trazia na barriga, cujo aumento de volume escondeu sempre durante toda a gravidez (comprando até cinta para o efeito).
Dizemos que aparentemente nem sequer estabeleceu aqueles laços e sentimentos (normais por regra em qualquer grávida) com o bebé porque simultaneamente verbaliza aos peritos que queria ter a criança.
Pode dizer-se que não se sabe se assim se exprime, quando diz querer ter a criança, por ser o que sentia de facto ou por ser o que está de acordo com os ensinamentos que recebeu ou por ser esse o discurso esperado socialmente e mais correcto (embora em princípio seja de afastar esta última hipótese até porque, posteriormente a tudo ser descoberto, passa a viver angustiada com os crimes que cometeu, sentindo-se permanentemente culpada, apresentando intenso sofrimento psicológico depressivo, sentindo-se um “monstro” e, segundo a perita Drª E… tendo “ideias recorrentes de suicídio”).
No entanto, se efectivamente quisesse ter a criança, previamente ao parto, que sempre sabia que iria acontecer, teria tomado uma decisão (e, mesmo que não quisesse que as pessoas que pertenciam ao seu circulo existencial soubessem, sempre poderia ter ido a Viseu - cidade que a arguida também sabia que podia recorrer caso quisesse interromper a gravidez, o que apenas não fez por ser contra os seus princípios e educação – dirigir-se a uma instituição ou serviço público pedir auxílio ou ajuda na solução do problema que tinha em mãos).
De qualquer modo, o que é certo é que na altura em que nasceu a criança, tendo consciência do bem e do mal (e, portanto, sabendo, como resulta do que verbalizou ao Dr. C…, que matar é crime, tal como o é a ocultação de cadáver, o que também confirma em sede de recurso), apesar do estado perturbado em que se encontrava (que ela própria despoletou com o seu comportamento anterior, desde logo considerando a atitude que tomou de não querer pensar no assunto do parto desde que soube que estava grávida, ainda que tivesse medos de rejeição e de crítica), não se sentiu coibida ou inibida para logo a seguir a matar, embora com o intuito da mãe não se aperceber do que se estava a passar (não ouvir o choro da recém-nascida) e, portanto, para a poupar do grande desgosto que, na percepção da arguida, iria sofrer (e a verdade é que a mãe da arguida morreu 2 meses depois, precisamente em 3.3.2010, sem saber do nascimento e morte da neta).
O centrar do problema na questão de não desgostar ou desiludir a mãe (mesmo que devido ao medo de ser rejeitada e criticada, apesar de igualmente revelar egoísmo e preocupação consigo própria), ainda que também tivesse contribuído (aliado à sua insegurança) para a atitude de não querer pensar na hora em que chegasse o parto (adiando esse problema), mostra que a arguida (jovem com 22/23 anos, com o 12º ano de escolaridade, que desde os 18/19 anos vivia autonomamente) “fugiu” voluntariamente às suas responsabilidades.
Não era alheando-se do “problema” que tinha (não querendo pensar no que iria fazer quando chegasse a altura do parto) que o ia resolver, como naturalmente não podia desconhecer.
Por outro lado, a imagem que tem da mãe (de pessoa muito conservadora, que até a podia rejeitar, sendo seguida pela restante família), na altura acamada e na fase final da vida, noção de que iria sofrer um grande desgosto e desilusão, correndo a arguida o risco de ser rejeitada, podia não corresponder exactamente à realidade naquela altura em que a mãe estava na fase terminal (sabido que, muitas vezes, quando as pessoas estão em fase terminal, as coisas que eram tidas como importantes na vida – como seria a de não perdoar a uma filha que engravidasse sem casar – acabam por se tornar relativas, quando a morte se aproxima, levando a mudanças de atitudes).
A percepção que a arguida tinha até da própria família a rejeitar caso soubesse daquela gravidez é de alguma forma contraditória (revelando que a arguida teria uma concepção própria daqueles que a rodeavam e de quem gostava em primeiro lugar que podia ser errada ou exagerada, mas sintomática dos seus medos e inseguranças e, ao mesmo tempo, sinalizadora da preocupação que tinha consigo própria, entendida como prioritária em relação à criança que iria nascer), uma vez que por um lado também verbaliza que depois da criança nascer haveria de arranjar maneira de contar (o que revela alguma esperança de a aceitarem, apesar daquele “pecado”), por outro lado, depois da morte da mãe, voltou para casa dos pais, onde passou a viver, mesmo após ser descoberto o cadáver (o que mostra que, apesar de tudo, a família a acolheu) e, finalmente, em audiência, aqueles familiares mais próximos que foram convocados como testemunhas de acusação (a irmã K…, de 14 anos, o pai L…, de 51 anos, a irmã M…, de 30 anos, o cunhado N…, de 33 anos, o irmão O… de 21 anos, tudo como a acta respectiva o documenta), fizeram uso da prorrogativa prevista no art. 134º, nº 1, al. a), do CPP, não querendo prestar depoimento (o que demonstra a coesão da família e sentimentos que nutrem pela arguida, querendo protegê-la também, apesar de tudo o que se passou, independentemente de igualmente poderem querer proteger-se a eles próprios, considerando, por exemplo, a reputação que gozavam no meio social onde estão integrados).
Também será de assinalar que, mantendo-se em casa após a descoberta dos factos, segundo a arguida nunca entre eles falaram no que se passou, apesar da forma trágica como vieram a saber de tudo (e isso resulta do que a arguida relatou à Drª. E… e de alguma forma ainda do relatório social, onde se faz menção de que os crimes em questão originaram conflitos no seio do agregado familiar, “porém, a situação não mais foi abordada até à actualidade por se tratar de um assunto difícil e delicado”, conforme teria sido expresso pelo pai da arguida).
A ser assim, então apesar de haver coesão familiar, o ambiente seria conservador e fechado uma vez que nem entre eles teriam falado abertamente sobre o sucedido, apesar de ser difícil abordar o tema.
Não obstante a ideia que a arguida tinha da sua família, como sendo rígida e conservadora (a qual podia não corresponder exactamente à realidade, apesar da tia, a testemunha I…, referir que a arguida foi educada na fé cristã, recebendo educação muito rigorosa, dada mais pela mãe que estava em casa e que se os pais soubessem que ela estava grávida ia ser complicado, acrescentando que a arguida ficou muito afectada com a morte da mãe e que também ela, testemunha, nunca teve coragem de falar com a arguida sobre o que se passou, que na altura não lhe conheciam namorado, mas se viesse falar consigo, ajudava-a), o que é certo é que, ainda assim, apesar de prever ter o filho entre Dezembro e Janeiro (como declarou ao perito Dr. C…), foi para casa dos pais (em altura em que estava igualmente de férias) e não saiu do seu quarto quando pressentiu que se aproximava o momento do parto (apesar de ter a liberdade de sair de casa), nem sequer tendo pensado na hipótese de ir para um hospital ter a criança (até para prevenir qualquer problema que pudesse surgir, tanto mais que por sua exclusiva vontade nem fora assistida medicamente durante a gravidez).
Portanto, quando viu que se aproximava a altura do parto, apesar de ter liberdade para sair de casa (podendo v.g. chamar um táxi que a levasse ao hospital), a arguida deixou-se ficar no quarto, que partilhava com mais duas irmãs menores, apenas arranjando um pretexto para que aquelas lá não fossem durante o dia.
Essa reacção da arguida, revela, como era de esperar, que na altura não estava preparada para enfrentar aquela situação (para além de não ter experiência na matéria e ser a primeira vez que ia ter um filho).
No entanto, essa falta de preparação só a si é imputável, já que era exigível que antes (durante o período todo em que soube que estava grávida, que não foi uma questão de dias, mas antes de meses) tivesse pensado no que iria fazer quando chegasse o momento do parto.
A atitude de, por sua vontade, ir sempre adiando a resolução do problema, não querendo pensar, sabendo que ia chegar o dia em que a criança iria nascer e que tinha de estar preparada para esse momento, poderá indiciar alguma imaturidade.
Dizemos imaturidade (e não, por exemplo, convencimento de que era capaz de resolver o problema sozinha, afastada que foi a ideia da premeditação, isto é, que desde que soube que estava grávida, decidiu livrar-se do nascituro, matando-o após o parto) por estar mais de acordo com a personalidade que revelou ter, também caracterizada pelo perito Dr. C…, marcada pelo “medo de rejeição, insegurança, medo de crítica”.
Todavia, essa eventual imaturidade, mas também preocupação consigo própria, fruto das características da sua personalidade, não explica a razão pela qual durante o período em que soube que estava grávida (o que sucedeu durante várias meses) não quis pensar no que iria fazer na altura do parto, sendo certo, por outro lado, que também foi capaz de comprar a cinta para poder continuar a esconder a gravidez.
Ou seja, foi apenas a atitude da arguida e forma como quis encarar a sua gravidez (isto é, foi apenas por causa da situação por si criada culposamente) que desencadeou o estado de perturbação emocional em que acabou por ficar na altura do parto.
Aliás, a culpa marcada que passou a sentir depois de tudo ser descoberto, encontrando-se ainda agora em estado depressivo, não procurando apoio psiquiátrico adequado (alegando não ter possibilidades económicas para o fazer, o que não convence porque sempre podia recorrer ao serviço público de saúde), evidencia que os actos criminosos praticados pela arguida naquele dia 3.1.2010 eram e são contrários aos seus princípios, tendo actuado daquela forma por nessa altura estar perturbada emocionalmente, situação que ocorreu por sua exclusiva culpa, quando não quis preparar-se atempadamente para a situação do parto (não se tendo organizado previamente, como podia e devia, para saber o que fazer quando chegasse a altura do parto), apesar de igualmente não querer desgostar a mãe, com quem tinha fortes laços afectivos e estar preocupada consigo próprio, uma vez que tinha medo de ser rejeitada e criticada.
O não se ter preparado para o parto (assinalada pelos dois peritos) embora soubesse previamente que aquele dia ia chegar, consequência de antes (desde que soube que estava grávida) não ter querido pensar no que iria fazer naquele momento, a reacção de se deixar ficar no quarto, apesar de ter liberdade para sair de casa, a ansiedade com que vivia a doença da mãe, os fortes laços afectivos que por ela sentia, terão de constar dos factos dados como provados para melhor se perceber o seu comportamento naquele dia 3.1.2010, tendo igualmente em atenção as questões suscitadas no recurso.
Quando previu (pelas dores que começou a sentir de madrugada) que estava próxima a altura do parto, para a qual não estava preparada, embora soubesse que aquele dia ia chegar, a arguida ficou sob grande tensão e ansiedade (o que também decorre do relatório pericial do Dr. C…).
Esse seu estado, nessa altura, tem de constar dos factos provados, para se compreender como é que depois acabou por se sentir “perdida”, tal como a arguida declarou em julgamento e também à Drª. E….
No entanto, impõe-se aqui esclarecer que, a questão que se coloca não é, como alega a recorrente, a de saber porque optou levar a gravidez até final, mantendo-a em segredo, quando podia facilmente tê-la interrompido voluntariamente.
Note-se que a interrupção voluntária da gravidez, como a arguida sempre declarou (quer em julgamento, quer aos peritos) sempre foi excluída por ir contra os seus princípios e educação e, de resto, a sua atitude (desde que soube que estava grávida) foi não querer pensar no que ia fazer depois, quando chegasse o momento do parto.
A interrogação a formular é antes: devia ou não devia esperar-se que a arguida desde que soube que estava grávida ao menos pensasse no que iria fazer quando chegasse o dia do parto?
É que a arguida não podia ignorar que a fase do parto iria chegar e que não tinha experiência nessa matéria.
E, pelo que resulta dos relatórios periciais (que se referem, cada um a seu modo, à perturbação emocional da arguida na altura do parto), não se vê que a arguida não tivesse possibilidades de prévia e atempadamente pensar no que iria fazer quando chegasse a altura do parto e encontrar uma saída/solução (tanto mais que tinha capacidade intelectual bastante para perceber que, não estando preparada para o parto, sempre essa situação podia fugir ao seu controlo).
A forma como vivenciou o parto, desde o nascimento da criança até a matar, também foi transmitida ao perito Dr. C… quando referiu “que nesse intervalo ficou bloqueada, não conseguia pensar em nada. Só não queria provocar uma desilusão à mãe.”
Apesar desse “bloqueio”, a arguida era pessoa imputável, mantendo (como se diz no relatório pericial do Dr. C…) “consciência do bem e do mal, em concreto reconhecendo serem ilícitos os actos por si cometidos, seja na actual observação, seja quando da prática dos factos que a própria verbaliza. A examinanda relata pormenores recordados, sendo que a descrição minuciosa que é feita pela examinanda, seja na presente perícia, seja no relato dos factos à polícia, igualmente atesta processamento cognitivo íntegro. Também não houve turvação da consciência.”
A imputabilidade da arguida (admitida igualmente em sede de recurso) também é reconhecida pela Drª. E…, como decorre do relatório pericial que elaborou.
Não obstante a sua juventude, a falta de experiência, a ausência de preparação e a carência de apoio (que nunca procurou, como podia e devia) de alguém (designadamente um profissional de saúde) que a acompanhasse naquela altura, a arguida conseguiu ter o filho em silêncio, porque sabia que a mãe estava no quarto ao lado e não queria que ela ouvisse, para a não desiludir.
Essa matéria de ser primípara sem preparação (como também assinalou a Drª. E…), conseguindo sozinha que o parto decorresse em silêncio para a mãe não ouvir, terá de constar dos factos provados para melhor caracterizar o seu comportamento, como igualmente decorre do alegado pela recorrente.
E, repare-se que nem a mãe (que estava no quarto ao lado acamada), nem os outros familiares que estavam em casa (sendo que as irmãs chegaram da missa pelas 10h30 e ainda falaram com ela, perguntando porque é que ainda estava deitada) deram conta do que se passava no quarto onde estava a arguida, apesar de ainda lá terem ido bater à porta para a chamarem para o almoço.
A recordação de não ter sentido muitas dores na altura do parto também pode ser explicada por na altura (como diz o perito Dr. C…) ter ficado “provavelmente centrada num dilema para o qual não achou resposta”.
Das provas produzidas, particularmente das declarações prestadas pela arguida em julgamento e dos relatos que fez aos peritos, não se pode deduzir que a mesma, desde que sentiu as primeiras dores de barriga e contracções na madrugada de 3.1.2010 até ao momento em que matou a filha, tivesse sofrido dores, mesmo físicas, superiores àquelas que são experimentadas pelas mulheres colocadas em situação idêntica.
Por isso, não podemos concluir e dar como provado, como alega em sede de recurso, que estivesse debaixo de enorme sofrimento físico, sentindo dores agonizantes ou dores (que necessariamente supõem sofrimento) diferentes das que foram dadas como provadas.
Por outro lado, se é certo que, nos esclarecimentos que prestou, a perita Drª. E… fez referência genérica a que também havia que ponderar as questões hormonais, por a arguida quando matou a filha estar em período pós-parto, o certo é que não extraiu daí (nem sequer consta do relatório pericial que fez, apesar da referência ao puerpério) que na altura a arguida apresentava alterações fora do normal a nível do metabolismo hormonal (sabido que no parto há variações hormonais).
Da associação que fez ao puerpério (definido genericamente o puerpério como a fase pós-parto) não se pode retirar que houvesse o alegado “extremo descontrolo hormonal”, mesmo considerando que a arguida (por exclusiva culpa sua) não foi assistida medicamente.
Tão pouco se pode retirar de qualquer dos relatórios periciais ou mesmo dos esclarecimentos prestados pelos peritos que a perturbação emocional a que a arguida esteve sujeita em 3.1.2010 tivesse origem ou de alguma forma estivesse relacionada com perturbação puerpural.
Daí que não se possa dar como provado (como é alegado em sede de recurso) que a arguida sofreu extremo descontrolo hormonal e/ou que tivesse sofrido perturbação puerpural.
A extrema ansiedade e grande tensão que a arguida sentiu durante o parto tiveram origem por um lado no facto de (por exclusiva culpa sua) não se ter preparado para essa situação e por outro lado na sua preocupação de não desiludir a mãe, de esta não se aperceber do que se estava a passar (o que está de acordo com a sua personalidade, medos e inseguranças que a caracterizam e também com a preocupação que tinha consigo própria, de não ser rejeitada e criticada).
Nessa situação de tensão marcada e dilema (a que só ela própria deu causa) ficou perdida (ou bloqueada), dando prioridade ou colocando em primeiro lugar a mãe e ela própria, por causa dos medos que sentia.
O estado de grande perturbação emocional, determinado pela forma como encarou a gravidez, conduziu a arguida à solução errada quando decidiu matar a sua filha para impedir que chorasse e a mãe ouvisse.
Executando essa decisão, após ter cortado o cordão umbilical de imediato colocou as mãos sobre a boca e nariz da recém-nascida, tapando-os, mantendo-se em cima da cama por um período de cerca de 10 minutos e, constatando que a filha continuava a mexer as pernas, apertou-lhe então o pescoço com as mãos, acção que reforçou com o recurso a uma meia de lã que atou ao redor do pescoço da filha, ao mesmo tempo que lhe introduziu um lenço de papel na boca e, passados poucos minutos, a recém-nascida morreu, tal como (a arguida) se apercebeu, uma vez que a mesma já não respirava e tombava a cabeça.
A duração de cerca de 10 minutos enquanto esteve com as suas mãos colocadas sobre a boca e o nariz da filha recém-nascida, sem conseguir provocar-lhe a morte, mostram que tinha que estar intensamente perturbada enquanto executava a resolução que tomara.
Com efeito, como dizem as regras de experiência comum em casos semelhantes, caso a arguida não estivesse sob aquela intensa perturbação emocional, não era preciso tanto tempo para, com êxito, conseguir asfixiar a filha e, dessa forma, provocar-lhe a morte.
O acto de a seguir lhe apertar o pescoço e reforçar isso com o atar da meia de lã ao pescoço e com a colocação do lenço de papel na boca, mostra também que a arguida na altura terá agido alheada de si, sem usar um raciocínio lógico (sendo de qualquer modo imputável), pois, como é natural, apesar de poder estar esgotada pelo parto, sempre tinha força suficiente nas mãos para, em pouco tempo, apertando-lhe o pescoço, asfixiar a filha recém-nascida (pessoa frágil e completamente desprotegida) e, dessa forma, a matar (ou seja, não era preciso o reforço com o atar da meia no pescoço e o colocar do lenço de papel na boca, para conseguir matar a filha, o que mostra o intenso estado de perturbação emocional em que se encontrava).
Por outro lado, a forma que encontrou (manualmente, com o recurso à sua força física, na qual não confiou) para matar a filha e todos os passos que executou para concretizar esse resultado, evidenciam igualmente a dificuldade que teve em matar a recém-nascida (o que, noutra situação, seria fácil de executar), o que é demonstrativo que não perdeu a consciência da ilicitude dos seus actos (como, aliás, a mesma reconhece em sede de recurso).
Repare-se que a morte ocorreu por asfixia, por oclusão das vias respiratórias, não havendo lesões traumáticas na coluna vertebral, nem sendo assinalada qualquer fractura a nível do pescoço, onde a arguida colocou as mãos quando o apertou (cf. relatório de patologia forense, autópsia de fls. 145 a 150).
O que mostra bem que na altura estava dominada por sentimentos contraditórios, uma vez que tanto decidiu matar a filha recém-nascida como teve grande dificuldade em concretizar essa resolução (o que também reforça a conclusão da sua imputabilidade à data dos factos, como se extrai do relatório pericial do Dr. C…, também é reconhecido no relatório pericial da Drª. E… e igualmente é admitido no recurso).
Nem sequer a arguida pensou noutra forma (que não fosse através do recurso à sua força física, na qual não acreditou) de matar a filha (podia-a a ter colocado dentro de um saco plástico bem fechado – hipótese que chegou a ser referida em audiência – o que eventualmente evitaria ficar com a sensação de a matar com as próprias mãos).
De qualquer modo, foram necessários poucos segundos para tomar a decisão errada e levou mais de 10 minutos a concretizar essa decisão (o que indicia que naquela altura que atravessou, entre o nascimento da criança e a sua morte, deve ter vivido um grande conflito interior, o que reforça a conclusão da sua imputabilidade).
A forma e tempo que demorou a executar a morte da filha, mostra que apesar de usar a sua força física, nem sequer lhe partiu o pescoço (o que significa que a força que imprimiu quando lhe apertou o pescoço não foi tão grande como isso – a vítima ainda demorou poucos minutos a morrer – conseguindo a arguida controlar a sua força física, assim revelando bem que não perdeu a consciência da ilicitude dos seus actos, apesar de haver alteração do seu estado, como decorre do relatório pericial feito pela Drª. E…).
O que tudo ponderado evidencia que a arguida, sendo imputável à data dos factos, agiu sob um estado de intensa perturbação emocional, com alteração do estado de consciência, na medida em que vivenciou um fenómeno de despersonalização e desrealização, embora não absolutos (já que não perdeu o contacto com a realidade, v.g. quando sempre se preocupou com que a mãe não ouvisse nada e manteve a consciência da ilicitude dos seus actos).
Estado de intensa perturbação emocional que se manteve mesmo quando ocultou o cadáver da forma como o fez, a saber: depois de se aperceber que a filha morreu, a arguida embrulhou o corpo numa manta em cima da qual se havia dado o parto, colocou-a numa caixa normalmente utilizada para acondicionamento de fruta, que estava debaixo da sua cama, contendo calçado, com o intuito de esconder o cadáver, assim o mantendo debaixo da cama desde 3.1.2010 até 20.3.2010, data em que aquele foi encontrado pelas irmãs da arguida e a situação foi descoberta (estando já o cadáver em adiantado estado de putrefacção como resulta do relatório de patologia forense, autópsia de fls. 145 a 150, que inclui fotos).
Olhando para as fotos de fls. 36 a 43 (tiradas pelos elementos da PJ que se deslocaram ao local ainda naquele dia 20.3.2010) vê-se a forma como estava colocado o cadáver na caixa utilizada.
A forma como o cadáver estava embrulhado na manta (vendo-se a manta que a cobria, mesmo parcialmente a parte de trás da cabeça, deixando o rosto à vista) e como estava colocado na caixa, indicia o cuidado com que a arguida a guardou naquela caixa aberta debaixo da sua cama (se não fosse cadáver, a forma como a colocou na manta e a pousou na caixa, podia ser um modo de a pretender aconchegar na manta, resguardando-a do frio).
Aliás, a testemunha G…, Adjunto de Delegado de Saúde que foi lá em 20.3.2010 verificar o óbito, até referiu que o cadáver estava embrulhado, como se estivesse a dormir, embora com sinais de putrefacção.
O facto de a manter sempre debaixo da sua cama, próxima de si apesar de também ali a ter morto, nunca se tendo desfeito do cadáver, tendo condições para o fazer, revela, como diz a perita Drª. E…, o “seu apego, não desaparecido” e que ainda se mantém quando verbaliza a vontade de lhe fazer o funeral.
Repare-se que, depois do que se passou em 3.1.2010 e antes da mãe falecer, a arguida regressou ao trabalho, continuando a viver fora de casa dos pais, deslocando-se a casa destes nas folgas (embora nem sempre) e, depois da mãe falecer (o que sucedeu em 3.3.2010), voltou a viver na mesma casa dos pais, indo de carro (que entretanto adquiriu) para o trabalho.
Tinha a arguida possibilidades de se desfazer do cadáver, por exemplo, enterrando-o em qualquer local ermo (dado o meio rural em que cresceu, vivia e em que trabalhava, conhecendo a zona e hábitos de quem por lá vivia).
Contudo, nunca o fez, nem sequer depois da morte da mãe, altura em que regressou ao mesmo quarto e ali permaneceu até ser descoberto o cadáver em 20.3.2010, o que sucedeu quando estava no trabalho.
O facto de não se preocupar com as irmãs menores que lá continuavam a dormir, mesmo antes da mãe morrer, sendo certo que ela, arguida, passou a ir menos a casa dos pais, não ia em todas as folgas (conforme também relatou à perita Drª. E…) como antes do parto fazia, indicia uma certa indiferença pelo bem estar das irmãs, que sabia serem menores (não podendo ignorar que elas podiam descobrir o cadáver ali debaixo da cama, dentro daquela caixa aberta, o que sempre seria um choque, ainda para mais sendo menores), mostrando igualmente a preocupação que tinha consigo própria (tanto mais que deixou de ir a casa em todas as folgas, ao contrário do que antes do parto sucedia), indiciador de um certo egoísmo e frieza.
A falta de coragem para mexer na caixa onde tinha a filha falecida (como relatou ao perito Dr. C…), o reconhecimento de nunca mais ter ido ver, de não poder enfrentar (como relatou à perita Drª. E…) e simultaneamente o facto de nunca ter feito nada para se desfazer do cadáver, mostra também que não se importava de vir a ser descoberta.
O cheiro de existir ali um cadáver, não se faria assim tanto sentir, o que se compreende ouvindo a explicação dada pelo Dr. G….
Segundo essa mesma testemunha (que lá foi verificar o óbito) nem tinha ideia de haver cheiro, o que não era de estranhar por causa do clima da altura (estava-se na época do inverno) e também por causa da tenra idade da criança/cadáver.
Por outro lado, estando a família também preocupada com a mãe acamada, que estava na fase terminal da sua vida, até se pode compreender que o cadáver não tivesse sido descoberto antes de 20.3.2010 (as preocupações não seriam os cheiros mas a mãe estar a morrer).
O facto da arguida continuar a sua vida, v.g. trabalhando no restaurante, sem que ninguém notasse qualquer alteração no seu comportamento, aponta para a existência da tal despersonalização e desrealização de que fala a perita Drª. E…, apesar do que foi dito pelo perito Dr. C… que, em esclarecimentos prestados em julgamento, referiu que no relato que a arguida lhe fez não lhe pareceu que tivesse havido situação de dissociação.
Com efeito, se não houvesse esse fenómeno da despersonalização e desrealização, por certo que a arguida (que até nem se desfizera do cadáver e, portanto, sabia que continuava ali debaixo da cama, colocado naquela caixa da forma como se vê nas fotografias acima referidas) teria dado sinais que seriam perceptíveis (v.g. estar mais distraída, deixar cair objectos v.g. no trabalho, chorar sem aparente razão, esquecer-se das coisas ou ordens que lhe dessem, alhear-se do que fazia), evidenciados no seu comportamento e maneira de estar, quer em casa, quer no local de trabalho e que levariam a que as pessoas que com ela contactavam e conviviam, v.g. no trabalho, se apercebessem, notassem, que estava diferente ou que algo se passava com ela.
Só ficcionando que aquilo que sucedera em 3.1.2010 era um pesadelo e se passara com outra pessoa, não querendo aceitar aqueles actos como seus é que a arguida podia manter um comportamento aparentemente normal perante terceiros e, portanto, conseguia esconder o que fizera.
De qualquer modo, a não aceitação da sua conduta como própria não implicou a perda da consciência da ilicitude dos actos criminosos que executou (como também resulta do que a própria verbalizou ao perito Dr. C… e do que reconhece em sede de recurso).
A arguida tinha necessariamente de prever que, deixando ali o cadáver debaixo da cama e não se desfazendo dele, mais cedo ou mais tarde iria ser descoberta.
E, talvez até quisesse ser descoberta para de alguma forma conseguir expiar a culpa que sentia, que a tem marcado ao longo destes anos, de tal modo que continua em estado depressivo (aliás, nos esclarecimentos que prestou em julgamento, o Dr. C… também realçou que a arguida lhe parecia uma jovem muito em risco face ao que se passou).
De resto, as suas atitudes e reacções, quando não quis encontrar outras soluções para os seus problemas, apesar de ser pessoa dotada intelectualmente e com o 12º ano de escolaridade (portanto igualmente esclarecida e informada) também apontam que se foi deixando ficar, como se nada se passasse com ela, aguardando que as coisas se resolvessem por si, não tendo tomado a iniciativa de contar o sucedido de modo espontâneo ou mesmo apresentando-se às autoridades, sem esperar ser descoberta da forma como o foi.
As reacções da arguida (v.g. que nunca quis encontrar solução para os problemas que lhe foram surgindo, particularmente a partir do momento em que se aproximou a hora do parto até ser descoberta), a falta de lógica e contradições nas suas atitudes e actos (que não se identificarão com “fortaleza de espírito”, considerando desde logo o estado de sofrimento psicológico em que se encontra desde os factos ocorridos em 3.10.2010, para o qual não procura ajuda médica em serviço público) e, simultaneamente, o facto de posteriormente ninguém notar o que se passava com ela (considerando a “bipolaridade” do seu comportamento), evidenciam que, ainda que por sua culpa exclusiva, o que vivenciou em 3.1.2010, desde que pressentiu o parto (vivência essa determinada pela forma como encarou a gravidez), desencadeou nela aquele estado de intensa perturbação emocional, com alteração do estado de consciência, despersonalização e desrealização associada ao puerpério, sendo sob esse estado que decidiu matar a sua filha para impedir que chorasse e a mãe ouvisse, bem como decidiu esconder o corpo/cadáver.
A questão da arguida estar ou não em estado dissociativo e, consequentemente, de o seu comportamento configurar ou não “a noção de despersonalização e desrealização” atento o estado emocional vivenciado, colocou-se ao tribunal da 1ª instância, perante as posições dos dois peritos, manifestadas quer nos respectivos relatórios periciais, quer nos esclarecimentos prestados em julgamento.
A resposta que o tribunal deu, no sentido de concluir que não houve esse estado dissociativo, é infirmado pelo que acima se referiu.
O facto de a arguida, na altura do cometimento dos factos criminosos ocorridos em 3.1.2010, não ter perdido a noção da realidade (dando prioridade à questão de não querer desiludir a mãe e de tudo fazer para que a mesma não desse conta do que se estava a passar no quarto da arguida, estando atenta às batidas na porta do quarto onde estava, procurando que ali ninguém entrasse, enquanto teve a criança, logo a seguir a matou e depois a escondeu, tal como aos vestígios do parto, mantendo a consciência da ilicitude dos seus actos criminosos) é compatível com as conclusões retiradas pela Drª. E…, tal como a mesma esclareceu em julgamento, não se vendo que, dos esclarecimentos prestados pelo Dr. C…, resulte o contrário.
Como igualmente decorre dos esclarecimentos prestados por ambos os peritos não se vê que cada um deles tivesse noções distintas sobre os conceitos de despersonalização, desrealização, estado dissociativo ou alteração do estado de consciência sem perder a consciência da ilicitude dos actos criminosos, apesar de poderem ter visões mais ou menos restritivas (ver, de resto, a esse propósito, o DSM – IV – TR, Manuel de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais, 4ª edição, texto revisto, Climepsi Editores, 2002, pp. 530 a 532).
O que sucedeu foi antes que cada um fez a sua análise, tendo em atenção o objecto de cada uma das perícias.
Enquanto o perito Dr. C…, teve o encargo de, no exame que efectuou à arguida, “aferir se a mesma se encontrava sob a influência perturbadora do parto” (cf. fls. 132), já sobre a perita Drª. E… recaiu a responsabilidade de, no exame que efectuou à arguida, pronunciar-se sobre a factualidade descrita nos artigos 25º, 27º, 28º a 37º, 39º, 41º e 48º (o que se relacionava, entre outras, com a questão de saber se a arguida agiu sob a influência do trauma pós-parto) do RAI e, bem assim, “sobre todos os factos do estado da personalidade e estado psíquico da arguida que se possa revelar de interesse para a causa” (cf. RAI de fls. 205 a 218 e oficio de fls. 315).
E, obviamente, para além disso, também cada um deles partiu, além do que resultava dos respectivos elementos que constavam dos autos, ainda do relato que a arguida fez aquando do exame e do que nela observaram.
Diremos, assim, que as opiniões dos peritos nos exames que efectuaram decorrem (não de uma contradição parcial entre eles, como parece sugerir o Colectivo quando se refere à divergência dos peritos e ao acolhimento do juízo feito pelo Dr. C…) da finalidade de cada exame, dos relatos que a arguida fez a um e a outro (sendo o relato que fez à Drª. E…, já mais completo e pormenorizado do que o que fez ao Dr. C…, tendo também em atenção as questões mais amplas e alargadas que se suscitavam na 2ª perícia) e das observações que cada um fez nos respectivos exames.
Portanto, não se pode falar propriamente em divergências entre os peritos ou contradições, apesar do Dr. C… ter referido que, na descrição que a arguida lhe fez, não lhe pareceu que houvesse situação de dissociação.
Entendemos, assim, em conformidade com o que acima ficou exposto e com o estabelecido nos arts. 428º e 431º, alíneas a) e b), ambos do CPP, que se impõe alterar a matéria de facto, nos termos abaixo indicados, por forma a melhor concretizar as circunstâncias em que a arguida praticou os factos em questão (assim, procedendo, nesta parte, embora parcialmente, o invocado erro de julgamento).
E, não obstante impor-se melhor concretizar parte dos factos impugnados, tal como argumenta a recorrente, embora de acordo com o que acima se foi expondo, o mais que alegou em sede de recurso, não encontra apoio nas provas produzidas (nem mesmo nas declarações que quis prestar em julgamento), razão pela qual não pode ser atendido.
O mesmo se passa (isto é, não pode ser atendido, nem objecto de introdução na decisão sobre a matéria de facto) com o mais alegado, de forma conclusiva, abstracta e genérica, pela recorrente.
Por isso, quanto ao invocado erro de julgamento, apenas se impõe a modificação das alíneas g), k), m), n), o), p) e y) dos factos dados como provados e o aditamento das alíneas oo) a rr) abaixo referidas, tudo nos termos a seguir indicados:
(…)
g) No dia 03 de Janeiro de 2010, pelas 04:00 horas, quando se encontrava deitada no quarto, onde também dormiam duas das suas irmãs, menores, em casa dos seus pais, sita no …, Resende, a arguida começou a sentir dores de barriga e contracções, o que a levou a prever que se encontrava próxima a altura do parto, para a qual não se preparara, embora soubesse previamente que aquele dia ia chegar, deixando-se ficar dentro do quarto (apesar de ter liberdade para sair) sob grande tensão e ansiedade.
k) Ao princípio da tarde desse mesmo dia as dores intensificaram-se e a arguida, perdendo sangue e líquido amniótico, entrou em trabalho de parto e, apesar de ser primípara sem preparação, sozinha conseguiu fazer o parto em silêncio para a mãe não ouvir, tendo o mesmo terminado com o nascimento de um bebé, do sexo feminino, com vida.
(…)
m) Nas circunstâncias descritas, a mãe da arguida encontrava-se no quarto ao lado daquele onde a arguida estava, estando aquela acamada, em fase terminal de uma doença do foro oncológico, doença essa que a arguida vivia com ansiedade.
n) A arguida não queria que os seus pais e, especialmente a sua mãe, que era muito conservadora e crítica face aos comportamentos sexuais fora do casamento, nomeadamente, por perfilhar princípios religiosos cristãos (segundo os quais a arguida foi também educada), tomassem conhecimento de que, sendo solteira e não tendo sequer relação de namoro assumida com alguém, engravidara e tivera uma filha. Não querendo a arguida desiludir a mãe e pretendendo evitar que sofresse o desgosto de saber desses factos, sobretudo, numa situação em que estava na fase final da sua vida, a arguida escondeu a sua gravidez e, chegada a altura do parto, actuou do modo acima descrito.
o) Durante o parto, no circunstancialismo descrito, a arguida sentiu-se extremamente ansiosa e sob grande tensão, sentindo-se perdida, não querendo, acima de tudo, provocar uma desilusão à mãe, por quem nutria fortes laços afectivos.
p) O vivenciar de tudo o que ficou descrito nas als. g) a o), determinado pela forma como encarou a gravidez, colocou a arguida num estado de intensa perturbação emocional, com alteração do estado de consciência, despersonalização e desrealização associada ao puerpério, sendo sob esse estado que decidiu matar a sua filha para impedir que chorasse e a mãe ouvisse, bem como decidiu esconder o corpo/cadáver.
(…)
y) A arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua filha, recém-nascida, nascera com vida e que ao tapar-lhe, com as mãos, a boca e o nariz, bem como ao apertar-lhe o pescoço, com as mãos, e introduzir-lhe um lenço na boca e ao atar-lhe uma meia de lã à volta do pescoço, iria impedi-la de respirar, asfixiando-a, e que, dessa forma, lhe produziria a morte, resultado este que a arguida previu e quis, apesar de então se encontrar sob um intenso estado de perturbação emocional, nos termos descritos na alínea p) supra, estando igualmente ciente de que a sua descrita conduta era proibida e punida por lei.
(…)
oo) A arguida não pensou em interromper voluntariamente a sua gravidez, por isso ser contra os seus princípios e contra a sua educação.
pp) Desde que soube que estava grávida a arguida não quis pensar no que iria fazer na altura do parto, momento esse que sabia que iria chegar.
qq) Na altura em que ficou grávida a personalidade da arguida caracterizava-se pelo medo de ser rejeitada, pela insegurança e medo da crítica, lidando com a sua autonomia com algumas dificuldades.
rr) Nunca teve doenças relevantes, demonstrando ter personalidade prévia com características de extroversão e razoavelmente equilibrada.
Acrescente-se, ainda, que efectuadas as alterações apontadas, não se detectam vícios previstos no art. 410º, nº 2, do CPP, os quais são de conhecimento oficioso.
Com efeito, com as modificações introduzidas, para além dos factos apurados permitirem ao tribunal proferir uma decisão (o que mostra a sua suficiência, o que também já anteriormente sucedia), não se detecta qualquer contradição entre a fundamentação e a decisão, sendo certo que a demais apreciação feita pelo Tribunal da 1ª instância não contraria as regras da experiência comum e tão pouco evidencia qualquer erro relevante de que o homem médio facilmente se desse conta.
Também não se vê que o Colectivo tivesse recorrido a presunções ilegais e, ressalvadas as alterações introduzidas por esta Relação, no mais não se pode concluir que tivesse violado o disposto no art. 127º do CPP.
A fundamentação de facto do acórdão observa o disposto no art. 374º, nº 2, do CPP, tendo o Colectivo exposto o raciocínio que fez para formar a sua convicção, razão pelo qual não ocorre a invocada nulidade.
O facto da recorrente discordar da fundamentação apresentada não significa que exista falta ou insuficiente fundamentação.
E, apesar das modificações introduzidas por esta Relação, o que é certo é que o tribunal da 1ª instância fez o exame crítico das provas (percebendo-se o raciocínio feito mesmo quanto aos factos dados como não provados), não ocorrendo qualquer nulidade do acórdão.
Assim, tendo em atenção o decidido por esta Relação, não existindo no mais qualquer dos vícios previstos no art. 410º, nº 2, do CPP, nem qualquer nulidade (nomeadamente de conhecimento oficioso), está definitivamente fixada a decisão sobre a matéria de facto, tendo em atenção a modificação acima introduzida.
Assim, sem prejuízo do acima decidido, improcede no mais a argumentação da recorrente.
2ª Questão
Importa, agora, analisar se há erro de interpretação na subsunção dos factos ao direito quanto ao crime de homicídio p. e p. no art. 131º do CP, pelo qual a arguida também foi condenado.
Na perspectiva da recorrente (que não questiona o cometimento do crime de ocultação de cadáver) o crime que cometeu quando matou a filha recém-nascida foi o de homicídio privilegiado p. e p. no art. 133º do CP.
Vejamos então.
Dispõe o artigo 133º (homicídio privilegiado) do CP:
Quem matar outra pessoa dominado por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, que diminuam sensivelmente a sua culpa, é punido com pena de prisão de um a cinco anos.
São estados ou motivos que podem levar ao privilegiamento do crime de homicídio, a compreensível emoção violenta, a compaixão, o desespero ou motivo de relevante valor social ou moral.
No entanto, a simples verificação de um (ou mais) qualquer desses estados ou motivos não é bastante para, por si e de forma automática, se concluir pelo preenchimento do crime de homicídio privilegiado; a lei exige que o agente actue dominado por aqueles estados ou motivos e que essa actuação diminua sensivelmente a culpa do agente (haja conexão “com uma concreta situação de exigibilidade diminuída por eles determinada”[13]).
Para Jorge Figueiredo Dias[14]:
- a Compreensível emoção violenta «é um forte estado de afecto emocional provocado por uma situação pela qual o agente não pode ser censurado e à qual também o homem normalmente “fiel ao direito” não deixaria de ser sensível. Não se trata aqui de qualquer valoração social ou (muito menos) moral do estado de afecto, mas apenas da sua verificação nos termos preditos. (…) O requisito da “compreensibilidade da emoção” (…) representa por isso ainda uma exigência adicional relativamente ao puro critério de menor exigibilidade subjacente a todo o preceito.»;
- a Compaixão é “um estado de afecto ligado à solidariedade ou à comparticipação no sofrimento de outra pessoa”;
- no Desespero “estará em causa não tanto a situação objectiva de falta de esperança na obtenção de um resultado ou de uma finalidade, quanto sobretudo estados de afecto ligados à angústia, à depressão ou à revolta”;
- o motivo de relevante valor social ou moral terá “de avaliar-se à luz da ordem axiológica suposta pela ordem jurídica.”
Olhando, agora, particularmente (por ser a que mais interessa ao caso concreto) para a emoção violenta, verificamos que Amadeu Ferreira[15] defende que para que seja diminuída sensivelmente a culpa do agente é necessário: a existência de uma emoção violenta; que essa emoção domine o agente, isto é, que o crime se verifique no decurso dessa emoção; que a emoção leve o agente ao crime, isto é, que se possa estabelecer uma relação de causalidade entre a emoção e o crime; por último, que a emoção seja compreensível.
Particularmente para aferir se a emoção violenta é compreensível tem de se analisar se ela (a emoção e não o crime, o acto de matar) é aceitável.
Para Augusto Silva Dias[16], “Ao colocar o acento tónico na «compreensível emoção violenta», o novo Código Penal dá prevalência à relação entre a situação geradora da emoção violenta e a sua aptidão para provocar essa mesma emoção. (…) O critério para determinar se uma emoção violenta é compreensível reside, em meu juízo, seguindo a maioria da doutrina, na questão de saber se a situação em causa é adequada a produzir uma emoção violenta numa pessoa do tipo social do agente. O tipo social é um modelo reconstruído a partir das características sociais do agente: idade, grau de cultura, profissão, meio em que vive, formas ou níveis de participação social etc.”
Acrescenta que se a circunstância privilegiante não tiver determinado uma diminuição sensível da culpa do agente correspondente ao respectivo tipo de culpa, então haverá homicídio simples eventualmente atenuado nos termos do artigo 72º[17] (entende ainda que os fundamentos que privilegiam o homicídio tem que adicionalmente provocar, em concreto, uma diminuição sensível da culpa do agente).
Também Figueiredo Dias[18] refere que, após a reforma de 1995, «não há razão bastante para distinguir no preceito dois grupos de hipóteses – um que englobaria a compreensível emoção violenta, a compaixão e o desespero, outro que abarcaria os motivos de relevante valor social ou moral. (…) Também a compreensível emoção violenta, a compaixão e o desespero privilegiam não quando afectam o poder de resistência do agente à pulsão interior (o indiferenciado “poder de agir de outra maneira”), mas, como se disse, apenas quando diminuem de forma sensível a exigibilidade de outro comportamento e são por conseguinte, tal como o motivo de relevante valor social ou moral, elementos exclusivamente atinentes à culpa (ou, se se quiser, ao tipo de culpa) do agente».
Fernanda Palma[19] defende «À “compreensibilidade” de um comportamento humano, deve ser dado o sentido que o conhecimento do homem torna possível dar. Desta forma, compreensível é toda a emoção violenta de que o agente não se poderia libertar com a capacidade psicológica e de domínio da sua vontade de que concretamente dispunha, isto é, dentro dos limites da sua personalidade.»
Por sua vez, Teresa Serra[20], sustenta que “a emoção violenta só é compreensível em face das razões que lhe deram origem e do sujeito particular que as sofreu. O que significa que esta compreensibilidade não pode fugir ao princípio da razão.”
Cláudia Neves Casal[21] entende que «parece ser o padrão do agente concreto o modo mais capaz de resolver a aferição da compreensibilidade dos estados de afecto que, por ocorrerem durante a prática do crime, justificam uma sensível diminuição da culpa do seu autor. Por um lado, em nosso parecer, não é correcta a valoração objectiva dos estímulos da acção criminosa porque importantes são os seus efeitos no concreto agente, que os pode sentir com uma intensidade ou gravidade diferente do normal bonus pater familia; por outro lado, cedendo novamente a palavra a Teresa Serra: “… esta formula pode levar ao entendimento de que é tanto menos compreensível a emoção violenta quanto maior for a conformação da personalidade do agente com as exigências do direito!...”».
Criticando a posição de Fernanda Palma, sustenta João Curado Neves[22] (que defende o critério do homem médio) que quando aquela Autora afirma que “a compreensibilidade deve ser avaliada segundo a capacidade concreta do agente no momento do facto está a retirar qualquer sentido útil ao requisito da compreensibilidade da emoção: este reduzir-se-ia à verificação de que o agente não tinha podido conter a emoção violenta, isto é, que tinha efectivamente actuado devido a emoção violenta; o requisito de que esta emoção fosse compreensível seria redundante. De toda a forma, qualquer leitura da referência à compreensibilidade da emoção que não parta da análise da sua fonte estará a forçar o texto legal. «Compreensível» é um conceito relativo. Compreende-se um acto, ou um sentimento, por determinadas razões. Quem compreende determinada emoção violenta não se limita a perceber a sua existência; percebe a razão da sua existência. Para que o observador compreenda o surgimento da emoção violenta tem que a confrontar com as circunstâncias que lhe dão origem. A compreensão implica um juízo sobre os factos compreendidos.
Como se vê do supra exposto, também existe a posição contrária que defende que a valoração sobre a compreensibilidade da emoção violenta deve ser feita considerando o homem médio.
Esta última posição é ainda defendida, entre outros, por Fernando Silva[23], que sustenta que para determinar se a emoção violenta é ou não compreensível “deve apurar-se até que ponto o homem médio não deixaria de ser sensível àquela situação, sem se conseguir libertar da emoção, para compreender se é menos exigível ao agente que não mate naquelas circunstâncias. Esta solução permite não ser excessivamente influenciado pela personalidade e pelas características pessoais do agente, o que se tornaria extremamente difícil de avaliar, nomeadamente em situações em que esteja em causa uma reacção por ofensa à honra do agente (aqui citada por ser muito invocada com vista ao privilegiamento do homicídio em sede do art. 133º), correndo o risco de um afastamento em relação aos padrões médios da vida em sociedade.”
Os que defendem o critério do agente criticam os argumentos dos que enfileiram pelo critério do homem médio.
Assim, adianta Amadeu Ferreira[24] (que segue o critério do agente) contra os que recorrem ao critério do homem médio: “Argumenta-se em sentido contrário que acabariam por caber no art. 133º todas as emoções violentas, incluindo aquelas que tivessem a ver com motivos fúteis, que o não seriam se cada pessoa fosse considerada individualmente. Ora, esse argumento não pode ser aceite, pois não está a ter em conta a cláusula geral relativa à sensível diminuição da culpa do agente.
A compreensibilidade deve ser referida aos motivos relacionados com a emoção e esses devem ser valorados. Além disso, deve referir-se a todas as circunstâncias que rodearam o seu surgimento e desenvolvimento; casos de humilhação prolongada ou de sofrimento prolongado; casos de afastamento de um perigo, putativo ou de evitar um mal maior; motivos que põem em causa o agente enquanto pessoa, etc.”
Depois de analisar alguma jurisprudência, Amadeu Ferreira[25] aponta como indícios de compreensibilidade (que “poderão ser tomados como argumentos para a decisão de casos concretos”) os seguintes: a culpa do agente na causação da emoção talvez só deva afastar a compreensibilidade nos casos em que o agente previu ou podia prever a prática do crime; a execução do crime de forma particularmente cruel deve sempre ligar-se ao motivo do agente, não devendo ter relevância autónoma; a existência de reflexão do agente só deve ser valorada se for anterior à emoção pois se ocorrer durante a emoção (antes, durante ou após a prática do crime) deve subordinar-se a essa mesma emoção; nos casos em que é visível uma certa motivação subjectiva esta poderá funcionar como um indício de compreensibilidade ou do seu afastamento; nos casos em que incumbem ao agente deveres especiais estes não ser valorados autonomamente (pois na maioria dos casos de emoção violenta o agente tem deveres especiais), mas em conjunto com outros indícios, em particular a causação da emoção pelo agente.”
De qualquer modo, ainda que se verifique qualquer dos elementos privilegiantes típicos (compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral) exige-se que diminuam sensivelmente a culpa do agente, o que terá de ser avaliado pelo circunstancialismo fáctico apurado.
Na síntese avançada por Cláudia Neves Casal[26] (que igualmente defende que “a diminuição da culpa é consentânea com uma ideia de menor inexigibilidade”) «se a menor exigibilidade depende das particularidades que acompanham o agente é possível compatibilizar a diminuição da culpa, por referência a essa cláusula, com o critério adoptado (autor concreto) para aferir a importância da motivação, quando o agente tenha actuado com emoção violenta compreensível, com compaixão ou desespero. Se o elemento privilegiante do homicídio for um qualquer motivo de relevante valor social ou moral, embora o seu mérito tenha que ser procurado objectivamente, o que importará são os seus efeitos no agente individual e, assim, mais uma vez se respeitam os pressupostos do princípio em apreço, podendo perfilhar-se o pensamento de “menor infidelidade ao direito” ou “relativa inexigibilidade”.»
Neste aspecto da diminuição sensível da culpa, Amadeu Ferreira[27] pensa que não haverá casos de emoção violenta compreensível que não diminuam sensivelmente a culpa.
Para o efeito argumenta que “a delimitação geral deve ser entendida não de forma autónoma, mas em ligação com a delimitação particular, relativa a cada uma das partes do artigo nos seguintes termos:
- quanto à 1ª parte, reforça o carácter normativo da compreensibilidade, afastando um entendimento meramente psicológico, isto é, compreensível no sentido de humanamente explicável;
- quanto à 2ª parte, sublinha a ligação entre o relevante valor social ou moral dos motivos e o agente, isto é, os motivos hão-de exercer sobre ele uma forte pressão, no sentido de o empurrar para o crime.”
Por isso é que Amadeu Ferreira indica indícios concretos de compreensibilidade (já acima enunciados), noção que para si “deve ser entendida em termos normativos, isto é, ser preenchida, concretizada, através de juízos de valor da competência exclusiva do intérprete-aplicador”[28].
Assim, diremos que para Amadeu Ferreira a noção de compreensibilidade da emoção violenta é muito mais restrita e também mais exigente (porque na análise que faz da emoção violenta ser compreensível inclui a questão de saber se também conduz a uma diminuição sensível da culpa) do que para os Autores que autonomizam a exigência adicional da diminuição sensível da culpa em relação ao fundamento (da emoção violenta) que privilegia o crime de homicídio.
Não se discute que os elementos privilegiantes típicos contidos no art. 133º do CP encerram em si uma diminuição da culpa.
No entanto, claramente desde a reforma de 1995, o legislador exige adicionalmente que qualquer desses estados ou motivos típicos diminuam de forma sensível a culpa do agente.
Portanto, cremos que verificando-se qualquer dos fundamentos que privilegiam o homicídio para efeitos do art. 133º do CP (admitindo-se que a escolha pelo legislador desses particulares estados ou motivos como elementos típicos já tiveram em atenção a sua virtualidade de diminuírem a culpa do agente), importa ainda ponderar o grau dessa diminuição de culpa, uma vez que o legislador exige que diminuam sensivelmente a culpa do agente[29].
Ou seja, essa exigência legal adicional não é redundante porque se relaciona com o grau de diminuição da culpa do agente quando actua dominado por um daqueles estados ou motivos típicos.
O tipo subjectivo do crime de homicídio privilegiado admite qualquer das modalidades do dolo.
Quanto ao crime de infanticídio dispõe o artigo 136º do CP:
A mãe que matar o filho durante ou logo após o parto e estando ainda sob a sua influência perturbadora é punida com pena de prisão de um a cinco anos.
Neste crime (cuja autonomização é discutível em termos doutrinários) existe uma limitação temporal na medida em que a mãe tem de matar o filho durante ou logo após o parto (ainda que se possa discutir a delimitação temporal do “logo após o parto”[30]); e, para além disso, a conduta de matar o filho tem de ocorrer estando a mãe ainda sob a influência perturbadora do parto (estado de perturbação que pode ser endógeno ou exógeno[31], mas de qualquer maneira sempre relacionado com o parto).
Como diz Figueiredo Dias[32], o “fundamento do privilegiamento do homicídio da criança é pois, no nosso direito positivo actual, o estado de perturbação em que se encontra a mãe durante ou logo após o parto. (…) a influência perturbadora do parto é um elemento autónomo da tipicidade e cuja prova, por isso, se impõe (…).”
Segundo Fernando Silva[33] “O estado de perturbação da mãe, bem como a gravidade do mesmo, carece de prova pericial, cabendo aos especialistas da medicina legal apurar esse estado, em função da perturbação puerpural que a mãe tenha sofrido. O art. 136º consagra um tipo de culpa, a mãe encontra-se sob um estado perturbador impar, que apenas uma situação com a violência de um parto pode provocar.”
A nível do tipo subjectivo admite qualquer das modalidades do dolo.
O homicídio doloso que, não sendo qualificado (excluindo também o homicídio a pedido da vítima, que aqui não está em causa), também não se enquadre nas formas privilegiadas previstas quer no art. 133º do CP, quer no seu artigo 136º, é punido nos termos do artigo 131º do mesmo código, podendo a pena ser especialmente atenuada caso se verifiquem os respectivos pressupostos.
Centrando-nos, agora, no caso concreto, entendemos que a conduta da arguida não preenche o crime de infanticídio p. e p. no artigo 136º do CP (o que também não é defendido pela recorrente, sendo aqui irrelevante – por não se incluir na esfera da sua competência – a conclusão da perita no sentido de se configurar a noção de infanticídio).
Apesar de se ter apurado que actuou sob intensa perturbação emocional, com alteração do estado de consciência, despersonalização e desrealização associada ao puerpério, daí não decorre sem mais que, ao matar a filha, logo a seguir ao parto, agiu sob a influência perturbadora do parto.
Com efeito, a associação que foi feita do seu estado emocional ao puerpério não é bastante para se poder concluir que a arguida matou a filha sob influência perturbadora do parto.
A associação feita ao puerpério não se pode traduzir como associação a perturbação puerpural (sabido que o puerpério pode ocorrer sem perturbações).
Dos factos apurados não se consegue extrair que a perturbação emocional a que então a arguida estava sujeita estivesse relacionada com alguma perturbação puerpural.
Por isso, não se podendo concluir que, ao matar a filha, a arguida estivesse sob a influência perturbadora do parto, essa sua conduta não integra o crime de infanticídio.
Vejamos, agora, se a conduta da arguida integra ou não o crime de homicídio privilegiado (art. 133º do CP).
Perante os factos apurados, podemos afastar desde logo os elementos privilegiantes que consistem na compaixão (já que não se surpreende na actuação da arguida qualquer motivo piedoso que a levasse a matar a filha recém-nascida, que não apresentava malformações internas ou externas; por outro lado, se queria poupar a mãe, que estava em fase terminal, do desgosto e não a queria desiludir, deveria ter saído de casa e ter o parto no hospital) e no “motivo de relevante valor social ou moral” (não se descortina nos factos apurados, designadamente na motivação da arguida, valor social ou moral que, objectivamente, à luz da ordem axiológica subjacente à ordem jurídica e considerando o “homem fiel ao direito”, tivesse virtualidade para exercer forte pressão sobre a arguida, levando-a à prática do crime[34]).
Podemos igualmente afastar o elemento privilegiante do “desespero”.
Com efeito, o estado de afecto (intensa perturbação emocional, com alteração do estado de consciência, despersonalização e desrealização associada ao puerpério) que dominava a arguida na altura em que decidiu matar a filha recém-nascida, não se enquadra no “desespero”, enquanto elemento típico do crime previsto no art. 133º do CP, o qual pressupõe por regra uma atitude reflexiva, que se prolonga no tempo, correspondendo a um acumular de tensões que impelem o agente para o crime, sendo matando que se liberta de uma situação duradoura que o atormenta.
Neste caso concreto, não se pode considerar que a arguida actuou em estado de desespero, mesmo considerando o tempo do parto que, demorou algumas horas, tanto mais que era livre de sair de casa quando o pressentiu, tendo, porém, optado por se deixar ficar no quarto.
Do facto de não se ter preparado para aquela situação (parto que previamente sabia que ia chegar) e simultaneamente não querer desiludir a mãe que estava na fase terminal da vida, também não se deduz que quando matou a filha tivesse actuado em desespero.
Aliás, foi o vivenciar de tudo o que ficou descrito nas alíneas g) a o) provadas, determinado pela forma como encarou a gravidez, que a colocou naquele estado de intensa perturbação emocional.
Mesmo considerando que o desespero não depende necessariamente do decurso de qualquer período de tempo, o que é certo é que aqui, as causas e o motivo imediato do crime (não desgostar a mãe, por quem nutria fortes afectos, que estava em fase terminal e circunstâncias em que ocorreu o parto, para o qual não se preparara) afastam o elemento típico do “desespero”.
A circunstância de ter ficado grávida, de ter o parto sozinha em casa, em silêncio, por não querer causar desgosto à mãe, que estava na fase final da sua vida, não integra aquele conceito de desespero porque sempre podia ter o parto fora da casa dos pais.
Não se pode falar em “desespero” quando o agente escolhe a solução errada, como aqui sucedeu quando a arguida, pressentindo a aproximação do parto, resolveu ficar em casa, apesar de não se ter preparado para essa situação, sabendo igualmente que no quarto ao lado estava a mãe, na fase terminal da vida, a quem não queria desgostar.
A morte da filha recém-nascida não pode, neste caso, ser entendida como uma libertação da arguida, atenta a sua motivação.
Não se pode confundir o facto de se sentir perdida com o ter actuado devido ao desespero[35].
Dos factos apurados também não resulta que o estado de afecto em que a arguida se encontrava na altura estivesse ligado “à angústia, à depressão ou à revolta”.
Sendo certo que, ainda que assim não fosse, então esse desespero, perante o que se apurou, particularmente o que a levou de forma imediata a matar (impedir que a filha recém-nascida chorasse e a mãe ouvisse, porque não queria desgostar a mãe, por quem nutria fortes laços afectivos, que se encontrava na fase final da vida, devido a doença do foro oncológico e porque tinha medo de ser rejeitada), não tinha carga suficiente para se considerar que aquele estado diminuía sensivelmente a culpa da arguida (tanto mais que sabia de antemão que ficando em casa sempre tinha o problema da mãe estar no quarto ao lado, em fase terminal).
Não é por querer que a mãe não ouvisse o choro da bebé recém-nascida e pretender evitar que ficasse desgostosa na fase final da vida (ainda que um dos seus medos, desde que ficou grávida e decidiu esconder a gravidez, fosse não ser rejeitada), que se pode concluir que era menos exigível o dever da arguida deixar viver a filha acabada de nascer.
E, ainda que na sua atitude se tenham de levar em conta as demais circunstâncias apuradas, mormente as características da sua personalidade e tudo o que precipitou a sua decisão de matar, o certo é que foi apenas a arguida que contribuiu para a situação em que ficou colocada, quando teve o parto em casa em silêncio e sozinha e depois matou a filha.
Mesmo que se considerasse que actuara dominada pelo “desespero”, a atitude anterior da arguida (designadamente quando não se preparou para o parto, nem sequer querendo pensar, desde que soube que estava grávida, que esse dia ia chegar, escondendo a sua gravidez até final) afastava a diminuição sensível da culpa exigida também pelo art. 133º do CP.
O que significa que, ainda que se pudesse entender que a arguida matou a filha estando desesperada (o que de qualquer modo era fruto da forma como encarou a gravidez), não se podia concluir pela também exigida diminuição sensível da sua culpa.
Dos factos apurados resulta desde logo que, o vivenciar de tudo o que ficou descrito nas als. g) a o), determinado pela forma como encarou a gravidez, colocou a arguida num estado de intensa perturbação emocional, com alteração do estado de consciência, despersonalização e desrealização associada ao puerpério, sendo sob esses estado que decidiu matar a sua filha para impedir que chorasse e a mãe ouvisse, bem como decidiu esconder o corpo/cadáver, resoluções essas que veio a executar nos moldes dados como provados nas als. q) a u).
Não há dúvidas que a intensa perturbação emocional que vivenciou, com as características apontadas, tem necessariamente de qualificar-se como emoção violenta.
Foi essa emoção violenta que a determinou, que a levou a matar a filha, havendo, assim, uma relação de causalidade entre a dita emoção violenta que a dominou e o referido crime cometido.
Ou seja, a arguida agiu dominada por uma emoção violenta, sendo no decurso desse seu estado de intensa perturbação emocional que matou a filha recém-nascida.
O problema que se coloca agora é apurar (1) se essa emoção violenta é compreensível e, em caso afirmativo, além disso, (2) apurar de forma autónoma se esse estado que a dominou diminuiu sensivelmente a culpa da arguida.
Assim, começando por averiguar se a emoção violenta que dominou a arguida quando matou é compreensível (pondo agora de lado a posição particular de Amadeu Ferreira, que responde em simultâneo às duas questões acima colocadas), quer recorrendo ao critério do agente, quer olhando ao critério do homem médio ou do homem fiel ao direito (critério este com a qual a recorrente parece concordar), colocado no lugar do agente, tendo em atenção os factos apurados (particularmente o circunstancialismo que levou a arguida a decidir matar a filha recém-nascida) cremos que a resposta é negativa.
Como decorre dos factos provados, a emoção violenta que a dominou e a levou a matar a própria filha teve origem em não se ter preparado, como podia e devia, para a situação do parto, na forma como reagiu quando pressentiu o parto, apesar de saber que tinha ali no quarto ao lado a mãe, que estava na fase final da vida, em não a (à mãe) querer desiludir (a arguida quis evitar que a mãe sofresse o desgosto, antes de morrer, de saber que aquela sua filha, sendo solteira e não tendo relação de namoro assumida com alguém, engravidara e tivera uma filha), tudo isso sendo determinado pela forma como encarara a gravidez.
Foi apenas a atitude da arguida (jovem com 23 anos de idade, que nunca tinha tido um filho antes) e forma como reagiu desde que soube que estava grávida (escondendo a gravidez, não querendo pensar previamente no que iria fazer na altura do parto, momento que sabia que iria chegar, deixando-se ficar no quarto quando pressentiu o parto, apesar de ter liberdade para sair) associado à sua vontade de não querer desiludir a mãe, que estava no quarto ao lado em fase terminal de vida, como bem sabia, que despoletou aquele estado de intensa perturbação emocional em que acabou por ficar (fruto do vivenciar de tudo o que ficou descrito nas alíneas g) a o) dadas como provadas).
Mesmo aceitando o que para a arguida fazia sentido (que era não desiludir a mãe, por quem nutria fortes laços afectivos e que se encontrava em fase terminal, como bem sabia, quando decidiu ficar em casa e enfrentar o parto sozinha e em silêncio) e, portanto, ainda que se admitisse que colocasse a família prévia, particularmente a mãe, em primeiro lugar, naquele dilema com que se deparou (impedir que a filha chorasse e a mãe ouvisse), não era compreensível a emoção violenta que a dominou, uma vez que foi ela (a arguida) que deu causa ao despoletar desse mesmo estado (emoção violenta) que a levou a matar a filha.
Não se pode ignorar que aquele estado de emoção violenta que a dominou e a levou a matar a filha recém-nascida teve origem e foi determinada pela forma como reagiu à gravidez que escondeu (designadamente quando não se preparou, como podia e devia, para o momento do parto que ia necessariamente surgir, como sabia) e ao parto que pressentiu (designadamente quando, apesar de não se ter preparado, se deixou ficar em casa, não obstante ter liberdade de sair, tanto mais que sabia que a mãe estava no quarto ao lado), acabando por o fazer sozinha, em silêncio (apesar da falta de preparação para o efeito, de não ter auxílio de profissional de saúde, de ter naturalmente sofrido as dores do parto e de tudo aguentar sozinha), para a mãe não ouvir (e, portanto, não a desiludir e desgostar na fase final da vida).
E, nessa perspectiva temos de concluir que a emoção violenta que dominou a arguida e a levou ao crime não é aceitável, não é compreensível.
Mas, mesmo que assim não fosse e, portanto, que se devesse antes considerar compreensível a emoção violenta que dominou a arguida, levando-a a matar a filha, o certo é que a mesma não era bastante para se poder concluir que diminuía sensivelmente a sua culpa.
É que, para se entender que era compreensível a emoção violenta que dominou a arguida, tinha que se desatender ao que despoletou que ficasse naquele estado emocional violento.
Isto é, tinha de na averiguação da compreensibilidade da emoção violenta não ponderar o que acima se referiu quanto a ter sido apenas a atitude da arguida que deu origem àquele elemento típico privilegiante do homicídio.
Porém, nesse caso, a análise da atitude da arguida (v.g. forma como reagiu desde que soube que estava grávida - escondendo a gravidez, não querendo pensar previamente no que iria fazer na altura do parto, momento que sabia que iria chegar, deixando-se ficar no quarto quando pressentiu o parto, apesar de ter liberdade para sair - e vontade de não querer desiludir a mãe, que como bem sabia estava no quarto ao lado em fase terminal de vida) tinha de ser apreciada para aferir se havia ou não diminuição sensível da sua culpa.
E, ponderando então, neste último momento, a atitude e reacções da arguida, acima assinaladas, éramos necessariamente levados a concluir que, embora houvesse diminuição da culpa, essa diminuição não podia considerar-se como diminuição sensível da sua culpa.
É que, era exigível à arguida comportamento diferente daquele que adoptou quando se deparou com a situação do parto que pressentiu e que levou a cabo sozinha, em silêncio e naturalmente em sofrimento.
Pelo menos era exigível que saísse de casa quando pressentiu que se aproximava a altura do parto para o qual não se preparara, ou então, deixando-se ficar em casa e conseguindo fazer o parto nas difíceis condições dadas como provadas, logo a seguir retirasse a filha recém-nascida do quarto (levando-a para outro compartimento ou mesmo para a porta da rua, para que a mãe não ouvisse o choro da recém-nascida ali no quarto ao lado).
Ou seja, não se podia concluir que essa eventual “compreensível emoção violenta” que a dominou justificava uma sensível diminuição da culpa da arguida.
Portanto, a conclusão a retirar era de que não estavam preenchidos todos os pressupostos para se poder integrar a conduta da arguida no crime de homicídio privilegiado p. e p. no art. 133º do CP.
Ainda que se adoptasse a tese de Amadeu Ferreira (não autonomizando a exigência da diminuição sensível da culpa, a qual seria entendida de forma articulada com a emoção violenta) seriamos levados a concluir que não era compreensível a emoção violenta que dominou a arguida (precisamente por ter sido a arguida, nas circunstâncias dadas como provadas, que deu origem, causou a emoção violenta que a dominou e ser-lhe exigível outro comportamento).
Acrescente-se que, ao contrário da argumentação da recorrente, a questão não se coloca por ela não ter querido, a seu tempo, interromper voluntariamente a gravidez.
Nesse aspecto está esclarecido que não o fez, nem pensou recorrer (a seu tempo) a essa possível e legal “saída” para o seu problema da gravidez não planeada e escondida, por ser contra os seus princípios e educação.
Portanto, não é por não ter recorrido, a seu tempo, à prática legal da interrupção voluntária da gravidez, que a sua conduta deixou de ser enquadrada na previsão do art. 133º do CP.
A circunstância de sozinha (portanto sem qualquer outro apoio humano, v.g. médico, ainda que por culpa sua), apesar da sua falta de preparação, ter conseguido, debaixo de sofrimento, fazer o parto, em silêncio, não afecta a conclusão de que foi só ela, arguida, que deu causa àquela situação, provocando, dessa forma, o desencadear da intensa perturbação emocional que a dominou.
A conduta da arguida é censurável por ter sido só ela que provocou o forte abalo emocional que a dominou, sendo-lhe exigível outro comportamento para se poder considerar que havia uma diminuição sensível da sua culpa.
Não se trata de uma incompreensão perante os factos, mas de avaliar o comportamento da arguida, da forma como é revelado nos factos provados.
E, não há dúvidas que a arguida, quando decidiu esconder a gravidez, passou a ser a única pessoa que podia garantir a sobrevivência do nascituro, sendo-lhe exigível (até porque igualmente tinha aquele especial dever de garante) que tivesse encontrado solução (o que não era difícil, por exemplo, saindo de casa e indo para um hospital quando se aproximou o momento do parto, sendo certo que entrou em trabalho de parto ao princípio da tarde) diversa daquela que escolheu (que foi a de ficar em casa, sem condições, fazendo o parto do modo referido nos factos provados, o que, considerando o circunstancialismo que então vivenciou, determinado pela forma como encarou a gravidez, desencadeou a intensa perturbação emocional que a dominou).
Os factos que vivenciou, quando se deixou ficar em casa e no quarto, sabendo que a mãe estava no quarto ao lado, enfrentando o parto em silêncio (para não causar desgosto à mãe e não a desiludir) e para o qual não se preparara, nem tinha qualquer tipo de experiência, “desorganizaram” a arguida e, por isso, se sentiu perdida e teve a apontada perturbação emocional.
Sendo o fundamento atenuativo a emoção violenta que domina o agente, a valoração desse estado supõe que o agente não tenha contribuído para o despoletar dessa emoção, sob pena de ficar arredada a compreensibilidade da emoção violenta ou, se assim não for entendido (a concluir-se ser compreensível a emoção violenta) não poder deduzir-se que há a sensível diminuição da sua culpa.
Neste caso, foi a falta de preparação prévia da arguida para aquela situação, que só a si lhe pode ser imputada (já que tinha capacidade e condições, pelo que se extrai dos factos provados, para atempadamente pensar no que iria fazer quando chegasse a altura do parto e encontrar uma saída/solução diferente daquela que encontrou e escolheu, que foi a de deixar-se ficar em casa e vivenciar tudo o que ficou descrito nas alíneas g) a o) dos factos provados), aliada à vontade de não desiludir a mãe (que, como bem sabia, estava acamada, no quarto ao lado, em fase terminal de vida e, por quem a arguida nutria fortes laços afectivos, tendo medo de ser por ela e demais família rejeitada), que desencadeou o estado de afecto que a dominou.
Isso mostra que a emoção violenta que a dominou foi determinada por facto que só a si é imputável.
Ou seja, determinada pela forma como encarou a gravidez (apesar de ter outras saídas para enfrentar o parto, que não escolheu, como podia e devia), a arguida auto-colocou-se em situação de ter o parto naquelas condições referidas nos factos provados (deixando-se ficar em casa em vez de sair, apesar de saber que não se tinha preparado para o parto e tinha a mãe ali no quarto ao lado, em fase terminal), assim desencadeando a intensa perturbação emocional (com alteração do estado de consciência, despersonalização e desrealização associada ao puerpério) que a dominou e a levou a matar a filha, como forma de não desiludir a mãe.
O que significa que a arguida, ao criar (ter causado) a situação geradora do forte estado de afecto emocional, retirou compreensibilidade a essa emoção violenta que a dominou (sendo certo que a vítima, recém-nascida, nem tinha possibilidades de se defender).
Essa auto-colocação em situação que desencadeou o violento estado emocional que a dominou, torna incompreensível essa emoção, para além de, considerando a imagem global dos factos (incluindo contexto em que tudo se passou, razões da emoção e características da arguida) não diminuir sensivelmente a sua culpa.
De resto, não é por a arguida querer impedir que a mãe ouvisse a filha recém-nascida a chorar (para não desiludir, nem desgostar a mãe que estava em fase terminal, mesmo considerando o medo que a arguida tinha de ser rejeitada) que se pode dizer que o fundamento atenuativo da emoção violenta, ainda que se considerasse compreensível, acarretava uma diminuição sensível da sua culpa.
A conduta da arguida ao matar a filha não revela uma culpa tão diminuída que permita considerar que existe uma diminuição sensível da culpa.
O Direito, a ordem jurídica, não pode deixar de censurar a conduta da arguida pelo crime de homicídio p. e p. no art. 131º do CP, desde logo porque as circunstâncias em que matou a filha, tal como resultam dos factos dados como provados, ainda que dominada por aquela forte emoção violenta (e, mesmo que se considerasse compreensível essa emoção violenta) não diminuem sensivelmente a sua culpa.
Assim, improcede a argumentação da recorrente quanto ao invocado erro de direito.
3ª Questão
Importa, finalmente, ponderar se a pena aplicada pelo homicídio e a pena única impostas são excessivas.
Na perspectiva da recorrente, deveria ser condenada numa pena de 4 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período.
Não questionando a pena que lhe foi aplicada pelo crime de profanação de cadáver, nem a aplicação da atenuação especial, a recorrente contesta a pena individual que lhe foi imposta pelo crime de homicídio e a pena única, que considera excessivas, desproporcionadas, ultrapassando a medida da sua culpa, argumentando (para além da integração da conduta no crime previsto no art. 133º do CP, que já vimos que não procede) que não terão sido devidamente ponderadas as circunstâncias referidas no art. 71º, nº 2, als. a), b) e d) do CP, uma vez que não tem antecedentes criminais, goza de bom comportamento, é de humilde condição sócia-económica, no meio onde vive é respeitada e respeitadora, estando bem inserida familiarmente, não apresentando qualquer perigosidade, sendo bem aceite na localidade onde reside, reconhece a censura que lhe cabe face ao comportamento delituoso cometido que atribui a conduta que ainda hoje não consegue explicar, o que tudo deveria justificar uma pena substancialmente reduzida, suspensa na sua execução.
Pois bem.
Antes de mais, importa ter em atenção que, as finalidades da pena são, nos termos do artigo 40º do Código Penal, a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade[36].
Na determinação da pena, o juiz começa por determinar a moldura penal abstracta e, dentro dessa moldura, determina depois a medida concreta da pena que vai aplicar, para, de seguida, escolher a espécie da pena que efectivamente deve ser cumprida[37].
No que respeita à escolha da espécie das penas alternativas abstractas prevista para os crimes em questão (alternativa da pena de prisão ou da pena de multa) o tribunal apenas pode utilizar o critério da prevenção, como determina o art. 70º do CP.
Com efeito, ao momento da escolha da pena alternativa são alheias considerações relativas à culpa. Esta (a culpa) apenas funciona como limite (e não como fundamento) no momento da determinação da medida concreta da pena já escolhida[38].
Por sua vez, nos termos do artigo 71º, nºs 1 e 2, do Código Penal, a determinação da medida da pena, dentro dos limites fixados na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo-se, em cada caso concreto, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a seu favor ou contra ele.
Diz Figueiredo Dias[39], que “só finalidades relativas de prevenção, geral e especial, não finalidades absolutas de retribuição e expiação, podem justificar a intervenção do sistema penal e conferir fundamento e sentido às suas reacções específicas. (...) Prevenção geral, porém, não como prevenção geral negativa, de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva ou de reintegração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida.”
Mais à frente[40], esclarece que “culpa e prevenção são os dois termos do binómio com o auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena em sentido estrito”.
Acrescenta, também, o mesmo Autor[41] que, “tomando como base a ideia de prevenção geral positiva como fundamento de aplicação da pena, a institucionalidade desta reflecte-se ainda na capacidade para abranger, sem contradição, o essencial do pensamento da prevenção especial, maxime da prevenção especial de socialização. Esta (…) não mais pode conceber-se como socialização «forçada», mas tem de surgir como dever estadual de proporcionar ao delinquente as melhores condições possíveis para alcançar voluntariamente a sua própria socialização (ou a sua própria metanoia); o que, de resto, supõe que seja feito o possível para que a pena seja «aceite» pelo seu destinatário - o que, por seu turno, só será viável se a pena for uma pena suportada pela culpa pessoal e, nesta acepção, um pena «justa». (…) A pena orientada pela prevenção geral positiva, se tem como máximo possível o limite determinado pela culpa, tem como mínimo possível o limite comunitariamente indispensável de tutela da ordem jurídica. É dentro destes limites que podem e devem actuar pontos de vista de prevenção especial - nomeadamente de prevenção especial de socialização - os quais, deste modo, acabarão por fornecer, em último termo, a medida da pena. (…) E é ainda, em último termo, uma certa concepção sobre a ordem de legitimação e a função da intervenção penal que torna tudo isto possível: parte-se da função de tutela de bens jurídicos; atinge-se uma pena cuja aplicação é feita em nome da estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada; limita-se em seguida esta função pela culpa pessoal do agente; para se procurar atingir a socialização do delinquente como forma de excelência de realizar eficazmente a protecção dos bens jurídicos”.
Em caso de concurso efectivo de crimes, resulta do disposto no art. 77º do CP que existe um regime especial de punição, que consiste na condenação final numa única pena, considerando-se, “na medida da pena, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”.
A justificação para este regime especial de punição radica nas finalidades da pena, exigindo uma ponderação da culpa e das razões de prevenção (prevenção geral positiva e prevenção especial), no conjunto dos factos incluídos no concurso, tendo presente a personalidade do agente[42].
Determinada a pena única, sendo aplicada pena de prisão, consoante o seu quantum, impõe-se ao tribunal determinar se é caso de a substituir por uma pena não detentiva ou por uma pena detentiva prevista na lei.
Com efeito, as penas de substituição “podendo substituir qualquer uma das penas principais concretamente determinadas (…) se não são, em sentido estrito, penas principais (porque o legislador não as previu expressamente nos tipos de crime) …[são] penas que são aplicadas e executadas em vez de uma pena principal (penas de substituição)”[43].
Como diz Jorge Figueiredo Dias, as penas de substituição radicam “tanto histórica como teleologicamente, no (…) movimento político-criminal de luta contra a aplicação de penas privativas de liberdade”[44].
Considerações relativas à culpa não podem ser ponderadas para justificar a não aplicação de uma pena de substituição[45].
Para ponderar se é caso de aplicar a suspensão da execução da pena de prisão (o que implica que a pena de prisão, embora efectivamente pronunciada pelo tribunal, não chega a ser cumprida, por se entender que a simples censura do facto e a ameaça da pena bastarão para realizar as finalidades da punição), o tribunal deverá efectuar um juízo de prognose favorável em relação ao arguido, tendo em atenção a sua personalidade, as condições da sua vida, a sua conduta anterior e posterior ao crime e as circunstâncias deste (art. 50º, nº 1, do CP).
Sempre que se verifiquem os respectivos pressupostos, o julgador tem o dever (trata-se de um poder-dever vinculado) de suspender a execução da pena de prisão, suspensão essa que, como pena autónoma é uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico[46], devendo ser ponderada no momento da decisão.
Este juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento futuro do arguido, terá de assentar numa expectativa razoável de que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Portanto, tem o tribunal igualmente de ponderar se essa medida de substituição da pena de prisão é ou não suportada comunitariamente, isto é, se satisfaz ou não aquele limiar mínimo da prevenção geral da defesa do ordenamento jurídico.
Assim.
A moldura abstracta do crime de homicídio p. e p. no art. 131º do CP é de pena de prisão de 8 a 16 anos e a do crime de profanação de cadáver, que aqui não está em discussão, é de pena de prisão de 1 mês a 2 anos ou pena de multa de 10 dias a 240 dias.
Depois de explicar a razão pela qual deu preferência à alternativa da pena de prisão em relação ao crime de profanação de cadáver, a 1ª instância entendeu (face à idade da arguida à data dos factos, ao profundo arrependimento demonstrado e ao intenso sofrimento psicológico depressivo que apresenta, auto-censurando-se e culpabilizando-se permanentemente pela prática dos crimes em apreço) que as exigências de prevenção especial, em termos de necessidade da pena, mostravam-se acentuadamente diminuídas e, em consequência, atenuou especialmente as penas de prisão aplicáveis (nos termos dos arts. 72º, nºs 1 e 2, al. c), 73º, nº 1, als. a) e b) do CP), assim encontrando as molduras penais abstractas de 1 ano 7 meses e 6 dias a 12 anos de prisão quanto ao crime de homicídio e de 1 mês a 16 meses de prisão quanto ao crime de profanação de cadáver.
Na determinação da medida concreta da pena a aplicar por cada um dos crimes cometidos o Colectivo ponderou as agravantes e as atenuantes, nos termos acima indicados, condenando a arguida nas penas individuais de 6 anos e 4 meses de prisão pelo crime de homicídio e de 5 meses de prisão pelo crime de profanação de cadáver e, em cúmulo jurídico, condenou-a na pena única de 6 anos e 6 meses de prisão.
Vejamos então, tendo em atenção que aqui apenas estão em discussão a pena individual aplicada pelo crime de homicídio e a pena única aplicada à arguida/recorrente.
Importa considerar que a arguida agiu com dolo directo, embora atenuado atento o estado de intensa perturbação emocional em que se encontrava, apesar de ter dado causa à situação que a levou a ficar dominada por esse estado emocional.
É elevada a ilicitude dos factos quanto ao crime de homicídio, tendo em atenção, o modo de execução (que apesar de grave também revela a intensa perturbação emocional em que na altura se encontrava, face ao tempo que demorou a concretizar a sua decisão de matar) e a circunstância da vítima sua filha recém-nascida, ser pessoa absolutamente indefesa (apesar de na altura a arguida ter invertida a sua escala ou hierarquia de valores, dando prevalência à sua família prévia – particularmente à mãe a quem queria proteger e poupar do desgosto que iria sofrer, por estar em fase terminal de vida e, simultaneamente, não a queria desiludir, tendo medo de ser rejeitada, uma das características da sua personalidade – em vez de proteger a filha recém-nascida, totalmente indefesa, sendo certo que, durante todo o período de tempo em que esteve grávida, escondeu essa sua gravidez, aparentemente não criando laços de afectividade pela bebé que deu à luz).
Também são de ponderar os motivos da sua actuação, sendo certo que, na altura, tinha acabado de conseguir sozinha fazer o parto (para o qual não se preparara por culpa sua, sendo também inexperiente nessa matéria) em silêncio para não desiludir e desgostar a mãe, que estava em fase terminal de vida, no quarto ao lado do seu.
Por outro lado, embora tendo como limite a medida da sua culpa, atender-se-á à necessidade de prevenir a prática de futuros crimes, sendo certo que não tem antecedentes criminais e revela ter uma personalidade recuperável.
São elevadas as razões de prevenção geral (necessidade de restabelecer a confiança na validade da norma penal violada) e medianas as de prevenção especial (carência de socialização, atentas as suas condições de vida).
Ainda, considerando a matéria de facto provada, haverá que atender às condições de vida da arguida (incluindo habilitações literárias, condição social, económica e familiar), quer à data da prática do crime aqui em apreço, quer antes, quer depois, o que tudo analisado revela que está inserida familiar, profissional e socialmente, apresentando alguma sensibilidade positiva à pena a aplicar, com reflexo favorável no juízo de prognose sobre a necessidade e a probabilidade da sua reinserção social.
Ainda a favor da arguida, haverá que ponderar que confessou os factos, na sua materialidade, com relevância para a descoberta da verdade, demonstrando sério e profundo arrependimento (o que também é evidenciado pelo estado psicológico perturbado em que ficou após a prática dos factos e que ainda à data do acórdão da 1ª instância se fazia sentir, apesar de continuar sem recorrer, como devia e podia, a apoio psicológico/psiquiátrico).
Do que se apurou não se extraem factos que justifiquem outra atenuação especial, para além daquela que já beneficiou (onde também já foi ponderada a sua jovem idade, o profundo arrependimento demonstrado e o intenso sofrimento depressivo, auto-censurando-se e culpabilizando-se permanentemente por ter praticado os factos), como parece sugerir a recorrente quando invoca o disposto no art. 72º do CP, pelo que o circunstancialismo atenuativo apurado acima indicado, apenas pode ser atendido em termos de atenuação geral (art. 71º do CP).
Tudo ponderado, considerando a gravidade dos factos apurados em relação ao crime de homicídio e tendo em atenção o limite máximo consentido pelo grau de culpa da arguida, atentos os princípios político-criminais da necessidade e da proporcionalidade, julga-se (no âmbito da moldura abstracta de 1 ano 7 meses e 6 dias até 12 anos de prisão) adequada e ajustada a pena de 5 anos de prisão.
Do exposto resulta que se entende ser de reduzir, nos termos apontados, a pena individual imposta pela 1ª instância para o crime de homicídio, desde logo por ultrapassar a medida da sua culpa (tendo em atenção igualmente todo o circunstancialismo atenuativo apurado, resultante da modificação da matéria de facto introduzida por esta Relação).
Impõe-se, agora, a realização de cúmulo jurídico das penas aplicadas, nos termos do art. 77º do CP revisto.
Resulta do art. 77º do CP que, em caso de concurso efectivo de crimes, existe um regime especial de punição, que consiste na condenação final numa única pena, considerando-se, “na medida da pena, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”.
A pena aplicável (a moldura abstracta do concurso de penas) tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos crimes em concurso (ou seja, 5 anos + 5 meses = 5 anos e 5 meses de prisão) e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos crimes em concurso (ou seja, 5 anos de prisão).
Na determinação da pena única a aplicar, há que fazer uma nova reflexão sobre os factos em conjunto com a personalidade da arguida, pois só dessa forma se abandonará um caminho puramente aritmético da medida da pena para se procurar antes adequá-la à personalidade unitária que nos factos se revelou.
Esta pena única é o resultado da aplicação dos “critérios especiais” estabelecidos no mesmo art. 77º, nº 2 – tendo em atenção os limites consignados no seu nº 3 – não esquecendo, ainda, os “critérios gerais” do art. 71º do CP[47] em relação ao ilícito global.
Assim, atendendo aos respectivos factos no conjunto (conexão entre os crimes cometidos e gravidade do ilícito global) e à sua personalidade (que não evidencia tendência criminosa), bem como não esquecendo, relativamente ao ilícito global, quer as exigências de prevenção geral e especial, quer a confissão e arrependimento demonstrados, quer as condições de vida da arguida (à data dos factos aqui em apreço, e mesmo antes e depois), a sua idade, estado de sofrimento depressivo em que se encontra e efeito previsível da pena sobre o seu comportamento futuro, julga-se ajustada e adequada a pena única de 5 (cinco) anos e 2 (dois) meses de prisão.
Na perspectiva do direito penal preventivo, as penas, individuais e única, aplicadas mostram-se adequadas, equilibradas e proporcionadas em relação à gravidade dos factos cometidos.
E, não obstante (perante a pena única de prisão aplicada) não ser admissível a suspensão da sua execução (art. 50º do CP), sempre se dirá que, ainda que fosse aplicada pena de prisão que a permitisse (no máximo 5 anos de prisão), razões de prevenção especial e de prevenção geral impunham o seu cumprimento efectivo (apesar de não ser de prever que a arguida viesse a cometer no futuro idêntico crime, sempre a substituição da pena de prisão por suspensão na sua execução não era suportada comunitariamente uma vez que não satisfazia aquele limiar mínimo da prevenção geral da defesa do ordenamento jurídico[48], desde logo tendo em atenção o bem jurídico protegido no crime de homicídio e necessidade de reafirmar a validade na norma que protege a vida humana).
Finalmente, refira-se que mesmo cumprindo prisão efectiva, deve logo desde o início do cumprimento de pena receber apoio e acompanhamento psicológico e psiquiátrico em serviço de psiquiatria adequado para ter condições de (se ainda for o caso) ultrapassar o quadro de intenso sofrimento psicológico depressivo que apresentava à data da leitura do acórdão na 1ª instância.
Em conclusão: procede parcialmente, embora apenas nos termos acima apontados, o recurso ora em apreço, alterando-se o acórdão da 1ª instância nos moldes acima assinalados.
No mais, como resulta do acima exposto, improcede o recurso da arguida.
*
III- DISPOSITIVO
Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em:
a)- conceder parcial provimento ao recurso da arguida B…, embora em parte por fundamento diverso, alterando a decisão proferida sobre a matéria de facto nos termos acima indicados;
b)- alterar ainda o acórdão proferido pela 1ª instância, nos moldes acima assinalados, isto é, reduz-se a pena que lhe foi aplicada pelo crime homicídio p. e p. no art. 131º do CP para 5 (cinco) anos de prisão e, em cúmulo jurídico com a pena (de 5 meses de prisão) que lhe foi imposta pelo crime de profanação de cadáver, vai condenada na pena única de 5 (cinco) anos e 2 (dois) meses de prisão;
c)- no mais negar provimento ao recurso em apreço.
d)- Sem custas.
*
(Processado em computador e revisto pela 1ª signatária. O verso das folhas encontra-se em branco – art. 94º, nº 2, do CPP)
*
Porto, 23/10/2013
Maria do Carmo Silva Dias (relatora)
Ernesto Nascimento (Adjunto)
__________________
[1] Cf. Ac. do STJ de 15/12/2005, proferido no proc. nº 2951/05 e Ac. STJ de 9/3/2006, proferido no proc. nº 461/06, relatados por Simas Santos (consultado no site do ITIJ – Bases Jurídicas Documentais). Aliás, como se diz no Ac. do STJ de 21/1/2003, proferido no proc. nº 02A4324, relatado por Afonso Correia (consultado no mesmo site), a admissibilidade da alteração da matéria de facto por parte do Tribunal da Relação “mesmo quando exista prova gravada, funcionará assim, apenas, nos casos para os quais não exista qualquer sustentabilidade face à compatibilidade da resposta com a respectiva fundamentação.
Assim, por exemplo:
a) apoiar-se a prova em depoimentos de testemunhas, quando a prova só pudesse ocorrer através de outro sistema de prova vinculada;
b) apoiar-se exclusivamente em depoimento(s) de testemunha(s) que não depôs(useram) à matéria em causa ou que teve(tiveram) expressão de sinal contrário daquele que foi considerado como provado;
c) apoiar-se a prova exclusivamente em depoimentos que não sejam minimamente consistentes, ou em elementos ou documentos referidos na fundamentação, que nada tenham a ver com o conteúdo das respostas dadas.”
[2] Assim, cit. Ac. do STJ de 21/1/2003.
[3] Assim, Ac. do TRG proferido no recurso nº 1016/2005, relatado por Nazaré Saraiva.
[4] Carlos Climent Durán, La Prueba Penal, tomo I, 2ª ed., Valência: tirant lo blanch, 2005, p. 65. Mais à frente, o mesmo Autor, ob. cit., p. 78, nota 64, citando K. Engisch, diz que “o objectivo da actividade probatória é «criar no juiz o convencimento da existência de certos factos»”.
[5] Jorge Figueiredo Dias, Direito Processual Penal (lições coligidas por Maria João Antunes), Coimbra: Secção de Textos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1988-89, p. 139, refere que «a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada “verdade material” –, de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo» (possa embora a lei renunciar à motivação e ao controlo efectivos)».
[6] Regra de experiência que, como diz Paolo Tonini, A prova no processo penal italiano (trad. de Alexandra Martins e Daniela Mróz, de La prova penale, 4ª ed., publicado em Pádua, pela Cedam – Casa Editrice Dott. António Milani, em 2000 e posterior actualização de Setembro de 2001), São Paulo, Brasil: Editora Revista dos Tribunais LTDA, 2002, pp. 55 e 56, “expressa aquilo que acontece na maioria dos casos”, sendo “extraída de casos similares”, gerando “um juízo de probabilidade”, de um “idêntico comportamento humano”, devendo o juiz formular “um raciocínio de tipo indutivo” e sucessivamente “um raciocínio dedutivo”.
[7] Assim, Ac. do STJ de 21/1/2003, proferido no proc. nº 02A4324, relatado por Afonso Correia (consultado no mesmo site), chamando à atenção para o que se escreveu em Ac. de 8/2/99, em recurso de apelação do proc. nº 1/99 do Tribunal de Círculo de Chaves.
[8] Cf., entre outros, Ac. do STJ de 19/12/1990, BMJ nº 402/232ss.
[9] Assim, entre outros, Ac. do STJ de 13/7/2005, proferido no processo nº 2122/05, relatado por Henriques Gaspar (consultado no site do ITIJ – Bases Jurídicas Documentais).
[10] Ibidem.
[11] No relatório pericial feito pelo Dr. C… constam as seguintes conclusões:
“A examinanda não apresenta, em sentido estrito, nosologia ou doença mental, estando ausentes inclusivamente quaisquer sintomas ou sinais isolados abnormes ou graves, de natureza psicótica como sejam delírios ou alucinações, que possam distorcer o sentido da realidade objectiva e que a própria não domine ou sejam independentes do controlo da sua inteligência e vontade. A consciência que tem do Mundo à sua volta está pois conservada, não se apurando episódios dissociativos, organizando a examinanda o seu presente vivenciado no campo temporo-espacial da sua experiência sensível. Igualmente está mantida a consciência do bem e do mal, em concreto reconhecendo serem ilícitos os actos por si cometidos, seja na actual data da observação, seja quando da prática dos factos que a própria verbaliza. A examinanda relata pormenores recordados, sendo que a descrição minuciosa que é feita pela examinanda, seja na presente perícia seja no relato dos factos à polícia igualmente atesta processamento cognitivo íntegro. Também não houve turbação da consciência.
Finalizando, podemos afirmar que a sequência desta discussão leva-nos ao parecer de que no momento da prática dos factos e para estes, estaria a examinada capaz de se avaliar e de se determinar, e por isso presentes pressupostos médico-legais de imputabilidade, não estando pois prejudicada, em razão de anomalia psíquica, a consciência da ilicitude.
Porém não se pode excluir a situação (parto) tenha provocado na Examinanda uma situação de tensão marcada para a qual ela não estava preparada. Embora soubesse que aquele dia fosse chegar não tinha preparado essa situação pelo que fica sem saber como resolvê-la. Consegue fazer o parto em silêncio e quando o filho nasce fica provavelmente centrada num dilema para a qual não acha resposta. É de aceitar que vivencie esse estado com bastante ansiedade e tensão. As características da sua personalidade (medo da rejeição, insegurança, medo da crítica…) assim como a situação de doença da mãe, levaram-na infelizmente a escolher a resposta mais inadequada. Também o que é relevante é o seu comportamento posterior ao acto. Seria de esperar que se houvesse da examinanda uma premeditação de tal acto ou que ele fosse feito de maneira a dissimular a gravidez não se importando com as consequências morais do acto, a Examinando iria tentar “desfazer-se” do recém-nascido de maneira a esconder e provavelmente nunca ninguém saberia o que se tinha passado. Desta maneira é de aceitar algumas atenuantes ao seu comportamento.
Também é perceptível que a Examinanda é portadora neste momento de um estado depressivo, com culpabilidade marcada, parecendo ao perito que independentemente da resolução judicial, será muito importante e necessário o acompanhamento psicológico/psiquiátrico da Examinanda, dado que parece haver elevado grau de risco em face do quadro existente.
[12] No relatório pericial feito pela Drª. E… consta da “Discussão e Conclusões” o seguinte:
A examinanda é uma jovem de 25 anos, sem doença psiquiátrica ou psicopatologia agua prévia, com bom nível intelectual e académico.
Cresceu em ambiente rural e dominado por fortes regras conservadoras face aos comportamentos sexuais fora do casamento; Decidida a aumentar a sua autonomia foi trabalhar e viver numa aldeia diferente da original. Em 2009 engravidou de relação casual e não protegida; o parceiro já tinha desaparecido quando tal descobriu. Levada pelo medo do estigma familiar e social conjugado de forma muito específica com o facto de não querer desiludir a mãe, em fase terminal, decide esconder de todos a gravidez. Nunca lhe ocorre fazer uma interrupção desta, contra os seus princípios.
No momento do parto, ocorrido paredes meias com a cama da sua mãe descreve estado de intensa perturbação emocional com alteração do estado normal da consciência e comportamento – fica perdida, sem rumo, não sabe o que faz só que a mãe não pode ouvir o choro, não tem dores sendo uma primípara sem preparação, alheia-se num estado anormal de consciência de si e do mundo, como um pesadelo em que não se reconhecerá nem aos seus actos como próprios. Este estado configura a noção de despersonalização e desrealização que acontece em estados de Perturbação de Stress Agudo.
Este estado mantém-se por período de várias horas, sendo a examinada neste estado alterado dominada por sentimentos contraditórios mas evidenciando um apego à sua bebé pelo que não se quer desfazer dela mantendo-a mais próximo possível de si, mesmo morta, e posteriormente quando a coloca e deixa debaixo da cama evidencia a mesma necessidade de a ter embora não podendo, não fazendo uso de crítica nem juízo lógico. Este apego, não desaparecido, é também ainda actualmente consubstanciado pelo facto de querer fazer o funeral à sua filha e saber onde ela está.
Assim parece, pela avaliação efectuada, terem os factos acontecido em estado de intensa perturbação emocional com alteração do estado de consciência, despersonalização e desrealização associada ao puerpério, configurando a noção de infanticídio.
Na actualidade, a examinada continua a apresentar quadro de intenso sofrimento psicológico depressivo sendo de promover o seu acompanhamento em serviço de psiquiatria adequado.
[13] Explica Jorge de Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, tomo I, Coimbra Editora Limitada, 1999, p. 48: «Os estados ou motivos assinalados pela lei não funcionam por si e em si mesmos (hoc sensu, automaticamente), mas só quando conexionados com uma concreta situação de exigibilidade diminuída por eles determinada; neste sentido é expressa a lei ao exigir que o agente actue “dominado” por aqueles estados ou motivos.»
[14] Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit., pp. 50 a 53.
[15] Amadeu Ferreira, Homicídio Privilegiado, Almedina, 1991, p. 83.
[16] Augusto Silva Dias, Crimes contra a vida e a integridade física, aafdl, 2005, p.21.
[17] Augusto Silva Dias, ob. cit., p. 23. Ainda, na p. 20, que “o privilegiamento assenta aqui [refere-se ao artigo 133º], tanto «prima facie» como «tudo medido», num especial tipo de culpa: estados de afecto ou motivações pouco censuráveis que provoquem, em concreto, uma diminuição sensível da culpa do agente. Confrontação do art. 133º com a regra da atenuação especial da pena do art. 72º.”
[18] Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit., pp. 47 e 48.
[19] Maria Fernanda Palma, Direito Penal Parte Especial Crimes contra as Pessoas, Lisboa, 1983, p.82.
[20] Teresa Serra, “Homicídios em Série”, in Jornadas de Direito Criminal, Revisão do Código Penal, Alterações ao Sistema Sancionatório e Parte Especial, Volume II, CEJ, 1998, p. 166.
[21] Cláudia Neves Casal, Homicídio Privilegiado por Compaixão, Coimbra Editora, 2004, p. 132. Acrescenta na p. 135, quando retira conclusões:
- a compreensibilidade é um requisito adicional, específico da emoção violenta, que não assenta na proporcionalidade, nem depende de provocação;
- decisiva para a compreensibilidade da emoção a análise do próprio afecto e dos seus motivos;
- os efeitos do afecto devem ser considerados pelo julgador por referência ao agente concretamente emocionado, afastando-se a objectividade dos estímulos;
- a avaliação conjunta da situação tem de permitir concluir que a emoção violenta compreensível diminuiu sensivelmente o juízo de censura dirigido ao agente.”
[22] João Curado Neves, “O homicídio privilegiado na doutrina e na jurisprudência do STJ”, in RPCC, Abril – Junho 2001, fasc. 2º, p. 180.
[23] Fernando Silva, Direito Penal Especial, Crimes Contra As Pessoas, Quid Júris, 2005, pp.94 e 95.
[24] Amadeu Ferreira, na aula que deu sobre homicídio privilegiado, in Textos, direito penal II, os homicídios, volume II, aafdl, 1998, p. 87.
[25] Amadeu Ferreira, Homicídio Privilegiado, p. 139. Mais à frente, nas conclusões nº 12.4 a nº14 que retira do seu estudo (ob. cit., p. 146), escreve: “12.4. Negativamente, a compreensibilidade significa não estabelecer um juízo de desvalor em relação à emoção considerada como um todo, ao circunstancialismo em que surge e à sua motivação subjectiva. Positivamente a compreensibilidade significa poder estabelecer um juízo de culpa diminuída face às capacidades do agente para não praticar o facto ilícito. 13. A compreensibilidade não significa proporcionalidade entre o facto causador da emoção e o homicídio. 14. A jurisprudência, apesar da recusa prática em concretizar o conceito de compreensibilidade, permite agrupar casos capazes de indiciar alguns critérios que, encarados em conjunto, poderão contribuir para delimitar o conceito: se o agente deu causa à emoção e podia prever a prática do crime; se lhe incumbiam deveres especiais de evitar a situação geradora de emoção; se houve reflexão em relação à prática do facto; se o facto é altamente desconforme à personalidade do agente. Estes indícios devem ser tomados como argumentos na decisão de casos concretos.”
[26] Cláudia Neves Casal, ob. cit., p. 150.
[27] Amadeu Ferreira, Homicídio Privilegiado, p. 77.
[28] Amadeu Ferreira, Homicídio Privilegiado, p. 118, defende que “o legislador não considera a emoção em si mesma, por mais violenta que seja, como causa de exclusão da culpa. Antes faz incidir sobre ela uma valoração de carácter jurídico. Daí que não baste a comprovação científica, psiquiátrica ou psicológica da emoção. Racionalmente, a emoção pode ser explicada e compreendida. Se isso não basta, então a compreensibilidade deve ser entendida em termos normativos, isto é, ser preenchida, concretizada, através de juízos de valor da competência exclusiva do intérprete-aplicador”.
[29] Ver, a este propósito, entre outros, Teresa Quintela de Brito, “Homicídio privilegiado: algumas notas, in Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, p. 901. A nível da jurisprudência, citando abundante doutrina e também decisões dos Tribunais, ver, entre outros, Ac. do STJ de Raul Borges, proferido em 27.6.2012, no proc nº 3283/09.7TACBR.S1 (consultado no site do ITIJ).
[30] Augusto Silva Dias, ob. cit., p. 41, adiantando que o momento “logo após o parto” «cessará logo que cessem os efeitos mais intensos e psicologicamente inibitórios da influencia perturbadora puerperal».
[31] Assim, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, 2008, p. 369.
[32] Jorge Figueiredo Dias, ob. cit., pp. 101 a 103.
[33] Fernando Silva, ob. cit., p. 123.
[34] Ver, também, a este propósito, entre outros, Amadeu Ferreira, ob. cit pp. 72 a 76 e Cláudia Neves Casal, Homicídio Privilegiado por Compaixão, Coimbra Editora, 2004, pp. 143 a 146.
[35] Como diz João Curado Neves, ob. cit., p. 187, “O desespero é a razão para a prática do facto, não uma descrição da situação emocional do agente”.
[36] Anabela Rodrigues, «O modelo da prevenção na determinação da medida concreta da pena», in RPCC ano 12º, fasc. 2º (Abril-Junho de 2002), p. 155, refere que o art. 40 CP condensa “em três proposições fundamentais, o programa político-criminal - a de que o direito penal é um direito de protecção de bens jurídicos; de que a culpa é tão só um limite da pena, mas não seu fundamento; e a de que a socialização é a finalidade de aplicação da pena”.
[37] Neste sentido, v.g. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte geral II, As consequências jurídicas do crime, Editorial Noticias, 1993, p.198.
[38] Anabela Rodrigues, «Pena de prisão substituída por pena de prestação de trabalho a favor da comunidade (prática de um crime de receptação dolosa) Sentença do Tribunal de Círculo da Comarca da Figueira da Foz de 29 de Maio de 1998», in RPCC ano 9º, fasc. 4º (Outubro-Dezembro de 1999), p. 644, a propósito da aplicação em alternativa de duas penas principais, esclarece que “(…) a opção pela aplicação de uma ou outra pena à disposição do tribunal não envolve um juízo, feito em função das exigências preventivas, sobre a necessidade da execução de pena de prisão efectiva – que o juiz sempre terá que demonstrar para fundamentar a aplicação da pena de prisão -, mas sim um juízo de maior ou menor conveniência ou adequação de uma das penas em relação à outra, em nome da realização das referidas finalidades preventivas.”
[39] Figueiredo Dias, ob. cit., p. 72.
[40] Figueiredo Dias, ob. cit., p. 214.
[41] Jorge Figueiredo Dias, "Sobre o estado actual da doutrina do crime”, RPCC, ano 1º, fasc. 1º (Janeiro-Março de 1991), p. 29.
[42] Neste sentido, Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, Parte Geral, III, Teoria das Penas e das Medidas de Segurança, Editorial Verbo, 1999, p. 167 e Jorge Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte Geral, II, As consequências jurídicas do crime, p. 291. Acrescenta este último Autor que “tudo se deve passar como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão só, a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).
[43] Jorge Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, p. 91.
[44] Ibidem.
[45] Anabela Rodrigues, “A determinação da medida concreta da pena privativa de liberdade e a escolha da pena”, anotação ao Ac. do STJ de 21 de Março de 1990 (3ª secção – processo nº 40 639), in RPCC ano I, nº 2, Abril – Junho de 1991, p. 256.
[46] Neste sentido, entre outros, Ac. do STJ de 27/6/1996, in CJ 1996, II, 204.
[47] Ver Figueiredo Dias, ob. cit., p. 291.
[48] Neste sentido, entre outros, declaração de voto de Santos Carvalho no Ac. do STJ de 11.10.2012, proferido no processo nº 288/09.1GBMTJ.L2.S1, consultado no site do ITIJ.