Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3398/20.0T8PNF.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDO VILARES FERREIRA
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
DANO BIOLÓGICO
EQUIDADE
Nº do Documento: RP202301243398/20.0T8PNF.P1
Data do Acordão: 01/24/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO PARCIALMENTE PROCEDENTE; DECISÃO ALTERADA
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A indemnização do chamado dano biológico, com incidência patrimonial, tem como base e fundamento a perda ou diminuição de capacidades funcionais que, mesmo não importando perda ou redução da capacidade para o exercício profissional da atividade habitual do lesado, impliquem ainda assim um maior esforço no exercício dessa atividade e/ou a supressão ou restrição de outras oportunidades profissionais ou de índole pessoal, no decurso do tempo de vida expetável, mesmo fora do quadro da sua profissão habitual.
II – Não deve a indemnização de tal dano ser calculada com base em tabelas financeiras, na medida em que o sobredito défice funcional genérico não implica incapacidade parcial permanente para o exercício dessa atividade, envolvendo apenas esforços suplementares. Assim como não deve ser fixada com recurso às tabelas estabelecidas para efeitos de apresentação aos lesados de proposta razoável de indemnização, nos termos do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21.08, por estas se destinarem a ser aplicadas na esfera extrajudicial.
III – O ajuizamento no cálculo da dita indemnização, à semelhança do que sucede na quantificação dos danos não patrimoniais/morais, deve fundar-se, em último e decisivo termo, em critérios de equidade e sem dissociação de entendimentos jurisprudenciais minimamente uniformizados.
IV – Tem-se por equitativo o montante de 40.000€ destinado a compensar uma jovem de 23 anos, aluna de enfermagem em fase de estágio, por ter ficado a padecer de défice funcional permanente na integridade físico-psíquica de 6 pontos, compatível com a atividade profissional de enfermagem, embora com esforços acrescidos importantes.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROCESSO N.º 3398/20.0T8PNF.P1
[Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este - Juízo Central Cível de Penafiel - Juiz 1]

Relator: Fernando Vilares Ferreira
Adjunto: Alberto Taveira
Adjunta: Maria da Luz Seabra


SUMÁRIO:
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EM NOME DO POVO PORTUGUÊS, acordam os Juízes Desembargadores da 2.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I.
RELATÓRIO
1.
AA intentou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL.
Pediu que o Réu seja condenado a pagar-lhe, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos em resultado de acidente de viação, o montante de 135.323,81€, acrescido de juros de mora à taxa legal, contados desde a citação até integral pagamento.
Alegou, em síntese, ter sido vítima de acidente de viação, cuja responsabilidade pelo mesmo ficou a dever-se a condutor de veículo automóvel da marca BMW, não objeto de seguro válido, do qual resultaram para si os danos por cuja indemnização é responsável o Réu.
2.
O Réu contestou, excecionando a sua ilegitimidade, por estar desacompanhado do condutor do veículo causador do sinistro, e impugnando a matéria concernente aos danos e respetiva valorização indemnizatória.
3.
Sob promoção da Autora, foi proferida decisão que admitiu o incidente de intervenção principal provocada do condutor e proprietário do veículo BMW, BB.
4.
Na contestação que apresentou, o Interveniente BB invocou, para além do mais, a existência de seguro válido.
5.
Procedeu-se ao saneamento do processo, à identificação do objeto do litígio e à enunciação dos temas de prova.
6.
Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença, com o seguinte DISPOSITIVO[1]:
“Pelo exposto decide-se julgar parcialmente procedente a presente ação e, em consequência:
a) condenar, solidariamente, o Réu, Fundo de Garantia Automóvel e o Interveniente, BB, a pagar à Autora, AA, as seguintes quantias:
- €50.323,31 pelos danos patrimoniais sofridos, acrescida dos juros legais contados desde a citação até integral pagamento.
- €20.000,00, pelos danos não patrimoniais sofridos, acrescido dos juros legais, contados a partir da presente data até integral pagamento.
b) absolver o Réu e Interveniente dos restantes pedidos contra si deduzidos pela Autora.
- Custas por Autora, Réu e Interveniente na proporção dos respetivos decaimentos.]
7.
Inconformado, o Réu FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL interpôs o presente recurso de apelação, com subida nos próprios autos e efeito devolutivo, assente nas seguintes CONCLUSÕES:
i. O montante indemnizatório atribuído a título de danos patrimoniais futuros e a título de danos não patrimoniais é excessivo;
ii. O montante atribuído a título de dano patrimonial futuro (decorrente da perda da capacidade de ganho) deve fixar-se em montante não superior a €26.500,00 (vinte seis mil e quinhentos euros);
iii. O montante atribuído a título de danos não patrimoniais deve fixar-se em montante não superior a €8.000,00 (oito mil euros);
iv. A indemnização global a atribuir à autora deve ser reduzida ao montante máximo de €34.500,00 (trinta e quatro mil e quinhentos euros).
v. O Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 494.º, 496.º, 562.º e 566.º, todos do Código Civil.
8.
Contra-alegou a Autora, pugnando pela rejeição do recurso, por alegado incumprimento do estatuído no art. 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPCivil), sem prejuízo da improcedência do mesmo.

II.
QUESTÃO PRÉVIA
Ao invés do sustentado pela Apelada em sede de contra-alegações, razão alguma vemos para rejeitar o recurso com fundamento no não cumprimento dos ónus de natureza formal previstos no art. 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPCivil.
Com efeito, o dever de alegar e formular conclusões nos termos da cit. disposição legal mostra-se cumprido de forma adequada e suficiente pelo Apelante, não se nos suscitando qualquer dúvida na identificação das questões de direito que a Apelante mantém controvertidas, assim como da respetiva solução que pretende obter nesta instância de recurso.
Nada obsta ao conhecimento do recurso.

III.
OBJETO DO RECURSO
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de questões nelas não incluídas, salvo se forem de conhecimento oficioso (cf. artigos 635.º, n.º 4, 637.º, n.º 2, 1.ª parte, e 639.º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPCivil).
Assim, partindo das conclusões das alegações apresentadas pelo Apelante, o que importa decidir nesta instância de recurso circunscreve-se à determinação do quantum da indemnização fundada em dano patrimonial futuro (dano biológico), bem assim em danos não patrimoniais.

III.
FUNDAMENTAÇÃO
1.
OS FACTOS
1.1 – Factos provados
O Tribunal a quo julgou provados os seguintes factos:
1 – No dia 14 de janeiro de 2018, pelas 22h40, na Avenida ... do ..., no Concelho do Marco de Canaveses, ocorreu um embate entre o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ....-SZ, marca Renault, modelo ..., propriedade de CC, conduzido por DD e o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-0N, marca BMW, modelo ..., conduzido por BB, seu dono.
2 – A Autora, AA, seguia no interior da viatura automóvel Renault, na qualidade de ocupante, no lugar do “pendura”.
3 – O veículo BMW circulava no sentido descendente daquela avenida, pela sua faixa de rodagem e próximo à berma.
4 – O veículo Renault circulava em sentido contrário do veículo BMW.
5 – No local a via tem um separador central em forma de triângulo próximo do cruzamento com o posto de abastecimento de combustível da Repsol.
6 – O veículo BMW, seguia no sentido do posto de abastecimento, quando contornava o separador central ali existente e desrespeitando o sinal de STOP que o obrigava a parar, sem que nada fizesse prever e justificasse, o condutor do veículo BMW perdeu o controlo da viatura que conduzia, entrou em despiste, tendo invadido a faixa de rodagem contrária, cortando a linha de trânsito do veículo Renault.
7 – O condutor do veículo Renault travou, mas não conseguiu evitar que o veículo BMW embatesse com a sua lateral direita na frente do Renault, causando danos materiais neste veículo e danos corporais no condutor e ocupante desta viatura, a aqui Autora.
8 – No local existia iluminação pública ligada.
9 – O piso era em asfalto, não continha quaisquer irregularidades e estava seco.
10 – O condutor da viatura BMW conduzia com uma TAS de 2,22g/l, resultado do exame sanguíneo efetuado no INML, solicitado pelas autoridades.
11 – Corre termos na Procuradoria da República da Comarca do Porto Este – Departamento de Investigação e Ação Penal – Secção do Marco de Canaveses – inquérito cujo nº do processo é 133/18.7GAMCN, onde o condutor da viatura está acusado de crime de ofensa à integridade física e condução em estado de embriaguez.
12 – A apólice de seguro ... da Companhia de Seguros A... para garantia dos eventuais danos provocados a terceiros contratualizada pelo condutor do veículo BMW encontrava-se anulada à data do sinistro.
13 – Após o embate, a Autora foi observada no local pelos serviços do INEM, que prestaram os primeiros socorros e providenciaram, o plano duro e a colocação colar cervical, com transporte da mesma, para o serviço de urgência do Hospital de Penafiel, onde foi diagnosticada a fratura da coluna dorsal.
14 – No serviço de Urgência, a Autora apresentava queixas dolorosas na região lombar e pé direito e apresentava escoriações da perna direita.
15 – A Autora realizou TAC da coluna cervical e RX ao pé direito, que evidenciavam fraturas vertebrais de D11 e D12.
16 – A Autora ficou em vigilância durante a noite.
17 – A equipa médica da referida Unidade Hospitalar prescreveu à Autora colete de Jewtt e atribuiu alta para a consulta externa de ortopedia.
18 – No dia 17/01/2018, a Autora apresentava um agravamento do quadro doloroso a nível da coluna lombar, tendo recorrido aos Serviços de Urgência do Hospital de Bragança.
19 – Nesta Unidade Hospitalar a Autora realizou TAC da coluna dorso lombar, que de novo, confirmou fraturas, anteriormente, descritas, vertebrais de D11 e D12.
20 – Os Serviços Clínicos desta Unidade Hospitalar mantiveram o tratamento à Autora, dando-lhe indicação para ser seguida em consulta externa de ortopedia nesta Instituição.
21 – No dia 06/02/2018, a Autora realizou RMN da coluna dorsal e lombar, na Clínica ..., em Bragança.
22 – Os exames realizados não mostraram nada de novo em relação aos TAC(s) previamente realizados.
23 – A Autora manteve tratamento com colete de imobilização.
24 – Em 03/03/2018, na consulta, foi-lhe retirado o colete e teve alta.
25 – A Autora, que há data do acidente era aluna de enfermagem no Instituto Politécnico de Bragança, retomou o estágio no dia 06/03/2018.
26 – No dia 27-04-2018, a Autora foi avaliada nos Serviços Clínicos do Fundo de Garantia Automóvel, onde lhe foi dada alta por aqueles serviços.
27 – Em consequência do embate, a Autora tem dificuldades na realização de atividades em que tenha de pegar objetos com peso superior a 5 Kg, por agravamento imediato da dor a nível dorso lombar.
28 – Apresenta dificuldades quando caminha em longas distâncias, quando está muito tempo sentada ou de pé.
29 – Tem dificuldades nas atividades domésticas, tais como fazer limpezas, ir às compras, dificuldades na deslocação em viatura automóvel por período temporal prolongado.
30 – Ficou impossibilitada de fazer corrida que praticava diariamente, embora faça caminhadas de lazer.
31 – Tem dificuldades em certas atividades da sua profissão de enfermeira, nomeadamente nas transferências, de posicionamento e levantamento de pacientes, na Unidade onde trabalhava – Lar ....
32 – A Autora apresenta rigidez dorsal moderada, diminuição das inclinações laterais, da flexão e da extensão.
33 – Dor à apalpação das apófises espinhosas dorsais e postura antálgica com ligeira inclinação anterior do tronco com a acentuação da cifose dorsal.
34 – Por causa das lesões sofridas, a Autora teve um período de défice funcional temporário total de 30 dias.
35 – Teve um período de défice funcional temporário parcial de 150 dias.
36 – Teve um período de repercussão temporária na atividade profissional total de 51 dias.
37 – Teve um período de repercussão temporária na atividade profissional parcial de 129 dias.
38 – As lesões sofridas provocaram-lhe um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 6 pontos, sendo tais sequelas, em termos de repercussão permanente na atividade profissional, compatíveis com o exercício da atividade habitual, mas implicam esforços suplementares.
39 – Com repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer de grau 2 numa escala de 1 a 7.
40 – E com Quantum doloris fixado no grau 4 numa escala de 1 a 7.
41 – Repercussão permanente na atividade sexual fixável no grau 2 numa escala de 1 a 7.
42 – Por causa do embate, a Autora começou a ter insónias, o que tem prejudicado o seu descanso.
43 – Ficou mais irritada, tendo discussões com os seus familiares.
44 – As sucessivas idas ao Hospital e a dor constante ao nível da coluna, deixam a Autora deprimida e inquieta.
45 – E nos meses que se seguiram ao embate passou a ter receio de se deslocar de automóvel.
46 – Antes do embate a Autora era uma pessoa alegre, bem-disposta, sociável, extrovertida.
47 – Após o embate a Autora sente angústia, revolta, ansiedade e tristeza.
48 – E nos meses que se seguiram ao embate começou a isolar-se dos seus amigos, evitando saídas, não só pelas dores ao nível da coluna, mas também pelo receio de andar de automóvel.
49 – A Autora tinha o sonho de trabalhar no serviço de urgência/doente crítico.
50 – A Autora começou a trabalhar num lar em Bragança em outubro/novembro de 2018, tendo aí permanecido cerca de um ano.
51 – Após, a Autora esteve a trabalhar num Hospital em Cascais onde permaneceu cerca de sete meses, tendo que abandonar tal trabalho por ter que estar muitas horas de pé.
52 – Desde julho de 2020 e até à presente data, a Autora trabalha nos cuidados intensivos do Hospital de Santa Maria.
53 – A Autora despendeu com despesas hospitalares o valor de €173,31.
54 – Com a aquisição do colete de Jewett, que lhe foi prescrito, gastou a quantia de 150,00 €.
55 – A Autora com referência ao ano de 2020, auferiu a remuneração base de €1.200,00 a que acresce subsídio de alimentação de €104,94 e subsídio risco Covid €180,00.
56 – A Autora nasceu em .../.../1994.
1.2 – Factos não provados
Dos factos tidos por relevantes para a decisão da causa, o Tribunal de que vem o recurso julgou não provados os seguintes:
a) A faixa de rodagem onde o condutor do veículo BMW circulava encontrava-se com muita terra solta, motivo pelo qual perdeu o controle do veículo que circulava, entrando em despiste.
b) No membro inferior direito a Autora apresenta mancha melânica cicatricial com 9/4 cm na face anterior da perna.
c) A Autora, por causa dos danos sofridos com o acidente, irá ter despesas futuras.

2.
OS FACTOS E O DIREITO
2.1.
2.1.1.
Da quantificação da indemnização a título de dano biológico
Lembramos que a sentença sob recurso, levando em conta a possibilidade de a Autora poder exercer atividade laboral, embora com esforços suplementares, e com base no juízo de equidade que formulou, concluiu pela justeza do valor global de 50.000,00€, a título de indemnização pela perda da capacidade de ganho (e esforços acrescidos), enquanto danos futuros.
O Réu/Apelante entende que o referido montante indemnizatório é excessivo, pretendendo que seja reduzido a 26.500,00€, por equitativo.
Permanece, pois, em discussão a quantificação da indemnização decorrente do chamado dano biológico futuro, traduzido desde logo na necessidade de a Autora despender esforços acrescidos, seja no exercício da sua atividade profissional, seja na sua vida pessoal.
2.1.2
A indemnização do chamado dano biológico, que entendemos ser de natureza patrimonial[2], “tem como base e fundamento a perda ou diminuição de capacidades funcionais que, mesmo não importando perda ou redução da capacidade para o exercício profissional da atividade habitual do lesado”, como é o caso submetido à nossa apreciação, “impliquem ainda assim um maior esforço no exercício dessa atividade e/ou a supressão ou restrição de outras oportunidades profissionais ou de índole pessoal, no decurso do tempo de vida expetável, mesmo fora do quadro da sua profissão habitual. (…). Assim, «nesta perspetiva, deverá aditar-se ao lucro cessante, decorrente da previsível perda de remunerações, calculada estritamente em função do grau de incapacidade permanente fixado, uma quantia que constitua justa compensação do referido dano biológico, consubstanciado na privação de futuras oportunidades profissionais, precludidas irremediavelmente pela capitis deminutio de que passou a padecer (o lesado), bem como pelo esforço acrescido que o já relevante grau de incapacidade fixado irá envolver para o exercício de quaisquer tarefas da vida profissional ou pessoal». (…) E porque assim é, importa ainda realçar, na esteira do afirmado no Acórdão do STJ, de 13.07.2017 (processo nº 3214/11.4TBVIS.C1.S1), que, neste campo, relevam apenas e tão só «as implicações de alcance económico e já não as respeitantes a outras incidências no espetro da qualidade de vida, mas sem um alcance dessa natureza»” [3].
O ajuizamento no cálculo da indemnização fundada em dano biológico deve fundar-se, em último e decisivo termo, em critérios de equidade e sem dissociação de entendimentos jurisprudenciais “minimamente uniformizados”[4].
Não deve a indemnização de tal dano “ser calculada com base nas tabelas financeiras na medida em que o sobredito défice funcional genérico não implica incapacidade parcial permanente para o exercício dessa atividade, envolvendo apenas esforços suplementares”. Assim como “não deve ser fixada com recurso às tabelas estabelecidas para efeitos de apresentação aos lesados de proposta razoável de indemnização, nos termos do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21.08, por estas se destinarem a ser aplicadas na esfera extrajudicial, não sendo lícita a sua sobreposição ao critério legal da equidade previsto no artigo 566.º, n.º 3, do Código Civil. Em tais situações, a solução que vem sendo adotada pela jurisprudência pelo Supremo Tribunal de justiça “é a de fixar um montante indemnizatório por via da equidade, ao abrigo do disposto no artigo 566.º, n.º 3, do Código Civil, em função das circunstâncias concretas de cada caso, segundo os padrões que têm vindo a ser delineados, atentos os graus de gravidade das lesões sofridas e do seu impacto na capacidade económica do lesado, considerando quer as suas potencialidades de aumento de ganho quer uma expetativa de vida ativa não confinada à idade-limite para a reforma”[5].
Ora, no caso em apreço, o que, em sede de dano biológico, resulta com mais relevo da factualidade julgada provada, é que a Autora, nascida a .../.../1994, contava, à data do acidente, 23 anos de idade; à data do acidente era aluna de enfermagem no Instituto Politécnico de Bragança, em fase de estágio; a Autora apresenta as seguintes sequelas, em resultado das lesões que sofreu no acidente: tem dificuldades na realização de atividades em que tenha de pegar objetos com peso superior a 5 Kg, por agravamento imediato da dor a nível dorso lombar; apresenta dificuldades quando caminha em longas distâncias, quando está muito tempo sentada ou de pé; tem dificuldades nas atividades domésticas, tais como fazer limpezas, ir às compras, dificuldades na deslocação em viatura automóvel por período temporal prolongado; ficou impossibilitada de fazer corrida que praticava diariamente, embora faça caminhadas de lazer; tem dificuldades em certas atividades da sua profissão de enfermeira, nomeadamente nas transferências, de posicionamento e levantamento de pacientes; apresenta rigidez dorsal moderada, diminuição das inclinações laterais, da flexão e da extensão; dor à apalpação das apófises espinhosas dorsais e postura antálgica com ligeira inclinação anterior do tronco com a acentuação da cifose dorsal; ficou com um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 6 pontos, sendo tais sequelas, em termos de repercussão permanente na atividade profissional, compatíveis com o exercício da atividade habitual, mas implicam esforços suplementares.
Neste quadro, tendo presente o sentido da mais recente jurisprudência do STJ na matéria, disso sendo exemplo os acórdãos já referenciados, aos quais acrescentamos os arestos de 24.02.2022[6] e de 21.04.2022[7] (este último tendo por base também uma lesada com a profissão de enfermeira, com a idade de 51 anos e um défice funcional permanente de 3 pontos) ponderando as diferentes realidades no respeitante aos pressupostos de base, mormente a juventude da Autora à data do acidente (vinte e três anos de idade) e o grau do défice funcional permanente, com evidente repercussão negativa na atividade profissional da autora, implicando notórios esforços acrescidos na exigente atividade de enfermagem, julgamos equitativo, à luz do preceituado no art. 566.º, n.º 3, do CCivil, o montante de 40.000,00€, a título de indemnização pelo dano biológico em questão, o que representa menos 10.000,00€ relativamente ao valor alcançado pela 1.ª instância.
Procede, pois, parcialmente a pretensão do Apelante nesta parte.
2.2.
Da quantificação da indemnização a título de danos não patrimoniais
O Apelante também não deixou de manifestar a sua discordância com a decisão recorrida na parte respeitante à quantificação da indemnização a título de danos não patrimoniais, pugnando pela atribuição do montante de 8.000,00€, em vez do valor de 20.000,00€ alcançado pela 1.ª instância, por em seu entender se ajustar mais ao sentido da jurisprudência dos nossos tribunais superiores.
Na decisão recorrida deixou-se vertida a seguinte fundamentação:
[Preceitua o art. 496º, nº 1, do C.Civil, que na fixação da indemnização devem atender-se aos danos não patrimoniais que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito.
Tem-se entendido doutrinal e jurisprudencialmente, que a merecem, aqueles danos que “espelham uma dor, angústia, desgosto ou sofrimento”.
Entende-se igualmente, que é pecuniariamente compensável o abalo moral sofrido pelo receio natural pela integridade física.
Ora, releva para a fixação desta indemnização os factos descritos nos pontos 13 a 24, 27 a 37, 39 a 48.
No caso em apreço, os danos não patrimoniais sofridos pela Autora e que têm subjacente a matéria de facto vertida naqueles números são indemnizáveis, pois têm gravidade suficiente para merecer a tutela do direito, já que se consubstanciam numa lesão da sua integridade física e psicológica.
Valorizando-se os mencionados danos por referência ao momento atual, considerando em consequência do embate, a Autora tem dificuldades na realização de atividades em que tenha de pegar objetos com peso superior a 5 Kg, por agravamento imediato da dor a nível dorso lombar, apresenta dificuldades quando caminha em longas distâncias, quando está muito tempo sentada ou de pé, tem dificuldades nas atividades domésticas, tais como fazer limpezas, ir às compras, dificuldades na deslocação em viatura automóvel por período temporal prolongado, ficou impossibilitada de fazer corrida que praticava diariamente, embora faça caminhadas de lazer, tem dificuldades em certas atividades da sua profissão de enfermeira, nomeadamente nas transferências, de posicionamento e levantamento de pacientes, apresentando rigidez dorsal moderada, diminuição das inclinações laterais, da flexão e da extensão, dor à apalpação das apófises espinhosas dorsais e postura antálgica com ligeira inclinação anterior do tronco com a acentuação da cifose dorsal, apresentado repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer de grau 2 numa escala de 1 a 7, com Quantum doloris fixado no grau 4 numa escala de 1 a 7, com repercussão permanente na atividade sexual fixável no grau 2 numa escala de 1 a 7, começou a ter insónias, o que tem prejudicado o seu descanso, ficou mais irritada, tendo discussões com os seus familiares, sendo que antes do embate a Autora era uma pessoa alegre, bem-disposta, sociável, extrovertida e após o embate a Autora sente angústia, revolta, ansiedade e tristeza.
Relativamente ao sonho que a Autora tinha de trabalhar no serviço de urgência/doente crítico, verificou-se que desde julho de 2020 e até à presente data, a Autora trabalha nos cuidados intensivos do Hospital de Santa Maria (ponto 52), pelo que tal questão não será relevada para efeitos de indemnização por danos não patrimoniais.
Assim, não restam dúvidas que estamos perante um dano não patrimonial relevante - merecedor da tutela do direito - quer se opte pela formulação negativa, que inclui nesta categoria todos aqueles que não atingem os bens materiais do sujeito passivo ou que, de qualquer modo, não alterem a sua situação patrimonial - cfr. De Cupis, II Danno, Teoria Generale della Responsabilitá Civile, I, 2ª ed., Milano, 1966, págs. 44 e ss. -, quer pela formulação positiva, segundo a qual, o dano não patrimonial ou dano moral, tem por objeto um bem ou interesse sem conteúdo patrimonial, insuscetível em rigor, de avaliação pecuniária. A indemnização não visa então propriamente ressarcir, tornar indemne o lesado, mas oferecer-lhe uma compensação que contrabalance o mal sofrido - cfr. A. Varela, Das Obrigações em Geral, 4ª ed., pg. 560 e Rui Alarcão, Direito das Obrigações, Coimbra, 1983, pg. 270.
O montante da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais deve ser calculado, em qualquer caso (haja dolo ou mera culpa do lesante), segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e à do lesado e do titular da indemnização - art. 494º, “ex vi” do art. 496º, nº 3 do C.Civil , aos padrões de indemnização geralmente adotados na jurisprudência, às flutuações do valor da moeda etc., sendo fundamental que tal compensação seja significativa, e não meramente simbólica ou miserabilista.]
Pouco ou nada temos a acrescentar à decisão recorrida neste âmbito, a não ser confirmar o sentido da justiça que encerra, porquanto o montante de 20.000,00€ se nos apresenta equitativo, atendendo à globalidade da pertinente materialidade apurada, representativa de um sofrimento muito considerável, subsumida aos critérios de determinação que resultam das disposições conjugadas dos arts. 496.º, n.º 1 e 566.º, n.º 3, do CCivil, e ainda à valoração que vem sendo feita pelos nossos tribunais superiores neste domínio.
Concluímos assim, sem necessidade de outras considerações, pela improcedência do recurso nesta parte.
2.3.
As custas do recurso são da responsabilidade do Apelante Fundo de Garantia Automóvel e da Apelada AA na proporção do respetivo decaimento (arts. 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPCivil e 1.º, n.º 1, do Regulamento das Custas Processuais).

IV.
DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, julgamos o recurso parcialmente procedente e, consequentemente, decidimos:
a) Alterar a decisão recorrida, reduzindo de 50.000,00€ para 40.000,00€ o valor do capital indemnizatório atribuído ao Autor a título de dano biológico futuro;
b) Manter a decisão recorrida quanto ao mais; e
c) Condenar Apelante e Apelada nas custas do recurso, na proporção do respetivo decaimento.
***
Tribunal da Relação do Porto, 24 de janeiro de 2023
Os Juízes Desembargadores,
Fernando Vilares Ferreira
Alberto Taveira
Maria da Luz Seabra
________________________________
[1] Em conformidade com a retificação determinada por despacho de 4.7.2022.
[2] No mesmo sentido, a título de exemplo, Ac. STJ de 18.10.2018, relatado por HELDER ALMEIDA no processo 3643/13.9TBSTB.E1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
[3] Cf. Ac. STJ de 12.07.2018, relatado por ROSA TCHING no processo 1842/15.8T8STR.E1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
[4] Cf. Ac. STJ de 18.10.2018, cit.
[5] Cf. Ac. STJ de 14.01.2021, relatado por ROSA TCHING no processo 2545/18.7T8VNG.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
[6] Relatado por MARIA DA GRAÇA TRIGO no processo 1082/19.7T8SNT.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
[7] Relatado por FERNANDO BAPTISTA no processo 96/18.9T8PVZ.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt.