Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1277/11.1TJVNF-A.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: HENRIQUE ARAÚJO
Descritores: PLANO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
REPERCUSSÃO DA TRAMITAÇÃO DO PER NO PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
Nº do Documento: RP201407091277/11.1TJVNF-A.P2
Data do Acordão: 07/09/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Proferida sentença declaratória da insolvência, a tramitação do PER não prejudica o que no âmbito daquela ainda haja de processar-se em ordem à estabilização dos créditos reclamados e a instância da insolvência só se extinguirá quando, e se, vier a ser aprovado e homologado e plano de recuperação no âmbito do PER.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROC. N.º 1277/11.1TJVNF-A.P2
Do 5º Juízo Cível de Vila Nova de Famalicão.
REL. N.º 932
Relator: Henrique Araújo
Adjuntos: Fernando Samões
Vieira e Cunha
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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

I. RELATÓRIO

“B…, Lda.”, credora reclamante nos autos de insolvência em que foi Requerida “C…, S.A.”, veio apresentar recurso da decisão que julgou extinta por inutilidade superveniente da lide, em razão da pendência de processo especial de revitalização, a instância relativamente ao apenso de reclamação de créditos no qual havia impugnado a lista de créditos apresentada pelo administrador da insolvência.

O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e com efeito devolutivo.

Nas alegações de recurso a apelante pede a revogação do despacho em questão, formulando as conclusões que seguem:
A. A pendência do Processo Especial de Revitalização (PER) da C…, S.A., entidade Insolvente/Requerida nos presentes autos, não é apta a determinar a extinção dos presentes autos, concretamente a extinção dos autos de impugnação da lista de créditos reconhecidos e não reconhecidos pelo Administrador de Insolvência, instaurados ao abrigo do disposto no artigo 130º do CIRE, por inutilidade superveniente da lide.
B. Não obstante a pendência do PER e os actos a praticar em sede do mesmo, deveriam os presentes autos prosseguir para apreciação das questões que nesta sede declarativa vêm sendo discutidas.
C. A decisão de prosseguimento dos presentes autos é a única decisão compatível com o regime jurídico vigente em matéria de direito da insolvência.
D. Nos presentes autos já foi proferido despacho de encerramento, ao abrigo do disposto no artigo 230º, n.º 1, alínea b), do CIRE, tendo sido determinado – por decisão já transitada em julgado, anterior à decisão em apreço – que as impugnações deveriam ser apreciadas pelo Tribunal a quo, tudo nos termos do disposto no artigo 233º, n.º 2, alínea b), do CIRE, na medida em que o encerramento do processo de insolvência não obsta ao prosseguimento do apenso de verificação de créditos.
E. Os presentes autos prosseguiam com vista à discussão – se bem que por apenso aos autos principais, entretanto encerrados, nos quais foi declarada a insolvência da C… – das questões de natureza privatística suscitadas por cada uma das entidades impugnantes na impugnação que apresentaram contra a C….
F. As impugnações de créditos autuadas nos presentes autos configuram verdadeiros autos declarativos que seguem os termos prescritos no CIRE (artigos 130º a 140º do CIRE) e visam dirimir as questões suscitadas pelos diversos credores impugnantes da lista dos créditos apresentada pela C… ao abrigo do disposto no artigo 129º do CIRE.
G. Estes autos de impugnação não se inserem no conjunto de acções que, em virtude da decisão prevista na Alina a) do n.º 3 do artigo 17º-C do CIRE, se suspendem enquanto perdurarem as negociações a encetar no contexto do PER, devendo prosseguir os seus termos, em conformidade com o disposto (a contrario) no artigo 17º-E, n.º 1, do CIRE.
H. Concretamente no que respeita à credora B…, aqui recorrente, por via dos presentes autos pretendia ver reconhecido o direito de crédito de 867.335,29 € que a recorrente alega ter sobre a C….
I. Não se trata, por isso, de uma acção de cobrança de dívidas, mas tão-somente de uma acção declarativa, por via da qual se pretende o reconhecimento de um direito de crédito da B… sobre a C….
J. Neste contexto, impõe-se uma análise adicional: poderá a mera eventualidade da exigência de impugnações em sede de PER, que pudessem vir a ser apresentadas ao abrigo do disposto no artigo 17º-D, n.º 3, do CIRE, determinar antecipadamente a inutilidade superveniente da lide dos presentes autos de impugnação?
K. A decisão recorrida foi proferida num momento em que ainda não existia qualquer impugnação em curso, desconhecendo-se de alguma seria apresentada.
L. A decisão recorrida refere que no âmbito do PER será proferida decisão “relativamente ao objeto do presente incidente”, o que naturalmente não se verifica, atenta a total autonomia entre os dois autos: insolvência e PER.
M. Não pode admitir-se uma interpretação que preconize soluções jurídicas diversas para uma mesma realidade: os autos de natureza declarativa que correm por apenso ao processo de insolvência são inúteis, enquanto as acções declarativas que correm com autonomia relativamente ao processo de insolvência prosseguem os seus termos, não obstante a pendência do PER.
N. A interpretação do artigo 17º-E, n.º 1, do CIRE, no sentido de admitir a extinção das impugnações de créditos pendentes que correm por apenso ao processo de insolvência anterior ao PER e a manutenção de outras acções declarativas que contra a C… corram fora deste apenso de impugnação de créditos configura uma grosseira violação do princípio constitucional da igualdade no acesso à justiça, violando o disposto nos artigos 13º, 20º e 202º da Constituição da República Portuguesa.
O. A apreciação que o juiz que preside ao PER é chamado a fazer em sede de apreciação e decisão sobre as impugnações à lista provisória de créditos é distinta e não pode confundir-se com a análise que se impõe ao juiz que aprecia a causa em sede declarativa.
P. Na medida em que o CIRE, no seu artigo 17º-D, n.º 3, confere ao juiz cinco dias úteis para decidir sobre as impugnações formuladas em sede de PER, revela-se processualmente inviável que em tal prazo o juiz assegure a instrução de cada uma das impugnações nos termos que o julgamento apropriado de uma causa – em obediência aos princípios processuais de produção de prova, de instrução e julgamento, e dos princípios constitucionais de acesso à justiça – impõe.
Q. No pressuposto que o “legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”, conforme impõe o artigo 9º, n.º 3, do CC, impõe-se uma interpretação restritiva daquele preceito legal (artigo 9º do CC) no sentido de que, por via da decisão a proferir nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 17º-D, n.º 3, do CIRE, o juiz apenas deverá fazer uma análise sumária e preliminar das pretensões das partes (no caso, o credor impugnante e a Requerente do PER) e proferir decisão – de carácter limitado e com efeitos circunscritos ao contexto do PER – que determine os termos em que aquele credor, em consequência da matéria em causa na impugnação, é admitido a intervir no PER, nomeadamente para efeitos de exercício do direito de voto.
R. A interpretação do artigo 17º-D, n.º 3, do CIRE, no sentido de que a decisão a proferir pelo juiz sobre as impugnações no contexto do PER deverá julgar a questão objecto da impugnação a título definitivo e com efeitos erga omnes traduz uma limitação óbvia dos direitos dos credores impugnantes no acesso à justiça e a uma tutela jurisdicional efectiva, conforme com todos os direitos e garantias prescritos no CPC e no CIRE, tal como constitucionalmente garantidos.
S. Tal interpretação viola necessariamente o disposto nos artigos 20º, n.º 1 e n.º 4, e 202º da CRP.
T. Por estas razões, e em suma, a mera pendência de um PER não é apta a determinar a extinção das impugnações de créditos ainda pendentes por apenso à anterior insolvência da Requerente.
U. Do mesmo modo, a mera antevisão da possibilidade de, no contexto de tal PER, virem a ser apresentadas impugnações de créditos – que ainda não haviam sido apresentadas, porque o prazo para a sua apresentação nem se havia iniciado – não é apta a determinar a inutilidade superveniente da lide das referidas impugnações pendentes.
V. E, por último, a natureza do julgamento que compete ao juiz que preside ao PER a respeito das impugnações da lista provisória de créditos não tem carácter pleno quanto ao julgamento das pretensões das partes, valendo apenas dentro do processo e nomeadamente para efeitos da atribuição de direitos de voto no contexto do PER.
W. Impõe-se que quaisquer acções de natureza declarativa onde se discutem os direitos das partes prossigam os seus termos não obstante a pendência daquele procedimento especial de revitalização.
X. Só esta solução é compatível e se insere dentro do espírito do CIRE, permite respeitar as regras previstas no CPC e assegura a conformidade do CIRE com a CRP.
Y. Pelos motivos invocados, deverá determinar-se a não verificação de qualquer inutilidade superveniente da lide, devendo o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que determine o prosseguimento dos presentes autos de impugnação de créditos.

Não houve contra-alegações.
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Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões da recorrente, as questões que importa dirimir são:
a) A autonomia do processo de insolvência em relação ao processo especial de revitalização não permite a extinção do apenso de verificação e graduação de créditos por inutilidade superveniente da lide;
b) Se tal não for entendido, mostram-se violados, pela decisão recorrida, os princípios constitucionais da igualdade e do acesso à justiça?
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II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

Para a decisão do presente recurso importa considerar os seguintes factos:

1. Em 13. 03.2014, o Mmº Juiz da 1ª instância proferiu o seguinte despacho:
“Do teor das informações que antecedem, constata-se que, relativamente à devedora C…, SA, foram entretanto intentados um processo especial de revitalização e um novo processo de insolvência.
Sendo certo que, no âmbito do aludido processo especial de revitalização, se encontra a decorrer o prazo de impugnação da lista provisória de créditos, após o que, necessariamente, se decidirá quanto às eventuais impugnações apresentadas (artigo 17º-D, n.º 3, do CIRE).
Ora, destinando-se o processo especial de revitalização a permitir ao devedor que se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja suscetível de recuperação, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes acordo conducente à sua revitalização (artigo 17º-A, n.º 1, do CIRE) e sendo certo que, no âmbito desse processo, será proferida decisão relativamente ao objeto do presente incidente, não se vislumbra qual a utilidade do mesmo, especialmente se tivermos em consideração que, entretanto, já deu entrada em tribunal um outro processo destinado à declaração da insolvência da aqui devedora.
Por todo o exposto, julgo extinta a presente instância por inutilidade superveniente da lide, nos termos do disposto no artigo 277º, alínea e), do C.P.C.
Custas a cargo da massa insolvente, por a inutilidade resultar de facto que lhe é imputável – artigo 536º, n.ºs 3 e 4, do C.P.C.
Registe e notifique.”

2. O processo de insolvência que corria contra a Requerida “C…” foi declarado encerrado, após trânsito em julgado da decisão que homologou o plano de insolvência.

3. Foi decidido que, não obstante o encerramento do processo de insolvência, as impugnações deduzidas neste apenso de reclamação de créditos deveriam será apreciadas, nos termos do disposto no artigo 232º, n.º 2, alínea b), do CIRE.

4. No apenso de reclamação de créditos desse processo, a apelante reclama o crédito de 867.335,29 €, tendo impugnado a lista de créditos apresentada pelo administrador da insolvência – cfr. fls. 1335 a 1342.

5. Pende no 2º Juízo Cível de Vila Nova de Famalicão um processo especial de revitalização da “C…”, estando em curso (à data em que foi exarado o despacho referido em 1.) o prazo para impugnação da lista provisória de créditos.

O DIREITO

a)
Apesar de encerrado o processo de insolvência, foi determinado que os autos de verificação e graduação de crédito prosseguissem os seus termos, de acordo com a norma do artigo 232º, n.º 2, alínea b), do CIRE, onde se estabelece que o encerramento do processo de insolvência antes do rateio final determina a extinção da instância dos processos de verificação de créditos e de restituição e de separação de bens já liquidados que se encontrem pendentes, excepto se tiver já sido proferida a sentença de verificação e graduação de créditos prevista no artigo 140º, ou se o encerramento decorrer da aprovação do plano de insolvência, caso em que prosseguem até final os recursos interpostos dessa sentença e as acções cujos autores assim o requeiram, no prazo de 30 dias.
No entanto, a notícia, veiculada pelo ofício de fls. 4151, de que pendia no 2º Juízo Cível de Vila Nova de Famalicão um processo especial de revitalização da C… e de que aí se encontrava a decorrer o prazo de impugnação da lista provisória de créditos, acabaria por despoletar a extinção da instância dos autos de verificação e graduação de créditos, por inutilidade superveniente da lide.
Será de manter essa decisão?

1ª Insolvência e Revitalização: finalidade, natureza e alguma da tramitação nos dois processos.

Enquanto que o processo de insolvência constitui uma resposta para a superação de uma situação de insolvência já verificada, a que a ordem jurídica pretende pôr cobro, o processo de revitalização dirige-se a evitá-la, assegurando a recuperação do devedor e, nessa medida, a satisfação, também, dos interesses dos credores[1].
Vejamos mais de perto:

O processo de insolvência tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do respectivo produto, resultante da venda dos bens da massa insolvente, por todos os credores que reclamem os seus créditos, repartição essa que se faz em função da graduação dos créditos fixada na sentença de verificação e graduação de créditos ou pelo modo estabelecido num plano de insolvência que, nomeadamente, se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, constituindo um meio alternativo à liquidação.
Mistura, na sua tramitação, fases e procedimentos de natureza declarativa (declaração da situação de insolvência, verificação e graduação de créditos, incidente de qualificação de insolvência) com outros de cariz executivo (apreensão de bens e liquidação do activo).
Na insolvência, findo o prazo para a reclamação de créditos, o administrador da insolvência apresenta na secretaria a lista dos credores reconhecidos e não reconhecidos, considerando não só aqueles que tenham deduzido reclamação, mas também os que constem da contabilidade do devedor e os que sejam do seu conhecimento por outra forma – artigo 129º, n.º 1.
Nos dez dias seguintes ao termo do prazo de apresentação da lista de credores reconhecidos e não reconhecidos, pode qualquer interessado impugnar a lista, através de requerimento dirigido ao juiz, com os fundamentos previstos no artigo 130º, n.º 1.
Havendo impugnações – como foi o caso – são estas e as respostas autuadas por apenso e objecto de parecer emitido pela comissão de credores (quando exista), seguindo-se uma tentativa de conciliação, após o que o processo será concluso ao juiz para seleccionar a matéria de facto pertinente para a decisão, podendo ser ordenadas as diligências instrutórias que se mostrem necessárias. Por fim, terá lugar a audiência de julgamento, com observância dos termos estabelecidos para o processo declaratório sumário, com as especificidades que constam das alíneas a) a c) do artigo 139º – cfr. artigos 132º e 136º a 139º.

O processo especial de revitalização (doravante designado apenas por PER) visa permitir ao devedor que, comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja susceptível de recuperação, estabelecer negociações com os respectivos credores de modo a concluir com estes acordo conducente à sua revitalização – artigo 17º-A, do CIRE.
Criado pela Lei 16/2012, de 20 de Abril, este processo pré-insolvencial, visa privilegiar, sempre que possível, a manutenção do devedor no giro comercial, relegando para segundo plano a liquidação do seu património sempre que se mostre viável a sua recuperação[2].
É um processo negocial extrajudicial do devedor com os credores, com a orientação e fiscalização do administrador judicial provisório, focalizado na obtenção de um acordo para a revitalização da empresa, permitindo que esta regularize os seus compromissos para com os seus credores de forma preventiva, isto é, antes de entrar numa situação irreversível de insolvência.
Apresentado o requerimento com que se inicia o processo, o juiz, verificando a presença das formalidades prescritas nos nºs 1 e 2 do artigo 17º-C, nomeia, de imediato, administrador judicial provisório – n.º 3, alínea a) do mesmo artigo.
Essa nomeação obsta à instauração de quaisquer acções para cobrança de dívidas contra o devedor e, durante o tempo em que perdurarem as negociações, suspende, quanto ao devedor, as acções em curso com idêntica finalidade, extinguindo-se aquelas[3] logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação, salvo quando este preveja a sua continuação[4] - artigo 17º-E, n.º 1. Suspendem-se, igualmente, na data de publicação no portal Citius do despacho de nomeação, os processos de insolvência em que haja sido requerida anteriormente a insolvência do devedor, desde que não tenha sido proferida sentença declaratória de insolvência, extinguindo-se, porém, logo que seja aprovado e homologado o plano de recuperação – artigo 17º-E, n.º 6.
Os credores podem reclamar os seus créditos no prazo de 20 dias contados da publicação no portal Citius do despacho de nomeação a que nos acabámos de referir, devendo essas reclamações ser remetidas ao administrador judicial provisório, que, no prazo de cinco dias, elabora uma lista provisória de créditos – artigo 17º-D, n.º 2.
Essa lista é publicada no portal Citius e pode ser impugnada no prazo de cinco dias, dispondo o juiz também de prazo idêntico para decidir as impugnações formuladas.
Sublinhe-se que, em função do normal desiderato do processo de revitalização, a apresentação dessa lista pelo administrador destina-se unicamente a permitir efectuar o cálculo do quorum deliberativo, apenas relevando, para esse efeito, a classificação dos créditos em comuns e subordinados – artigo 212º, n.º 1, ex vi artigo 17º-F, n.º 3.
Se o devedor contar com o apoio continuado de credores que representem uma maioria significativa dos créditos, pode o processo de revitalização culminar com a aprovação de um plano de recuperação que abra perspectivas para o desenvolvimento e reestruturação da empresa do devedor.
Não sendo tal possível, o processo pode converter-se em processo de insolvência, a requerimento do administrador, ou pode, simplesmente, ser encerrado se o devedor ainda não se mostrar insolvente – artigo 17º-G, nºs 2 a 4.
Neste último caso, e ponderando a manutenção da decisão recorrida, tudo se perderia.

2º A verificação e graduação de créditos na insolvência e no processo especial de revitalização.

Reproduzimos, de seguida, o que decidimos no acórdão proferido em 29.10.2013, no processo n.º 1764/11.1TBAMT-C.P1, sobre o destino do apenso de verificação e graduação de créditos, na insolvência, após aprovação e homologação do plano:

“O DL 200/2004, de 18 de Agosto procedeu a três alterações substantivas à reforma introduzida por aquele DL 53/2004.
Uma dessas alterações veio permitir que a assembleia de credores possa reunir para aprovação de plano de insolvência logo após o termo do prazo para impugnação da lista de credores reconhecidos. Esta inovação, na opinião do legislador, favorece claramente as perspectivas de recuperação das empresas.
Passou assim a ser possível a aprovação de um plano de insolvência sem estar previamente proferida sentença de verificação e graduação de créditos, embora já com o prazo de reclamação esgotado e as impugnações deduzidas.
Todavia, esta alteração implicou alguns ajustamentos, dos quais se salientam os produzidos nos nºs 2 e 3 do artigo 209º e na alínea b) do n.º 2 do artigo 233º.
Assim, ficou a constar da lei (n.º 2 do artigo 209º), entre o mais que ao caso não vem, que a assembleia de credores para discutir e votar a proposta de plano de insolvência não se pode reunir antes de esgotado o prazo para a impugnação da lista de credores reconhecidos, sendo que, na anterior redacção, essa impossibilidade de reunir se reportava ao momento da prolação da sentença de verificação e graduação dos créditos e ao termo do prazo para dela se recorrer.
Esta alteração ao n.º 2 do artigo 209º, permitindo recuar o momento da discussão e votação do plano de insolvência à fase anterior à prolação da sentença de verificação e graduação de créditos, não podia, porém, traduzir-se num potencial prejuízo para os credores que tivessem impugnado a lista dos credores reconhecidos. Por essa razão, o legislador passou a prever, no n.º 3 do mesmo artigo, que ‘o plano de insolvência aprovado antes do trânsito em julgado da sentença de verificação e graduação dos créditos acautela os efeitos da eventual procedência das impugnações da lista dos credores reconhecidos ou dos recursos interpostos dessa sentença (…)’, assegurando desse modo o tratamento devido aos créditos controvertidos.
Por outro lado, a nova redacção da alínea b) do n.º 2 do artigo 233º consagrou, ao que parece, uma nova causa de excepção à extinção da instância do apenso de verificação de créditos: a de o encerramento do processo de insolvência, antes do rateio final, decorrer da aprovação do plano de insolvência.
Estabelece, de facto, a actual alínea b) do n.º 2 do artigo 233.º, que o encerramento do processo de insolvência antes do rateio final determina ‘A extinção da instância dos processos de verificação de créditos e de restituição e separação de bens já liquidados que se encontrem pendentes, excepto se tiver já sido proferida a sentença de verificação e graduação de créditos prevista no artigo 140.º, ou se o encerramento decorrer da aprovação do plano de insolvência, caso em que prosseguem até final os recursos interpostos dessa sentença e as acções cujos autores assim o requeiram, no prazo de 30 dias’.
A redacção anterior deste preceito era a seguinte:
‘A extinção da instância dos processos de verificação de créditos e de restituição e separação de bens já liquidados que se encontrem pendentes, excepto se tiver já sido proferida a sentença de verificação e graduação de créditos prevista no artigo 140.º, caso em que prosseguem até final os recursos interpostos dessa sentença e as acções cujos autores assim o requeiram, no prazo de 30 dias’.
O confronto destas duas disposições permite perceber que o legislador intercalou, na previsão da única excepção à extinção da instância até então proclamada, uma outra excepção. Nenhuma dúvida pode, pois, persistir quanto ao significado verbal que resulta da norma.
Apesar de a interpretação literal da norma não ser mais do que uma das possíveis ferramentas da boa hermenêutica, o certo é que essa interpretação coincide também com o espírito da disposição em causa, inferido dos factores racionais que a inspiraram.
E, como pensamos ter deixado claro, o legislador, ciente de que ao antecipar o tempo da discussão e votação do plano de insolvência poderia pôr em causa os legítimos interesses de alguns dos credores em relação aos quais se tivesse manifestado alguma controvérsia, teve o cuidado de estabelecer uma outra excepção à extinção do processo de verificação de créditos por efeito do encerramento do processo de insolvência previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 230º[6].
Com efeito, o processo de insolvência é enformado pelo princípio de que todos os credores devem ser tratados em condições de igualdade, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objectivas. A esse princípio se refere, em particular, a norma do artigo 194º quanto ao plano de insolvência.
Ora, ao declarar extinta a instância do processo de verificação de créditos sem que estivessem ainda julgadas as impugnações apresentadas pelos recorrentes aos créditos reconhecidos no relatório do administrador de insolvência, a Mmª Juíza violou o disposto no artigo 233º, n.º 2, alínea b), do CIRE.
Uma vez que transitou em julgado a decisão que homologou o plano de insolvência, a consequência possível da procedência dos recursos é a de que continue a ser tramitado o apenso de verificação de créditos, designadamente para que sejam devidamente apreciadas as impugnações oportunamente apresentadas pelos apelantes, na medida em que, como já se decidiu nesta Relação, ‘o mero trânsito em julgado da sentença homologatória do plano de insolvência e do despacho de encerramento do processo em que foi proferida não determina a extinção do processo de verificação de créditos por inutilidade ou impossibilidade superveniente da lide’[7]”.

Justificada, deste modo, a continuidade das impugnações apresentadas aos créditos listados pelo administrador depois de homologado o plano de insolvência e de encerrada a insolvência – o que, no caso vertente, até foi determinado por despacho transitado em julgado – o que importa averiguar é se a entrada em juízo do processo especial revitalização da devedora, após o encerramento da insolvência, provoca, inexoravelmente, a inutilidade da instância, extinguindo-a.
O processo especial de revitalização tem como objectivo específico e normal, como já vimos, a manutenção da actividade do devedor e a reestruturação da sua empresa, através de um plano de recuperação aprovado, por maioria ou unanimidade, nos termos do artigo 17º-F.
Pode, contudo, acontecer que o processo negocial termine sem a aprovação do plano de recuperação[8]. Tal ocorrerá nas seguintes situações: quando o devedor ou a maioria dos credores necessária para a aprovação do plano constatarem antecipadamente que não será possível atingir um acordo (artigo 17.º-G, n.º 1); quando o devedor ponha termo às negociações, o que lhe é permitido independentemente de qualquer causa e a todo o tempo (artigo 17.º-G, n.º 5); ou quando expire o prazo para as negociações sem que tenha sido aprovado um plano de recuperação.
Em qualquer uma destas situações, o administrador judicial provisório, após ouvir o devedor e os credores, emite um parecer sobre se o devedor está ou não em situação de insolvência (artigo 17.º-G, n.º 4). Em caso afirmativo requer a sua insolvência, o que obrigará à aplicação, com as necessárias adaptações, do disposto no artigo 28º (declaração imediata da situação de insolvência); caso o devedor ainda se não encontre em situação de insolvência, o processo de revitalização será encerrado, acarretando a extinção de todos os seus efeitos – artigo 17º-G, n.º 2.
Declarada a insolvência do devedor pelo juiz e, uma vez operada a conversão do processo de revitalização em processo de insolvência, a lista definitiva de créditos reclamados que já exista será aproveitada, sendo que o prazo de reclamação de créditos que venha a ser fixado na sentença de declaração da insolvência, destina-se apenas à reclamação de créditos que ainda não o tenham sido ao abrigo do disposto do n.º 2 do artigo 17º-D do CIRE.
A situação do caso concreto complica-se em virtude de um redemoinho processual que acaba por defraudar as boas intenções do legislador.
Com efeito, aprovado nos autos a que pertence o presente apenso um plano de insolvência, isso não constituiu, ao que parece, remédio bastante para curar a situação da devedora C…. Isto porque, encerrado o referido processo e estando ainda pendentes de discussão as impugnações à lista de credores apresentada pelo administrador judicial provisório, essa empresa logo accionou processo especial de revitalização.
O maior risco do processo especial de revitalização, conforme alerta Catarina Serra[9], é o de que, após todos os esforços, o devedor não consiga evitar a sua declaração de insolvência. “É, portanto, de prever que o devedor só recorra ao PER se puder contar com o apoio continuado de credores que representem uma maioria significativa dos créditos — de “credores amigos” — dos quais ele possa esperar, designadamente, que, subscrevendo a declaração inicial, lhe assegurem o acesso ao processo, que, concedendo-lhe financiamento, sustentem o desenvolvimento da sua actividade e que, por fim, votando favoravelmente, lhe assegurem a aprovação do plano de recuperação.”
Não se põe em causa a circunstância de a empresa C… usar os mecanismos que a lei lhe faculta para resolver os seus problemas financeiros. Mas não faz sentido que a apresentação do pedido de revitalização provoque a inutilização de procedimentos que estão em curso no apenso de verificação e graduação de créditos do processo de insolvência para a estabilização dos créditos sobre a devedora e que já deram azo a intensa actividade processual, traduzida em 13 volumes de processado.
Já deixámos assinalado que o PER também prevê um momento em que podem ser reclamados créditos e impugnada a lista provisória de créditos apresentada pelo administrador judicial provisório.
Porém, além de se ter de reconhecer que o processo de insolvência permite uma discussão alargada e aprofundada dos fundamentos da impugnação da lista provisória dos créditos apresentados pelo administrador, o que contrasta, desde logo, com a forma mais expedita e breve com que se regulam os termos dessa impugnação no processo especial de revitalização, existe uma outra razão, mais operante em termos processuais, que nos leva a concluir pela insubsistência do despacho recorrido.
Referimo-nos ao preceituado no artigo 17º-E, n.º 6, norma na qual apenas se prevê que a instauração do PER, após publicação do despacho de nomeação do administrador judicial provisório, tenha como efeito a suspensão do processo de insolvência anterior e desde que aí não tenha ainda sido proferida sentença declaratória da insolvência.
Retira-se desta norma, e também dos traços que caracterizam e distinguem os dois tipos de processos, que, proferida sentença declaratória da insolvência, a tramitação do PER não prejudica o que no âmbito daquela ainda haja de processar-se em ordem à estabilização dos créditos reclamados. A instância da insolvência só se extinguirá quando, e se, vier a ser aprovado e homologado o plano de recuperação no âmbito do processo especial de revitalização – artigo 17º-E, n.º 6, in fine.
É chegado o momento de concluir.
A lide torna-se inútil se ocorre um facto, ou uma situação, posterior à sua instauração que implique a desnecessidade de sobre ela recair pronúncia judicial por falta de efeito[10].
Ora, não obstante correr termos processo especial de revitalização, tal facto não torna desnecessária ou inútil, no momento, a discussão sobre as impugnações apresentada à lista de créditos apresentadas pelo administrador da insolvência.
b)
A precedente decisão prejudica o conhecimento da questão sumariada na alínea b), relacionada com a alegada violação das normas constitucionais dos artigos 13º e 20º.
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III. DECISÃO

Em conformidade, revoga-se o despacho recorrido e determina-se o prosseguimento dos autos.
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Sem custas.
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PORTO, 9 de Julho de 2014
Henrique Araújo
Fernando Samões
Vieira e Cunha
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[1] Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado, 2ª edição, página 141.
[2] Cfr. exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 39/XII, de 30.12.2011, da Presidência do Conselho de Ministros.
[3] O legislador deveria querer referir-se a ‘estas’ (acções em curso com idêntica finalidade) e não ‘aquelas’, pois não se vê como possam extinguir-se acções ainda não instauradas.
[4] É aquilo a que se designa por aplicação de um standstill
[5] Nosso sublinhado.
[6] Segundo esta norma, “Prosseguindo o processo após a declaração de insolvência, o juiz declara o seu encerramento após o trânsito em julgado da decisão de homologação do plano de insolvência, se a isso não se opuser o conteúdo deste.”
[7] Cfr. acórdão de 29.11.2011, relatado pelo Ex.º Desembargador Fernando Samões, ora 1º adjunto, no processo n.º 241/09.5TYVNG-A.P1; no mesmo sentido, ver o acórdão da Relação de Coimbra de 16.04.2013, no processo n.º 125/11.7BAVZ-G.C1; em sentido contrário, ver o acórdão da Relação de Guimarães de 04.06.2013, no processo n.º 1808/12.0TBBRG-F.G1, e, em certa medida, o acórdão da Relação de Coimbra de 06.11.2012, no processo n.º 444/06.4TBCNT-Q.C1, todos em www.dgsi.pt.
[8] O CIRE não descreve o conteúdo possível do plano aprovado no âmbito do PER, o que se compreende pela circunstância de se privilegiar a vontade das partes, em mais uma manifestação da marcada base consensual do PER e da sua sustentação na autonomia privada. No entanto, visando o plano a recuperação financeira do devedor em dificuldades e a manutenção da sua actividade, é possível adiantar, entre outras, algumas das principais medidas que este pode conter, nomeadamente a concessão de moratórias, a remição de parte da dívida, a conversão de créditos em capital, e a alienação de activos.
[9] “Processo Especial de Revitalização – Contributos para uma rectificação”, página 736, disponível em www.biblioteca.porto.ucp.pt
[10] Cfr. acórdão do STJ de 15.03.2012, no processo n.º 501/10. 2TVLSB.S1, em www.dgsi.pt