Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
227/07.4JAPRT-I.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FRANCISCO MOTA RIBEIRO
Descritores: CONCURSO DE CRIMES
CÚMULO JURÍDICO
PENAS DE SUBSTITUIÇÃO
LEI PENAL
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
Nº do Documento: RP20180321227/07.4JAPRT-I.P1
Data do Acordão: 03/21/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º754, FLS.252-258)
Área Temática: .
Sumário: I - Em caso de concurso de crimes, só à pena única é possível aplicar uma pena de substituição, perdendo as penas parcelares autonomia.
II – Não é possível reabrir a audiência prevista no artº 371º A CPP, em vista do regime mais favorável em face da Lei 94/2017 para aplicação de pena de substituição a uma pena parcelar englobada num cumulo jurídico.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 227/07.4JAPRT-I.P1 – 4.ª Secção
Relator: Francisco Mota Ribeiro
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Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto
1. RELATÓRIO
1.1 Por despacho de 27/11/2017, proferido no Processo n.º 227/07.4JAPRT, que corre termos no Juízo Central Criminal do Porto, Juiz 6, Tribunal Judicial da Comarca do Porto, foi indeferido o requerimento de abertura da audiência para aplicação retroativa de lei penal mais favorável, a que alude o art.º 371º-A do CPP, apresentado pelo arguido B….
1.2. Não se conformando com tal decisão, dela interpôs recurso o arguido, apresentando motivação que termina com as seguintes conclusões:
“1. O despacho é nulo porque ao decidir a não reabertura da audiência para aplicação retroativa de lei penal mais favorável, aferiu erroneamente o conceito ao caso concreto e não como deveria à lei anterior alterada.
2. Utilizando uma interpretação inconstitucional que efetivamente aplicou das regras da punição do concurso, a saber que, o cúmulo jurídico de penas parcelares num processo, faz perder para sempre a autonomia das mesmas para efeitos do direito do arguido a ver aplicada retroativamente a lei penal mais favorável que obrigue à desconstrução do cúmulo efetuado, que fere o princípio da legalidade e o direito ao processo equitativo.
3. O tribunal errou assim porque indeferiu uma pretensão que está inscrita na lei e que constitui um ato legalmente obrigatório derivado de um direito constitucional, a saber o direito de defesa.
4. E ainda errou, dado que utilizou um método de ponderação liminar e sem explicitação que fere o dever de fundamentação das decisões, com especificação dos motivos de facto e de direito.
5. E por esse motivo está ferido de nulidade.
6. Mas mais ainda porque, por esta decisão liminar é arbitrária, porque não fundamentada, nem tão pouco assentou na ponderação da natureza de cada uma das 3 penas de prisão efetiva.
7. Podendo umas ou todas serem declaradas extintas ou aquela de um ano de prisão ser substituída por multa.
8. Feriu assim o despacho os art.ºs 97º nº 5; 119º, al. c); 120º, nº 2, al. d), in fine; 123º; 371º-A; 374º, nº 2, in fine; 379º, nºs 1, al. a) e c); 410º, nºs 1 e 3; do CPP; 43º (novo); 45º (novo) 70º; 71º, 72º, nº 1, e 77º do C. Penal; 20º, nº 4, in fine; 32º, nº 1; 204º e 205º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa; art.º 62º nº 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Devendo ser revogado e declarado nulo pelos motivos de facto e de direito expostos e os autos reenviados para efeitos de reabertura da audiência.
Ou, caso assim se não entenda, seja ponderada a situação penal nova do recorrente desde logo em sede de recurso por este TRP vendo aplicada retroativamente a recente lei penal mais favorável.”
1.3. O recurso foi admitido pelo despacho de fls. 14 destes autos, de 28/12/2017.
1.4. O Ministério Público respondeu de fls. 15 a 19, concluindo pela negação de provimento ao recurso.
1.5. A Sra. Procuradora-Geral-Adjunta, neste Tribunal, emitiu o parecer de fls. 93 a 95, no qual concluiu pela improcedência do recurso
1.6. Tendo em conta os fundamentos do recurso interposto pelo arguido, importa desde já sublinhar o entendimento reiteradamente perfilhado pela jurisprudência dos tribunais superiores, de que são as conclusões que definem e delimitam o objeto do recurso. Isto sem prejuízo do conhecimento daquelas que devam ser suscitadas oficiosamente, como acontece, por exemplo, com os vícios a que alude o art.º 410º, nº 2, ou o art.º 379º, nº 1, do CPP.[1]
Por outro lado, e usando as palavras do Professor Alberto dos Reis, “para serem legítimas e razoáveis, as conclusões devem emergir logicamente do arrazoado feito na alegação. As conclusões são as proposições sintéticas que emanam naturalmente do que se expôs e considerou ao longo da alegação.”[2] Sendo que as conclusões da motivação do recurso, segundo o Professor Germano Marques da Silva recurso, “são extraordinariamente importantes, exigindo muito cuidado (…) devem ser concisas, precisas, claras, porque são as questões nelas sumariadas que hão de ser objeto de decisão. As conclusões resumem a motivação e, por isso, que todas as conclusões devem ser antes objeto da motivação (…) Se ficam aquém a parte da motivação que não é resumida nas conclusões torna-se inútil porque o tribunal só poderá considerar as conclusões; se vão além também não devem ser consideradas porque as conclusões são o resumo da motivação e esta falta.”[3]
É com base, portanto, nas conclusões oferecidas pelo recorrente que iremos abordar o mérito do recurso, estando os poderes de cognição deste tribunal, tendo em conta ademais que o recurso visa apenas matéria de direito, circunscritos à apreciação e decisão das seguintes questões:
1.6.1. Violação do dever de fundamentação da decisão recorrida;
1.6.2. Existência ou não de fundamento legal para a abertura da audiência de julgamento requerida pelo arguido para aplicação da lei penal mais favorável.
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Factos a considerar
2.1.1 Foi do seguinte teor, a decisão recorrida:
“A fls.10377 e ss. dos autos vem B… requerer a reabertura de audiência para aplicação retroativa de lei mais favorável, «in casu» a Lei n.º 94/2017 de 23.08., solicitando ainda a prévia elaboração de relatório social.
Para tanto enumera três penas parcelares em que foi condenado nos presentes autos, todas não ultrapassando o limite dos dois anos de prisão, mas que, em cúmulo jurídico com as penas em que foi também condenado nesse mesmo acórdão, resultaram na pena única de 17 anos e 6 meses de prisão efetiva.
Na verdade, compulsados os autos verifica-se que o ora requerente, por acórdão proferido em 08.05.2009 e transitado em julgado em 17.02.2011, foi condenado nas seguintes penas parcelares:
- 2 anos de prisão pelo cometimento de 1 crime de associação criminosa p. e p. no art.º 299º, n.º2, do C.P.;
- 15 anos de prisão pelo crime de homicídio qualificado p. e p. no art.º 132º do C. Penal;
- 3 anos e 4 anos de prisão, respetivamente por cada um dos dois crimes de rapto p. e p. nos art.ºs 161º do C. Penal;
- dois anos de prisão pelo cometimento de 1 crime de coação agravada p. e p. pelo art.º 154º, n.º 1, e art.º 155º do C. Penal.
- um ano de prisão pelo crime de detenção de arma proibida p. e p. pelo art.º 86º, n.º 1, d), da Lei n.º 5/2006 de 23.02.
O Ministério Público pugna pelo indeferimento do requerido por considerar que da aplicação do referido diploma ao caso em apreço não resulta para o arguido condenado qualquer tratamento mais favorável.
A Lei nº 94/2017 de 23 de agosto foi aprovada e entrou em vigor alterando, nomeadamente, o teor dos artigos 4º, 5º, 43º, 44º, 45º, 50º, 53º, 58º, 59º, 73º, 240º e aditou o artigo nº 274º-A do C. Penal, sendo que alguns destes expressam a possibilidade do julgador, caso assim se garantam as finalidades da pena de prisão, determinar que esta última seja executada em meio alternativo ao estabelecimento prisional.
Quis o legislador com tais alterações descongestionar o sistema prisional nas penas de curta duração e encontrar modos alternativos de substituição das penas efetivas de prisão que acautelem o interesse do Estado e o interesse dos cidadãos condenados.
Ao arguido foi aplicada a pena única de 17 anos e seis meses de prisão efetiva.
Após análise das alterações resultantes da entrada em vigor da Lei 94/17 de 23 de agosto e o disposto no art.º 371-A do CPP, e sublinhando-se que a pena única de 17 anos e seis meses de prisão (ainda que resultante de algumas penas parcelares até ou inferiores a dois anos de prisão) não se traduz em pena de curta duração, não descortinamos, nem o ora requerente o indica, dispositivo legal do qual decorra a aplicação para o mesmo de tratamento mais favorável àquele que lhe foi aplicado aquando da elaboração e publicação do acórdão.
Face ao exposto, indefere-se a ora requerida reabertura de audiência.”
2.1.2 Por acórdão proferido a 08 de janeiro de 2010, transitado em julgado, foi o recorrente condenado nas seguintes penas: 2 anos de prisão, pela autoria do crime de associação criminosa, p. e p. pelo art.º 299º, nº 2, do CP; 15 anos de prisão pela autoria do crime de homicídio qualificado, p.e p. pelo art.ºs 131º e 132º do CP; 3 anos de prisão, pela autoria de um crime de rapto, p. e p. pelo art.º 161º, nº 1, al. d), do CP; 4 anos de prisão, pela autoria de um crime de rapto, p. e p pelos art.ºs 158º, nº 2, al. e) e 161º, nº 2, al. a), do CP; 2 anos de prisão pela autoria de um crime de coação agravada, p. e p. pelos art.ºs 154º, nº 1, e 155º, nº 1, al. a), do CP; e 1 ano de prisão, pela autoria de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86º, nº 1, al. d), da Lei nº 5/2006, de 23/02. Em cúmulo jurídico das penas referidas foi-lhe aplicada a pena única de 17 anos e 6 meses de prisão.
2.2 Fundamentos fáctico-conclusivos e jurídicos
2.2.1. Do vício de falta de fundamentação da decisão recorrida
O recorrente invoca o vício de falta de fundamentação da decisão recorrida, concluindo pela nulidade desta, que considera ademais arbitrária, e dado entender que nela foi utilizado um “método de ponderação liminar”, sem explicitação dos motivos de facto e de direito, e porque “nem tão pouco assentou na ponderação da natureza de cada uma das três penas de prisão efetiva” aplicadas.
Como é sabido, os atos decisórios devem ser sempre fundamentados, com especificação dos motivos de facto e de direito em que se baseia a decisão. Dever de fundamentação este que resulta do art.º 205º, nº 1, da CRP e do art.º 97º, nº 5, do CPP.
Para o Professor Alberto dos Reis “uma decisão sem fundamentos equivale a uma conclusão sem premissas”. Sendo que a falta de fundamentação deve entender-se como a ausência total de fundamentos de facto ou de direito. A qual se não confunde com “a insuficiência ou mediocridade da motivação”, pois “esta é espécie diferente, afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade”. E ao tratar da função específica dos fundamentos da decisão, diz o eminente jurista: “a sentença deve representar a adaptação da vontade abstrata da lei ao caso particular submetido à apreciação do juiz; ao comando geral e abstrato da lei o magistrado substitui um comando particular e concreto. Mas este comando não se pode gerar arbitrariamente; porque o juiz não tem, em princípio, o poder de ditar normas de conduta, de impor a sua vontade às vontades individuais que estão em conflito, porque a sua atribuição é unicamente a de extrair da norma formulada pelo legislador a disciplina que se ajusta ao caso sujeito à sua decisão, cumpre-lhe demonstrar que a solução dada ao caso é legal e justa, ou, por outras palavras, que é a emanação correta da vontade da lei.”[4]
As considerações tecidas valem igualmente, cum grano salis, para a fundamentação das restantes decisões, que não sejam sentenças. Conclusão que meridianamente se extrai das disposições conjugadas dos nºs 1 e 5 do art.º 97º do CPP.
Ora, no âmbito do direito processual penal vigente, o vício de falta ou insuficiência de fundamentação do despacho recorrido, suposto que é disso que se trata, constitui, por força do princípio da legalidade das nulidades processuais consagrado no art.º 118º do CPP, uma mera irregularidade, e já que em relação a ele, no âmbito da prolação dos meros despachos, não prevê a lei a sanção de nulidade, ao contrário do previsto para as sentenças, nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 379º, nº 1, al. a), e 374º, nº 2, do CPP. O que tem necessariamente as consequências prescritas no art.º 123º do CPP, e designadamente a necessidade de arguição do vício, nos termos aí previstos. O que não aconteceu no caso dos autos. Isto é, por força do princípio da legalidade e da tipicidade das nulidades processuais, consagrado no art.º 118º do CPP, e da articulação do disposto nos art.ºs 119º a 123º do mesmo diploma, os vícios invocados pelo recorrente são constitutivos, quando muito, da irregularidade prevista no art.º 123º. E por isso teria o recorrente de arguir tal irregularidade, da falta ou insuficiência de fundamentação, no prazo de três dias, a que alude o art.º 123º, nº 1, do CPP.
Mesmo assim, sempre se poderá dizer que não vislumbramos qualquer falta ou insuficiência de fundamentação na decisão recorrida, e já que a mesma, como confirmaremos de seguida, ao apreciarmos o mérito propriamente dito do recurso interposto, enuncia, ainda que sinteticamente, os factos, bem como os juízos fáctico-conclusivos e jurídicos que lhe dão suporte, nos termos constantes do teor da decisão acima transcrita.
Coisa diferente, e é isso que efetivamente resulta do recurso interposto pelo arguido, é este não se conformar com a decisão recorrida, por discordar dela e dos respetivos fundamentos, como claramente assume na motivação do recurso, e também deixa minimamente transcrito, embora em termos pouco claros, designadamente nas conclusões 1 a 3 do mesmo recurso.
De facto, o Tribunal enunciou os motivos de facto e de direito, ao elencar as penas parcelares concretamente aplicadas ao arguido, 2 anos de prisão, 15 anos de prisão, 3 anos e 4 anos de prisão, 2 anos de prisão e 1 ano de prisão, pela autoria dos crimes ali também concretamente referidos, concluindo que ao arguido foi aplicada uma pena única de 17 anos e 6 meses de prisão efetiva. E porque esta pena não é uma pena de curta duração, considerou não descortinar fundamento para aplicação da Lei nº 94/17, com a qual o legislador visou precisamente descongestionar o sistema prisional, mas apenas no âmbito das penas de curta duração.
Assim sendo, não vemos onde possa estar a falta de fundamentação invocada pelo recorrente. Sabendo este que a questão é outra, ou seja, saber se a decisão recorrida, nos pressupostos de facto de que partiu, os quais o recorrente não põe em causa (isto é, as penas parcelares e a pena única, em função delas concretamente aplicada), fez ou não a partir deles uma correta aplicação do direito, com as consequências que foram a decisão de indeferimento da pretensão do recorrente de ver aberta a audiência a que alude o art.º 371º-A do CPP. Mas isso prende-se com outra questão, que não já com o vício de falta de fundamentação, a qual analisaremos a seguir.
Razão por que deve ser negado provimento ao recurso, nesta parte.
2.2.2. Da existência ou não de fundamento legal para a abertura da audiência de julgamento requerida pelo arguido, tendo em vista a aplicação de lei penal mais favorável.
A questão a colocar agora é a seguinte: O Tribunal a quo terá decidido bem ao considerar inaplicável retroativamente ao caso dos autos a Lei nº 94/2017, de 23/08, na pretensão deduzida pelo recorrente e no entendimento que aquele Tribunal fez de que a pena única de 17 anos e 6 meses de prisão aplicada não se traduz em pena de curta duração, nos termos e para os efeitos do art.º 43º do CP, na redação que lhe foi dada por aquele diploma legal, o qual prevê atualmente o cumprimento da pena de prisão em regime de permanência na habitação?
Recordemos que o recorrente sustenta a aplicação retroativa daquele novo regime por defender que algumas das penas parcelares que concorreram para a pena única do concurso de crimes, a referida pena de 17 anos e 6 meses de prisão, que não esta, poderão ser substituídas por aquele regime de cumprimento na habitação, precisamente e na medida em que, sendo penas de curta duração, não ultrapassam os dois anos de prisão, nos termos agora previstos no art.º 43º Código Penal, por força daquela lei nova – Lei nº 94/2017.
A questão assim colocada pelo recorrente não tinha possibilidade de ser equacionada à data da prática dos factos por que foi condenado, nem à data da respetiva condenação, 08/01/2010, pelo simples facto de o então art.º 44º, nº 1, al. a), do CP prever como pressuposto fundamental da ponderação da possibilidade material de execução da pena de prisão em regime de permanência na habitação, a pena de prisão aplicada não ser superior a um ano. Pois dizia o art.º 44º, nº 1:
Se o condenado consentir, podem ser executados em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, sempre que o tribunal concluir que esta forma de cumprimento realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição:
a) A pena de prisão aplicada em medida não superior a um ano;”
Sendo que o recorrente, como se deixou referido supra, foi condenado em penas de prisão, todas elas superiores a 1 ano (2 anos de prisão, 15 anos de prisão, 3 anos de prisão, 4 anos de prisão, 2 anos de prisão e 1 ano de prisão, por cada um dos crimes cometidos em concurso).
E sendo certo que no nº 2 do mesmo artigo se estabelecia a possibilidade de o limite máximo previsto no número 1 vir a ser elevado para dois anos, a verdade é que se fazia depender uma tal possibilidade da verificação, à data da condenação, de circunstâncias de natureza pessoal ou familiar do condenado que desaconselhassem a privação da liberdade em estabelecimento prisional, nomeadamente: a) Gravidez; b) Idade inferior a 21 anos ou superior a 65 anos; c) Doença ou deficiência graves; d) Existência de menor a seu cargo; e) Existência de familiar exclusivamente ao seu cuidado. Circunstâncias essas que não foram invocadas nem foi dado então verificar que ocorressem nos autos em relação ao recorrente.
Acontece que com a entrada em vigor da Lei nº 94/2017, de 23/08/2017, aquela possibilidade de cumprimento da pena de prisão em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, passou a constar do art.º 43º do CP, abrangendo agora as penas de prisão aplicadas em medida não superior a 2 anos, sempre que o Tribunal concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da pena de prisão e o condenado nisso consentir – art.º 43º, nº 1, al. a), do CP.
Pese embora o princípio da irretroatividade da lei penal contido no art.º 2º, nº 1, do CP e 29º, nº 4, da CRP, ao estabelecerem que as penas e as medidas de segurança são determinadas pela lei vigente à data da prática dos factos ou do preenchimento dos pressupostos de que dependem, pretende o recorrente a aplicação retroativa da lei nº 94/2017, na redação que veio dar ao citado art.º 43º do CP, por a considerar uma lei penal mais favorável, também nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos citados, quanto ao primeiro no seu nº 4, e, em especial, no art.º 371º-A do CPP, e já que, na redação que tal Lei deu ao art.º 43º do CP, como vimos supra, passou-se a admitir o cumprimento em regime de permanência na habitação de algumas das penas de prisão aplicadas ao recorrente, precisamente aquelas em que foi condenado até 2 anos de prisão, possibilidade que não existia à luz da lei anterior, como vimos. Sendo certo que cumprir tais penas em regime de permanência na habitação seria, parece depreender-se da respetiva pretensão, menos oneroso para o recorrente, pois tal cumprimento consistiria na obrigação de o condenado permanecer na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, pelo tempo e duração da pena de prisão, sem prejuízo das ausências autorizadas. Ausências essas que, verificada a sua necessidade poderiam ser para frequência de programas de ressocialização ou para atividade profissional, formação profissional ou estudos – art.º 43º, nº 3, do CP, na versão dada pela Lei 94/2017. Ainda que a duração do cumprimento de tais penas parcelares (questão que o recorrente nem sequer coloca ou equaciona) pudesse ter de ser sucessivo, isto é, e levando até às últimas consequências a tese defendida pelo recorrente, teria de cumprir desse modo 2 anos + 2 anos + 1 ano = 5 anos, e já que, como veremos a seguir, a lei não prevê a fixação de uma pena conjunta de “regimes de permanência na habitação”. Daqui resultando, e desde logo, as dificuldades de implementação da tese defendida pelo recorrente. A que acresceria um outro problema, de diferente natureza, relativamente à necessidade de cumprimento das penas de 15 anos de prisão mais 3 anos e mais 4 anos de prisão, em relação ás quais se teria então de fazer um novo cúmulo? Isto, claro está, se pudesse ser levada, radicalmente, até às últimas consequências a tese intuitivamente propugnada pelo recorrente. E dizemos intuitivamente porque o recorrente não consegue demonstrar, de forma minimamente consistente, que ela pudesse ter fundamento lógico, e muito menos um qualquer apoio legal.
Ora, com interesse para a questão a resolver importa desde já dizer que a lei nova, ao alterar o regime jurídico previsto para o cumprimento da pena de prisão em permanência na habitação não veio alterar qualquer das molduras penais legalmente previstas para os crimes praticados pelo recorrente, em função das quais foram fixadas aquelas penas, não sendo assim possível, por essa via, questionar ou pôr em causa o quantum nelas fixado pela autoria daqueles crimes, e já que além de as respetivas molduras penais permanecerem as mesmas, inalterados também ficaram os critérios legalmente estabelecidos para a sua concreta determinação, e em especial os que resultam dos art.ºs 70º e 71º do CP. Estando por isso definitivamente fixadas tais penas, as concretamente aplicadas pela autoria de cada crime (2 anos de prisão pela autoria do crime de associação criminosa, p. e p. pelo art.º 299º, nº 2, do CP, 15 anos de prisão pela autoria do crime de homicídio qualificado, p.e p. pelo art.ºs 131º e 132º do CP, 3 anos de prisão pela autoria de um crime de rapto, p. e p. pelo art.º 161º, nº 1, al. d), do CP, 4 anos de prisão pela autoria de um crime de rapto, p. e p pelos art.ºs 158º, nº 2, al. e) e 161º, nº 2, al. a), do CP, 2 anos de prisão pela autoria de um crime de coação agravada, p. e p. pelos art.ºs 154º, nº 1, e 155º, nº 1, al. a), do CP, 1 ano de prisão o pela autoria de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86º, nº 1, al. d), da Lei nº 5/2006, de 23/02), e já que as mesmas permanecem a coberto do efeito do caso julgado material, que resultou do trânsito em julgado do acórdão condenatório. Tais penas, assumindo a natureza de penas principais, e especificamente penas de prisão que o Tribunal competente decidiu aplicar por cada um dos crimes praticados, e estabelecida que foi a relação dessas penas com os diversos crimes em concurso, gerada ficou também a impossibilidade legal de vir a ser ponderada a substituição de qualquer delas por outra pena que fosse, das previstas no Código Penal, doutrinalmente designadas como penas de substituição, pois antes de poder ser ponderada uma tal possibilidade impunha-se a fixação da pena única do concurso, nos termos do art.º 77º do CP. Sendo a sua natureza de penas principais decisiva, nos termos de tal artigo, para a determinação da pena conjunta ou única resultante do concurso de crimes a que as mesmas respeitavam. Ou seja, as penas de prisão concretamente aplicadas ao arguido não podiam ser alvo de qualquer procedimento destinado a avaliar a possibilidade de aplicação de uma pena de substituição, pela simples razão de que, por força do concurso de crimes registado, ficaram imediatamente cativas da função que necessariamente têm de ter em prol da determinação da pena única a aplicar num tal concurso. Sendo isso que claramente resulta da letra e do espírito do art.º 77º, nº 2, do CP, ao dizer que a pena aplicável aos vários crimes em concurso tem como limite mínimo e máximo a soma das penas concretamente aplicadas, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa. Assim como do nº 3 do mesmo artigo, ao afirmar que se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa (sempre penas principais, portanto), a diferente natureza destas mantem-se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números anteriores. Sendo que penas principais, nas palavras do Prof. Jorge de Figueiredo Dias, são aquelas “que, encontrando-se previstas para o sancionamento dos tipos de crime, podem ser fixadas pelo juiz na sentença independentemente de quaisquer outras (….)”.Concluindo o mesmo autor que a tal “caracterização correspondem apenas no nosso sistema penal geral, como penas principais, as penas privativas da liberdade (ou penas de prisão) e as penas pecuniárias (ou penas de multa).”[5] Sendo de substituição, por seu turno, aquelas que “são aplicadas e executadas em vez de uma pena principal”[6], nomeadamente por razões que se prendem com conceções politico-criminais, que vêm a pena de prisão como ultima ratio, e onde as penas de substituição se assumem como suficientes para alcançar as necessidades de prevenção, com aquelas inicialmente visadas.
Ora, assim sendo, verificada a existência de concurso de crimes como o que ocorreu no caso dos autos, a pena de prisão aplicada por cada um dos crimes em concurso não poderia ser substituída pela de suspensão de execução da pena de prisão ou por qualquer outra pena de substituição legalmente admissível. Só o podendo ser a pena única aplicada ao concurso de crimes, verificados que fossem os respetivos pressupostos legais, porquanto em relação a esta é que iria ser feito o juízo global final sobre a ilicitude e a culpa, bem como sobre as necessidades de prevenção geral e especial que o caso reclamasse, tendo-se em conta, no seu conjunto, os factos e a personalidade do agente, como meridianamente resulta do nº 1 do art.º 77º do CPP. E só aí, em função da pena única encontrada, e por referência a esta, é que o Tribunal poderia ponderar a possibilidade da substituição de tal pena por outra legalmente prevista.
Daí assistir razão à Sra. Procuradora-Geral-Adjunta quando no seu parecer afirma que as penas concretamente aplicadas ao recorrente perderam autonomia por estarem em concurso com outras, igualmente de prisão, aplicadas ao arguido.
Neste sentido, no tocante à possibilidade de substituição das penas parcelares de prisão que integram o concurso de crimes, afirma categoricamente o Prof. Jorge de Figueiredo Dias: “sabendo-se que a pena que vai ser efetivamente aplicada não é a pena parcelar, mas a pena conjunta, torna-se claro que só relativamente a esta tem sentido pôr a questão da sua substituição”[7].
Não podendo haver fundamento legal para a substituição das penas parcelares do concurso por qualquer pena de substituição, prevista à data da determinação da pena única do concurso, também aquelas mesmas penas não poderiam ser substituídas pelo cumprimento em regime de permanência na habitação, caso a lei já previsse, à data da prática dos factos ou daquela determinação da pena, a possibilidade da sua aplicação substitutiva também para as hipóteses de prisão parcelares aplicadas até 2 anos, como agora o veio fazer prever a Lei invocada pelo recorrente.
Ou seja, mesmo que a Lei nº 94/2017, com as alterações provocadas no Código Penal, e nomeadamente na versão dada ao atual art.º 43º, se encontrasse em vigor à data da prática dos factos ou da determinação da respetiva sanção, por imposição normativa do art.º 77º do CP, que estabelece os critérios essenciais de determinação da pena única no concurso de crimes, o cumprimento de qualquer das penas parcelares ali encontrada nunca poderia ser, substitutivamente, em regime de permanência na habitação. E se não podia ser aplicado esse regime caso aquela Lei tivesse entrado em vigor anteriormente à data da prática dos factos ou da condenação, por identidade de razão ou fundamento também o não poderia ser agora, retroativamente, com prévia abertura da audiência, ao abrigo do disposto no art.º 371º-A do CPP. Pois a manifesta ausência de possibilidade legal de uma tal aplicação permanece intacta. E sendo manifestamente ilegal a sua aplicação, nunca poderia tal novo regime constituir fundamento para a abertura da audiência a que alude o art.º 371º-A do CPP. Porque, podendo embora, virtualmente, e na tese do recorrente, conceber-se uma aplicação favorável do mesmo, ela não seria legal.
Razão por que deve ser negado provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
Responsabilidade pelo pagamento de custas
Uma vez que o arguido decaiu totalmente no recurso por si interposto é responsável pelo pagamento da taxa de justiça e dos encargos a que a sua atividade deu lugar (artigos 513.º e 514.º do Código de Processo Penal.
Nos termos do disposto no art.º 8º, nº 9, Regulamento das Custas Processuais e da Tabela III a ele anexa, a taxa de justiça varia entre 3 a 6 UC, devendo ser fixada pelo juiz tendo em vista a complexidade da causa, dentro dos limites fixados pela tabela iii.
Tendo em conta a complexidade do processo, julga-se adequado fixar essa taxa em 4 UC.
3. DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes da 2.ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação do Porto em:
a) Negar provimento ao recurso interposto pelo arguido B…;
b) Condenar o recorrente no pagamento das custas do recurso, com taxa de justiça que se fixa em 4 UC.
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Porto, 21 de março de 2018
Francisco Mota Ribeiro
Elsa Paixão
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[1] Cf., por todos, Ac. do STJ, de 11/04/2007, Pº 07P656, disponível in http://www.dgsi.pt/jstj.
[2] Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, Reimpressão, Coimbra Editora, LIM., Coimbra 1984, p. 358 e 359.
[3] Curso de Processo Penal, III, 3ª Edição revista e atualizada, Verbo, 2009, p. 347.
[4] Código de Processo Civil Anotado, Volume V, Reimpressão, Coimbra Editora, LIM., Coimbra 1984, p. 139 e 140.
[5] Direito Penal - As Consequências Jurídicas do Crime, Reimpressão, Coimbra Editora, 2005, p. 88 e 89.
[6] Ibidem, p. 91.
[7] Ibidem, p. 285.