Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1563/16.4T8AMT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS QUERIDO
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
PLANO DE RECUPERAÇÃO
NÃO HOMOLOGAÇÃO
OFICIOSAMENTE
NULIDADE DA CLÁUSULA
CO-OBRIGADOS E GARANTES
Nº do Documento: RP201803191563/16.4T8AMT.P1
Data do Acordão: 03/19/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º671, FLS.460-465)
Área Temática: .
Sumário: I - Do confronto da norma revogada (art.º 63.º do CPEREF) com a que lhe sucedeu (n.º 4 do art.º 217.º do CIRE), conclui-se que o legislador, deliberadamente, visou que o credor, independentemente da posição assumida no processo, após a homologação do plano de recuperação mantivesse incólume os direitos de que dispunha contra os condevedores e garantes.
II - É nula, por violação de norma imperativa (n.º 4 do art.º 217.º do CIRE), a cláusula integrante do Plano de Recuperação, com o seguinte teor: «Durante o prazo de execução do Plano, desde que não se verifique a ocorrência de algum incumprimento, os credores obrigam-se a não accionar os avalistas ou fiadores de qualquer uma das dívidas inseridas no Plano de Revitalização».
III - Atento o disposto no art.º 292.º do CC, haverá que suprimir a cláusula viciada, mantendo a homologação do plano na parte restante.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1563/16.4T8AMT.P1
Sumário do acórdão:
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I. Relatório
Em 16.12.2016, a sociedade comercial B…, Lda., apresentou-se em Processo Especial de Revitalização, na Instância Central, Secção de Comércio (J1), Amarante, da Comarca do Porto Este, alegando, nomeadamente, que deve aos seus credores a quantia global de €1.548.163,25.
Com o requerimento inicial, a requerente apresentou relação de créditos (fls. 9v.º) e relação do ativo.
Por despacho de 20.12.2016, foi admitido liminarmente o Processo Especial de Revitalização, tendo sido nomeado para exercer o cargo de Administradora Judicial Provisória, a Exma. Senhora Dr.ª C… (vide despacho retificativo de 28.12.2016).
Em 9.02.2017, a Exma. Senhora Administradora Judicial Provisória juntou aos autos a lista provisória de créditos reconhecidos (fls. 40 a 43).
Em 11.05.2017, a credora F… juntou aos autos um requerimento, no qual «[…] vem requerer a não homologação oficiosa do plano de recuperação apresentado pela devedora […] tendo em consideração que o plano prevê uma cláusula impeditiva de execução dos garantes. Ora, esta cláusula pretende obrigar os credores a não acionar os avalistas ou fiadores de qualquer uma das dívidas inseridas no plano durante a execução deste, afetando, desta forma, os direitos dos credores, pelo que se impõe a não homologação do plano de recuperação apresentado pela devedora […]».
Em 19.05.2017, a Exma. Senhora Administradora Judicial Provisória juntou aos autos o Plano de Revitalização (fls. 58 a 78), com as declarações de voto dos credores.
Em 23.05.2017 foi proferido o seguinte despacho:
«- Dos créditos sob condição suspensiva.
Através do requerimento que antecede, veio a Sr.ª AJP requerer ao Tribunal a fixação do número de votos conferido pelos créditos sob condição suspensiva
Ora, no que respeita aos créditos decorrentes de negócios jurídicos sob condição, seguimos de perto o entendimento de D… e E…, no sentido de que os créditos decorrentes de negócios jurídicos sob condição resolutiva podem ser reclamados no PER, mas já não se a condição for suspensiva. “Com efeito, se a condição do negócio jurídico é suspensiva, antes da verificação da condição os sues efeitos não se produzem e, como tal, as obrigações dele decorrentes ainda não se constituíram, sem prejuízo da existência de uma expectativa jurídica digna de tutela (cfr. art.º 272.º, do Código Civil). Sendo o direito de crédito o direito ao cumprimento de uma obrigação por outrem, antes de verificada a condição suspensiva do negócio jurídico que é a fonte da obrigação, a constituição da obrigação é meramente eventual, pelo que o crédito inexiste e não deve ser reclamado. No processo de insolvência, os créditos sob condição suspensiva são reclamados, não para que sejam necessariamente pagos, mas para que sejam acautelados e apenas pagos se e após verificada a condição (cfr. art.º 181.º). (…)
No caso particular das garantias bancárias autónomas, não há qualquer dúvida de que o direito a accionar a garantia bancária não pode ser limitado ou restringido pelo plano de recuperação do devedor garantido. O garante deve pagar e não pode opor qualquer efeito – extintivo, modificativo – adveniente do plano ao beneficiário.”
Especialmente nos casos em que a garantia, para além de autónoma é automática (ou seja, “on first demand”), fica verdadeiramente imunizada das vicissitudes da relação decobertura, pelo que o PER que vier a ser aprovado não pode restringi-las minimamente, sob pena de frustrar-se o escopo desta garantia bancária “fazendo com que o risco da revitalização (rectius, da situação económica difícil ou da situação de insolvência iminente do devedor) não corresse por conta do garante, quando é, as mais das vezes, para cobrir esse risco que as garantias são constituídas.”
Contudo, importa salientar, que “o banco garante, ao pagar o montante garantido, não fica sub-rogado no direito do credor. Antes tem o direito de exigir do ordenante o pagamento da quantia que desembolsou” [direito que lhe advém da relação contratual de cobertura, não sendo, como tal, a obrigação assumida pelo banco garante uma obrigação acessória do crédito garantido, como sucede no caso da fiança]. Por isso, “o crédito do banco sobre o ordenante pela execução da garantia inexiste antes do pagamento e, consequentemente, não pode ser reclamado até que seja accionada e paga a garantia bancária.”.
Assim, não podem ser reclamados no PER os créditos não constituídos, incluindo os créditos futuros e os créditos por obrigações de negócio jurídico sujeito a condição suspensiva, enquanto a condição não se verificar.
Consequentemente, decide-se não reconhecer direito de voto aos credores cujos créditos estejam sujeitos a condição suspensiva, indeferindo-se, como tal o requerido pela Sr.ª Administradora Judicial Provisória.
Notifique, sendo a Sr.ª AJP para apresentar, em 5 dias, o resultado das negociações, bem como pronunciar-se sobre o requerimento apresentado pela F…, S.A. a fls. 54, no sentido da não homologação do PER apresentado pela devedora por violação de norma imperativa».
Em 5.06.2017, a Exma. Senhora Administradora Judicial Provisória pronunciou-se, requerendo a aprovação do plano e alegando:
«2. Quanto à F…. Salvo o devido respeito e melhor entendimento, não se concorda com a mesma, porquanto este credor detém um crédito que não se encontra vencido à data da apresentação do PER e nem ainda na presente data, tendo por isso sido reclamado e reconhecido como um crédito sob condição suspensiva, não tendo o mesmo sido impugnado.
3. Pelo que não deve a sua posição pôr em causa o plano de recuperação da devedora, aprovado pela maioria dos credores com direito de voto».
Em 5.06.2017, a G… requerer a recusa de homologação do plano, alegando, em síntese, que “com a aprovação do PER, a Requerente ficará numa situação mais desfavorável do que inexistindo plano…”.
Em 12.06.2017 foi proferido o seguinte despacho:
«- Fls. 83 e ss.:
Notifique a Devedora e o Sr. AJP para, querendo, se pronunciarem e/ou alterarem o PER apresentado no que concerne à posição deste credor, com a advertência de, não sendo efectuada qualquer correção ou alteração, poder o Plano ser, eventualmente, não homologado pelo motivo invocado pelo credor, ou, eventualmente este ser excluído do dos efeitos produzidos por esse mesmo plano».
Em 26.06.2017, veio a requerente pronunciar-se, preconizando a aprovação do plano.
Em 6.09.2017 foi proferido o seguinte despacho:
«Pese embora a informação prestada pela Sr.ª Administradora Judicial Provisória com a ref.ª 3631320, notifique a mesma para, em 5 dias, apresentar mapa de votação do PER apresentado pela Devedora, com indicação expressa do universo de credores votantes e dos que votaram favoravelmente e desfavoravelmente, com descrição dos créditos que têm natureza subordinada (indicando a respectiva percentagem) e dos créditos que estão sujeitos a condição suspensiva e a condição resolutiva, uma vez que a natureza dos créditos e a su eventual sujeição a condição influi decisivamente no resultado da votação.
Mais deverá juntar os comprovativos dos votos dos credores.
Tal documentação afigura-se essencial para proferir decisão (art.º 17.º-F, n.º 5, do CIRE)».
A Exma. Senhora Administradora Judicial Provisória veio dar cumprimento ao despacho da Mª Juíza, após o que, em 5.09.2017 foi proferida sentença na qual foi homologado o plano de revitalização da devedora e requerente sociedade comercial B…, Lda.
O Banco H…, SA, não se conformou, e interpôs recurso de apelação, apresentando alegações, findas as quais, formaliza as seguintes conclusões:
a. Consta do ponto 5, número 4, do Plano de Recuperação que “Durante o prazo de execução do Plano, desde que não se verifique a ocorrência de algum incumprimento, os Credores obrigam-se a não accionar os avalistas ou fiadores de qualquer uma das dívidas inseridas no Plano de Revitalização”, cláusula que considera a Recorrente ser nula, porquanto violadora do artigo 217.º, n.º 4, do CIRE, bem como desconforme com o entendimento vertido no artigo 17.º-A do CIRE.
b. O Processo Especial de Revitalização procura a adopção de medidas conducentes à revitalização económica do Devedor – artigo 17.º-A do CIRE –, embora estejam excluídas todas as medidas com incidência no seu passivo que afectem os direitos dos Credores sobre os condevedores ou terceiros garantes da obrigação, quanto à sua existência ou montante – artigo 217.º, n.º 4, do CIRE.
c. O teor das medidas consignadas no Plano de Recuperação é alheio aos direitos dos Credores sobre os garantes da obrigação, dado que não podem surtir efeitos na esfera jurídica de terceiros, nem tão pouco as condições concedidas ao Devedor, quanto à fixação do passivo, lhes são extensíveis (nesse sentido, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, In Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2.ª Edição, p. 838).
d. Inclusive, com fundamento na noção de contrato e no princípio basilar de que os contratos somente produzem efeitos em relação a terceiros nos casos e termos especialmente previstos na lei – artigo 406.º, n.º 2, do CC.
e. Motivo pelo qual, as negociações levadas a cabo no âmbito do Processo Especial de Revitalização somente poderão ser efectivadas entre a empresa e os seus credores, sendo certo que o resultado final apenas poderá vincular essas mesmas partes (nesse sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27 de Outubro de 2015, processo n.º 416/15.8T8PDL.L1-7).
f. Nesta senda, considera a Recorrente que o teor da mencionada cláusula é manifestamente impeditivo da cobrança do seu crédito no decurso do Plano de Recuperação, atendendo que, no contrato celebrado em 6 de Junho de 2006 entre a Recorrente, a Devedora e os Garantes, ficou consignado que estes se obrigavam a assumir solidariamente o cumprimento das demais obrigações pecuniárias, motivo pelo qual, e conforme decorre da lei, deveria a Recorrente manter incólumes os direitos de que dispõe – artigos 512.º, n.º 1, e 513.º do CC.
g. Aliás, incumbia ao Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo, enquanto entidade controladora da legalidade, ter recusado a homologação do Plano de Recuperação, por violação não negligente de normas aplicáveis ao seu conteúdo, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 215.º do CIRE, ex vi artigo 17.º-F, n.º 7, do CIRE.
h. Tendo, inclusive, a Credora F…, S.A. dado conta da invocada nulidade ao Tribunal - o que, por razões de economia processual, tornou desnecessário invocar tal circunstância em momento anterior ao presente - não tendo colhido, contudo, a aceitação do Meritíssimo Juiz, o que tornou
i. Posto isto, configurando a inclusão da cláusula no Plano de Recuperação uma condição essencial à aprovação, cabia ao Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo a recusa da sua homologação, atendendo à manifesta nulidade de uma das suas cláusulas.
Nestes termos, e nos que V. Ex.as muito doutamente suprirão, Devem os Meritíssimos Juízes do Tribunal ad quem decidir pela revogação da douta Sentença recorrida e, consequentemente, o Plano de Recuperação apresentado nestes autos objecto de não homologação, em razão da violação de norma jurídica imperativa do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, designadamente do artigo 217.º, n.º 4.
Assim se fazendo a desejável e necessária JUSTIÇA.
A recorrida (requerente/devedora) apresentou resposta às alegações de recurso, concluindo:
a. A cláusula contida no parágrafo 5 do Ponto 4 do Plano de recuperação aprovado no PER a que se submeteu a aqui Recorrida não é ilegal pois não afronta o disposto pelo artigo 217.º, n.º4, do CIRE;
b. A referida cláusula do Plano apenas comporta uma modificação nos prazos de exigibilidade das obrigações dos avalistas para com os credores da Devedora, pois fixa uma moratória a favor desses terceiros avalistas ou fiadores;
c. Contudo, não obstante esta moratória inserido no Plano ser uma condicionante, a mesma não é intolerável nem excessiva e que se justifica em prol da revitalização dos devedores com o Plano de Recuperação, de resto, a tutela conferida pelo artigo 217.º, n.º 4 do CIRE é uma tutela excepcional e restrita aos casos de extinção do crédito e de redução do seu montante, não se aplicando, por exemplo, em situações de mera modificação de prazos de vencimento, como sucede no caso dos autos.
Termos em que, e sempre com o mui douto suprimento de V. Exas, deve o recurso ser julgado improcedente, confirmando-se na íntegra a sentença de homologação recorrida, Fazendo-se assim JUSTIÇA
Apesar de admitido, o recurso não subiu de imediato, por inércia da Secção de Processos, referida pela Mª Juíza no despacho de 1.02.2018.
II. Do mérito do recurso
1. Definição do objecto do recurso
O objecto do recurso, delimitado pelos recorrentes nas conclusões das suas alegações (artigos 635º, nº 3 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil, salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 608º, nº 2, in fine), consubstancia-se numa única questão: saber se o ponto 4, da cláusula 5.ª do Plano de Recuperação enferma de nulidade.
2. Fundamentos de facto
A factualidade provada é a que resulta do relatório que antecede, à qual acresce o teor do ponto 4, da cláusula 5.ª, do Plano de Recuperação, que se passa a reproduzir:
2.1. «Durante o prazo de execução do Plano, desde que não se verifique a ocorrência de algum incumprimento, os Credores obrigam-se a não accionar os avalistas ou fiadores de qualquer uma das dívidas inseridas no Plano de Revitalização».
3. Fundamentos de direito
Dispõe o n.º 7 do artigo 17.º-F do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (aprovado pelo DL n.º 53/2004, de 18 de março, doravante designado pelo acrónimo CIRE): «O juiz decide se deve homologar o plano de recuperação ou recusar a sua homologação, nos 10 dias seguintes à receção da documentação mencionada nos números anteriores, aplicando, com as necessárias adaptações, as regras previstas no título IX, em especial o disposto nos artigos 194.º a 197.º, no n.º 1 do artigo 198.º e nos artigos 200.º a 202.º, 215.º e 216.º».
Sob a epígrafe “Não homologação oficiosa”, dispõe o artigo 215.º do CIRE: «O juiz recusa oficiosamente a homologação do plano de insolvência aprovado em assembleia de credores no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza, e ainda quando, no prazo razoável que estabeleça, não se verifiquem as condições suspensivas do plano ou não sejam praticados os actos ou executadas as medidas que devam preceder a homologação».
Deverá considerar-se que integram o conceito de “não negligenciáveis”, todas as violações de normas imperativas que acarretem a produção de um resultado que a lei não autoriza[1].
Em comentário à norma em apreço, escrevem Carvalho Fernandes e João Labareda: “Normas relativas ao conteúdo serão, por sua vez, todas as que respeitam à parte dispositiva do plano, mas, além delas, ainda aquelas que fixam os princípios a que ele deve obedecer imperativamente e as que definem os temas que a proposta deve contemplar”[2].
A questão recursória resume-se à resposta a esta questão: enfermará de nulidade o ponto 4, da cláusula 5.ª do Plano de Recuperação homologado pela sentença recorrida?
Vejamos.
Convencionou-se no ponto 4, da cláusula 5.ª, do Plano de Recuperação: «Durante o prazo de execução do Plano, desde que não se verifique a ocorrência de algum incumprimento, os Credores obrigam-se a não accionar os avalistas ou fiadores de qualquer uma das dívidas inseridas no Plano de Revitalização».
Dispunha o artigo 63.º do CPEREF (aprovado pelo DL n.º 132/93, de 23.04 e revogado pelo DL n.º 53/2004, de 18/03): «As providências de recuperação a que se refere o artigo anterior não afetam a existência nem o montante dos direitos dos credores contra os coobrigados ou os terceiros garantes da obrigação, salvo se os titulares dos créditos tiverem aceitado ou aprovado as providências tomadas e, neste caso, na medida da extinção ou modificação dos respetivos créditos».
Em suma, na versão legal anterior ao CIRE, quando os credores votavam favoravelmente uma providência de recuperação, ou, simplesmente, a aceitavam, os seus direitos contra co-obrigados e garantes ficavam afetados «na medida da extinção ou modificação dos respetivos créditos» relativamente à empresa recuperanda.
Como referem Carvalho Fernandes e João Labareda, na obra citada (pág. 724), suscitavam-se divergências doutrinárias relativamente a este regime, e o legislador “houve por bem considerar os reparos, modificando a orientação, de sorte que agora, seja qual for a posição assumida no processo, o credor mantém incólumes os direitos de que dispunha contra condevedores e terceiros garantes, podendo exigir deles tudo aquilo por que respondem e no regime da responsabilidade originário”.
Com a aprovação do CIRE, quanto a esta matéria passou a vigorar o regime previsto no n.º 4 do artigo 217.º, que, contrariando o regime anterior, preceitua: «As providências previstas no plano de insolvência com incidência no passivo do devedor não afetam a existência nem o montante dos direitos dos credores da insolvência contra os codevedores ou os terceiros garantes da obrigação, mas estes sujeitos apenas podem agir contra o devedor em via de regresso nos termos em que o credor da insolvência pudesse exercer contra ele os seus direitos».
Decorre da parte final da norma, que os condevedores ou garantes, independentemente do que paguem, apenas podem exigir pela via de regresso o que, homologado o plano, o próprio credor poderia solicitar ao devedor e nos termos e condições que o plano estabeleceu – ou que dele decorrem por determinação legal[3].
Do confronto da norma revogada (art.º 63.º do CPEREF) com a que lhe sucedeu (n.º 4 do art.º 217.º do CIRE), conclui-se que o legislador, deliberadamente, visou que o credor, independentemente da posição assumida no processo, após a homologação do plano de recuperação mantivesse incólume os direitos de que dispunha contra os condevedores e garantes[4].
Aqui chegados, concluímos que a cláusula em apreço [«Durante o prazo de execução do Plano, desde que não se verifique a ocorrência de algum incumprimento, os Credores obrigam-se a não accionar os avalistas ou fiadores de qualquer uma das dívidas inseridas no Plano de Revitalização»] é claramente contrária à nova orientação legal consagrada no n.º 4 do art.º 217.º do CIRE.
Face ao critério enunciado no art.º 215.º do CIRE [violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza], haverá que concluir que estamos perante “violação não negligenciável” de norma imperativa.
A cláusula em causa, por contrariar norma imperativa, enferma de nulidade, (artigo 280.º n.º 1 do Código Civil), não contagiando, no entanto, a globalidade do negócio, face ao disposto no artigo 292.º do Código Civil.
Com efeito, suscitada a questão da nulidade, nem a devedora, nem os credores vieram alegar que o negócio não teria sido concluído sem a parte viciada, acrescendo o facto de a exclusão da cláusula nula não afetar o equilíbrio do negócio, na medida em que a sua vigência apenas beneficiaria terceiros não intervenientes no negócio (na qualidade de garantes e condevedores)[5].
Foi este o critério que prevaleceu no acórdão da Relação de Lisboa, de 24.11.015 (processo n.º 339/15.0T8PDL.L1-1, acessível no site da DGSI), no qual se considerou nula a cláusula que previa a «Suspensão da execução das garantias colaterais a terceiros (garantes, avalistas, fiadores) enquanto estiver a ser cumprido o acordo com o Devedor».
De acordo com o ensinamento do Professor Mota Pinto[6], ao invés da legislação germânica, o nosso Código Civil estabelece no artigo 292.º uma presunção de divisibilidade ou de separabilidade do negócio, o que faz recair sobre o contraente que pretenda a declaração de invalidade total, o ónus da prova de que a vontade hipotética das partes no momento do negócio era nesse sentido.
Na situação sub judice, tal como se decidiu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13.11.2014 (processo n.º 3970/12.2TJVNF-A.P1.S1)[7], deverá manter-se a homologação do plano de revitalização, suprimindo-se apenas a cláusula viciada[8].
Decorre do exposto, salvo todo o respeito devido, a procedência do recurso, devendo em consequência revogar-se a decisão recorrida.
III. Dispositivo
Com fundamento no exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o recurso, ao qual concedem provimento, e, em consequência:
I. Em declarar nulo o ponto 4, da cláusula 5.ª, do Plano de Recuperação, reduzindo-se o acordo aprovado em conformidade com a eliminação do referido ponto;
II. Em revogar a sentença recorrida, apenas na parte em que homologa o referido ponto 4, da cláusula 5.ª;
III. Em manter a decisão de homologação quanto ao Plano de Recuperação reduzido nos termos referidos em I.
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Custas do recurso pela recorrida.
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O presente acórdão compõe-se de doze páginas e foi elaborado em processador de texto pelo relator, primeiro signatário.
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Porto, 19 de março de 2018
Carlos Querido
Correia Pinto
Ana Paula Amorim
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[1] Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, 2009, pág. 713. Diversamente, concluem os autores citados, são desconsideráveis as infrações que atinjam simplesmente regras de tutela particular que podem, todavia, ser afastadas com o consentimento do protegido.
[2] Obra e página citadas.
[3] Obra citada, pág. 725.
[4] Vejam-se, nesse sentido, os seguintes arestos: desta Relação, de 9.07.2014 (proc. 1213/12.8TBVFR-B.P1): «Do artº 217º, nº 4, do CIRE, aplicável ao PER, resulta que, não obstante o plano de recuperação aprovado, o avalista de livrança subscrita pelo devedor avalizado pode ser executado pelo respectivo portador»; da Relação de Lisboa, de 4.06.2015, (proc. 125-13.2TCFUN-A.L1-6): «A aprovação/homologação de um PER, com moratória (ou diversos prazos e taxas de juros de mora) para pagamento da dívida, de que beneficia a sociedade subscritora da livrança, não é invocável/oponível pelos avalistas contra quem foi instaurada a respetiva execução».
[5] Vide, nesse sentido, os seguintes acórdãos da Relação de Lisboa: de 24.11.015 (processo n.º 339/15.0T8PDL.L1-1, e de 27.10.2015 (processo n.º 416/15.8T8PDL.L1-7), ambos acessíveis no site da DGSI.
[6] Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, 3.ª edição atualizada, 1996, pág. 626 e 627.
[7] Bem como nos citados acórdãos da Relação de Lisboa: de 24.11.2015 (processo n.º 339/15.0T8PDL.L1-1, e de 27.10.2015 (processo n.º 416/15.8T8PDL.L1-7).
[8] Veja-se nesse sentido, a abundante jurisprudência do Supremo, indicada no citado acórdão da Relação de Lisboa, de 24.11.2015, na qual se tem vindo a entender, de modo unânime, que só a parte viciada deve ser excluída da homologação, mantendo-se a mesma quanto ao mais.