Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
229/14.4T8MTS-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: ATRIBUIÇÃO DA UTILIZAÇÃO DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
DEFINIÇÃO PELO TRIBUNAL DAS CONDIÇÕES DO CONTRATO
Nº do Documento: RP20151013229/14.4T8MTS.P1
Data do Acordão: 10/13/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA EM PARTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A nulidade da sentença por oposição entre fundamentos e decisão, reporta-se a contradição resultante de a fundamentação apontar num sentido e a decisão/dispositivo seguir caminho oposto ou direção diferente, inserindo-se no quadro dos vícios formais da sentença, sem contender com questões de substância.
II - O art.º 1793.º do CCiv. reporta-se a situação em que é o Tribunal a dar de arrendamento a um dos cônjuges a casa de morada de família, pelo que pode o Tribunal definir as condições do contrato, incluindo o montante da renda/compensação a pagar ao outro cônjuge, devida, por isso, a partir da decisão fixadora.
III - Faltando, para definição do montante dessa renda, quanto a imóvel que é bem comum dos cônjuges, pontos de sustentação fáctica que permitam uma fixação com exatidão, deve o tribunal julgar equitativamente dentro dos limites que tiver por provados, mormente tendo em conta a situação do cônjuge arrendatário, que tem dois filhos menores ao seu cuidado (art.ºs 1793.º do CCiv. e 987.º do NCPCiv.).
IV - A equidade, como justiça do caso, mostra-se apta a colmatar as incertezas do material probatório, bem como a temperar o rigor de certos resultados de pura subsunção jurídica, na procura da justa composição do litígio, fazendo apelo a dados de razoabilidade e equilíbrio, tal como de normalidade, proporção e adequação às circunstâncias concretas, sem cair no arbítrio ou na mera superação da falta de prova possível.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 229/14.4T8MTS-B.P1
1.ª Secção Cível

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
***
I – Relatório
B…, com os sinais dos autos,
como incidente de autos de divórcio por mútuo consentimento,
em que é também parte C…, também com os sinais dos autos,
veio deduzir e requerer, por apenso, incidente de atribuição da utilização da casa de morada de família, nos termos do disposto nos art.ºs 1793.º do CCiv. e 990.º do NCPCiv.,
pedindo que seja atribuída à Requerente, a título definitivo, a casa de morada de família, bem comum do casal, sita na Rua …, n.º …, ..º, Centro, Matosinhos.
Para tanto, alegou, em síntese, que:
- tendo Requerente e Requerido contraído entre si matrimónio, do qual existem dois filhos menores, a família residiu na casa de morada supra aludida, até que a Requerente, em consequência do comportamento do Requerido, foi obrigada a abandoná-la, como descrito na ação de divórcio, indo viver para casa de seus pais, a cerca de 50 Km de distância do seu local de trabalho, no Porto;
- a Requerente, pretendendo ficar com a guarda dos menores, deverá ficar a viver com eles na casa de morada de família, onde sempre foi o seu espaço, podendo o Requerido ir viver para casa de seus pais, onde fica próximo do seu local de trabalho;
- auferindo a Requerente salário mensal total de cerca de € 700,00, deverá compensar o Requerido contribuindo com metade da prestação bancária referente ao imóvel, incluindo seguros e quotização de condomínio.
O Requerido deduziu oposição, alegando, em síntese, que:
- a Requerente abandonou sem motivo o lar conjugal, pretendendo aquele divorciar-se e ficar com os filhos a residir consigo, como vem acontecendo, correndo termos ação de regulação de responsabilidades parentais;
- o Requerido tem possibilidades de habitar com os menores na casa dos seus pais, que tem boas condições para o efeito, pelo que não se opõe à pretendida utilização da casa de morada de família pela Requerente;
- tratando-se, porém, de bem comum do casal, tem o Requerido direito a compensação a fixar pelo Tribunal, tratando-se de uma fração autónoma de tipologia “T2”, bem localizada e em bom estado de conservação, pelo que, de acordo com os padrões do mercado de arrendamento, terá um valor locativo não inferior a € 500,00;
- existe empréstimo bancário para aquisição do imóvel, sendo de € 353,98 o valor global mensal das prestações devidas para a sua amortização, com acréscimos de prémios se seguro no valor mensal global de € 31,82, a que acresce ainda a quota mensal do condomínio, no valor de € 41,66;
- o Requerido aufere salário mensal líquido de € 655,98, estando que a Requerente no uso exclusivo da casa desde 16/10/2014, sendo equitativo que a compensação a pagar por ela, desde esta data, corresponda a metade das aludidas prestações mensais, no valor global de € 213,73, ou, se assim for entendido, a € 250,00, correspondente a metade do valor locativo aludido.
Requer que seja fixada tal compensação.
Respondeu a Requerente, defendendo que a compensação, a título definitivo, deve ser paga em montante que tenha em conta as suas possibilidades económicas e desde a data da sentença.
Dispensada a produção de provas, foi a Requerente convidada a esclarecer da sua aceitação da fixação de compensação correspondente ao pretendido pelo Requerido.
Ao que aquela veio dizer que, para além da sua quota parte de metade das aludidas prestações mensais, no valor global de € 213,73, tem despesas de sustento, água, energia, comunicações e transportes, bem como de sustento dos dois filhos menores, pelo que sugere que a compensação ao Requerido não ultrapasse os € 30,00 mensais, desde que repartam, entre si, em partes iguais as despesas com prestação bancária, seguros, quotizações do condomínio e IMI.
Respondeu o Requerido, afirmando ser injusto que tenha ele de suportar metade das despesas inerentes à casa, usufruída agora pela Requerente e atual companheiro, antes sendo justa a compensação a pagar por aquela correspondente a metade dessas despesas, como já requerido.
Mediante decisão datada de 15/01/2014, decidiu o Tribunal a quo:
Em consequência, e nos termos do artigo 1778º-A, n.ºs 3 e 6 do C. Civil, atribuo a utilização da casa de morada de família à requerente B…, com a obrigação desta suportar metade dos valores relativos às prestações mensais relativas ao empréstimo bancário contraído para aquisição da referida habitação, respectivos seguros, bem como das despesas de condomínio.” (fls. 61).
Desta decisão veio o Requerido, inconformado, interpor o presente recurso, apresentando as seguintes
Conclusões
«A - O presente recurso é interposto da douta sentença proferida nos autos que decidiu atribuir a utilização da casa de morada de família à Recorrida, com a obrigação desta suportar metade dos valores relativos às prestações mensais relativas ao empréstimo bancário contraído para aquisição daquela habitação, respectivos juros, bem como das despesas de condomínio.
B - Contudo, o recurso é limitado à questão da fixação da compensação a pagar pela Recorrida ao Recorrente pela atribuição do uso da casa àquela.
C - Salvo o devido respeito, entende-se que a sentença proferida padece da nulidade prevista na alínea c), do n.º 1 do art. 615º do CPC, por haver oposição entre a fundamentação e a decisão, e ser ambígua. Com efeito,
O M.mo Juiz "a quo" na fundamentação da sentença considera que o Recorrente tem direito a receber da Recorrida uma compensação, como contrapartida pela atribuição a esta da utilização da casa de morada de família, que é bem comum do casal.
Porém, na decisão não consigna inequivocamente esse direito do Recorrente e aquela correspondente obrigação da Recorrida.
Da decisão apenas resulta que, sendo o bem imóvel comum, os encargos deste relativos ao empréstimo bancário contraído para a sua aquisição, respectivos seguros e despesas de condomínio, devem continuar a ser suportados por Recorrente e Recorrida em partes iguais, fazendo o Tribunal "a quo" corresponder a esta obrigação legal da Recorrida a compensação a suportar por esta pela utilização da habitação.
Assim, na decisão sob recurso não é fixada qualquer compensação para o Recorrente o que é contraditório com a referida fundamentação.
Será porém que, em consonância com o seu entendimento expresso na fundamentação, o Tribunal "a quo" pretendia determinar que se atribui a utilização da casa de morada de família à Recorrida e, como contrapartida esta tem de pagar ao Recorrente uma compensação de montante igual a metade dos valores relativos às prestações mensais relativas ao empréstimo bancário contraído para aquisição da casa, respectivos seguros, bem como despesas de condomínio e a decisão não expressa inequivocamente aquele seu entendimento quanto a esta questão?
D - Igualmente se entende que a douta sentença não tem base fáctica sustentável e indefere o pedido do Recorrente a que seja fixada compensação a pagar pela Recorrida pela atribuição a esta da utilização da casa de morada de família.
E - O Tribunal "a quo" fundamenta a sua decisão dando por provado que entre Recorrente e Recorrida existe um "...acordo quanto ao destino a dar à casa de morada de família, fixando-se a obrigação de a requerente suportar metade das prestações mensais de amortização do empréstimo bancário contraído para aquisição daquela habitação.", porque entende que "... a requerente veio dizer que se encontra a suportar metade da quantia relativa ao empréstimo bancário contraído para aquisição da referida habitação, bem como das despesas de condomínio, retirando-se da sua posição que aceita suportar tais custos" e que "... é precisamente este o pedido formulado pelo requerido: que seja fixada a obrigação de a requerente suportar metade das prestações mensais relativas ao pagamento do empréstimo bancário em causa.".
F - Porém, o acordo entre Recorrente e Recorrida não é tão abrangente e extensível quanto o Tribunal "a quo" o entende ser.
G - Há, efectivamente, acordo quanto à atribuição à Recorrida da casa de morada de família e que esta tem de pagar uma compensação; porém, não há acordo quanto ao montante dessa compensação a pagar ao Recorrente.
H - Este pretende que essa compensação seja do montante de € 213,73, que corresponde ao valor de metade das prestações mensais relativas ao empréstimo bancário contraído para a aquisição do imóvel do casal, respectivos seguros e despesas de condomínio ou que seja no montante de € 250,00, que corresponde a metade do valor mensal locativo do imóvel.
A Recorrida pretende que a compensação seja do montante de € 30,00.
I - A casa de morada de família, sita na Rua …, n.º … - .º Centro, …, Matosinhos, é bem comum do património conjugal de Recorrente e Recorrida.
J - A Recorrida ocupa em exclusivo essa habitação desde 16/10/2014, por a mesma lhe ter sido provisoriamente atribuída no âmbito do processo de divórcio sem consentimento que constitui os autos principais.
L - O Recorrente não se opõe a que a utilização da casa de morada de família, na pendência do processo, seja atribuída à Recorrida.
M - Tal atribuição confere ao Recorrente direito a uma compensação, devida pela Recorrida, a ser fixada nos presentes autos, nos termos do disposto no n.º 7 do art. 913º do CPC e arts. 1778-A e 1793º n.º 2 do Cód. Civil.
N - Neste sentido se decidiu, e a título meramente exemplificativo, nos Acordãos do Tribunal da Relação do Porto de 11/03/2014 (Proc. n.º 5815/07.6TBVNG-K.P1) e de 6/10/2014 (Proc. n.º 3835/11.5TJVNF-C.P1), ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
O - De igual modo, o Tribunal "a quo" entende que assiste esse direito ao Recorrente e que a compensação que lhe é devida deve ser fixada nos presentes autos.
P - E, assim, atribuindo-se o uso e fruição da casa à Recorrida, deve ser fixada uma prestação ao Recorrente, a pagar por aquela, que constitua uma efectiva compensação pela privação do direito de utilização da casa de morada de família.
Q - A decisão recorrida indefere o pedido do Recorrente quanto à fixação dessa compensação, pois que se limita a declarar a obrigação legal do Recorrente e Recorrida de participarem nos encargos do bem comum, na proporção das suas quotas e nos termos regulados nos artigos 1406º e ss. do Cód. Civil.
R - Deste modo, a decisão recorrida não fixa a contrapartida para o Recorrente, devida pela Recorrida a título de compensação do uso e fruição exclusiva por parte desta da casa de morada de família.
S - Viola, pois, a sentença sob recurso as normas dos artigos 1778º-A ns. 3 e 6 e 1793º n.º 1 do Cód. Civil e art. 931º ns. 2 e 7 do Cód. Proc. Civil.
T - Deverá, pois, a sentença recorrida ser parcialmente revogada e, em consequência, ser proferida decisão que consagre e fixe uma compensação ao Recorrente, a pagar pela Recorrida, a quem foi atribuído o uso provisório da casa de morada de família, no valor mensal de € 213,73, devida desde a data em que a Recorrida está no uso exclusivo daquela casa (16/10/2014), até que cesse este uso.
U - Assim não se entendendo, deverá o Tribunal indagar da factualidade alegada pelas partes e da que considere relevante para a fixação de tal compensação e coligir as respectivas provas, fixando o valor que considere adequado, mas nunca inferior àquele montante de € 213,73.».
Pugna pelo provimento do recurso.
Sem contra-alegação recursória, foi o recurso admitido como de apelação [1], a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo, tendo sido ordenada a remessa dos autos a este Tribunal ad quem, onde foi mantido o regime e efeito assim fixados.
Nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir.
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II – Âmbito do Recurso
Perante o teor das conclusões formuladas pela parte recorrente – as quais (excetuando questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso, nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil atualmente em vigor e aqui aplicável (doravante NCPCiv.), o aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06 [2] –, constata-se que o thema decidendum consiste em saber:
1. - Se ocorre nulidade da decisão recorrida (art.º 615.º, n.º 1, al.ª c), do NCPCiv.);
2. - Se deve fixar-se a compensação pretendida a favor do Apelante/Requerido e em que montante.
***
III – Fundamentação
A) Da matéria apurada
A materialidade apurada, com relevância para a decisão do recurso, é a constante do antecedente relatório, a que acresce o teor da decisão recorrida, na qual pode ler-se, em sede de fundamentação:
«No seguimento do nosso despacho de 24 de Novembro (fls. 29 a 33) veio a requerente pronunciar-se pela fixação de uma compensação pela utilização da casa de morada de família no valor mensal de 30,00 € (fls. 37 e seguintes).
No seu requerimento a requerente veio dizer que se encontra a suportar metade da quantia relativa ao empréstimo bancário contraído para aquisição da referida habitação, bem como das despesas com condomínio, retirando-se da sua posição que aceita continuar a suportar tais custos.
Ora é precisamente este o pedido formulado pelo requerido: que seja fixada a obrigação de a requerente suportar metade das prestações mensais relativas ao pagamento do empréstimo bancário em causa.
Assim sendo parece-nos evidente que as partes estão de acordo quanto ao destino a dará à casa de morada de família, fixando-se a obrigação de a requerente suportar metade das prestações mensais de amortização do empréstimo bancário contraído para aquisição daquela habitação.».

B) Da nulidade da sentença
Invoca o Apelante que a sentença recorrida incorreu em violação do disposto no art.º 615.º, n.º 1, al.ª c), do NCPCiv., tratando-se, assim, dos vícios de oposição entre fundamentos e decisão ou existência de ambiguidade.
Cabia, por isso, ao Apelante, argumentando sobre o tema, mostrar onde se encontram consubstanciados na sentença apelada aqueles vícios geradores de nulidade da mesma, o que devia ser feito mas conclusões da apelação, já que estas, como dito, definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso.
Na verdade, como se retira do disposto no art.º 639.º, n.º 1, do NCPCiv., cabe ao Recorrente, nas suas conclusões, indicar os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
Em seguida se verá se o fez.
Conclui o Apelante que a nulidade decorre de na fundamentação da sentença se considerar ter ele direito a receber da Recorrida uma compensação, como contrapartida pela atribuição a esta da utilização da casa de morada de família, que é bem comum do casal, e no dispositivo decisório não se consignar esse direito e a correspondente obrigação da Recorrida.
Isto por da decisão apenas resultar que, sendo o bem imóvel comum, os encargos com o empréstimo bancário (contraído para a sua aquisição), respetivos seguros e despesas de condomínio, deverem continuar a ser suportados por Recorrente e Recorrida, em partes iguais, fazendo o Tribunal corresponder a esta obrigação legal da Recorrida a compensação a suportar por esta pela utilização da habitação, o que se traduz na não fixação de qualquer compensação em favor do Requerido, que se vê privado do uso do imóvel.
Tal falta de fixação de compensação a favor do Recorrente é que seria contraditória com a referida fundamentação da decisão.
Comecemos, então, pela fundamentação da decisão em crise.
Ali, de facto, parte-se – e bem – do pressuposto de que cabe fixar, para além da atribuição da casa de morada de família, uma compensação (em dinheiro) – aliás, pedida pelo Requerido – pela utilização dessa casa por parte da Requerente, avançando esta última até um valor compensatório mensal de € 30,00 ao Requerido, valor que este não aceitou, pretendendo o correspondente a € 213,73 ou € 250,00 mensais (cfr. fls. 17 e 18).
Porém, depois considera-se na fundamentação que a Requerente afirmou suportar metade da quantia relativa ao empréstimo bancário contraído para aquisição da habitação, bem como das despesas com condomínio, retirando-se da sua posição que aceita continuar a suportar tais custos, o que também é exato.
E logo se continua que é precisamente este o pedido formulado pelo requerido, o de que seja fixada a obrigação de a Requerente suportar metade das prestações mensais relativas ao pagamento do empréstimo bancário em causa.
Só que esse pedido era de pagamento – de uma quantia correspondente/equivalente, no mesmo montante – a favor do próprio Requerente, sem prejuízo de a Requerida continuar a satisfazer a parte/metade que lhe cabia dessas prestações.
Daí que haja equívoco na conclusão da fundamentação da decisão no sentido de haver acordo das partes na fixação da obrigação, sem mais, de a Requerente suportar metade das prestações mensais de amortização do empréstimo bancário contraído para aquisição daquela habitação.
O que equivale, na prática, à não prestação de qualquer compensação ao Requerido (cada um paga metade dos encargos do bem comum, a Requerente usa exclusivamente a casa, embora bem comum, e o Requerido nada recebe de compensação pela perda do respetivo uso).
Daí que assista razão ao Requerido/Apelante ao concluir que há contradição entre a previsão na fundamentação da decisão de uma compensação a seu favor e de essa compensação acabar afastada, na prática, no dispositivo decisório.
Com efeito, dispõe o preceito legal aplicável, desde logo, que é nula a sentença quando “os fundamentos estejam em oposição com a decisão”. Trata-se, por isso, de contradição resultante de a fundamentação da sentença apontar num sentido e a decisão seguir caminho oposto ou direcção diferente [3], inserindo-se no quadro dos vícios formais da sentença, tal como elencados nos art.ºs 667.º e 668.º do anterior CPCiv. [4] – hoje art.ºs 614.º e seg. do NCPCiv. –, sem contender, pois, com questões de substância, que, como tais, já se prendem com o mérito, e não com o âmbito formal.
Cabia, pois, a tal Apelante sinalizar/sintetizar, nas suas conclusões, onde se encontra tal oposição/contradição, por forma a evidenciar o vício invocado.
O que, como visto, logrou conseguir, havendo oposição entre fundamentos e decisão, na parte aludida, posto que, sendo a casa de morada de família bem comum, é inequívoco que lhe assiste o direito a uma compensação/renda, nos moldes previstos no art.º 1793.º do CCiv., a qual, embora prevista na fundamentação, está praticamente ausente do dispositivo da sentença em crise.
Ocorre, pois, a nulidade invocada, a qual se suprirá seguidamente, mediante a adequada ponderação da matéria atinente à dita compensação, de acordo com os parâmetros daquele art.º 1793.º, bem como do art.º 990.º do NCPCiv., e ainda à luz dos critérios da equidade, já que nos movemos no âmbito dos processos de jurisdição voluntária (cfr. art.º 987.º do NCPCiv.).

C) Da compensação/renda e seu montante
Dispõe o art.º 1793.º do CCiv. que pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada de família, designadamente quando seja bem comum, tendo em consideração, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal (n.º 1).
Tal arrendamento fica sujeito às regras do arrendamento para habitação, podendo o Tribunal definir as condições do contrato, ouvidos os cônjuges.
No caso, não está em questão a qual dos cônjuges é o imóvel dado de arrendamento, pois que as partes acordaram em que o seria à Requerente.
O único problema a solucionar tem a ver, em sede de condições do contrato, com o montante da compensação/renda a pagar ao Requerido, que nada receberia se vingasse o decidido na sentença (cada um deles continuar a satisfazer a sua metade nos encargos com o imóvel).
Na verdade, a Requerente/Apelada, para além de suportar tal metade, do mesmo modo que o Requerido/Apelante – trata-se de bem comum, cujos encargos a ambos responsabilizam em partes iguais –, tem de prestar ao Requerido a dita compensação/renda pelo uso exclusivo por ela (excluindo-o a ele, por consequência) do imóvel comum.
Assente, pois, a necessidade de compensação – a própria Requerente/Apelada disponibilizava-se a compensar com € 30,00 mensais ao Requerido –, cabe fixar o seu quantum, pretendendo agora o Apelante montante substancialmente superior, o de € 213,73, como consta da conclusão T) da sua peça recursória.
Como referem Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira [5], “Não cremos que o tribunal deva fixar a renda, sempre, de acordo com os valores do mercado, desconsiderando a situação patrimonial dos cônjuges, o que poderia inviabilizar na prática os objetivos da lei; uma renda que tomando em consideração as circunstâncias do caso e, em particular, a situação do cônjuge arrendatário não ande muito longe do valor da renda condicionada corresponderá em geral a esses objectivos. De todo o modo, o facto de o tribunal ter dado de arrendamento a um dos cônjuges a casa de morada de família e o montante da renda devem ser tomados em conta na fixação da prestação de alimentos que eventualmente seja pedida”.
In casu, como dito, tratando-se de processo de jurisdição voluntária, o Juiz não está sujeito a soluções de legalidade estrita, podendo – e devendo – socorrer-se dos critérios da equidade, de molde a obter uma solução mais justa no quadro das circunstâncias concretas do caso.
Na verdade, dispensada – sem controvérsia face ao despacho respetivo – a produção de provas pelas partes (cfr. fls. 33), subsistem os critérios a que haverá de lançar mão o Julgador no âmbito do juízo de equidade [6].
Ora, “a equidade que atravessa todo o juízo valorativo para o cálculo possível de um dano (…) para que assuma verdadeiramente essa natureza de justiça do caso, na conhecida definição aristotélica, tem de funcionar nos dois sentidos, como é disso afloramento o que diz o artigo 494.º, do Código Civil. Deve tratar-se igual o que é igual; e diferente o que é diferente!” [7].
E como já explicitado na Relação de Lisboa, citando doutrina autorizada, «“a equidade é a resposta àquelas perguntas em que está em causa o que é justo ou o que é mais justo. E funciona em casos muito restritos, algumas vezes para colmatar as incertezas do material probatório; noutras para corrigir as arestas de uma pura subsunção legal, quando encarada em abstracto… A equidade, exactamente entendida, não traduz uma intenção distinta da intenção jurídica, é antes um elemento essencial da jurisdicidade… A equidade é, pois, a expressão da justiça num dado caso concreto… não equivale ao arbítrio; é mesmo a sua negação… é uma justiça de proporção, de adequação às circunstâncias, de equilíbrio. Quando se faz apelo a critérios de equidade, pretende-se somente encontrar aquilo que, no caso concreto, pode ser a solução mais justa; a equidade está assim limitada sempre pelos imperativos da justiça real (a justiça ajustada às circunstâncias), em oposição à justiça meramente formal” (Dário Martins de Almeida, Manual de Acidentes de Viação, 2.ª ed., págs. 103/105)» [8].
No caso, não se trata de recorrer à equidade para contornar questões de falta de prova de factos que devessem ser provados (tendo em conta até o anterior processado em 1.ª instância, sem controvérsia das partes, como dito), mas antes, dentro dos limites do que foi tido por apurado, encontrar a justa retribuição/compensação/renda para um contrato, cujas condições o Tribunal pode definir, em que o arrendamento incide sobre bem comum (de senhorio e arrendatário), na sequência de rutura da vida conjugal e em que há dois filhos menores, que ficarão a residir com a mãe no imóvel.
Importa, pois, encontrar aqui, em equidade, uma justiça de reparação familiar, sem sacrificar os interesses de nenhuma das partes.
Assim, valorando, neste âmbito, o factualismo apurado, e os aludidos critérios legais, fundados em elementos de ponderação também previstos na lei, tudo como supra referido, e vista a situação patrimonial de Requerente e Requerido, sendo que aquela ficará com os dois filhos menores a seu cuidado, e sem prejuízo de ulterior consideração eventual do montante de renda no âmbito da fixação de alimentos, parece ajustada a ponderação que atribua uma compensação/renda de € 120,00 mensais ao Apelante.
Como, por outro lado, é o Tribunal a definir nesta parte as condições do contrato (montante da renda/compensação), esta só é devida desde o tempo da sua fixação, sito é, da decisão final, e não antes.
Em tudo o mais é de manter a decisão recorrida, com atribuição/arrendamento da casa de morada de família à Requerente/Apelada – matéria, aliás, não impugnada no recurso – e suporte por Requerente e Requerido dos aludidos encargos na proporção de metade.
Termos em que a apelação procede parcialmente, devendo, em conformidade, alterar-se a decisão recorrida.
***
IV – Sumariando (art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv.):
1. - A nulidade da sentença por oposição entre fundamentos e decisão, reporta-se a contradição resultante de a fundamentação apontar num sentido e a decisão/dispositivo seguir caminho oposto ou direção diferente, inserindo-se no quadro dos vícios formais da sentença, sem contender com questões de substância.
2. - O art.º 1793.º do CCiv. reporta-se a situação em que é o Tribunal a dar de arrendamento a um dos cônjuges a casa de morada de família, pelo que pode o Tribunal definir as condições do contrato, incluindo o montante da renda/compensação a pagar ao outro cônjuge, devida, por isso, a partir da decisão fixadora.
3. - Faltando, para definição do montante dessa renda, quanto a imóvel que é bem comum dos cônjuges, pontos de sustentação fáctica que permitam uma fixação com exatidão, deve o tribunal julgar equitativamente dentro dos limites que tiver por provados, mormente tendo em conta a situação do cônjuge arrendatário, que tem dois filhos menores ao seu cuidado (art.ºs 1793.º do CCiv. e 987.º do NCPCiv.).
4. - A equidade, como justiça do caso, mostra-se apta a colmatar as incertezas do material probatório, bem como a temperar o rigor de certos resultados de pura subsunção jurídica, na procura da justa composição do litígio, fazendo apelo a dados de razoabilidade e equilíbrio, tal como de normalidade, proporção e adequação às circunstâncias concretas, sem cair no arbítrio ou na mera superação da falta de prova possível.
***
V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em:
a) Julgar parcialmente procedente a apelação, alterando a decisão recorrida, assim fixando a compensação/renda a pagar pela Requerente/Apelada ao Requerido/Apelante, pela utilização por aquela da casa de morada de família, no montante de € 120,00 (cento e vinte euros) mensais, a contar da data da decisão fixadora.
b) Julgar no mais improcedente a apelação.
Custas da apelação por Requerente/Apelada e Requerido/Apelante na proporção do respetivo decaimento.
Escrito e revisto pelo relator.
Elaborado em computador.

Porto, 13/10/2015
Vítor Amaral
Luís Cravo
Fernando Samões
_________
[1] Sem pronúncia sobre a arguida nulidade da sentença (cfr. al.ª C) das conclusões recursórias e despacho admissão de fls. 97, bem como art.º 615.º, n.º 1, al.ª c), e 617.º, n.º 1, ambos do NCPCiv.), não sendo, porém, indispensável a baixa do processo para prática do ato jurisdicional omitido (n.º 5 do mesmo art.º 617.º), o que redundaria em maior morosidade processual.
[2] Processo instaurado após 01/09/2013 (cfr. art.º 8.º da Lei n.º 41/2013, de 26-06).
[3] Assim o Ac. STJ, de 14/01/2010, Proc. 2299/05.7TBMGR.C1.S1 (Cons. Oliveira Vasconcelos), com sumário disponível em www.dgsi.pt.
[4] Cfr., por todos, o Ac. STJ, de 23/05/2006, Proc. 06A1090 (Cons. Sebastião Póvoas), em www.dgsi.pt.
[5] Em Curso de Direito da Família, vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2008, pág. 676.
[6] Esta, como escrito no Ac. do STJ de 07/07/2009, Proc. 704/09.9TBNF.S1 (Cons. Fonseca Ramos), in www.dgsi.pt, «é um “Termo de procedência latina (aequitas) com o significado etimológico e corrente de “igualdade”, “proporção”, “justiça”, “conveniência”, “moderação”, “indulgência”, é utilizado na linguagem da ética e das ciências jurídicas sobretudo para designar a adequação das leis humanas e do direito às necessidades sociais e às circunstâncias das situações singulares (a equidade é, por assim dizer, a “justiça do caso concreto”)».
[7] Assim o Ac. STJ, de 04/04/2002, Proc. 02B205 (Cons. Neves Ribeiro), in www.dgsi.pt.
[8] Cfr. Ac. Rel. Lisboa, de 29/06/2006, Proc. 4860/2006-6 (Rel. Carlos Valverde), in www.dgsi.pt.