Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3743/11.0TBSTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA GRAÇA MIRA
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
PRISÃO PREVENTIVA
PRISÃO MANIFESTAMENTE ILEGAL
Nº do Documento: RP201509293743/11.0TBSTS.P1
Data do Acordão: 09/29/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Para que surja o direito de indemnizar por parte do Estado não basta que a detenção ou prisão preventiva seja ilegal. É ainda necessário que seja “manifestamente ilegal” ou que tenha havido erro grosseiro sobre a apreciação dos respectivos pressupostos de facto.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: 3743/11.0TBSTS.P1

Acordam na Secção Cível (1ª Secção), do Tribunal da Relação do Porto:
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I – B… veio deduzir contra o Estado Português acção declarativa, sob a forma ordinária, pedindo a condenação do Réu a pagar-lhe a quantia de €75.000, acrescida de juros de mora à taxa legal.
Fundamentou o Autor a sua pretensão no facto de ter sido, em 03 de Julho de 2002, detido e preventivamente preso, no âmbito de inquérito que corria nos serviços do M.P. de V. N. de Gaia, só em Junho de 2003 tendo sido libertado, tendo sido, após a realização do respectivo julgamento, absolvido, absolvição que foi confirmada por Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07/07/2010, entretanto transitado em julgado, pelo que esteve injustificadamente preso pelo período referido.
Mais alegou a sua condição de pessoa de bem, bom pai, marido, vizinho e funcionário judicial, enumerando os danos não patrimoniais sofridos com a reclusão.
O Réu contestou, alegando que a detenção e decretamento da prisão preventiva foram ordenadas e mantidas por despachos proferidos por magistrados competentes para o efeito e dentro do quadro legal, por decisões que transitaram em julgado após recursos interpostos pelo arguido, pelo que não está em causa a sua legalidade, de modo a poder dizer-se que se está perante actos ilícitos.
Mais alegou que, ainda que os despachos proferidos em 1ª instância tivessem sido revogados, seria ainda necessário, para haver lugar a indemnização, que tal revogação resultasse de uma situação de manifesta, objectiva e deficiente aplicação das leis, e não de uma aplicação que, embora não tenha sido a melhor, resulte de uma interpretação possível e aceitável.
Alegou ainda o Ré que, não sendo as decisões em causa manifestamente ilegais, não resultaram também de erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependeu a previsão preventiva, antes se revelando justificada, quando proferidas, a conclusão pela necessidade da prisão preventiva do Autor, não constituindo a sua posterior absolvição, que está a jusante do decretamento e manutenção daquela, fundamento para a acção.
Impugnou também o Réu a matéria concernente à personalidade do Autor e danos pelo mesmo alegados, terminando por considerar exagerado o valor da indemnização peticionada e pugnando pela improcedência da acção e sua absolvição.
Foi proferido despacho saneador, onde se afirmou a validade e regularidade da instância.
Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento e, oportunamente, foi proferida a respectiva sentença que julgou a acção totalmente improcedente e, em consequência, absolveu o Réu Estado Português do pedido formulado pelo Autor B….
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Inconformado, o A. recorreu e apresentaram as respectivas alegações onde, nas conclusões, defende que:
1. A decisão que determinou a prisão preventiva do A. considerou fortemente indiciada a prática de várias infracções cuja prova não dependia, muito menos essencialmente, do depoimento de outras pessoas. Dependia de prova pericial, e, documental, pois para que o Autor tivesse praticado tais crimes era absolutamente essencial dar por indiciado o aproveitamento económico obtido com a sua actividade.
2. Muito embora lícita quanto aos cânones processuais cabíveis, a perduração de uma situação de privação de liberdade pelo período de cinco meses, que a final do processo instrutor se veio a revelar injustificada, é, de per si, em abstracto, e segundo qualquer padrão aferidor de carácter objectivo, particularmente grave e de especial danosidade para a esfera jurídico-pessoal de qualquer cidadão médio em termos de comportamento cívico, isto é, para o cidadão que é suposto ser o querido pela ordem jurídica.
3. A absolvição é nesta como em qualquer acção deste tipo, perante a lei vigente, uma condição indispensável para que possa colocar-se a questão sobre a existência do dever do estado indemnizar um seu cidadão pelos prejuízos que sofreu na sua esfera jurídica com uma decisão judicial que determinou a sua prisão preventiva.
4. Será sempre possível que em relação a qualquer cidadão que sejam dados como provados factos que, em conjunto com outros (que quedaram por demonstrar), poderiam levar à sua condenação criminal.
5. Não são as meras hipóteses, possíveis na imaginação dos homens, mas descredibilizadas perante o direito criminal que determinam a punição dos criminosos e só dos criminosos, presumindo-se a inocência de qualquer indiciado, até ao momento final do processo.
6. Só há duas qualidades de arguidos: os condenados e os absolvidos. Não, por isso, um meio termo, sejam quais forem as suspeitas que se construíram à volta deles, das histórias que encheram os jornais e construíram «as convicções».
7. A mera circunstância de uma decisão errada ser confirmada por outra decisão errada de um tribunal superior, não afasta de per si o erro anterior!
8. Nem a sentença recorrida, nem a decisão que determinou a prisão preventiva do A., nem o despacho que determinou a sua libertação indicam de forma que possa perceber-se, qual seja a demais factualidade indiciada no processo que, conjugada com a casa com piscina e um Volvo …, referidos pelo A., até no seu primeiro interrogatório, permitam concluir como fortemente indiciada a recepção de contrapartidas monetárias de elevado valor dos demais arguidos por participar nas indiciadas condutas criminosas destes, sobretudo a partir dos tais sinais de desafogo económico que todos dizem espelhado nessa casa e nesse carro.
9. O processo crime desenvolveu-se e, nem durante a investigação criminal, nem na sentença recorrida se tentou perceber que factos estavam indiciados contentando-se, com uma realidade virtual, sem suporte fáctico mas ali dada como indiciada.
10. A conclusão de que o Autor enriqueceu ilicitamente, foi rápida, persistente e arruinadora da vida do A..
11. Deu-se por suficientemente indiciado que o A. enriqueceu ilicitamente e apresentava sinais exteriores de riqueza, mas não há uma conta bancária que tenha «as gordas somas de dinheiro de que fala a PJ relativamente a outros arguidos», não se fala de vida extravagante que perca no casino diariamente fortunas, nem de colocação de avultadas quantias monetárias em paraísos fiscais, ou de luxuosas férias nas Caraíbas.
12. São absolutamente inexistentes indícios os indícios que, antes e depois do despacho que determinou a prisão preventiva do A. pudessem demonstrar ou comprovar qualquer enriquecimento ilícito do mesmo Autor, porque, de facto, não existiu nem nunca existiu qualquer elemento de enriquecimento.
13. O despacho que determinou a prisão preventiva do A., como consta da certidão emitida – fls. 31 e segs da certidão – vol I das certidões juntas antes da sentença recorrida – consta de fls. 7309 do processo criminal - louva-se nos Pontos 4.1.; 4.1.11. a 4.1.16; 4.2.1. a 4.2.9., do relatório intercalar junto aos autos.
14. Um relatório intercalar não é um elemento de prova!
15. É um resumo da investigação, elaborado pela polícia Judiciária, onde se dá conta dos actos de investigação efectuados e se retiram conclusões de suposições que orientavam a investigação policial.
16. Não há nem nunca houve no processo uma qualquer declaração, de um qualquer dos arguidos ou testemunha, dizendo que pagaram qualquer contrapartida ao A., ou que ele tenha recebido qualquer benefício com as leiloeiras, os liquidatários, as falências, a venda de qualquer bem de qualquer massa falida.
17. Não há nem nunca houve qualquer indicação de que alguém pagou ao A. fosse o que fosse em contrapartida de qualquer actuação menos licita, de partilha de lucros ilícitos nas vendas de bens das diversas massas falidas, ou da sua forma de cumprir ou não cumprir os processos de falência.
18. Não há qualquer referência a que o A. dispusesse de um nível de vida desafogado, superior ao normal.
19. Não há no processo, nem havia no momento em que foi determinada a sua prisão, qualquer indicação sobre o valor da casa ou da piscina do A., ou do Volvo …, que pudessem indicar estar-se perante riqueza de proveniência ilícita do A.
20. Se se pode admitir que um polícia investigador ache que se a casa tem piscina isso é um sinal evidente de riqueza excepcional, o mesmo não se diga do juiz que determina a prisão de um cidadão, indicando que os seus sinais exteriores de riqueza são de molde a admitir como provável a sua proveniência criminosa, não pode ficar por ignorar quanto vale a tal casa, em Santo Tirso que tem piscina.
21. Quando se decide a prisão privativa de alguém, tal decisão será sempre e necessariamente temerária e grosseiramente errada, se para ela concorreram indícios de enriquecimento ilícito que se esgotam numa casa com piscina que se não descreve nem avalia, e num veículo Volvo ….
22. Ter uma casa própria, em Portugal como em outro qualquer lugar, não é um sinal exterior de riqueza.
23. A indicação de um património que se identifica por referência exclusiva a 2 bens: a casa e o volvo, sem indicação, pelo menos, do seu valor aproximado, não faz a concretização mínima, facilmente alcançável, e absolutamente indispensável para que o Sr. Juiz que determinou a prisão pudesse ponderar se, os indícios de que dispunha eram efectivamente ponderosos para que o A. fosse privado da sua liberdade.
24. A prova indiciária, tal como analisada pela polícia Judiciária no seu relatório intercalar, é por ela (polícia) tida por muito consistente, cheia de suspeitas pelos encontros e conversas frequentes do A. com os demais arguidos. Assenta quase exclusivamente em escutas telefónicas e fotografias de encontros havidos entre os diversos arguidos, numa lógica algo paradoxal.
25. Nunca se mostra o mais pequeno indício de que pessoalmente beneficiou com qualquer um dos negócios ilícitos em que se disse que teve intervenção.
26. A alegada prova indiciária resulta das escutas telefónicas e da interpretação que delas fez a polícia Judiciária, mostra-se desacompanhada dos mais elementares elementos confirmativos, como indicado sobre a situação de riqueza do A. que se poderia obter – caso se pretendesse com objectividade indiciá-la – fosse na matriz, na Conservatória do Registo Predial, na entidade bancária que concedeu o empréstimo para habitação, na marca que vendeu o volvo.
27. O Sr. Juiz que determinou a prisão não fez uma leitura critica do que lhe ofereceu a polícia Judiciária sobre as condições de vida do A..
28. Relativamente ao A., mais do que conversas ao telefone, com interpretações muito imaginativas da polícia Judiciária em muitas situações, não havia nem nunca foram encontrados indícios fosse da prática de crimes, fosse da perigosidade de continuação da actividade criminosa ou de destruição da prova.
29. O A. foi mantido meses e meses em prisão preventiva, acusado de numerosos e graves crimes que teriam conduzido ou estariam a conduzi-lo ao enriquecimento ilícito, sem que, contudo, existissem quaisquer indícios sérios de que houvesse qualquer enriquecimento.
30. Essa falta de indícios das actuações criminosas que lhe eram imputadas eram contemporâneos do momento em que foi determinada a sua prisão. Não se perderam, ou destruíram posteriormente!
31. A prisão preventiva do A. é formalmente legal. Foi determinada por um juiz, depois de ouvir o arguido e mostra-se fundamentada. Mas ao invocar-se que tal decisão foi injusta, injustificada e encerra em si um erro grosseiro, ou, pelo menos temerário, coloca-se perante este tribunal a necessidade de avaliar se, mesmo sendo formalmente legal, ela está suportada em indícios que razoavelmente se apresentem para um qualquer cidadão como suficientes para privar, preventivamente da liberdade qualquer pessoa, seja porque tempo for.
32. O A. não tem que provar perante o Tribunal cível que está inocente. O Tribunal criminal já o declarou, urbi et orbi e de forma definitiva!
33. Impõe-se que se declare, com a lucidez que a distancia sobre os acontecimentos permite, sem a pressão do tempo, do cansaço, da comunicação social, e outras que porventura rodearam a decisão que determinou a prisão proferida às 3h e 30m, com a objectividade que se exige do Tribunal, com o sentido de justiça e isenção, mesmo perante os seus pares, deste órgão de soberania, que, tal decisão tomou como certo o que não existia, e, leu os resumos da policia Judiciárias sobre as suspeitas, - não sobre os factos ou indícios de factos - que essa polícia tinha sobre os arguidos como se se tratasse de vários factos que, inevitavelmente conduziriam á condenação do A., pela prática dos crimes pelos quais estava indiciado.
34. O despacho em que se determinou a libertação do Autor, ao referir que “só agora completa e exaustivamente analisados, através, nomeadamente dos exame periciais, resulta que a conduta deste arguido não reveste o grau de ilicitude dos demais, nomeadamente no que toca ao aproveitamento e montante das vantagens patrimoniais dos ilícitos praticados.”, reconhece ou confessa a persistente inexistência, ao longo de todo o período em que durou a prisão preventiva, de quaisquer indícios dos crimes pelos quais o Autor foi acusado, uma vez que desde sempre inexistiram indícios de que o Autor havia enriquecido ilicitamente.
35. Só decorridos muitos meses de cativeiro alguém analisou completa e exaustivamente os autos, e tal não aconteceu face a novos elementos de prova carreados pela prova pericial.
36. Refere a sentença recorrida que houve entretanto a produção de prova pericial, pretendendo que foi esta que veio fazer luz sobre o assunto.
37. Ou seja, perante a inexistência de provas de enriquecimento, o tribunal fez com que o Autor esperasse preso por um relatório pericial que sempre poderia ter sido feito em semanas.
38. O A. sofreu uma longa prisão preventiva, injustificada porque se cometeu um erro grosseiro/temerário na análise dos indícios da prática de crime.
39. Tal situação foi causa necessária e adequada dos danos que o A. sofreu, e que perdurarão na sua vida em que aqui e ali será sempre alvo dessa referência estigmatizante de ter estado preso.
40. Neste processo, não se poderá dar ao Autor a liberdade que lhe foi extorquida, mas pode o tribunal poupá-lo a uma outra negação dos seus direitos, atribuindo-lhe a indemnização justa a que tem direito.
NESTES TERMOS, revogando-se a sentença recorrida e julgando-se procedente a acção, condenando o R. no pedido, fará este tribunal a mais sã JUSTIÇA.

O Recorrido, representado pelo Ministério Público, respondeu pugnando pela improcedência deste recurso e consequente confirmação da sentença recorrida

II – Corridos os vistos, cumpre decidir.
É, ressalvando as de conhecimento oficioso, pelo teor das conclusões do/a recorrente que se delimitam as questões a apreciar no âmbito do recurso (arts. 608º, n.º 2, 635º, n.º 4 e 639º do C.P.C.)
Assim (não obstante a extensão das transcritas conclusões), temos a decidir uma única questão:
- a de saber se a decisão judicial que determinou a prisão preventiva do A., embora formalmente legal, foi injusta, injustificada e encerra em si um erro grosseiro, ou, pelo menos temerário que justifique o pedido indemnizatório por ele formulado, ou não.
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Como factos provados temos os seguintes:
A) Em 03 de Julho de 2002, o Autor foi detido e preventivamente preso, no âmbito de um inquérito que sob o n.º 3127/00.5JAPRT, corria então os seus termos pelas Serviços do Ministério Público de Vila Nova de Gaia.
B) Consta do despacho, constante de fls. 2356 a 2367 e aqui dado por reproduzido, que o Autor «... tentou intermediar negócios entre o leiloeiro C… e o investidor D…, estando igualmente demonstrado que tentou comercializar viaturas que não se encontravam legalizadas.»
C) «... teve conhecimento de todas as manobras relativas à falida «K…», sabendo perfeitamente que foi pago um diferencial por fora, correspondente ao valor real da venda e ao valor constante do processo, actuando de modo a beneficiar uns parentes seus nessa compra.»
D) «... fez uma proposta em nome dos bombeiros, recomendando ao liquidatário que sensibilizasse a comissão de credores para a adjudicação do bem em favor daqueles. De salientar que foi por si referido que os bombeiros foram atestar a piscina à sua propriedade.»
E) «... a matéria relatada, pela Sra. Juiz no auto de inquirição acima referido revela coincidências no mínimo estranhas e procedimentos que, caso não fossem detectados, poderiam ter consequências graves».
F) Refere-se ainda que o ora Autor «... confirmou o teor fls. 66 do apenso VI onde o arguido E… lhe pede para “botar a mão no tribunal” prometendo que lhe pagaria. »
G) O ora Autor seria possuidor de «... uma casa com piscina e um Volvo ….»
H) O ora Autor recorreu do despacho que determinou inicialmente a prisão preventiva, depois dos despachos que mantiveram essa prisão, sendo que no Acórdão do TRP de 10/2002, constante de fls. 2544 a 2548 e aqui dado por reproduzido, consta que o Autor ”… como mentor do referido grupo e dirigente do mesmo, recebia e dava a ganhar avultadas quantias obtidas por via fraudulenta na liquidação dos activos das falidas, como no caso das falências da “F…”, “G…”, e “H…, S. A.”.
I) Em Junho de 2003 é que o Ministério Público promoveu, segundo o despacho que determinou a libertação do Autor, constante de fls. 62 a 65 e aqui dado por reproduzido, a “libertação do arguido B…, alegando, em síntese, que da análise da prova produzida, o arguido tem uma intervenção menor nos crimes em investigação, existindo uma atenuação das exigências cautelares que determinaram a aplicação da prisão preventiva.”
J) No despacho que determinou a libertação do Autor, com data de 13 de Junho, na sequência da dita promoção, o Mmo Juiz de instrução acrescenta que ”A investigação está praticamente concluída e dos elementos de prova carreados para os autos e só agora completa e exaustivamente analisados, através, nomeadamente exames periciais, resulta que a conduta deste arguido não reveste o grau de ilicitude dos demais, nomeadamente no que toca ao aproveitamento e montante das vantagens patrimoniais dos ilícitos praticados.”
K) O Autor foi libertado em Junho de 2003, tendo o julgamento terminado com a prolação de um acórdão em 5 de Janeiro de 2009, o qual concluiu com a absolvição do arguido.
L) Do Acórdão, constante de fls. 2859 a 3454 e aqui dado por reproduzido, consta “…relativamente aos arguidos B…, L..., I… e que se prendem com o recebimento de dinheiro por parte das leiloeiras e/ou liquidatários, refira-se que não foi produzida prova no sentido de que algum dos liquidatários/arguidos tivesse entregue contrapartidas aos funcionários, nem que os mesmos tivessem conhecimento de tais pagamentos por parte das leiloeiras.”
M) Da absolvição do Autor recorreu ainda o Ministério Público.
N) Porém, por acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07/07/2010, a absolvição do Autor foi confirmada.
O) Sendo que deste acórdão foi requerida a respectiva aclaração, julgada por novo acórdão de 20/10/2010, que não alterou o anteriormente decidido relativamente ao ora Autor.
P) Após ter sido proferido o Acórdão de Outubro de 2002 que negou provimento ao recurso do despacho que ordenou a sua prisão preventiva, e na sequência do pedido formulado pelo Autor de alteração do decretamento da prisão preventiva, por despacho do respectivo magistrado judicial, foi entendido não se verificar a atenuação das exigências cautelares que determinaram a prisão preventiva do Autor e, em consequência, foi decidido que o arguido continuasse a aguardar os ulteriores termos processuais em tal situação.
Q) Também deste despacho interpôs recurso o Autor para o Tribunal da Relação do Porto.
R) Que voltou a negar provimento ao mesmo e a confirmar o despacho recorrido, por Acórdão de 18 de Dezembro de 2002.
S) Mais uma vez, na sequência do pedido formulado pelo Autor de alteração do decretamento da prisão preventiva, veio o mesmo a ser indeferido por despacho de 30 de Janeiro de 2003.
T) De tal despacho o arguido interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto.
U) Voltou esse Tribunal, por Acórdão de 19 de Março de 2003, a negar provimento ao mesmo e confirmar o despacho recorrido.
V) Todas estas decisões judiciais transitaram em julgado.
X) O Autor sempre cuidou de toda a sua família como pai e marido.
Z) Com a sua esposa, construiu uma família no seio da qual gostava (e gosta) de viver.
AA) À data da sua detenção, as suas relações de vizinhança eram exemplares.
BB) Era um funcionário judicial que sempre cumpriu com as suas obrigações, tendo inclusive visto ser classificado com um Muito Bom o desempenho de tais funções.
CC) Durante o período em que esteve privado da sua liberdade pessoal, o Autor sofreu limitações físicas.
DD) Foi forçado a conviver com práticas marginais.
EE) Teve frio muitas vezes.
FF) Teve que obedecer a rígidos horários.
GG) Teve saudades, angústias, depressões (que ainda o afligem).
HH) Foi socialmente estigmatizado.
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Apreciando.
Como vemos, a pretensão do A. assenta nos pressupostos da responsabilidade civil do Estado - artºs 22º, 27º, nº5, da CRP, 225º, do CPP e 483º, do CC e a questão que nos é colocada encontra directamente resposta na previsão do dispositivo legal citado em penúltimo lugar, i.e., o artº 225º, do CPP - inserido no capítulo V deste diploma – Da indemnização por privação da liberdade ilegal ou injustificada.
É indiscutível (até o Recorrente se conforma com isso, pois nada alega em contrário no discurso argumentativo que usa nas transcritas conclusões), tal como refere o Tribunal a quo na decisão atacada (onde é citada jurisprudência do nosso mais alto Tribunal) que ao caso, atendendo a que redacção de tal normativo sofreu alterações, é de aplicar a versão que lhe foi dada pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto e não a actual – “Dizia este artigo: 1. Quem tiver sofrido detenção ou prisão preventiva manifestamente ilegal pode requerer, perante o tribunal competente, indemnização dos danos sofridos com a privação da liberdade. 2. O disposto no número anterior aplica-se a quem tiver sofrido prisão preventiva que, não sendo ilegal, venha a revelar-se injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia. Ressalva-se o caso de o preso ter concorrido, por dolo ou negligência, para aquele erro.” – pois, “não obstante a sua inserção num diploma de carácter adjectivo, assume natureza eminentemente substantiva. E, estabelecendo o regime da indemnização cível por danos causados pelo Estado a qualquer pessoa no exercício da função jurisdicional, é, verdadeiramente, uma regra de direito privado comum ou civil, uma norma sobre a responsabilidade civil extracontratual (cf. Ac do TC n.º 160/95, publicado no DR, II Série, de 27.10.95 e MOURAZ LOPES, Revista do Ministério Público, Ano 22.º, Out/Dez 2001, n.º 88, p. 79). Logo, a sua inserção num diploma processual penal não releva para efeitos da sua caracterização, não define a sua natureza. A sua aplicação no tempo é definida pelas regras do art. 12.º do Cód. Civil. E das regras emergentes deste normativo – a principal das quais é a de que a lei só dispõe para o futuro – colhe-se, sem margem para dúvidas, que a nova formulação daquele apontado art. 225.º só logra aplicação aos casos de detenção ocorridos após o início de vigência da Lei 48/2007, ou seja, após 15 de Setembro de 2007, o que implica dever subsumir-se a presente discussão ao disposto na anterior redacção do artigo 225.º. Neste sentido decidiu já este Tribunal, considerando, em situação análoga à aqui em apreço, ser aplicável «tendo em conta a sucessão da lei no tempo, o regime da lei ordinária que, nesta matéria, vigorava ao tempo dos factos, ou seja, antes da alteração introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto (art. 12º, n.º 1 do Código Civil)» (Acs. de 11.09.2008, processo n.º 08B1747 e 29.01.2008, processo n.º 08B84, in www.dgsi.pt).»
Assim sendo, vejamos se a situação factual que resultou assente preenche, ou não, a previsão do art.º 225º, na versão aplicável, tendo em conta o seu alcance.
Pois bem, “como escreve Castro e Sousa (Jornadas de Direito Processual Penal, pág. 162/163): “O nº1, do art. 225 respeita à reparação devida quando a privação da liberdade tiver sido manifestamente ilegal, dando assim cumprimento à injunção constante do nº5, do art. 27 da Constituição e ao disposto no art. 5º do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1996 e no nº5, do art. 5 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, reparação essa que é extensiva aos casos de prisão preventiva formalmente legal, mas que vem a revelar-se injustificada por erro grosseiro”. Também Gomes Canotilho e Vital Moreira defendem que o referido art. 225 do C.P.P. concretiza o comando constitucional contido no art. 27, nº5, da Constituição, quando escrevem (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed, pág. 187): “O art. 225 do C.P.P. interpreta correctamente o sentido da norma constitucional ao estender o dever de indemnização aos casos de prisão preventiva que, não sendo ilegais, se revelarem injustificados por erro grosseiro na apreciação da matéria de facto de que dependia … Haverá, pois, aqui, uma responsabilidade directa do Estado por actos da função jurisdicional, por lesão grave do direito à liberdade”. No mesmo sentido se orienta o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 160/95 de 15-3-95 (B.M.J. Suplemento nº 446, pág. 584 e segs), onde se decidiu: “No quadro do mesmo instituto da responsabilidade civil do Estado, o art. 22 da Constituição da República regula essa responsabilidade em geral e o art. 27, nº5, da mesma lei fundamental regula-a para a situação específica de privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei …
Como já ficou dito no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 90/84, trata-se aqui de situações em que a Constituição deixa deliberada e intencionalmente dependente do legislador - dito de outro modo: em que remete para o legislador – a efectivação de um certo princípio ou direito por este reconhecido. Ao fazê-lo, o legislador constitucional não apenas atribui ao legislador ordinário um específico encargo, mas verdadeiramente, lho reserva.
O legislador, portanto, cumpriu a directiva constitucional no nº1, do art. 225, prevendo aí os casos de detenção ou prisão preventiva manifestamente ilegal e distinguindo no nº2, os casos em que ela não é ilegal”.
Podemos assim concluir, pelo menos à face do direito constituído, não ser de aceitar a imputação ao Estado, referida ao art.22 da Constituição da República (de cuja previsão o art. 27, nº5, constitui historicamente alargamento) de uma responsabilidade objectiva geral por actos lícitos praticados no exercício da função jurisdicional, em termos de abranger, para além do clássico erro judiciário, a legítima administração da justiça, em sede de detenção e de prisão preventiva legal e justificadamente efectuada e mantida.
É neste sentido a jurisprudência largamente dominante deste Supremo Tribunal de Justiça (entre outros, Ac. S.T.J. de 11-11-99, Rev. 743/1999, 1ª secção; Ac. S.T.J. de 9-12-1999, Rev. 726/999, 1ª Secção; Ac. S.T.J. de 6-1-00, Rev. 1004/1999, 7ª Secção; Ac. S.T.J. de 4-4-00, Rev. 104/2000. 6ª Secção; Ac. S.T.J. de 20-6-00, Rev. 433/2000, 6ª Secção; Ac. S.T.J. de 19-9-02, Rev. 2282/2002, 7ª Secção; Ac. S.T.J de 13-5-03, Rev.1018/2003, 6ª Secção; Ac. S.T.J. de27-11-03, Rev.3341/2003, 7ª Secção; Ac. S.T.J. de 1-6-04, Rev. 1572/2004, 6ª Secção; Ac. S.T.J. de 19-10-04, Rev. 2543/2004, 7ª Secção; Ac. S.T.J. de 29-6-05, Rev. 1064/05-6ª Secção; Ac. S.T. de 20-10-05, Rev. 2490/05, 7ª Secção; Ac. S.T.J. de 15-2-07, Rev. 4565/2007, 2ª Secção; Ac. S.T.J. de 22-1-2008, Rev. 2381/07, 1ª Secção; Ac. S.T.J de 19-6-08, Rev. 1091/2008, 7ª Secção; Ac. S.T. J. de 11-9-08, Rev. 1748/2008, 2ª Secção; Ac. S.T.J de 22-6-10, Proc. 3736/2007, 1ª Secção).
Não se desconhece que certa doutrina sustenta que a Constituição confere o direito de indemnização, independentemente de culpa, e que o legislador ordinário não pode limitar a responsabilidade do Estado aos casos típicos de prisão preventiva ilegal ou injustificada (Luís Guilherme Catarino, A Responsabilidade do Estado pela Administração da Justiça, pág. 355 e 380; Rui Medeiros, Ensaio sobre a Responsabilidade Civil do Estado por Actos Legislativos, pág. 105; João Aveiro Pereira, Responsabilidade Civil por Actos Jurisdicionais, pág, 215).
Mas tal entendimento não tem sido acolhido, como já atrás se evidenciou, pela jurisprudência largamente dominante deste Supremo Tribunal de Justiça (orientação de que divergiram os Acórdãos do S.T.J. de 12-11-98, publicado na Col. Ac, S.T.J., VI, 3º, 112) e de 11-3-03, Proc. 03A418, em www, dgsi,pt).
Ora, não vemos razão para deixar de seguir aquela firme orientação da jurisprudência dominante deste Supremo Tribunal.
Apreciando agora o regime do citado art. 225, nº1, do C.P.P., diremos que para que surja o direito de indemnizar por parte do Estado não basta que a detenção ou prisão preventiva seja ilegal. É ainda necessário que seja “manifestamente ilegal”.
Na apreciação deste pressuposto, o Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República, no seu Parecer nº 12/92, de 30 de Março de 1992, conclui:
“É manifesto o que é evidente, inequívoco ou claro, isto é, o que não deixa dúvidas. Será prisão ou detenção manifestamente ilegal aquela cujo vício sobressai com evidência, em termos objectivos, da análise da situação fáctico-jurídica em causa, como é o caso da prisão preventiva com fundamento na indiciação da prática de um crime a que corresponda pena de prisão de máximo inferior a três anos, e da detenção com base na indiciação de uma infracção criminal punível apenas com multa”. No mesmo sentido opina o Conselheiro Maia Gonçalves (Código de Processo Penal Anotado e Comentado, 11ª ed, pág. 465), que a ilegalidade manifesta é aquela que necessariamente se torna evidente numa mera apreciação superficial.
Em suma, o juízo a partir do qual se conclui pela existência de “ilegalidade manifesta” é de natureza objectiva, traduzindo-se na constatação óbvia de que naquela situação, em concreto, nunca seria possível a aplicação da prisão preventiva, já que se indicia a prática de um crime absolutamente insusceptível de aplicação da medida coactiva em causa.
Distinguindo a lei entre prisão preventiva ilegal e prisão preventiva “manifestamente ilegal”, importa salientar que a simples ilegalidade fundamenta o direito de recorrer ou de lançar mão do instituto do habeas corpus, mas não justifica o pedido de indemnização, que apenas se suporta na ilegalidade manifesta. Ao distinguir as duas situações, o legislador terá pretendido tornar admissível um certo grau de discricionariedade vinculada na aplicação da lei pelos juízes, quando aplicam a prisão preventiva, cuja consequência pode traduzir-se numa ilegalidade.
Como escreve Mouraz Lopes (A responsabilidade civil do Estado pela privação da liberdade decorrente da prisão preventiva, Rev. do Ministério Público pág. 85) “dando-se a estes uma margem, dir-se-ia de liberdade que lhes permita, quando decidem, ter opiniões porventura divergentes sobre os fundamentos da prisão preventiva, não se coarcta o direito fundamental a decidir com liberdade e sujeito a critérios de legalidade.
É ainda aqui a preservação da independência dos juízes na administração da justiça que está em causa, sendo certo que, no exercício da sua competência funcional, aqueles apenas se encontram limitados pelo dever de obediência à lei e à Constituição, não podendo ser responsabilizados pelos juízos técnicos emitidos nas respectivas decisões, ainda que estes possam ser alterados por via de recurso.
Essa margem de liberdade tem, no entanto, limites, que se repercutem, afinal, no conceito de ilegalidade manifesta ou notória”.
Por outro lado, importa referir que a prisão preventiva ilegal também pode ter origem em erro de direito, isto é, num erro que recai sobre a existência ou conteúdo de uma norma jurídica (erro de aplicação).
Mas não pode olvidar-se que o erro para efeito de constituir o Estado no dever de indemnizar, nos termos do mencionado art. 225, nº1, do C.P.P. só releva se for manifesto, isto é, grosseiro, crasso, evidente, notório, indesculpável, de tal modo que se encontre fora do universo em que é natural a incerteza.
O disposto no art. 225, nº2, do C.P.P. aplica-se a quem tiver sofrido prisão preventiva que, não sendo ilegal, venha a revelar-se injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia.
O erro relevante para o efeito que agora interessa é o erro de facto, ou seja, aquele que incidiu sobre a apreciação dos pressupostos de facto e não sobre os fundamentos de direito.
Como é sabido, o erro, em geral, consiste no desconhecimento ou na falsa representação da realidade fáctica ou jurídica que está subjacente a uma determinada situação e será erro de facto quando incide sobre outra qualquer circunstância que a não existência ou conteúdo de uma norma jurídica (Ac. S.T.J. de 22-1-08., Rev. 2381/2007, 1ª Secção).
No caso do nº2, do aludido art. 225, estamos perante uma prisão preventiva com cobertura legal, pelo que o erro só pode incidir sobre a factualidade que o julgador considerou para fundamentar a decisão de aplicar a medida de prisão preventiva (art. 202 do C.P.P.).
Mas não releva qualquer erro, pois a lei exige que se configure como erro grosseiro.
Como ensina Manuel de Andrade (Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II, pág. 239), o erro grosseiro é “o erro escandaloso, crasso, supino, que procede de culpa grave do errante; aquele em que não teria caído uma pessoa dotada de normal inteligência, experiência e circunspecção”.
É grosseiro o erro indesculpável, isto é, aquele que uma pessoa dotada de normal capacidade de pensar e de agir tinha obrigação de não cometer.
Tem sido entendido pela jurisprudência que, apesar da lei falar apenas em erro grosseiro, o art. 225, nº2, também comporta o chamado acto temerário, ou seja, “aquele que - perante a factualidade exposta aos olhos do jurista e contendo uma duplicidade tão grande no seu significado, uma ambiguidade tão saliente no seu lastro probatório indiciário – não justificava uma medida gravosa da privação de liberdade, mas sim uma outra mais consentânea com aquela duplicidade ambígua” (Ac. S.T. J. de 12-10-00, Rev. 2321/2000, 2ª Secção.
Por outro lado, há ainda a registar que a apreciação a fazer no sentido de qualificar o eventual erro como grosseiro ou temerário, terá de reportar-se, necessariamente, ao momento em que a decisão impugnada teve lugar.
Por isso, … será com base nos factos, elementos e circunstâncias que ocorriam na altura em que a prisão foi decretada ou mantida que ele tem de ser avaliado e qualificado como erro grosseiro ou temerário, sem a omnisciência que o decurso do tempo permite (Ac. S.T.J. de 19-10-04; Ac. S.T.J. de 22-1-08 ; Ac. S.T.J. de 11-9-08, já citados).
É irrelevante, para tal qualificação, o facto do arguido, mais tarde, ter sido absolvido ou ter sido objecto de não pronúncia pelos crimes de que se encontrava acusado.” (cfr. Ac. do STJ. de 22/3/2011, proferido no proc. 5715/04.1TVLSB.L1.S1, in www.dgsi.pt, que, a título de exemplo e a propósito, expressa aprofundadamente o entendimento que vem sendo seguido pelo STJ, ao qual aderimos).
Acrescenta-se, para reforçar tudo o que já se disse, que: “os actos de interpretação de normas de direito e de valoração jurídica dos factos e das provas, núcleo da função jurisdicional, são insindicáveis; o erro de direito só constitui fundamento de responsabilidade civil quando, salvaguardada a referida essência da função jurisdicional, seja grosseiro, evidente, crasso, palmar, indiscutível e de tal modo grave que torne a decisão judicial numa decisão claramente arbitrária, assente em conclusões absurdas” (cfr. sumário do Ac. do STJ de 28-02-2012, proferido no Proc. 825/06.3TVLSB.L1.S1, in www.dgsi.pt – que “condensou a jurisprudência deste Supremo Tribunal, quando o facto ilícito em causa é constituído por um erro de direito praticado num acto jurisdicional, nas seguintes proposições essenciais: a) os actos de interpretação de normas de direito e de valoração jurídica dos factos e das provas, núcleo da função jurisdicional, são insindicáveis; b) o erro de direito – que pode respeitar à aplicação (lei a aplicar), à interpretação (sentido da lei aplicada), ou à qualificação (dos factos) – é eliminado, em princípio, pelo sistema de recursos ordinários previstos na lei, que permite a correcção de sentenças viciadas por um tribunal superior antes que se tornem irrecorríveis; c) o erro de direito só será fundamento de responsabilidade civil quando, salvaguardada a essência da função judicial referida em a), seja grosseiro, evidente, crasso, palmar, indiscutível, e de tal modo grave que transforme a decisão judicial numa decisão claramente arbitrária, assente em conclusões absurdas –Nesse aresto faz-se menção, a título exemplificativo da jurisprudência sufragada nos seguintes arestos do STJ: de 19-02-2004, Proc. n.º 4170/03; de 29-06-2005, Proc. n.º 1064/05; de 20-10-2005, Proc. n.º 2490/05; de 18-07-2006, Proc. n.º 1979/06; de 08-09-2009, Proc. n.º 368/09.3YFLSB; e de 23-03-2011, Proc. n.º 5715/04.1TVLSB.L1.S1” – cit. nota de rodapé (15) in Ac. do STJ de 2/12/2013, proc. 962/09.2TBABF.E1.S2, acessível no mesmo sítio da net),
Escalpelizado ao pormenor o alcance da aplicação do normativo em causa, torna-se evidente que a situação em apreço, tendo presente a factualidade apurada (e não impugnada – artº 640º, do C.P.C.), não é ao mesmo subsumível, como bem refere a decisão atacada, designadamente, ao assinalar que – “ no que respeita estritamente à hipótese do nº1 do art. 225.º, facilmente se constata que a manifesta ilegalidade da prisão preventiva sofrida pelo Autor não foi sequer alegada, não havendo qualquer dúvida, ainda assim, de que a aplicação de tal medida de coacção respeitou o quadro legal que a permitia, designadamente, o requisito formal previsto pelo art. 202.º, nº1, al. a), do C.P.P.. Com efeito, os crimes imputados ao Autor, então arguido, na decisão que aplicou tal medida de coacção, eram puníveis com penas de máximo superior a três anos, conforme resulta do disposto pelos arts. 299.º, nºs 1 e 3, e 372.º, nº1, do C. Penal, na versão introduzida pelo DL nº 48/95, de 15 de Março
… restará apenas averiguar se resulta da apurada factualidade que a prisão preventiva sofrida pelo Autor se revela “injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia”.
… através da análise do despacho que aplicou a medida de coacção de prisão preventiva ao Autor, não se vislumbra a existência de tal erro grosseiro ou temerário na apreciação dos pressupostos de facto que determinaram o decretamento (e a posterior manutenção) da prisão preventiva, condição indispensável ao atendimento da pretensão daquele.
Com efeito, o despacho em causa, dado por reproduzido, não se limita às considerações transcritas pelo Autor na p. i., tendo de ser lido na sua totalidade e nas referências efectuadas, não só à actuação particular de cada arguido nele mencionado, mas também à actuação dos vários “grupos” de arguidos (“agrupados” de acordo com as respectivas funções) e interacções entre os mesmos (até porque um dos crimes imputados é o de associação criminosa).
Assim, em primeiro lugar, verifica-se que o despacho em causa começa por remeter para a actuação do Autor descrita “nos Pontos 4.1.; 4.1.11. a 4.1.16; 4.2.1. a 4.2.9., do relatório intercalar junto aos autos (…)”.
Ora, podendo questionar-se a correcção de assim se referir matéria factual relevante, não se pode escamotear que a mesma, feita tal referência, não se resume à que a seguir, resumidamente, é expressamente descrita.
Lembre-se que, pela mera leitura do despacho em causa, se percebe a extensão e complexidade dos autos de inquérito em questão, compreendendo-se que fosse pouco viável a transcrição, no referido despacho (proferido, recorde-se, na sequência de interrogatório judicial de arguidos detidos, com a inerente urgência na definição da situação dos mesmos), de toda a matéria factual, relativa a cada um dos arguidos, a que se refere o aludido relatório.
Para além disso, verifica-se que, sendo o Autor funcionário judicial, é referido (cfr. fls. 2363) no aludido despacho que “Por seu turno, os funcionários judiciais, no âmbito dos processos de falência que lhes incumbia tratar ou noutros a que tinham acesso, praticaram actos contrários as deveres do cargo, recebendo como contrapartida parte das comissões pagas pelos compradores dos bens das massas falidas. Ainda, contrariamente aos deveres do cargo, intermediaram, compras e vendas de bens das massas falidas em conjugação de esforços com os restantes suspeitos, com a intenção de prejudicar a massa falida e beneficiar-se a si e a terceiros.”
E sobre a prova que suporta os factos ilícitos imputados aos arguidos (incluindo o ora Autor), refere o despacho em análise que “É já relevante o acervo documental constante dos autos e que aponta no sentido da verificação dos crimes.
Todos os factos ilícitos e praticados pelos arguidos são referidos nos autos de transcrição de escutas telefónicas (…)”.
Ora, sobre o supra aludido relatório intercalar, a prova documental existente nos autos de inquérito e os autos de transcrição de escutas telefónicas, nada é referido pelo Autor na p. i., desde logo no sentido de pôr em causa que a sua actuação descrita “nos Pontos 4.1.; 4.1.11. a 4.1.16; 4.2.1. a 4.2.9., do relatório intercalar junto aos autos (…)”, não configurasse a prática de qualquer ilícito (antes se limitando a aludir aos moldes resumidos em que a sua actuação particular é descrita de forma expressa no despacho).
E também nada diz o Autor sobre a prova documental a que alude o despacho, nem sobre a prova consubstanciada nos autos de transcrição de escutas telefónicas, designadamente no sentido de, sequer descrevendo-a (ou, sendo caso disso, afirmando a sua inexistência), pôr em causa a sua aptidão probatória dos factos que lhe eram imputados, e permitir que tal aptidão fosse apreciada pelo tribunal (tal se devendo, pensamos, ao facto de o Autor estruturar juridicamente a sua pretensão na al. c) do nº1 do art. 225.º do C.P.P., na redacção introduzida pela Lei nº 48/2007, e não propriamente na sua al. b)).
Ora, não havendo sequer tal descrição, e considerando apenas o teor do despacho que decretou a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva, não se vislumbra que tal aplicação resulte de um erro decisório temerário, grosseiro, nem que a decisão em causa seja claramente arbitrária, assente em conclusões absurdas, nem que afirme factos cuja inexistência é manifestamente comprovada pelo processo.
Veja-se que, mesmo que nos atenhamos apenas à actuação do ora Autor expressamente descrita no despacho em apreço (na parte que apenas a ele diz respeito, mas também na parte relativa aos “funcionários judiciais” supra transcrita, conjugadas ainda com a matéria imputada aos demais arguidos, tendo em conta a imputação do crime de associação criminosa), o certo é que a mesma é passível de integrar a prática dos crimes de associação criminosa e corrupção passiva para acto ilícito, p. e p., à data dos factos em questão, respectivamente, nos arts. 299.º e 372.º, nº1, por referência ao art. 386.º, nº1, al. a), do C. Penal (na versão então vigente, dada pelo DL nº 48/95, de 15 Março).
Finalmente, quanto às razões da escolha da medida de coacção de prisão preventiva, o despacho em análise mostra-se devidamente fundamentado (de facto e direito), conforme, pensamos, resulta evidente do teor de fls. 2365 a 2367, sendo feita referência aos perigos previstos nas als. b) e c) do art. 204.º do C.P.P. e sendo realçada, em relação ao ora Autor, a gravidade dos factos em análise decorrente da sua qualidade de funcionário público, com o inerente desvirtuamento dos deveres de que estava incumbido e descrédito da própria instituição que servia.
Também aqui, conclui-se, não se vislumbra qualquer erro decisório temerário ou grosseiro, não se afigurando como arbitrária a decisão em questão, cujas premissas estão longe de ser absurdas.
Face ao exposto, teremos de concluir, obviamente, que as decisões posteriores que mantiveram a medida de coacção aplicada no despacho em análise não podem fundamentar responsabilidade do Estado “por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia”.
De qualquer forma, pensamos imporem-se aqui, face ao alegado pelo Autor na p. i., algumas considerações, quer sobre o despacho que determinou a sua libertação, quer sobre a decisão que o absolveu da prática dos crimes por que foi pronunciado (pois que, de acordo com esta – cfr fls. 2863 -, houve decisão instrutória).
Em primeiro lugar, há que relembrar que, como já supra se aflorou, “os pressupostos de facto da privação da liberdade devem ser avaliados à luz das circunstâncias do momento em que foi aplicada a medida de coacção ou detida a pessoa”, devendo o tribunal “proceder a um juízo de prognose póstuma reportado à data em que foi proferida a decisão” (Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal, pág. 619, nota 5)…
Assim, no caso dos autos, mostra-se irrelevante, para efeitos de aferição da existência de erro grosseiro ou temerário na decisão que aplicou a prisão preventiva, a posterior absolvição do Autor.
Isto posto, sempre diremos que do despacho que determinou a libertação do Autor, constante de fls. 62 a 65 e dado por reproduzido, resulta que, perante novos meios de prova (exames periciais), a conduta do ora Autor “não reveste o grau de ilicitude dos demais, nomeadamente no que toca ao aproveitamento e montante das vantagens patrimoniais dos ilícitos praticados”, podendo o perigo de continuação da actividade criminosa “ser facilmente suprido com a substituição da medida de prisão preventiva pela suspensão de funções profissionais”, medida que lhe foi aplicada em tal despacho, além de apresentações bisemanais na esquadra da área de residência.
Ora, como é bom de ver, o despacho que determinou a libertação do ora Autor não excluiu a indiciação, relativamente ao mesmo, da prática dos ilícitos criminais que determinaram a sua prisão preventiva, nem afirmou a inexistência, sequer, de perigo de continuação da actividade criminosa, antes entendeu ser menor, face aos novos elementos de prova considerados, a ilicitude da sua conduta, e poder atalhar-se ao referido perigo com medida de coacção menos gravosa.
Em suma, da prolação deste despacho não resulta também que a decisão que aplicou a medida de coacção de prisão preventiva se deva ter por eivada de erro temerário ou grosseiro, nos termos supra expostos.
No que respeita ao Acórdão que, em primeira instância (sem alteração, após recurso, quanto ao Autor), absolveu o Autor dos crimes por que foi pronunciado, retira-se do mesmo que, apesar da sua libertação, promovida pelo M.P., continuou até ao julgamento a entender-se haver indícios da prática pelo ora Autor de ilícitos criminais, aliás tendo sido imputados na pronúncia, além dos crimes que constavam do despacho que impôs a prisão preventiva, dois ilícitos que ali não foram considerados: peculato na forma tentada, p. e p. pelo art. 375.º, nº1, 22.º e 23.º do C. Penal, e participação económica em negócio, p. e p. pelo art. 377.º, nº1, do C. Penal.
E apesar da absolvição (que, obviamente, não está em causa), verifica-se que em relação ao ora Autor foram dados como provados factos que, em conjunto com outros (que quedaram por demonstrar), poderiam levar à sua condenação pelos referidos ilícitos criminais: veja-se a matéria dos pontos 47 a 49, 75 a 104, 304 a 310, 814 a 824 dos factos provados.
E quedaram por demonstrar, essencialmente – para além dos respeitantes à organização criminosa (cfr. pontos 196 e 197 dos factos não provados) e influência dos juízes na nomeação de liquidatários (pontos 6, 190 e 191 dos factos não provados) -, os factos referentes às contrapartidas monetárias alegadamente pagas ao ora Autor pela sua actuação - cfr. pontos 7, 119, 189, 192, 219 dos factos não provados – e os que diziam respeito ao propósito de beneficiar o ali arguido J… – pontos 28 e 29 dos factos não provados.
É certo que consta do Acórdão absolutório que “…relativamente aos arguidos B…, L…, I… e que se prendem com o recebimento de dinheiro por parte das leiloeiras e/ou liquidatários, refira-se que não foi produzida prova no sentido de que algum dos liquidatários/arguidos tivesse entregue contrapartidas aos funcionários, nem que os mesmos tivessem conhecimento de tais pagamentos por parte das leiloeiras.”
No entanto, tal não equivale a dizer que se tenha dado como provada a inexistência da entrega de contrapartidas ou o desconhecimento dos pagamentos.
Além disso, quanto às contrapartidas, pensamos que é no sentido da indiciação das mesmas [lembre-se que o que é exigido pelo art. 202.º, nº1, al. a), do C.P.P., na versão vigente à data da prolação do despacho, é a forte indiciação, e não a prova da prática de crime] que no despacho que aplicou a prisão preventiva é referido que o ora Autor “Tem uma casa com piscina e um Volvo …”, sinais de desafogo económico que, conjugados com a demais factualidade ali dada como indiciada, levavam a crer que da sua actuação lhe advinham benefícios patrimoniais.
E do exposto conclui-se, assim, que o teor do Acórdão absolutório também não legitima que se qualifique de temerária ou grosseiramente errada a decisão privativa da liberdade.
Face a todo o exposto, apenas podemos concluir não se vislumbrar, no despacho que determinou a aplicação ao Autor da medida de coacção de prisão preventiva (e, consequentemente, nos despachos que a mantiveram), erro grosseiro ou temerário que funde o direito de aquele exigir indemnização do Estado, resultando da matéria apurada que, posteriormente à prolação de tal despacho, face a novos elementos de prova, aquela se considerou injustificada, pelo que, em face da nova situação apurada, foi de imediato determinada a sua restituição à liberdade.”
É, efectivamente, assim.
Logo, e sem necessidade de mais considerações, por despiciendas, somos levados a concluir que não há fundamento para censurar o decidido pelo Tribunal a quo.
*
III- Nestes termos, decide-se julgar improcedente a apelação e, consequentemente, confirma-se a sentença proferida pela 1ª instância.
Custas pelo Recorrente.

Porto, 29 de Setembro, de 2015
Maria Graça Mira
Anabela Dias da Silva
Ana Lucinda Cabral