Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2130/13.0TBVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: ACIDENTE EM AUTO-ESTRADA
ATRAVESSAMENTO DE ANIMAL
RESPONSABILIDADE DA CONCESSIONÁRIA
PRESUNÇÃO DE INCUMPRIMENTO
Nº do Documento: RP201501122130/13.0TBVNG.P1
Data do Acordão: 01/12/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - De acordo com o que se dispõe no artigo 12.º, nº 1 da Lei nº 24/2007, de 18.7 nos acidentes que são provocados pela presença de animais nas auto-estradas concessionadas é de presumir a falta de cumprimento (e também da culpa) das obrigações de segurança das concessionárias.
II - Estas só poderão eximir-se à responsabilidade ilidindo aquela presunção, isto é, demonstrando que a presença do animal na via se verificou por motivos que não lhe são imputáveis, ou seja, fazendo a prova histórica do acontecimento.
III - As causas do acidente-atravessamente do canídeo devem ser confirmadas no local pela autoridade policial-artigo 12.º nº 2 da citada Lei.
IV - Todavia, mesmo não existindo tal verificação isso não pode ser preclusivo de o lesado poder fazer a prova da existência do animal na via, socorrendo-se de outros meios probatórios e, com isso beneficiando, ainda assim, da presunção de incumprimento estabelecida no nº 1 do mencionado artigo 12.º.
V - Mas ainda que assim não se entenda o nosso CCivil permite perspectivar os factos de molde a poder ser justificada, a mais que um título, a inversão do ónus da prova da culpa, quer no plano da responsabilidade civil extracontratual ou pela via da responsabilidade contratual.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 2130/13.0TBVNG.P1-Apelação
Origem: Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia, 4º Juízo Cível
Relator: Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Caimoto Jácome
2º Adjunto Des. Macedo Domingues
5ª Secção
Sumário:
I- De acordo com o que se dispõe no artigo 12.º, nº 1 da Lei nº 24/2007, de 18.7 nos acidentes que são provocados pela presença de animais nas auto-estradas concessionadas é de presumir a falta de cumprimento (e também da culpa) das obrigações de segurança das concessionárias.
II- Estas só poderão eximir-se à responsabilidade ilidindo aquela presunção, isto é, demonstrando que a presença do animal na via se verificou por motivos que não lhe são imputáveis, ou seja, fazendo a prova histórica do acontecimento.
III- As causas do acidente-atravessamente do canídeo devem ser confirmadas no local pela autoridade policial-artigo 12.º nº 2 da citada Lei.
IV- Todavia, mesmo não existindo tal verificação isso não pode ser preclusivo de o lesado poder fazer a prova da existência do animal na via, socorrendo-se de outros meios probatórios e, com isso beneficiando, ainda assim, da presunção de incumprimento estabelecida no nº 1 do mencionado artigo 12.º.
V- Mas ainda que assim não se entenda o nosso CCivil permite perspectivar os factos de molde a poder ser justificada, a mais que um título, a inversão do ónus da prova da culpa, quer no plano da responsabilidade civil extracontratual ou pela via da responsabilidade contratual.
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I-RELATÓRIO
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
B…, residente na Rua … n.º …, .º Dto, Viana do Castelo, instaurou a presente acção de condenação emergente de acidente de viação, sob forma sumária de processo, contra C…, S.A., com sede na …, …, …, pedindo a condenação da Ré a proceder à reparação da viatura, bem como a proceder ao pagamento da quantia de € 5.820,00, referente à desvalorização da mesma e danos sofridos na sequência da paralisação ou, em alternativa, no pagamento da quantia de € 15.150,13, acrescida de juros de mora, contados desde a data da propositura da acção e até efectivo e integral pagamento.
Para tanto alega, em síntese, que no dia 24 de Dezembro de 2011, cerca das 0,30 horas, na Auto-Estrada A1, no sentido Sul-Norte, ao Km 296,5, ocorreu um acidente de viação, envolvendo o veículo ligeiro de passageiros de matricula ..-CN-.., propriedade do Autor e por si conduzido, o qual foi causado o qual foi causado pelo surgimento de um cão na via.
Descreve os danos decorrentes do acidente.
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Regularmente citada, contestou a Ré a fls. 65 que, defendendo-se por impugnação, invoca o desconhecimento sobre a forma e consequências do alegado acidente, e alega que cumpriu o dever de segurança de que está incumbida.
Conclui pedindo a sua absolvição do pedido.
Mais requereu a intervenção acessória provocada da D…, COMPANHIA DE SEGUROS, S.A.
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A fls. 98, foi a requerida intervenção principal provocada admitida e ordenada a citação da Chamada.
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Citada a Chamada, veio esta a fls. 104 contestar para, no essencial, aceitar a existência do contrato de seguro e impugnar, por total desconhecimento, os factos alegados na petição inicial.
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A fls. 175 foi ordenada a notificação das partes para se pronunciarem sobre o prosseguimento dos autos sob forma simplificada e nada tendo sido oposto, foram os meios de prova admitidos e designada data para a realização da audiência de discussão e julgamento (cfr. fls. 176).
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Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, com observância do formalismo legal, como o atesta a respectiva acta.
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A final, foi proferida decisão que julgou a acção procedente e, em consequência, decidiu condenar a Ré a proceder à reparação da viatura do Autor, bem como no pagamento da quantia de €4.320,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, contados desde a data da citação e até efectivo e integral pagamento, absolvendo-a do demais contra si peticionado.
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Não se conformando com o assim decidido veio a Ré interpor o presente recurso, concluindo as suas alegações nos seguintes termos:
1. A ora Apelante, considera que existe nulidade da douta sentença ora recorrida, de fls. do autos, em virtude de existir na decisão proferida pelo Tribunal a quo, oposição entre os fundamentos e a decisão da matéria de facto dada como provada.
2. Na verdade, nos pontos 9), 10) e II), da matéria de facto dada por assente, refere a douta decisão ora posta em crise, respectivamente, que: “(...) 9) Em consequência do acidente, o veículo do Autor sofreu danos na parte da frente esquerda e direita, nomeadamente pára-brisas, airbags dianteiros, tablier, ventilador frio, radiador, radiador de refrigeração de ar, unidade de controlo de airbag, tensores dos cintos da frente, condensador do secad, faróis direito e esquerdo da frente, capot, revestimento da frente, barras de protecção do pára-choques da frente, que o impediram de circular;
10) Estes danos foram devidamente peritados e orçamentados pelo valor total de € 9.330,13;
11) Por falta de capacidade financeira para o efeito, o Autor ainda não conseguiu reparar o veículo, encontrando-se o mesmo no estado em que ficou após o acidente e parado na oficina da Opel, sito na …, Viana do Castelo (...)“;
3. No entanto, aquando da aplicação do Direito à matéria factual dada por provada, refere o Tribunal a quo, a fls. 10 da douta decisão de que ora se recorre, que: “(...) Assim sendo, há que condenar a Ré no pagamento da quantia que se apurou corresponder ao montante pago pela Autora (...)” - sublinhado nosso;
4. Acresce que, a fls. 11, da douta sentença ora colocada em crise, o Tribunal a quo decidiu que: “(...) Como danos emergentes, ficou provado que o Autor sofreu danos na sua viatura que carece de reparação, cujo montante ascende a € 9.330,13. Peticionando o Autor, a título principal, a condenação na reparação da viatura, será a acção procedente no que a tal diz respeito (...)”;
5. Saliente-se, ainda, que a conclusão (ponto V), constante de fls. 11, da douta sentença ora recorrida, refere de forma expressa que: “(...) Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, julgo a acção procedente e, em consequência, decido condenar a Ré a proceder à reparação da viatura do Autor;
6. Na verdade, através da douta sentença ora colocada em crise, refere-se que o Autor ainda não terá procedido à reparação da viatura automóvel com a matrícula ..-CN-.. e, simultaneamente, condena-se a Recorrente a pagar ao Autor, o valor da quantia que se apurou corresponder ao montante pago pelo Autor, com a aludida reparação;
7. Assim, salvo melhor opinião, em face do supra exposto, a douta sentença do Tribunal a quo, é nula de acordo com o previsto no art. 615°, n.° 1, alínea c), do C.P.C, uma vez que os fundamentos indicados na referenciada peça processual, estão em manifesta oposição com a decisão proferida;
8. Por outro lado, a douta Sentença, perante a matéria assente, salvo melhor opinião, não apurou correctamente os factos, uma vez que da matéria factual dada por provada, não se pode aferir da culpa da Ré C... no sinistro em causa.
9. Tanto assim é que ficaram provados os seguintes factos:
“36) A auto-estrada é patrulhada pela C… e pela GNR, 24 sobre 24 horas por dia, todos os dias do ano;
37) No dia do sinistro, os patrulhamentos da área foram e estavam a ser realizados;
38) A Ré efectua vigilância constante e permanente da sua área concessionada através das suas patrulhas de oficiais mecânicos-assistência rodoviária, que regularmente vigiam as infra-estruturas que se encontram espalhadas pelas auto-estradas da sua jurisdição, na detecção e verificação de situações anómalas, pondo termo às mesmas, prestando igualmente assistência aos demais utentes dessas mesmas auto-estradas;
39) Nada tendo sido detectado nos regulares patrulhamentos quanto à existência de um animal nas vias no local onde o acidente ocorreu;
40) Na sequência da comunicação da ocorrência do acidente, e porque assim se processa sempre, a Ré enviou ao local uma equipa para verificar o estado das vedações na zona envolvente da A1 ao quilómetro onde ocorreu o acidente, nada tendo sido detectado de anormal quanto ao seu estado de conservação (...)”;
10. Logo, nada pode levar a crer que por culpa da C…, se deu o acidente dos presentes autos. Mais se acrescenta que, estando provado que a C… patrulhou a Auto-estrada onde ocorreu o acidente, no dia deste e antes da ocorrência do mesmo e, durante o patrulhamento efectuado, nenhum obstáculo foi detectado na via e que existe na C… um serviço denominado ‘Obra Civil” a quem cabe andar pelas auto-estradas a vistoriar as vedações e as infra-estruturas (na qual se incluem as vias de circulação). Logo, o que poderia fazer mais a Ré C… para que o sinistro não se tivesse dado?
11. E de facto a Ré tem ao seu dispor meios efectivos de fiscalização que são compostas por veículos automóveis da C… que constantemente, 24 horas sobre 24 horas, circulam pelas várias auto-estradas do país, compreendidas no contrato de concessão, a fiscalizar, a verificar e a solucionar eventuais problemas que surjam e a prestar assistência aos demais utentes dessas mesmas auto-estradas:
12. Não pode a douta sentença recorrida extrair “in casu” a culpa da C…, S.A., tendo sido dado como provados os factos constantes dos n°s. 36 a 40 da sentença recorrida:
13. A saber-se, norma legal alguma, obriga a C…, como resultado, a garantir a ausência de quaisquer obstáculos na sua área concessionada. À C…, como concessionária, compete tão-somente, assegurar em termos razoáveis, a boa, segura e livre circulação nas auto-estradas:
14. Cotejando a factualidade dada como provada na douta Sentença recorrida e independentemente do regime jurídico convocável, a C… não pode ser responsabilizada pela indemnização dos danos alegadamente sofridos pelo A.;
15. Pois, não resultou provado qualquer facto ilícito, por acção ou omissão, imputável à C…, o que nos colocaria no âmbito da responsabilidade civil extracontratual por factos lícitos, conforme previsão do artigo 483.°, do C.C.;
16. Não se provou que os danos sofridos pelo A. sejam objectivamente imputáveis a qualquer incumprimento ou comprimento defeituoso de qualquer obrigação de que a C… seja titular passivo, o que nos remeteria para o domínio da responsabilidade civil contratual;
17. Pese embora a divergência nesta matéria, a jurisprudência dominante é no sentido de que a responsabilidade civil assacável à C… por acidentes de viação ocorridos nas auto-estradas que lhes estão concessionadas assenta na culpa e não em responsabilidade contratual, atentas as regras aprovadas pelo Decreto-Lei 294/97, de 24 de Outubro, que regula as Bases do contrato de concessão para a construção, conservação e exploração de auto-estradas;
18. Salvo melhor opinião, ao contrário do vertido na douta sentença recorrida, a obrigação da C… é de meios e não de resultado;
19. Do disposto no Decreto-Lei 294/97, de 24 de Outubro, não resulta o estabelecimento de qualquer responsabilidade objectiva por parte da C…, no sentido de a responsabilizar por todos os prejuízos ocasionados a terceiros e que ocorram nas auto-estradas. O contrato de concessão obriga a C... a “manter as auto-estradas que constituem objecto da concessão em bom estado de conservação e perfeitas condições de utilização” e “salvo caso de força maior devidamente verificado, a assegurar permanentemente, em boas condições de segurança e comodidade, a circulação nas auto-estradas”, sendo, “da inteira responsabilidade da concessionária todas as indemnizações que, nos termos da lei, sejam devidas a terceiros em consequência de qualquer actividade decorrente da concessão”;
20. Como resulta da maioria da jurisprudência, tendo em conta as regras da boa fé nos contratos, não é de exigir à C… que seja responsável por todos os danos ocorridos nas auto-estradas de que é concessionária, a todo o momento e em quaisquer circunstâncias, dispensando os lesados de alegar e provar as concretas circunstâncias em que os mesmos ocorreram, para daí se poder inferir o nexo de causalidade entre tais danos e o comportamento imposto à C…;
21. A C… está obrigada a assegurar a conservação e a manutenção da auto-estradas para que nestas se possa circular sem perigo, não é exigível que esta tenha de assegurar, segundo a segundo e centímetro a centímetro, a inexistência de qualquer obstáculo que possa pôr em perigo a circulação de veículos. O que se exige é que, em termos razoáveis, em tempo oportuno e de modo eficaz, a C… assegure a boa circulação nas auto-estradas, fazendo as reparações devidas, mantendo uma vigilância permanente (esta em termos realistas, obviamente) e uma sinalização adequada a alertar os condutores de qualquer obstáculo susceptível de por em perigo a circulação e que não possa ser removido de imediato;
22. Tendo em conta os factos dados como provados na Sentença recorrida, não se vislumbra, qualquer facto que implique a responsabilização da C… por qualquer das vias;
23. Igualmente não se vislumbra culpa, por acção ou omissão, assacável à C…. Efectivamente, o Autor não logrou a conduta omissiva, em termos do dever de manutenção e de fiscalização, que o Autor lhe imputava à ora Recorrente;
24.A matéria provada evidencia que a C… actuou de forma diligente, fiscalizando e patrulhando, concretamente no dia e hora em questão, as vias de circulação no momento que precedeu a ocorrência do sinistro com o CN.
25. A Apelante provar os cuidados e diligências que teve de forma a zelar pela conservação e manutenção das condições de circulação na auto-estrada A1;
26. Não tendo provado o A. há quanto tempo o referido obstáculo se encontrava na via, não pode vir a concluir-se, como pretende, que o patrulhamento efectuado não foi adequado a manter a vigilância que lhe era exigível, até porque não se consegue estabelecer o nexo de imputação causal entre a hora do último patrulhamento, tempo decorrido entre a existência do animal na via e o acidente descrito;
27. Ora, no campo da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, segundo o disposto no art. 483.º, n.° 1 e 563.°, ambos do CC., incumbe ao lesante indemnizar o lesado por todos os danos que este provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão, repondo as coisas no estado em que estariam, se não se tivesse produzido o dano-art. 562.°, do C.C;
28. Acresce que, a apreciação quer da prova testemunhal quer da prova documental produzida em audiência de julgamento, deve ser suportada em juízos técnico-jurídicos e não por juízos morais e de justiça social;
29. Logo a presunção natural não elimina o ónus da prova, nem modifica o resultado da repartição entre as partes;
30. A C… está obrigada a determinados deveres, de modo a que a circulação nas auto-estradas se faça em condições de segurança. Não são deveres de resultado, mas de meios e com eles não se pretende garantir que os condutores cheguem sãos e salvos ao seu destino, o que é impossível, mas acautelar a segurança da circulação nas auto-estradas;
31. Acresce que, a obrigação que impede sobre a C… não é de resultado, mas de meios, pois que o cumprimento pleno das suas obrigações não garante, nem pode garantir, que não se verifiquem acidentes, mas apenas uma condução mais segura. Quem entra numa auto-estrada, fá-lo porque pretende circular mais depressa e com mais segurança, mas sabe que também lá se verificam acidentes, mesmo estando verificadas todas as condições de segurança;
32. Provou-se, pois, através da matéria factual dada como provada na douta sentença proferida pelo Tribunal a quo, que a Recorrente tem um conjunto de meios humanos e técnicos postos ao serviço das referidas condições de segurança, que foram concretamente aplicados no dia do acidente descrito nos autos, tendo feito tudo o que em concreto era exigível para acautelar uma circulação segura, sendo as referidas e concretas diligências efectuadas no dia do acidente, suficientes para que se possa considerar elidida a presunção de culpa;
33. Conjugados os princípios legais acabados de expor com os dados como provados, considera a apelante que, não omitiu o dever de assegurar as boas condições de segurança na Auto-Estrada;
34. A prova da culpa do lesante, em virtude de a mesma constituir um elemento constitutivo do direito à indemnização (artigo 342°, n.° 1, do CC), cabe em princípio ao lesado sem prejuízo das presunções que a lei estabeleça, conforme se verifica no caso concreto, por aplicação do artigo 12°, da Lei n.° 24/2007, de 18-07;
35. Face ao estabelecido naquele diploma, pode dizer-se que hoje é permitido à Recorrente, a elisão da presunção de incumprimento em todos os casos e não apenas nos casos de força maior, e no caso em concreto, das obrigações de segurança com que o n.° 1, alínea b), do art. 12°, da Lei n.° 24/2007, onera a Concessionária:
36. No caso vertente, provou-se, nomeadamente, que nos patrulhamentos da C1… nada foi detectado nesse dia quanto à existência de um cão na via;
37. Assim no entender da Recorrente, salvo melhor opinião, não se apuraram factos concretos de onde se pode concluir, como se fez na douta sentença ora recorrida, que o sinistro ocorreu, em virtude de não terem sido cumpridas em concreto por parte da 3CR, as suas obrigações de segurança;
38. Atente-se que não se apurou o nexo causal entre a existência do cão na via de circulação por suposta falta de manutenção da Recorrente e a ocorrência do sinistro;
39. Assim, não se tendo apurado em audiência de julgamento, antes pelo contrário, que a C… não fez tudo o que era adequado e que legalmente se lhe impunha, em termos de regras de segurança, efectuando, nomeadamente, o patrulhamento das vias destinadas ao trânsito, não se vê como se pode responsabilizar a Recorrente pelo pagamento do montante peticionado;
40. Ora, tendo em conta os factos dados como provados na douta sentença recorrida, não se vislumbra, qualquer facto que implique a responsabilização da C… por qualquer das vias;
41. Igualmente não se vislumbra culpa, por acção ou omissão, assacável à C…. Efectivamente, salvo melhor opinião, não logrou provar-se em audiência de julgamento, a conduta omissiva, em termos do dever de manutenção e de fiscalização, que o autor imputava à ora recorrente;
42. Antes pelo contrário, a matéria provada evidencia que a C… actuou de forma diligente;
43. Postas as coisas nestes termos, tudo está em saber, se no caso vertente, é possível responsabilizar a Ré C… por um acto negligente e omissivo;
44. A reposta não pode deixar de ser negativa;
45. Pois se assim não fosse, tornar-se-ia sempre impossível à Apelante, fazer prova em julgamento, de matéria factual que lhe permitisse elidir a presunção de incumprimento, conforme prevista no art. 12°, n.° 1, alínea b), da Lei n.° 2412007, de 18-08;
46. Ao decidir da forma como o fez a, aliás, douta Sentença em crise fez incorrecta aplicação e interpretação do disposto nos artigos 342°, 483° e 487°, do Código Civil e do estatuído no artigo 12°, da Lei n.° 24/2007, de 18.07.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Após os vistos legais cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso- cfr. artigos 635.º, nº 3, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação são as seguintes as questões a decidir:
a)- saber se se verifica a nulidade da sentença recorrida por haver oposição entre os fundamentos e a decisão da matéria de facto dada como provada.
b)- saber se existe fundamento bastante para responsabilizar a Ré pela ocorrência do acidente tal qual ele se revela na factualidade que nos autos se demonstrou.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

É a seguinte a matéria de facto que o tribunal de 1ª instância deu como provada.

1) No dia 24 de Dezembro de 2011, cerca das 0,30 horas, circulava na Auto-Estrada A1, sentido Sul-Norte, a viatura propriedade do Autor, com a matrícula ..-CN-.., conduzida pelo próprio;
2) A viatura era conduzida pela faixa direita, atento o seu sentido de marcha, a uma velocidade de cerca de 80 Km/hora;
3) Quando circulava ao Km 296,5 da referida auto-estrada, em …, o Autor foi surpreendido pelo aparecimento súbito de um cão de grande porte que, vindo do seu lado esquerdo, do separador central, atravessou a via a correr, tapando-lhe completamente a faixa de rodagem por onde seguia;
4) O que ocorreu quando o Autor se encontrava a poucos metros desse local;
5) Não tendo o Autor quaisquer hipóteses de ver o cão antes de este atravessar a via;
6) Nem de tomar quaisquer medidas que permitissem evitar o acidente, nomeadamente parar ou desviar-se;
7) Pelo que, o Autor embateu com a frente do seu veículo no animal, apanhando-o totalmente em todo o seu comprimento do seu lado direito;
8) A Ré C…, S.A., é a entidade concessionária da Auto-estrada A1;
9) Em consequência do acidente, o veículo do Autor sofreu danos na sua parte da frente esquerda e direita, nomeadamente pára-brisas, airbags dianteiros, tablier, ventilador frio, radiador, radiador de refrigeração de ar, unidade de controlo de airbag, tensores dos cintos da frente, condensador com secad, faróis direito e esquerdo da frente, capot, revestimento da frente, barra de protecção do pára-choques da frente, que o impediram de circular;
10) Estes danos foram devidamente peritados e orçamentados pelo valor total de €9.330,13;
11) Por falta de capacidade financeira para o efeito, o Autor ainda não conseguiu reparar o veículo encontrando-se o mesmo no estado em que ficou após o acidente e parado na oficina da Opel, sito na …, Viana do Castelo;
12) Logo após o acidente, o Autor contactou a Ré, a qual enviou ao local um funcionário que procedeu à retirada do animal do local;
13) Posteriormente, o Autor contactou a ora Ré, em 26.12.2011, participando por escrito o acidente, juntando declaração e solicitando a resolução da situação;
14) A Ré recusou-se a assumir a responsabilidade e a liquidar os prejuízos sofridos pelo Autor com os danos na viatura;
15) A chapa da viatura está amolgada e mesmo sem tinta em alguns locais;
16) A falta de reparação da viatura impede completamente o Autor de a poder utilizar, desde a data do acidente;
17) A falta de viatura obrigou o Autor a alterar profundamente a sua vida, mesmo nas actividades diárias, estando impedido de realizar e de participar em várias actividades que lhe eram habituais e normais, por não se poder deslocar;
18) Desde o acidente que o Autor apenas se pode deslocar de transportes públicos, táxi, boleia de amigos ou eventualmente algum empréstimo habitual de viatura;
19) O Autor, na altura do acidente, trabalhava em Lisboa, e actualmente trabalha em …;
20) O Autor tem residência em Viana do Castelo;
21) Antes do acidente, deslocava-se normalmente aos fins de semana a Viana do Castelo;
22) Isto porque as viagens demoravam menos de quatro horas em cada sentido e eram efectuadas às horas que lhe interessavam em função dos seus objectivos;
23) Após o acidente, tais viagens têm de ser feitas de autocarro, sujeitas aos horários destes e a deslocações noutro transporte, muitas vezes em horários desfasados, para chegar da residência ao local de partida e chegada dos meios de transporte;
24) Este facto implica muitas horas para os transportes, inclusive com esperas pelos mesmos e sujeição aos seus horários, impedindo o Autor de poder descansar nesses fins de semana realizar qualquer actividade sem estar completamente condicionado por esses horários;
25) Além disso, não tem transporte para se deslocar para nenhum lado, nomeadamente ao fim do dia, tendo de ficar, muitas vezes, em casa;
26) O Autor deslocava-se diariamente para o trabalho no seu veículo, sendo agora forçado a fazê-lo de transporte público, sujeitando-se às condições dos mesmos, nomeadamente, aos horários, itinerários e tempos de espera;
27) A impossibilidade de utilizar a viatura e o consequente agravamento das dificuldades e condições da sua vida têm vindo a transformar o Autor numa pessoa nervosa e triste;
28) Para além do mencionado, o Autor tem suportado despesas em transportes públicos e táxis sempre que necessita de se deslocar para qualquer sítio, incluindo para o seu trabalho;
29) A Ré tomou conhecimento do sinistro cerca das 00:33horas, através de comunicação para o Central de Comunicações do oficial de mecânica que patrulhava o local onde o CN se encontrava imobilizado;
30) Imediatamente, a referida Central de Comunicações deu indicações ao mecânico de serviço na área de responsabilidade do Centro Operacional …–Sr. E…–para prestar socorro e protecção ao condutor do CN;
31) O mecânico E…, que se deslocou para o local onde se encontrava a viatura CN imobilizada, constatou ao passar pelo Km 296,570, no sentido Sul/Norte, Da A1, às 00h:39m, a existência de um cão morto no separador central da auto-estrada;
32) O mesmo mecânico, encontrou a viatura CN imobilizada na berma direita, alguns metros para a frente do local onde foi encontrado o aludido cão morto;
33) O animal supra identificado era portador de micro-chip, não tendo sido possível identificar o seu proprietário uma vez que o mesmo nunca procedeu ao registo do aludido animal junto da Direcção-Geral de Alimentação e Veterinária;
34) Na data e hora em que foi participada a ocorrência, o estado do tempo era bom e o piso estava seco;
35) O local do acidente caracteriza-se por ser uma secção corrente da auto-estrada, com o piso em bom estado;
36) A auto-estrada é patrulhada pela C… e pela GNR-BT, 24 sobre 24 horas por dia, todos os dias do ano;
37) No dia do sinistro, os patrulhamentos da área foram e estavam a ser realizados;
38) A Ré efectua vigilância constante e permanente da sua área concessionada através das suas patrulhas de oficiais mecânicos–assistência rodoviária, que regularmente vigiam as infra-estruturas que se encontram espalhadas pelas auto-estradas da sua jurisdição, na detecção e verificação de situações anómalas, pondo termo às mesmas, prestando igualmente assistência aos demais utentes dessas mesmas auto-estradas;
39) Nada tendo sido detectado nos regulares patrulhamentos quanto à existência de um animal nas vias no local onde o acidente ocorreu;
40) Na sequência da comunicação da ocorrência do acidente, e porque assim se processa sempre, a Ré enviou ao local uma equipa para verificar o estado das vedações na zona envolvente da A1 ao quilómetro onde ocorreu o acidente, nada tendo sido detectado de anormal quanto ao seu estado de conservação;
41) À data do acidente, a responsabilidade pela manutenção e conservação da referida Auto-Estrada A1 estava transferida através de contrato de concessão para a tutela da Ré;
42) À data do acidente, a responsabilidade civil decorrente da actividade da Ré encontrava-se transferida para a Chamada mediante contrato de seguro titulado pela apólice n.º ……...
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III. O DIREITO

Apreciemos então as questões postas na apelação e pela ordem cronológica impetrada pela apelante e decorrente da lei.

a)- saber se se verifica a nulidade da sentença recorrida, por haver oposição entre os fundamentos e a decisão da matéria de facto dada como provada.

As causas de nulidade da sentença ou de qualquer decisão são as que vêm taxativamente enumeradas no nº 1 do artigo 615º do CPCivil.
Nele dispõe-se que é nula a sentença quando: al. b) não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; al. c) os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível e al. d) o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Como decorre das alegações recursivas, a Ré apelante imputa à decisão a nulidade do artigo 615.º, nº al. c) do CPCivil, dizendo, em síntese, que nela se refere que o Autor ainda não terá procedido à reparação da viatura automóvel com a matrícula ..-CN-.. e, simultaneamente, condena-se a Recorrente a pagar-lhe o valor da quantia que se apurou corresponder ao montante pago pelo Autor, com a aludida reparação.
A propósito desta nulidade diz, Lebre de Freitas[1] “entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença. Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correcta, a nulidade verifica-se”.
E, como é jurisprudência pacífica, esta nulidade só se verifica quando os fundamentos indicados pelo juiz deveriam conduzir logicamente a um resultado oposto ao que se contém na sentença.
Conforme resulta da sentença e pese embora o esforço argumentativo da Ré apelante para demonstrar o contrário, ela não padece da nulidade que lhe vem assacada.
Como o evidencia a parte dispositiva da referida sentença, nela se condenou a Ré a proceder à reparação da viatura do Autor. E esta condenação está em conciliação com aquilo que havia sido peticionado pelo Autor e também o está com a fundamentação nela vertida.
É certo que a dada altura na mencionada fundamentação se refere e passamos a citar: “(...) Assim sendo, há que condenar a Ré no pagamento da quantia que se apurou corresponder ao montante pago pela Autora (…).
Evidentemente que se tratou de um simples lapso de escrita revelado no próprio contexto da sentença (artigo 249.º do CCivil), uma vez que, na grande maioria dos casos semelhantes, o que se pede é o pagamento daquilo que a parte já antecipadamente despendeu na reparação da viatura.
É preciso não esquecer, tal como se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22/03/2011[2], “Não correspondendo a decisão judicial a um verdadeiro negócio jurídico (a referência a este neste quadro decorre da remissão do artigo 295º do CC), não se traduz ela (a decisão judicial) numa declaração pessoal de vontade do julgador, que possa ser entendida na base da determinação de um propósito subjectivo, assente numa determinada expressão verbal descontextualizada da fundamentação. A decisão vale, pois, objectivamente, enquanto ponto de chegada de um percurso guiado pela causa de pedir e pela fundamentação jurídica que, com base naquela, justificou essa decisão”.
De facto, logo noutro passo dessa decisão se corrige essa trajectória discursiva quando se afirma: “(...) Como danos emergentes, ficou provado que o Autor sofreu danos na sua viatura que carece de reparação, cujo montante ascende a € 9.330,13. Peticionando o Autor, a título principal, a condenação na reparação da viatura, será a acção procedente no que a tal diz respeito (...)”.
Trajectória essa que está, depois, em correspondência com a parte dispositiva da sentença.
Diferente seria, se efectivamente, na parte dispositiva da sentença se tivesse proferido condenação da Ré a pagar ao Autor um qualquer valor da reparação do veículo.
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Resulta, assim, do exposto que a sentença não é nula nos termos propalados pela Ré recorrente, improcedendo, desse modo as conclusões formulados sob os nºs 1ª a 7º das alegações.
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A segunda questão colocada no recurso, prende-se como já acima se referiu, em:

b)- saber se existe fundamento bastante para responsabilizar a Ré pela ocorrência do acidente tal qual ele se revela na factualidade que nos autos ficou demonstrada.

Portanto, em termos gerais, a problemática jurídica subjacente ao caso que nos ocupa, é de saber qual a responsabilidade das concessionárias de auto-estradas pelos acidentes que nelas se verificam em virtude de animais que aí se introduzem.
Matéria, aliás, que durante certo tempo suscitou alguma controvérsia quer na doutrina quer na jurisprudência, onde se perfilaram, em bom rigor, duas teses:
1. A da responsabilidade contratual, segundo a qual se entende que entre o utente da auto-estrada e a concessionária existe um contrato civil, um contrato inominado de utilização da via, que tem como prestações principais o pagamento de uma portagem por parte do utente e a utilização, por este, dessa auto-estrada em comodidade e segurança, existindo ao lado deste contrato um outro de direito público–o contrato de concessão celebrado entre o Estado e a concessionária, sendo que, no caso das auto-estradas sem portagem, como é o caso destes autos (o acidente ocorreu na A29-scut-que á data do acidente não era portagada), considera-se existir, nesta perspectiva contratualista, um contrato com eficácia de protecção para terceiros.[3]
2. A da responsabilidade extracontratual, segundo a qual a responsabilidade da concessionária depende do preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil constantes do artigo 483.º do Cód. Civil. Para esta tese, o único contrato que existe é o que foi celebrado entre o Estado e a concessionária, a que o utente é alheio, de tal forma que este quando paga portagem para entrar na auto-estrada não está a celebrar qualquer contrato, mas apenas a pagar uma taxa que é devida pela utilização de um serviço público.[4]
Evidentemente, que não era indiferente seguir uma ou outra das teses em confronto.
Com efeito, aderindo à primeira das teses isso significaria que contra a concessionária funcionava a presunção de culpa a que se refere o art. 799.º do Cód. Civil, isto é, sobre ela impendia o ónus da prova de que agiu sem culpa, invertendo assim a presunção “juris tantum” imposta por lei (cfr. arts. 342.º, 344.º, nº 1 e 350.º do Cód. Civil).
Optando pela segunda tese face ao disposto no art. 487.º, nº 1 do Cód. Civil, era ao lesado que incumbia provar a culpa do autor da lesão.
Todavia, mesmo no campo da responsabilidade extracontratual, poder-se-ia fazer apelo à presunção de culpa a que alude o art. 493.º, nº 1 do Cód. Civil, tendo em atenção que a concessionária tem em seu poder a auto-estrada atenção (coisa imóvel) no seu todo, integrando vedações, placas de sinalização, separadores de trânsito, sinalização de emergência, com o dever de a vigiar.[5]
Foi então, no confronto destas divergências doutrinais e jurisprudenciais que foi publicada a Lei nº 24/2007, de 18/07.
Consigna o artigo 12.º desta lei o seguinte:
1 – Nas auto-estradas, com ou sem obras em curso, e em caso de acidente rodoviário, com consequências danosas para pessoas ou bens, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança cabe à concessionária, desde que a respectiva causa diga respeito a:
a) Objectos arremessados para a via ou existentes nas faixas de rodagem;
b) Atravessamento de animais;
c) Líquidos na via, quando não resultantes de condições climatéricas anormais.
2 – Para efeitos do disposto no número anterior, a confirmação das causas do acidente é obrigatoriamente verificada no local por autoridade policial competente, sem prejuízo do rápido restabelecimento das condições de circulação em segurança.
3 – São excluídos do número anterior os casos de força maior, que directamente afectem as actividades da concessão e não imputáveis ao concessionário, resultantes de: Condições climatéricas manifestamente excepcionais, designadamente graves inundações, ciclones ou sismos; Cataclismo, epidemia, radiações atómicas, fogo ou raio; Tumulto, subversão, actos de terrorismo, rebelião ou guerra.
Decorre, portanto, deste preceito que no caso o de acidente de viação motivado pelo atravessamento de animais, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança pertence à concessionária.
É certo que, antes da publicação da citada Lei o que se discutia era o ónus da prova da culpa, sendo que actualmente aquele diploma fala em ónus da prova do cumprimento.
Acontece que, essa nuance, não tem, quanto a nós qualquer relevância, pois que, no âmbito da responsabilidade contratual, conforme resulta do estatuído no artigo 799.º, nº 1 do Cód. Civil, cabe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso não procede de culpa sua, decorrendo desta presunção que ela abrange não só a culpa mas igualmente a ilicitude do devedor.[6]
Resulta, assim, do exposto que, no caso em pareço, tendo um animal (cão) entrado na auto-estrada e provocado o acidente em apreciação nos autos, incumbe à concessionária o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança.
Solucionada, assim, a anterior questão cumpre agora, face à matéria factual que consta dos autos, saber se a apelante cumpriu tais obrigações de segurança, que lhe estavam cometidas de acordo com o artigo 12.º, nº 1 da Lei nº 24/2007.
Decorrente do que já supra se referiu, que o legislador, neste preceito, consagrou uma inversão do ónus da prova da culpa quanto ao incumprimento, pela verificação de acidentes rodoviários nas auto-estradas concessionadas causadores de danos em pessoas e bens, provocados pelo atravessamento de animais, deixando, assim, de ter qualquer relevância a discussão sobre se a responsabilidade da concessionária, neste âmbito, é contratual ou extracontratual.
Ora, de acordo com as regras gerais estabelecidas no artigo 342.º, nº 1 do Cód. Civil, por ser facto constitutivo do seu direito, era ao lesado que incumbia demonstrar o nexo de imputação do facto à apelante, a título de culpa pelo não cumprimento das obrigações de segurança.
Acontece que, nas situações previstas no art. 12.º nº 1 da Lei nº 24/2007 esse ónus está invertido, cabendo à concessionária ora apelante, a prova de que tal incumprimento não lhe é imputável.[7]
Ou seja, no citado artigo 12.º consagra-se uma presunção legal de incumprimento das obrigações de segurança, proveniente do facto do acidente ter sido provocado pelo atravessamento de um animal na via, do que resulta, ficar onerada a apelante, entidade a quem está atribuído o dever de zelar pelas condições de segurança da auto-estrada, de provar que cumpriu com todas essas obrigações, e portanto, que o aparecimento do animal na via se ficou a dever a circunstâncias estranhas e por si não controláveis.
Efectivamente, para que se dê como ilidida a citada presunção não basta que a concessionária prove o cumprimento genérico de medidas por si implementadas, com vista a evitar o surgimento de animais nas faixas de rodagem, mesmo que esse cumprimento abranja o tempo e o espaço em que se verificou o acidente.
Na realidade, para conseguir tal desiderato, torna-se necessário demonstrar que a presença do animal se ficou a dever a factores externos não controláveis pela concessionária, ou então que as falhas de segurança foram provocadas por “caso de força maior”.[8]
É que, tendo em conta a multiplicidade de modos possíveis de intromissão do animal na via, a demonstração de que não teve lugar a violação das obrigações de segurança, parece requerer como salienta Sinde Monteiro[9] a prova histórica do acontecimento, aparecendo como insuficiente ou inconclusiva a constatação de que não se detectaram falhas na vedação.
Regressando ao caso dos autos, constata-se que ficou provado que:
“1) No dia 24 de Dezembro de 2011, cerca das 0,30 horas, circulava na Auto-Estrada A1, sentido Sul-Norte, a viatura propriedade do Autor, com a matrícula ..-CN-.., conduzida pelo próprio;
2) A viatura era conduzida pela faixa direita, atento o seu sentido de marcha, a uma velocidade de cerca de 80 Km/hora;
3) Quando circulava ao Km 296,5 da referida auto-estrada, em …, o Autor foi surpreendido pelo aparecimento súbito de um cão de grande porte que, vindo do seu lado esquerdo, do separador central, atravessou a via a correr, tapando-lhe completamente a faixa de rodagem por onde seguia;
4) O que ocorreu quando o Autor se encontrava a poucos metros desse local;
5) Não tendo o Autor quaisquer hipóteses de ver o cão antes de este atravessar a via;
6) Nem de tomar quaisquer medidas que permitissem evitar o acidente, nomeadamente parar ou desviar-se;
7) Pelo que, o Autor embateu com a frente do seu veículo no animal, apanhando-o totalmente em todo o seu comprimento do seu lado direito;
(…)
36) A auto-estrada é patrulhada pela C… e pela GNR-BT, 24 sobre 24 horas por dia, todos os dias do ano;
37) No dia do sinistro, os patrulhamentos da área foram e estavam a ser realizados;
38) A Ré efectua vigilância constante e permanente da sua área concessionada através das suas patrulhas de oficiais mecânicos–assistência rodoviária, que regularmente vigiam as infra-estruturas que se encontram espalhadas pelas auto-estradas da sua jurisdição, na detecção e verificação de situações anómalas, pondo termo às mesmas, prestando igualmente assistência aos demais utentes dessas mesmas auto-estradas;
39) Nada tendo sido detectado nos regulares patrulhamentos quanto à existência de um animal nas vias no local onde o acidente ocorreu;
40) Na sequência da comunicação da ocorrência do acidente, e porque assim se processa sempre, a Ré enviou ao local uma equipa para verificar o estado das vedações na zona envolvente da A1 ao quilómetro onde ocorreu o acidente, nada tendo sido detectado de anormal quanto ao seu estado de conservação”.
Perante, tal factualidade pergunta-se: ilidiu a apelante presunção de incumprimento que sobre si impendia?
A resposta é, quanto a nós, negativa.
O que resulta dessa factualidade é que a apelante provou, genericamente, o cumprimento das suas obrigações de vigilância e de conservação das vedações laterais da auto-estrada.
Todavia, o canídeo conseguiu introduzir-se na auto-estrada, donde se conclui que houve, um incumprimento concreto por parte da apelante, atendendo a que esta, através do contrato que celebrou com o Estado, se obrigou a assegurar permanentemente, em boas condições de segurança e comodidade, a circulação viária na auto-estrada.
Não oferece qualquer dúvida que a introdução de um cão numa auto-estrada coloca sérios problemas de segurança rodoviária. E se um cão surge na via, tal nega a obrigação de segurança viária que cabe à apelante proporcionar aos utentes que nela circulam, correspondendo esse aparecimento a uma importante e perigosa violação da segurança do tráfego automóvel.[10]
Ora, como já atrás se referiu, para que a Ré apelante logre afastar a presunção resultante do art. 12.º, nº 1 da Lei nº 24/2007 que sobre si incide, não lhe basta provar o cumprimento genérico das suas obrigações de vigilância e de conservação das redes laterais da auto-estrada. Torna-se imprescindível provar que, no caso concreto, o cão surgiu na auto-estrada de forma incontrolável para si ou que lá foi colocado, negligente ou intencionalmente, por outrem. Ou seja, a concessionária terá que demonstrar que a introdução do animal na auto-estrada não lhe é, de todo em todo, imputável.
E não se tendo provado a forma como o canídeo que provocou o acidente se introduziu na A1, forçoso é concluir que a concessionária apelante não conseguiu provar que essa introdução não era por si controlável, não lhe sendo, por isso, imputável.
Diante do exposto temos, pois, de concluir que apelante não logrou afastar a presunção de incumprimento que sobre si impendia, decorrente do art. 12.º nº 1 da Lei nº 24/2007.
É certo que, para funcionar aquela presunção, as causas do acidente-atravessamente do canídeo-terão de ser confirmadas no local pela autoridade policial-artigo 12.º nº 2 da citada lei o que, no caso, não está demonstrado nos autos.
Mas está demonstrado que:
29) A Ré tomou conhecimento do sinistro cerca das 00:33horas, através de comunicação para o Central de Comunicações do oficial de mecânica que patrulhava o local onde o CN se encontrava imobilizado;
30) Imediatamente, a referida Central de Comunicações deu indicações ao mecânico de serviço na área de responsabilidade do Centro Operacional …–Sr. E…–para prestar socorro e protecção ao condutor do CN;
31) O mecânico E…, que se deslocou para o local onde se encontrava a viatura CN imobilizada, constatou ao passar pelo Km 296,570, no sentido Sul/Norte, Da A1, às 00h:39m, a existência de um cão morto no separador central da auto-estrada;
32) O mesmo mecânico, encontrou a viatura CN imobilizada na berma direita, alguns metros para a frente do local onde foi encontrado o aludido cão morto”.
Ora, mesmo que a autoridade policial não tenha verificado no local as causas do acidente, isso nunca pode ser preclusivo de o lesado poder fazer a prova da existência do animal na via, socorrendo-se de outros meios probatórios e, com isso beneficiando, ainda assim, da presunção de incumprimento estabelecida no nº 1 do artigo 12.º.
A obrigatoriedade da presença policial no local do acidente, pode ter, como objectivo evitar situações de fraude mas, seguramente, não pode impedir o lesado de fazer a prova da causa do acidente por qualquer meio probatório em direito admissível.
Pense-se, por exemplo, no caso em que o cão não se encontre morto ou ferido, no local do acidente porque, mesmo colhido por um dos veículos conseguir fugir desse local.
Nestas situações, está o lesado impedido, com recurso à prova testemunhal, de demonstrar nos autos a presença do cão na via?
Seguramente que não.
Mas ainda que assim não se entenda, o recurso não teria melhor sorte.
Na verdade, o nosso CCivil permite perspectivar os factos de molde a poder ser justificada, a mais que um título, a inversão do ónus da prova da culpa.
Desde logo, no plano da responsabilidade civil extracontratual, a aplicação do artigo 493.º, n.° 1, mas pelo ângulo do dever de vigilância sobre uma coisa imóvel, a auto-estrada, considerada esta por um prisma funcional como uma globalidade.
A entidade gestora cabe garantir a segurança da utilização, sendo esses níveis definidos, inter alia, pele contrato de concessão, onde se contém a referida obrigação de vedação em toda a extensão.
Desde que se verifique uma falha objectiva (uma anormalidade) e exista um nexo de causalidade entre essa falha e os danos, pode dizer-se que o acidente foi causado pela coisa auto-estrada.
No âmbito da responsabilidade contratual, havendo lugar ao pagamento de portagem, um contrato de utilização de direito privado, em que os deveres da concessionária, em matéria de segurança se hão-de medir pela bitola das obrigações assumidas face ao Estado. Como diz Sinde Monteiro[12] “A actividade da entidade gestora pode bem ser vista como um negocio (por detrás do manto diáfano do serviço público), para mais explorada com fins lucrativos, não se vendo motivos decisivos para distinguir o pagamento de um quantitativo pela utilização da auto-estrada, aliás, proporcional à distância percorrida, do da compra de um título de transporte ferro viário, possa embora a lei baptizar aquele de taxa e não de preço (de direito privado)”.
Todavia, haja ou não pagamento de portagem um “contrato com eficácia de protecção para terceiros” (sem interesse, contudo, para quem aceite existir contrato), dando-se este alcance ao contrato de concessão, desde logo com apoio no próprio preâmbulo do Decreto-Lei aprovador das bases da concessão, que faz alusão à “eficácia externa relativamente às partes no contrato”.
A esta relação especial, tecnicamente do mesmo tipo da “culpa na formação dos contratos” regulada no artigo 227.º do Código Civil (também aqui se está perante uma “relação obrigacional sem deveres primários de prestação) é de aplicar o estatuto contratual e com isso a inversão do ónus da prova previsto no artigo 799.º do C.Civil, com a concretização da base XXXVI, nº 2 (anexa ao D. Lei 294/97 de 24/10) do contrato de concessão a qual obriga à demonstração por parte da concessionária de que as falhas de segurança foram provocadas por “caso de força maior”.[13]
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Improcedem, assim, as restantes conclusões formuladas pela apelante e, com elas, o respectivo recurso.
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IV-DECISÃO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente confirmando, assim, a decisão recorrida.
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Custas da apelação pela recorrente (artigo 527.º, nº 1 do C.P.Civil).
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Porto, 12 de Janeiro de 2015.
Manuel Domingos Alves Fernandes
Caimoto Jácome
Macedo Domingues
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[1] In “Código de Processo Civil Anotado”, volº 2, Coimbra, 2001, pág. 670.
[2] In www.dgsi.pt.
[3] Na nossa jurisprudência, entre outros, Ac. STJ de 17.2.2000, CJ STJ, ano VIII, tomo I, págs. 107/110; Ac. Rel. Coimbra de 8.5.2001, CJ, ano XXVI, tomo III, págs. 9/10; Ac. STJ de 22.6.2004, p. 04A1299, disponível in www.dgsi.pt; na nossa doutrina, Sinde Monteiro, “Revista de Legislação e Jurisprudência”, anos 131- 41 e segs., 132º 29 e segs. e 133º 27 e segs.
[4] Cfr. Neste sentido Ac. STJ de 20.5.2003, p. 03A1296, disponível in www.dgsi.pt.; Ac. STJ de 12.11.1996, in BMJ nº 461, pág. 411; Ac. STJ de 14.10.2004, p. 04B2885, disponível in www.dgsi.pt.; Menezes Cordeiro, “Igualdade Rodoviária e Acidentes de Viação nas Auto-Estradas”, Estudo do Direito Civil Português, 2004, pág. 56 e Carneiro da Frada, in Boletim da Associação Sindical dos Juizes Portugueses nº 6, Setembro de 2005 pág. 13 e seguintes.
[5] Porém, como salienta Sinde Moteiro Rev. Leg. e Jur. Ano 131 já citada, pag. 379 este estatuto de responsabilidade não deverá ser transposto para todo e qualquer estrada, por aplicação mecânica do artigo 493.º. Pressuposto implícito é o da possibilidade do exercício da vigilância, sem o que haverá que retornar à regra geral do artigo 483.º.
[6] Cfr. neste sentido Carneiro da Frada “A Business Judgment Rule no quadro dos deveres gerais dos administradores” in Revista de Direito Ano 67 Vol. I pág. 15 onde refere que a presunção contida neste preceito estende-se à existência da ilicitude e à causação, por ela, do incumprimento.
[7] Cfr. Ac. Rel. Porto de 17.11.2009, p. 1803/07.0 TBMAI.P1 disponível in www.dgsi.pt. (relatora Sílvia Pires) e Ac. STJ de 9.9.2008, p. 08P1856, disponível in www.dgsi.pt., (relator Garcia Calejo) também citado na sentença recorrida.
[8] Cfr. Vaz Serra, Responsabilidade Contratual e Responsabilidade Extracontratual, Bol. Min. Jut. nº 85
[9] Ver. Leg. Jur. Ano 131, pág. 95.
[10] Cfr. Ac. STJ de 9.9.2008, p. 08P1856, disponível in www.dgsi.pt..
[11] Cfr. Sinde Monteiro, Rev. Leg. Jur. Ano 131 págs. 95 e 96.
[12] Cfr. Sinde Monteiro, Rev. Leg. Jur. Ano 131 pág. 95.
[13] Cfr. Sinde Monteiro, Rev. Leg. Jur. Ano 131 págs. 95 e 96.