Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
323/12.6TUPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA JOSÉ COSTA PINTO
Descritores: DEPOIMENTO PRESTADO PERANTE PERITO AVERIGUADOR
DEPOIMENTO TESTEMUNHAL
VALOR PROBATÓRIO
Nº do Documento: RP20141006323/12.6TUPRT.P1
Data do Acordão: 10/06/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: I - Os depoimentos prestados perante o perito averiguador que procedeu à averiguação do sinistro por incumbência da seguradora, constituem depoimentos testemunhais escritos que não têm valor probatório porque obtidos fora do condicionalismo prescrito no Código de Processo Civil.
II - A descaracterização do acidente, no caso da 2.ª parte da alínea a) do nº 1 do art. 7.º da LAT de 1997, exige, além do mais, a existência de condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 323/12.6TUPRT.P1
4.ª Secção

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:
II
1. Relatório
1.1. B…, intentou a presente acção declarativa com processo especial emergente de acidente de trabalho patrocinado pelo Digno Magistrado do Ministério Público contra C… – Seguros Gerais, S.A., e D…, S.A., peticionando que:
1.1.1. a Ré C… – Seguros Gerais, S.A., seja condenada a pagar à Autora as seguintes quantias:
● a quantia de € 10,00 a título de despesas de transporte;
● a quantia de € 509,25 a título de indemnização pelo período de Incapacidade Temporária Absoluta entre 17.03.2012 e 30.04.2012, relativo aos 45 dias não pagos dos 112 de ITA;
● a quantia correspondente à sua quota-parte de responsabilidade do capital de remição de uma pensão anual de € 293,21 com início em 01-05-2012;
1.1.2. a Ré D…, S.A., seja condenada a pagar à Autora as seguintes quantias:
● a quantia de € 45,42 a título de indemnização pelo período de Incapacidade Temporária Absoluta entre 10.01.2012 e 30.04.2012, num total de 112 dias, relativo ao subsídio de alimentação não transferido para a seguradora;
● a quantia correspondente à sua quota-parte de responsabilidade do capital de remição de uma pensão anual de € 293,21 com início em 01-05-2012;
Para tanto alegou, em síntese: que foi vítima de um acidente de trabalho no dia 9 de Janeiro de 2012, que lhe causou as lesões descritas nos autos, que lhe determinaram, como consequência directa e necessária, 112 dias de Incapacidade Temporária Absoluta entre 10 de Janeiro de 2012 e 30 de Abril de 2012 e, após alta, ficou a autora afectada de uma Incapacidade Permanente Parcial de 6 %; que na ocasião se encontrava ao serviço da ré D…, S.A., ao tempo sua entidade empregadora, no respectivo local de trabalho e também dentro do seu horário de trabalho; que auferia então o salário base de € 485,00 vezes 14 meses/ano mais € 17,38 vezes 11 meses/ano a título de subsídio de alimentação, encontrando-se a responsabilidade infortunística transferida, através de contrato de seguro titulado pela apólice n.º …………./., mas apenas pelo salário de € 485,00 vezes 14 meses/ano.
Ambas as RR contestaram – a R. empregadora a fls. 92 e ss. e a R. seguradora a fls. 121 e ss.
A R. empregadora aceitou a relação laboral e a verificação do acidente, mas impugnou a sua caracterização como acidente de trabalho e a factualidade relativa às consequências do acidente (lesões, incapacidades e despesas), invocando o seu desconhecimento, e alegando, também, que a transferência de responsabilidade para a ré seguradora através do contrato de seguro abrange a totalidade da retribuição auferida pela autora.
A R. seguradora aceitou na contestação a transferência de responsabilidade quanto ao salário de € 485,00 X 14 meses/ano e impugnou a matéria reportada à ocorrência do acidente pela forma narrada na petição inicial, alegando factos tendentes a demonstrar que o acidente ocorreu porque a sinistrada actuou à revelia da sua entidade patronal e da própria empresa onde desempenhava as suas funções de trabalhadora de limpeza, tendo sido a sua desobediência e desrespeito pelas ordens superiores a causa directa do sinistro e, consequentemente, das suas lesões, pelo que tal constituiu um comportamento negligente, logo, descaracterizador do acidente, nos termos do artigo 14, nº 1 al. b) da Lei 98/2009 e, de qualquer forma, agiu de forma temerária e violadora não só das mais basilares regras de cuidado como do mais elementar bom senso, pelo que o acidente não é reparável como acidente de trabalho, estando descaracterizado. Impugna ainda que a autora esteja afectada de IPP no grau que alega e, bem assim, a factualidade respeitante à invocada despesa. Requereu, a final, a realização de exame por junta médica.
Foi proferido despacho saneador, e foram, também, seleccionados os factos assentes e organizada a base instrutória, que não foram objecto de reclamação.
Organizado o apenso relativo à fixação da incapacidade da A. (apenso A) e ordenada a realização de junta médica, o Mmo. Juiz a quo proferiu decisão final no apenso, fixando à sinistrada ITA desde a data do acidente até 30 de Abril de 2012, data da alta, e uma IPP de 6% desde então.
Procedeu-se ao julgamento com observância das formalidades legais e foi decidida a matéria de facto em litígio (fls. 224 e ss.), que não foi objecto de reclamação.
Após, o Mmo. Juiz a quo proferiu sentença que terminou com o seguinte dispositivo:
«Nos termos e fundamentos expostos, julgo a presente acção parcialmente procedente, por parcialmente provada, condenando as ré C… - Seguros Gerais, S.A. (1.ª demandada), a pagar à autora o capital de remição correspondente a uma pensão, no valor anual de € 293,21, com início em 01 de Maio de 2012, assim como a pagar-lhe a quantia (global) de € 554,67, a título de diferenças de indemnização por incapacidade temporária, todas essas quantias acrescidas de juros de mora, à taxa legal, desde a data da alta até efectivo e integral pagamento.
Absolve-se a 2.ª ré, D…, S.A., do pedido.
Custas pela seguradora.
Valor da acção: € 4.488,38.
Oportunamente, proceda-se ao cálculo do capital de remição e remeta-se os autos ao M.º Público.»
1.2. A R. seguradora, inconformada, interpôs recurso desta decisão, tendo formulado, a terminar as respectivas alegações, as seguintes conclusões:
“1. O presente recurso sobre a douta decisão proferida quanto à matéria de facto funda-se na convicção da Seguradora Apelante de que o Douto Tribunal “a quo” terá efectuado uma incorrecta apreciação da prova testemunhal e documental e, concretamente, na instrução da matéria plasmada nos QUESITOS 8º, 9º, 10 e 14º da douta base instrutória fixada, e que foram, no seu essencial, considerados NÃO PROVADOS.
2. Ora, perante a prova produzida, impunha-se decisão diversa da proferida quanto à supra aludida matéria de facto pois, dos depoimentos testemunhais, conjugados com a prova documental, resultou prova bastante para se considerar provada a factualidade inserta nos supra referidos quesitos.
3. Os concretos meios probatórios que se entende terem sido erradamente apreciados e cujo reexame se solicita agora em sede recursiva são os seguintes:
a. DEPOIMENTOS TESTEMUNHAIS:
• E... (gravado em CD único, produzido em audiência de 17/03/2014, de 11:04:45 a 11:14:21)
• F... (gravado em CD único, produzido em audiência de 17/02/2014, de 11:16:28 A 11:48:50)
• G... (gravado em CD único, produzido em audiência de 17/03/2014, de 12:06:58 A 12.30:35)
b. PROVA DOCUMENTAL:
• Depoimentos escritos colhidos em sede de averiguação do sinistro e junto aos autos como docs. 2 a 4 da contestação da seguradora R.
• Relatório médico e relatório de alta do Centro Hospitalar São João, EPE e juntos aos autos a fls….
4. Pois bem, salvo o devido respeito por diverso entendimento, dos citados elementos probatórios resulta à saciedade que as lesões (queimaduras químicas nas mãos) de que padece a sinistrada, nunca poderiam ter sido causadas pela utilização de um dos produtos de limpeza que a D... providencia para que a sinistrada desempenhasse as suas funções.
5. Resulta ainda inequívoco que a concreta tarefa de desentupir canos não estava acometida à sinistrada e que, portanto, extrapolava as funções desta e que a sinistrada bem sabia que não devia e não podia utilizar outros produtos que não aqueles que a D... lhe fornecia e, bem assim, que não devia e não podia desentupir os canos, sobretudo sem conhecimento e sem autorização da D..., sua entidade empregadora.
6. Todos estes elementos probatórios – que se entende terem sido erradamente apreciados pelo Mmo Tribunal “a quo” – convergem no sentido de que a sinistrada utilizou, sem o conhecimento, sem a anuência e contra as instruções da sua entidade empregadora, o produto químico destinado a desentupir canos, e por seu livre alvedrio, bem sabendo que tal concreta tarefa – desentupir o poliban – não lhe tinha sido incumbida, seja pela D..., seja pela H....
7. Face a tais evidências, e sempre com o máximo respeito por diverso entendimento, podia e devia o Mmo. Tribunal, legitimamente considerar provado que, efectivamente, a sinistrada utilizou o produto desentupidor de canos, o que lhe provocou as queimaduras químicas nas mãos e antebraço.
8. Face ao supra aludido, e reexaminando as supra indicadas provas testemunhais e documentais, aliadas à regra da experiência e, bem assim, recorrendo as presunções judiciais, deveria, pois, o Mmo. Tribunal “a quo” ter julgado PROVADOS os factos constantes dos quesitos 8º, 9º, 10 e 14º da douta base instrutória
9. Ao contemplar diverso entendimento, a douta sentença proferida incorre em verdadeiro erro na apreciação da prova e, consequentemente, erro de julgamento.
10. Por esse motivo deverá ser revogada, nos termos supra expostos.
O DIREITO:
11. Da propugnada alteração da decisão sobre a matéria de facto resulta, necessariamente, a drástica modificação da decisão de mérito da causa.
12. A matéria de facto considerada provada é suficiente e adequada para que se considere descaracterizado o acidente de trabalho em apreço nos presentes autos, e por via da aplicação do vertido no art. 14º n.º 1 da NLAT (Lei 98/2009, de 4 de Setembro)
13. Resulta incontroverso que o evento em apreços nos presentes autos se verificou no local e tempo de trabalho, e ainda que o mesmo constitui um acidente de trabalho, estando igualmente demonstrada a existência de nexo de causalidade entre o acidente e as lesões e sequelas de que a sinistrada ficou a padecer.
14. Todavia, a Seguradora R. declinou a responsabilidade pela reparação do danos emergentes do acidente, considerando que o mesmo ocorreu por força da violação, sem causa justificativa, por parte do sinistrada, das condições de segurança estabelecidas pela entidade empregadora e/ ou previstas na lei, e pela negligência grosseria pela mesma protagonizada.
15. Volvendo ao acidente que constitui a causa de pedir nos presente autos, temos que, por força da ora pugnada alteração da decisão quanto à matéria de facto, urge considerar verificado fundamento de descaracterização do sinistro previsto no art 14º n.º 1 al a) e b) da NLAT.
16. A conduta protagonizada pela sinistrada constituiu um verdadeiro atropelo, sem causa justificativa, das regras de segurança que lhes foram impostas pela entidade empregadora, isto porque foi-lhe expressamente referido que lhe estava vedada a utilização de quaisquer produtos para além daqueles que a própria empregadora lhe fornecia e, bem assim, porque a tarefa de desentupir canos também não fazia parte do elenco das suas funções.
17. A sinistrada teve formação adequada para saber manusear os produtos de limpeza sendo, portanto, conhecedora do tipo de produtos que podia utilizar e, bem assim, como os utilizar.
18. O desentupidor de canos por si utilizado continha na sua embalagem expressa recomendação no sentido de que, para o seu manuseamento, era imperiosa a utilização de vestuário adequado, pois quem, em contacto com a pele o mesmo seria susceptível de causar queimaduras graves, dado ser composto por ácido sulfúrico, componente esse que é sobejamente conhecido como corrosivo.
19. Mais, bem sabia a sinistrada que não fazia parte das suas funções desentupir canos ou polibans e que, ao fazê-lo, estava a ir contra as ordens e instruções da sua entidade empregadora.
20. Não obstante, voluntária e conscientemente decidiu utilizar o desentupidor de canos, numa função para além daquelas que lhe estavam acometidas.
21. Salvo o devido respeito por diverso entendimento, considera a R. Seguradora que esta conduta encetada pela sinistrada, tendo sido inelutavelmente causal do acidente, constituiu verdadeiro atropelo das concretas regras de segurança que lhe tinham sido impostas pela entidade empregadora.
22. Atropelo esse totalmente carecido de causa justificativa, à luz do conceito vertido no art. 14º n.º 2 al a) da NLAT.
23. Nessa conformidade, deverá ser descaracterizado o acidente de trabalho sofrido pelas referida sinistrada, por força da aplicação do disposto no art. 14º n.º 1 al a) da NLAT, absolvendo-se a Seguradora R. do pedido contra si formulado.
24. Ao consignar diverso entendimento, andou mal o Meritíssimo Tribunal “a quo” incorrendo em violação do disposto no art. 14º da NLAT, entre outros.
25. Deverá, pois, a decisão recorrida ser revogada, e nos termos supra expendidos absolvendo-se a Seguradora R. dos pedidos contra si formulados.
NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO QUE V. EXAS. DOUTAMENTE SUPRIRÃO, DEVERÁ SER CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO E REVOGADA A DOUTA SENTENÇA PROFERIDA, NOS TERMOS SUPRA EXPOSTOS, ASSIM SE FAZENDO, TÃO SOMENTE, A HABITUAL E SÃ JUSTIÇA!.”
1.3. A R. D… apresentou contra-alegações nos termos de fls. 274 e ss., as quais conclui nos seguintes termos:
“1. Veio o recurso interposto pela 1.ª R. C... – Seguros Gerais, S.A. da sentença que a condenou a pagar à A. o capital de remição correspondente a uma pensão, no valor anual de €293,21, com início em 01 de Maio de 2012, assim como a pagar a quantia (global) de € 554,67, a título de diferenças de indemnização por incapacidade temporária, todas essas quantias acrescidas de juros de mora, à taxa legal, desde a data da alta até efectivo e integral pagamento.
2. A sentença recorrida absolveu a 2.ª R. D... de todo o peticionado.
3. Conforme se demonstrará, não merece qualquer censura a sentença proferida pelo Tribunal a quo na parte que absolve a 2.ª R. D... do pedido.
4. Ora, ficou assente que, no âmbito da sua actividade, a 2.ª R. D... tem a sua responsabilidade por acidentes de trabalho transferida para a 1.ª R. C..., através da Apólice n.º ............./..
5. A 2.ª R. D... tinha assim transferido para a 1.ª R. C... a sua responsabilidade civil por eventual acidente de trabalho que vitimasse ao seu serviço a A., cobrindo o contrato de seguro, não só o valor da retribuição base, no valor de € 485,00 x 14 meses/ano, bem como, o subsídio de alimentação de € 17,38 x 11 meses,
6. Uma vez que estamos perante um seguro variável ou por “folhas de férias” e na “folha de férias” de Janeiro de 2012, data do acidente, enviada à 1.ª R. C..., estava contemplado o devido subsídio de alimentação (calculado e pago proporcionalmente, tendo em conta que a A. trabalha a tempo parcial), documento aceite e não impugnada pela 1.ª R. C....
7. Desta forma, transferida a responsabilidade através do contrato de seguro, é a R. C... responsável pela reparação do acidente de trabalho.
8. Não obstante, cabe esclarecer que, aquando da integração da A. na 2.ª R. D..., no dia 30/09/2010, foi prestada à mesma a respectiva formação, com o objectivo de desenvolver as competências necessárias ao desempenho de uma actividade profissional, através da aquisição/actualização de conhecimentos e de práticas profissionais.
9. Bem como, foi transmitido á A., a política da qualidade (ética, responsabilidade social, ambiente e SHT), normas internas, descrição de funções, informações úteis, produtos de limpeza, código de cores, manutenção/utilização de equipamentos, e entregue o respectivo Manual Operacional.
10. Por todo o supra exposto, deverá improceder o presente recurso, mantendo-se inalterada a sentença recorrida na parte que absolve a 2.ª R. D... do pedido.”
1.4. A A., patrocinada pelo Ministério Público, respondeu à alegação da R. nos termos de fls. 279 e ss., defendendo a improcedência do recurso e manutenção da sentença recorrida.
Concluiu do seguinte modo:
“1. O acidente de que a sinistrada foi vítima é de trabalho e como tal indemnizável.
2. O tribunal “a quo” fez uma correcta apreciação da matéria de facto dada como provada, designadamente, no que concerne a ter considerado como provada a matéria constante dos quesitos 1.º, 2.º e 3. da base instrutória, bem como ao dar como não provada a matéria dos quesitos 8.º, 9.º, 10.º e 14.º, tendo o tribunal agido de acordo com os ditames do artigo 607.º, n.º 5 do CPC.
3. Não se provaram factos que demonstrem, inequivocamente, ter a sinistrada agido com negligência grosseira nem que o acidente ocorreu por culpa exclusiva desta.
4. Não tendo o recorrente indicado prova que imponha decisão diversa da tomada pelo Tribunal, designadamente, no que se refere à resposta aos quesitos 8.º, 9.º, 10.º e 14.º, tudo conforme artigo 640.º, n.º 1 b) do CPC.
5. Como é sabido a “descaracterização” do acidente constitui um facto impeditivo do direito reclamado pela Autora, competindo à Ré, por via disso, a prova da materialidade integradora dessa descaracterização – art.º 342º, n.º 2 do Código Civil.
6. Termos em que deve o recurso ser declarado improcedente, devendo VEXAS confirmar a sentença recorrida. Assim, decidindo, farão JUSTIÇA.”
1.5. Mostra-se lavrado despacho de admissão a fls. 298, sendo fixado efeito devolutivo ao recurso.
Colhidos os “vistos” e realizada a Conferência, cumpre decidir.
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2. Objecto do recurso
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Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente – artigo 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho[1], aplicável “ex vi” do art. 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam à apreciação deste tribunal prendem-se com a análise:
1.ª – da impugnação da decisão de facto no que diz respeito aos pontos 8º, 9º, 10º e 14º da base instrutória;
2.ª – de saber se o acidente sub judice se deve considerar descaracterizado enquanto acidente de trabalho por se dever a violação de regras de segurança por parte da sinistrada.
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3. Fundamentação de facto
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3.1. Os factos materiais relevantes para a decisão da causa foram fixados pela sentença recorrida nos seguintes termos:
«[...]
1 - À data de 09 de Janeiro de 2012, a autora era trabalhadora, exercendo funções de empregada de limpeza, da aqui 2.ª ré, “D…”.
2 - Auferia a Autora, em contrapartida, a retribuição mensal de € 212 19 X 14 meses acrescida de € 17,38 X 11 meses de subsídio de alimentação.
3 - A Ré “D…, SA” tinha transferido para a Ré “C…” a sua responsabilidade civil por eventual acidente de trabalho que vitimasse ao seu serviço a Autora conforme apólice nº …………./. junta aos autos (documento de fls 10 dos autos), na modalidade de seguro de “prémio variável”, cobrindo o contrato de seguro, pelo menos, o valor da retribuição base (equiparada), no valor de € 485,00 X 14 meses/ano.
4 - A Ré “C…”, em tentativa de conciliação realizada em 30.04.2013, declinou qualquer responsabilidade, pelo que não aceitou o acidente como de trabalho, nem o nexo de causalidade entre acidente e lesões, atribuindo o acidente a inobservância das normas de higiene e segurança no trabalho bem como a negligência grosseira por parte da sinistrada. Também não aceitou o resultado da perícia médica e não aceitando pagar qualquer quantia à Autora. Aceitou apenas a transferência da responsabilidade pela retribuição de € 485,00 X 14 meses.
5 - Na mesma diligência pela Ré “D…, SA” foi dito aceitar o acidente como de trabalho, aceitar o nexo de causalidade entre o acidente e as lesões, Não aceita, contudo, o resultado da perícia médica e não aceita a responsabilidade pela retribuição de € 17,38 X 11 meses a título de subsídio de alimentação, por achar que o mesmo está transferido para a entidade seguradora. Pelo que não aceita pagar qualquer quantia à Autora.
6 - A Autora nasceu em 09 de Novembro de 1960 (doc. nº1; certidão de assento de nascimento de fls 82 e ss).
7 - No dia 09 de Janeiro de 2012, a autora encontrava-se a prestar o seu trabalho para a Ré “D…”, durante o seu horário de trabalho, entre as 06.00 horas e 09.30 horas, a fazer limpezas nas instalações da H…, na Rua …, no Porto, um dos locais normais de trabalho da autora.
8 - Quando, a hora que em rigor não se apurou mas situada entre as 06:00 e as 08:00 horas, ao utilizar um produto este lhe queimou as mãos.
9 - Do acidente descrito, resultaram para a Autora lesões nas mãos, que obrigaram a intervenção cirúrgica e terapia, conforme o exame pericial médico realizado no INML e constante dos autos que aqui se dá por integralmente reproduzido, nomeadamente na parte em que descreve as lesões e/ou sequelas relacionáveis com o evento.
10 - Os produtos de limpeza, propriedade da R. “D…”, encontram-se armazenados num anexo da “H…”, destinado para esse efeito, sito no R/C do edifício.
11 - Bem como com os utensílios adequados à actividade que desenvolve.
12 - À data do acidente existia nas instalações da “H…” um produto com a designação “Desentupidor de Canos Extra Forte” com a marca …, que possui na sua composição química ácido sulfúrico concentrado em 66%, para cujo manuseamento é exigido o recurso a vestuário de protecção adequado, sob pena de provocar queimaduras graves quando em contacto com a pele.
13 - A R. “C…” pagou à autora, respeitante à indemnização pela ITA até 16.03.2012, o montante de € 897,04.
14 - A R. “D…” tem como actividade a prestação de serviços de limpeza gerais, industriais e de manutenção, embelezamentos e acabamentos, comercialização de produtos e equipamentos de limpeza.
15 - A A. desde 30/09/2010 que desempenha para a 2.ª R. as funções de Trabalhadora de Limpeza, realizando a sua prestação de trabalho no cliente H…, no Porto.
16 - Aquando da integração da A. na R. empregadora, no dia 30/09/2010, foi prestada à mesma formação, com o objectivo de desenvolver as competências necessárias ao desempenho da sua actividade profissional, através da aquisição/actualização de conhecimentos e de práticas profissionais.
17 - Foi transmitido á trabalhadora, ora A., as normas internas, descrição de funções, informações úteis, produtos de limpeza, código de cores, manutenção/utilização de equipamentos.
No âmbito do processo apenso – de incidente para fixação de incapacidade – foi fixada à sinistrada uma ITA de 10/01/2012 a 30/04/2012 e a incapacidade parcial e permanente (IPP) de 6%, reportando-se a data da alta a 30/04/2012.
[...]».
Em fundamento da sua convicção probatória, o Mmo. Juiz a quo exarou as seguintes considerações:
«[…]
Quanto à matéria que tange com a ocorrência do acidente (designadamente, quesito 2.º), diremos que, não ficando esclarecidos dos exactos contornos do mesmo, ficamos contudo plenamente convencidos da sua verificação, nos termos em que o consideramos provado, v.g. com base nos depoimentos das testemunhas I… e J…, trabalhadores da H…, e que quando chegaram ao trabalho no dia em questão (cerca das 08:40 horas e das 08:00 horas, respectivamente, logo souberam do acidente (ter a autora “queimado” as mãos com um líquido), em termos que o não puseram em dúvida, e tendo a testemunha J… falado directamente com a autora e constatado o estado em que tinha as mãos, sendo que também a testemunha K…, Chefe de armazém na H… e que no dia em questão “chegou mais tarde”, sabido, nesse mesmo dia e pelos colegas, do acidente, o mesmo se tendo passado com a testemunha F…, repete-se, trabalhadora da D…, para quem exercia as funções de supervisora e que era superiora hierárquica da autora, e a quem esta, após o acidente, ligou a dar conta do acidente que sofrera (consigna-se que não se descortinou qualquer contradição assinalável entre os depoimentos prestados pelas testemunhas J… e F… e as «declarações» que subscreveram conforme documentos de fls 143 e 147, respectivamente); também foi importante o conteúdo do documento de fls 55/56, Relatório de episódio de urgência, do dia 09.01.2012.
No que à matéria do quesito 3.º diz respeito, foram igualmente importantes para formar a nossa convicção todos os registos/relatórios de natureza clínica juntos aos autos e muito particularmente documentos de fls 23 a 25, 31 a 36, 55 a 59, 62 a 64 e “auto de exame por junta médica” que consta do apenso para fixação de incapacidade. Ainda no que se refere à matéria de facto provada, diremos que o depoimento da já mencionada testemunha F… foi outrossim importante para a convicção que formamos relativamente à matéria dos quesitos 6.º, 7.º, 11.º, 12.º, 13.º, 16.º, 17.º, 18.º e 19.º, sendo certo que para a resposta dada ao quesito 16.º foi importante o conteúdo do documento (certidão) junto a fls 99 e ss e para a resposta que tiveram os quesitos 18.º e 19.º os documentos de fls 113 e 114, notando-se que o de fls 113, “Ficha de formação profissional”, mostra-se assinado pela aqui autora. E, tentando ainda especificar, quanto à matéria dos quesitos 11.º, 12.º e 13.º, e obviamente na medida que a consideramos provada, tivemos ainda em consideração o depoimento da testemunha G…, perita averiguadora que procedeu à averiguação do sinistro aqui em causa, e que explicou as diligências que nesse âmbito efectuou, designadamente que se deslocou ao local do acidente (H…) e que recolheu os depoimentos constantes de fls 140, 143, 147, e bem assim o conteúdo dos documentos juntos aos autos de fls 145 a 154 e a fls 219.
Quanto à matéria do quesito 15.º, baseamo-nos essencialmente no depoimento da testemunha L…, que trabalha para a ré seguradora, no documento de fls 19, e também o que a própria autora alegou em sede de tentativa de conciliação e em 16.º da petição inicial.
No que tange à matéria de facto que não teve resposta de provado, ou na medida em que a matéria do respectivo quesito não se considerou provada, tal ficou a dever-se à falta de prova com um mínimo de credibilidade e consistência que a factualidade em questão se verificou.
Também procurando aqui demonstrar essa falta ou insuficiência de prova, diremos que ninguém assistiu ao acidente, e a autora, mau grado as contradições apontadas pelas rés, não admitiu ter utilizado – aquando do acidente - o produto referido nos quesitos 11.º e 12.º, mas que estava a utilizar um outro produto, que se encontrava num recipiente sem rótulo, e recipiente esse semelhante aqueles que era usual a sua entidade empregadora fornecer-lhe para utilizar nas suas tarefas de limpeza e que se encontrava no local em que estes eram habitualmente guardados, sendo ainda certo que a versão que a autora deu em audiência, quanto à tarefa que estava a executar na ocasião do acidente, é consentânea com a que consta da participação do acidente que consta de fls 2 dos autos e por si subscrita como com aquela que referiu aos Sr.s peritos do INML, atento o que dos respectivos relatórios consta (cf. fls 24 e 63 dos autos).
Por outro lado, embora enfatizando que a autora recebeu formação no sentido de só utilizar produtos fornecidos pela sua entidade empregadora (2.ª ré) e que esta não forneceu à autora o produto referenciado nos quesitos 11.º e 12.º ou outro de características semelhantes (produto corrosivo), e ainda que não fazia parte das funções da autora desentupir canalizações, admitiu contudo que, na verdade, não sabia que líquido estava a autora a utilizar quando se deu o acidente, como admitiu que os trabalhadores da H… por vezes também colocavam produtos por eles utilizados no mesmo local em que eram guardados os produtos e utensílios de limpeza fornecidos pela 2.ª ré, e ainda que a autora também obedecia às ordens da D.ª M…a (ao tempo trabalhadora da H…, e que entretanto faleceu).
Consigne-se que a testemunha K… (Chefe Geral de Armazém na H…) por seu turno referiu que por vezes ele próprio, quando acontecia de se entupir algum cano nas casas de banho ou no balneário (“Poliban”), dizia à D.ª M… “olhe aquilo está entupido” e que depois a D.ª M… providenciava por que fosse desentupido, admitindo a testemunha, e espontaneamente (embora, no decurso do depoimento, viesse depois a declarar que de facto não sabia se a autora fazia realmente isso ou não), como provável que a D.ª M… encarregasse a autora dessa tarefa (desentupir os canos). Por isso, ainda porque a autora, nas declarações que lhe foram tomadas contrariou frontalmente o que dele consta, desvalorizamos o constante do «depoimento» recolhido pela já mencionada testemunha G… (perita averiguadora) da referida D.ª M… – M1… -, constante de fls 140 dos autos, acontecendo que tendo a mesma, ao que foi dito por outras testemunhas (v.g. pela testemunha G…), falecido pouco tempo (cerca de dois meses) após o acidente aqui em causa, não foi possível tomar-lhe agora qualquer esclarecimento ou confrontá-la com afirmações dissonantes do por si então declarado.
Ante tudo o que ficou dito, ficamos com sérias dúvidas quanto à tarefa que realmente estava a autora a levar a cabo aquando do acidente, bem assim que concreto produto utilizava então, e ainda que a autora estivesse a utilizar o produto referido nos quesitos 11.º e 12.º - caso que, não estando convencidos de que assim foi, também não repudiamos, pois admitimos como possível – não sabemos se a autora estava, então, a faze-lo a mando ou ao menos com o conhecimento da mencionada D.ª M…, de quem também receberia ordens.”
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3.2. O recurso da R. recorrente incide sobre a resposta dada pelo tribunal a quo aos pontos 8.º, 9.º, 10.º e 14.º da base instrutória.
A recorrente cumpriu de modo suficiente os ónus legais de impugnação da decisão de facto prescritos no artigo 640.º do Código de Processo Civil.
Tendo em consideração que constam do processo todos os elementos de prova que serviram de base à decisão do tribunal a quo sobre os referidos pontos da matéria de facto, conhecer-se-á do recurso interposto, tendo presente que na reapreciação da decisão de facto pelo Tribunal da Relação, no âmbito dos poderes conferidos pelo artigo 662.º do Código de Processo Civil, o que é proposto ao tribunal de segunda instância não é que proceda a um novo julgamento – desprezando o juízo formulado na primeira instância sobre as provas produzidas e a expressão do processo lógico que conduziu à pronúncia sobre a demonstração (ou não) dos factos ajuizados –, mas que, no uso dos poderes próprios de tribunal de recurso, averigúe – examinando a decisão da primeira instância e respectivos fundamentos, analisando as provas gravadas e procedendo ao confronto do resultado desta análise com aquela decisão e fundamentos – se o veredicto alcançado pelo tribunal recorrido quanto aos concretos pontos impugnados assentou num erro de apreciação.
Para o efeito, procedemos à análise de toda a documentação junta aos autos, bem como à audição integral da prova pessoal produzida, incluindo as declarações da A., prestadas por determinação oficiosa do tribunal, e os depoimentos das testemunhas ouvidas, conferindo particular atenção aos excertos dos depoimentos das testemunhas J… (trabalhador da H… que, quando chegou ao trabalho no dia em questão, cerca das 08:00 horas, logo soube do acidente), F… (trabalhadora da D… que exercia as funções de supervisora, sendo superiora hierárquica da autora que, no dia do sinistro, lhe telefonou várias vezes) e G… (perita que averiguou as circunstâncias do acidente), indicados pelas partes nas suas alegações e contra-alegações de recurso.
Vejamos pois.
É o seguinte o teor dos quesitos que a recorrente ora pretende ver considerados integralmente provados.
«8)
Quando se aprestava para iniciar a limpeza do poliban, utilizou um líquido para desentupir canos?
9)
Esse produto tinha sido adquirido pela “H…” e era apenas utilizado por esta, estando guardado numa secretária no 2º andar, sem que alguma vez tivesse havido qualquer instrução para a A. o utilizar, nem pela sua entidade patronal, nem tão pouco pela empresa onde a A. prestava as suas funções?
10)
Aquele líquido, para desentupimento de canos, não fazia parte do rol dos produtos químicos que a entidade patronal tinha ao dispor da A., até porque aquela função não lhe estava, nem nunca tinha estado, destinada?
(…)
14)
As lesões (queimaduras em ambas as mãos) que a A. sofreu, foram em consequência directa e necessária do manuseamento de um produto químico e corrosivo?»
Aos mesmos o tribunal respondeu nos seguintes termos:
«Quesito 8.º: Provado apenas o que resulta da resposta ao quesito 1.º.
Quesito 9.º: Prejudicado e não provado.
Quesito 10.º: Prejudicado e não provado.
Quesito 14.º: Provado o que resulta das respostas aos quesitos 2.º e 3.º.»
Destas respostas infere-se que o tribunal da 1.ª instância considerou apenas demonstrado, do que era perguntado nos quesitos em causa, que no dia do sinistro a A. se encontrava a fazer limpezas ao serviço do empregador e no referido local de trabalho, nos termos expressos no ponto 7. da matéria de facto, e que, ao utilizar um produto este lhe queimou as mãos, tendo resultado para a A. lesões nas mãos, que obrigaram a intervenção cirúrgica e terapia, nos termos expressos nos pontos 8. e 9. da matéria de facto.
Reanalisada a prova documental, pericial e testemunhal produzida, cremos que outra não poderia ser a decisão do tribunal a quo, não se vislumbrando nesta decisão qualquer erro de julgamento.
Com efeito, e em primeiro lugar, deve dizer-se que os depoimentos colhidos em sede de averiguação do sinistro e junto aos autos a fls. 138 e ss. com a contestação da R. recorrente, embora corporizados em escritos, não constituem prova documental (como a recorrente os apelida) e mais não consubstanciam do que depoimentos testemunhais escritos. Ora, os depoimentos das testemunhas apenas podem ser prestados por escrito nos casos previstos na lei –, o que não é o caso de nenhum dos depoimentos prestados perante a perita averiguadora que procedeu à averiguação do sinistro por incumbência da recorrente – e quando obtidos fora dos condicionalismos prescritos na lei adjectiva (artigos 495.º e ss. do Código de Processo Civil aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, já em vigor no decurso do julgamento), não têm valor probatório.
Assim, tratando-se de depoimentos testemunhais escritos, inadmissíveis porque prestados à revelia das regras que disciplinam a prestação da prova testemunhal, vg. sem a observância do indispensável princípio do contraditório, a exercer em audiência e nos termos enunciados no art. 516.º do CPC, não devem estes escritos ser valorados para a decisão.
Em segundo lugar, resulta com clareza da análise conjugada dos depoimentos prestados que nenhuma testemunha assistiu ao acidente, que todas ignoram qual o produto que efectivamente a A. utilizou e lhe veio a causar as lesões descritas nos exames médicos e que se confrontaram com versões diferentes do acidente veiculadas pela A., particularmente a testemunha F…, supervisora, que relatou quatro versões diferentes do que teria acontecido quando a A. estava no local e tempo de trabalho e queimou as suas mãos.
É de notar que a parte do depoimento da testemunha J… que a recorrente invoca, se reporta ao que disse ficou plasmado no depoimento que prestou à perita averiguadora, tendo sido lido à mesma em julgamento o que ali ficou exarado – que a A. lhe dissera ter estado a desentupir o poliban –, limitando-se a testemunha responder “exacto” e a confirmar que aquela era a sua caligrafia, mas sempre reiterando que não viu o que se passou.
Acresce que as versões do acidente relatadas pelas testemunhas – sendo que, quanto à testemunha G…, a sua fonte de conhecimento consiste apenas no que por outras pessoas lhe foi relatado quando averiguou as circunstâncias do acidente incumbida pela recorrente – são também distintas da que a A. apresentou em julgamento, o que adensa a dúvida quanto ao que efectivamente ocorreu.
Cremos pois que bem andou o tribunal a quo em relevar essencialmente os dados objectivos que resultam dos exames médicos e em concluir, quanto à matéria dos quesitos 8.º, 9.º, 10.º e 14.º que se considerou não provada e que agora a recorrente pretende ver provada através do presente recurso, que não houve prova com um mínimo de credibilidade e consistência de que a factualidade em questão se verificou e de que restam sérias dúvidas quanto à tarefa que realmente estava a A. a levar a cabo aquando do acidente e quanto ao concreto produto que então utilizava, vg. se se tratava do referido nos quesitos 11.º e 12.º, maxime tendo em consideração que resulta da prova produzida, vg. da própria testemunha F… (a partir do minuto 17.40 do seu depoimento) que a A. obedecia também a ordens de uma trabalhadora da H… que entretanto faleceu (M1…).
Não pode acompanhar-se a recorrente quando a mesma afirma que dos elementos probatórios invocados resulta que as lesões (queimaduras químicas nas mãos) de que padece a sinistrada, nunca poderiam ter sido causadas pela utilização de um dos produtos de limpeza que a D… providencia para que a sinistrada desempenhasse as suas funções. Com efeito, é a própria recorrente que alega no artigo 16.º da sua contestação que a entidade patronal tinha ao dispor da A. um “rol dos produtos químicos”, embora com vista a precisar que aquele líquido para desentupimento de canos não fazia parte do referido rol, pelo que, desconhecendo-se as características de tais produtos, fica a saber-se apenas que a A. tinha vários produtos químicos ao dispor para o exercício das suas funções.
Em suma, neste contexto probatório, é de considerar que o tribunal a quo interpretou os elementos disponíveis, conjugou-os entre si e analisou-os de uma forma lógica e plausível, de acordo com as regras da experiência, mostrando-se claramente explicitado o raciocínio que o levou a proferir as respostas restritivas e negativas que a recorrente impugna. A solução encontrada perfila-se como uma consequência lógica e adequada à realidade das coisas, em face das provas de que se serviu o tribunal, não determinando estas, depois de reanalisadas, uma decisão factual diversa da recorrida.
Mantém-se a decisão de facto tal como ficou plasmada na sentença da 1.ª instância
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4. Fundamentação de direito
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Nos presentes autos está essencialmente em causa saber se o acidente sofrido em 9 de Janeiro de 2012 pela sinistrada B… se mostra “descaracterizado” nos termos prescritos no artigo 14.º da Lei n.º 98/2009 de 4 de Setembro[2].
A sentença de 1.ª instância, depois de analisar o regime da Lei dos Acidentes de Trabalho aprovada pela Lei n.º 98/2009 de 4 de Setembro e os factos que se apuraram, afirmou não poder concluir que a autora/sinistrada violou quaisquer condições de segurança, nem que actuou de forma grosseiramente negligente e provocando o acidente, por não ser possível saber, a partir dos factos assentes, como efectivamente se passaram as coisas e como, em rigor, deflagrou o acidente.
A recorrente insiste pela descaracterização do acidente essencialmente por entender que da propugnada alteração da decisão sobre a matéria de facto resulta, necessariamente, a drástica modificação da decisão do mérito da causa e desenvolve as suas alegações relativas ao mérito da causa partindo do princípio de que obteve êxito na impugnação de facto que deduziu. Conclui que a conduta encetada pela sinistrada, tendo sido inelutavelmente causal do acidente, constituiu atropelo, carecido de causa justificativa, das concretas regras de segurança que lhe tinham sido impostas pela entidade empregadora e deverá ser descaracterizado o acidente de trabalho sofrido, por força da aplicação do disposto no art. 14º n.º 1 al a) da NLAT, absolvendo-se a seguradora R. do pedido contra si formulado e revogando-se a sentença (vide vg. as conclusões 11.ª e 21.ª a 25.ª).
Ou seja, de acordo com o modo como estruturou a sua alegação, é na alteração da matéria de facto provada que alicerça a sua pretensão de ser revogada a sentença e de se ver absolvida da condenação nela contida.
Ora a recorrente não viu atendidas as suas conclusões no que diz respeito à modificação da matéria de facto e, analisada esta, entendemos que a mesma efectivamente não permite a afirmação de que o acidente proveio de acto da sinistrada que importa violação sem causa justificativa de condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei [alínea a) do n.º 1, do artigo 14.º] ou que proveio exclusivamente de negligência grosseira da sinistrada [alínea a) do n.º 1, do artigo 14.º].
Em, breves palavras, deve dizer-se que a descaracterização do acidente no caso da alínea a) do nº 1 do artigo 14.º, pressupõe a verificação cumulativa dos seguintes requisitos: (i) existência de condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei; (ii) violação, por acção ou por omissão, dessas condições, por parte da vítima; (iii) voluntariedade na assunção dessa conduta, sem que, para tanto, haja causa justificativa; (iv) que exista um nexo de causalidade entre a referida violação e o acidente[3].
As condições de segurança a que alude o referido preceito são as normas ou instruções que visam acautelar ou prevenir a segurança dos trabalhadores, visando eliminar ou diminuir os riscos ou perigos para a sua saúde, vida ou integridade física. Mister é que essas regras estejam estabelecidas por directivas da entidade empregadora ou por disposição da lei.
Ora, no caso vertente, não se descortina na factualidade apurada que o empregador tenha emitido directivas relativas à segurança da trabalhadora no manuseamento dos produtos a utilizar, sendo que a alegação que a este propósito a recorrente pretendia ver provada – sem o lograr - não era também de molde a poder concluir-se pela existência de tais directivas.
Com efeito, afirmar que o empregador nunca deu instruções para se usar um determinado produto (ponto 9.º da base instrutória) é absolutamente distinto de afirmar que o empregador proibiu a utilização de tal produto ou emitiu directrizes no sentido de o mesmo nunca ser utilizado por razões de segurança. O mesmo se diga quanto ao facto de a trabalhadora desempenhar funções que eventualmente extrapolam as que lhe foram destinadas (ponto 10.º da base instrutória), realidade que não se reconduz ao desempenho de funções que lhe houvessem sido vedadas por razões de segurança, como se nos afigura que teria que ocorrer para se poder concluir pela existência de condições de segurança estabelecidas pelo empregador que o trabalhador violou com o desempenho de tais funções, maxime tendo em consideração a actual configuração do objecto do contrato de trabalho que emerge do disposto no artigo 118.º, n.º 2 do Código do Trabalho. Ou seja, ainda que se provassem os factos alegados pela recorrente – que a sinistrada trabalhadora de limpeza desentupia um cano sem que essa função lhe estivesse destinada e que usou um produto da empresa que labora nas instalações que tem que limpar sem instruções concretas para o fazer –, não cremos que pudesse no caso vertente vir a concluir-se pela existência de directivas relativas à segurança cuja violação acarretasse a descaracterização do acidente nos termos invocados pela recorrente.
Quanto à causa de descaracterização prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 154.º citado – que se referiu em face da alusão à referida alínea b) na conclusão 15.ª –, cabe notar que a R. seguradora alegou no artigo 32.º da sua contestação que as lesões sofridas pela sinistrada resultaram do “manuseamento inadvertido” de substância química contida no produto de desentupimento de canos, inadvertência esta que é incompatível com o conceito de negligência grosseira pressuposto na alínea b) do artigo 14.º, n.º 1 da LAT[4], o que desde logo obstaria à conclusão por esta causa de descaracterização cujos pressupostos, de todo o modo, não encontram qualquer respaldo nos factos provados
Assim, não pode concluir-se que o acidente se mostra descaracterizado por força do preenchimento da hipótese legal do artigo 7.º, n.º 1, da LAT, que exclui o direito à reparação, sendo de lembrar que o ónus da prova dos factos impeditivos do direito reclamado na acção incumbe aos responsáveis pela reparação nos termos do artigo 342.º, n.º2 do Código Civil[5] e que, na falta ou insuficiência dessa prova, é a questão decidida contra a parte com ela onerada nos termos do artigo 346º do Código Civil.
O que nos conduz à afirmação de que a recorrente seguradora terá que ser responsabilizada pela reparação do acidente sub judice, devendo manter-se a douta sentença recorrida que fixou as prestações devidas à sinistrada, de modo que não foi posto em causa na apelação.
Improcedem as conclusões das alegações.
Porque não obteve vencimento no recurso, deverá a recorrente suportar o pagamento das custas respectivas (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
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5. Decisão
Em face do exposto, decide-se negar provimento ao recurso e confirmar a decisão final constante da sentença recorrida.
Custas a cargo da Ré seguradora.
Nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil, anexa-se o sumário do presente acórdão.

Porto, 6 de Outubro de 2014
Maria José Costa Pinto
João Nunes
António José Ramos
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[1] Diploma a ter em vista pelo Tribunal da Relação no presente momento processual na medida em que, em face do disposto nos artigos 5.º e 8.º da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, que aprovou o novo Código de Processo Civil, é o mesmo aplicável aos processos pendentes nos actos que se desenrolem a partir de 1 de Setembro de 2013.
[2] Aplicável ao acidente dos autos, atenta a data do acidente sub judice – cfr. os artigos 187.º e 188.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, que regulamenta o regime da reparação dos acidente de trabalho e doenças profissionais, nos termos do artigo 284.º do Código do Trabalho aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, dos quais resulta que a nona lei é aplicável aos acidentes de trabalho ocorridos a partir de 1 de Janeiro de 2010.
[3] Vide, entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 2007.05.17, processo 07S053, de 2007.12.19, processo n.º 3381/07, e de 2009.07.01, processo n.º 823/06, todos sumariados in www.stj.pt.
[4] Como constitui jurisprudência e doutrina uniforme, não preenchem o condicionalismo da descaracterização os comportamentos que revelam mera imprevidência, imperícia ou distracção, ou seja, os comportamentos que se enquadrem no conceito de "culpa leve" ou "culpa em sentido genérico" como a simples e não intencional inobservância da diligência que se deveria ter empregado - vide Feliciano Tomás de Resende in "Acidentes de Trabalho”, p.22 e Cruz de Carvalho in "Acidentes de trabalho e Doenças Profissionais", pp. 47 e ss., o Acórdão da Relação de Coimbra de 94.11.17, in C.J., t.V, p.76 e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 97.10.22, in A.D. 435º, p. 400.
[5] Vide, entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 2005.01.18, Recurso n.º 04S3152, de 2008.10.09, Recurso n.º 1163/08 - 4.ª Secção, de 2009.01.07, Recurso n.º 823/06.7TTAVR.C1.S1 - 4.ª Secção, de 2009.11.25, Recurso n.º 143/06.7TTAVR.C1.S1- 4.ª Secção e de 2010.02.24, Recurso n.º 747/04.2TTCBR.C1.S1- 4.ª Secção, todos sumariados in www.stj.pt.
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Nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil, na redacção do Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, lavra-se o sumário do antecedente acórdão nos seguintes termos:
I - Os depoimentos prestados perante o perito averiguador que procedeu à averiguação do sinistro por incumbência da seguradora, constituem depoimentos testemunhais escritos que não têm valor probatório porque obtidos fora do condicionalismo prescrito no Código de Processo Civil.
II - A descaracterização do acidente, no caso da 2.ª parte da alínea a) do nº 1 do art. 7.º da LAT de 1997, exige, além do mais, a existência de condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei.

Maria José Costa Pinto