Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
54/19.6PFMTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DOLORES DA SILVA E SOUSA
Descritores: PROCESSO SUMÁRIO
SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
AUDIÇÃO DO ARGUIDO
DEFENSOR OFICIOSO
NULIDADE INSANÁVEL
Nº do Documento: RP2019091154/19.6PFMTS.P1
Data do Acordão: 09/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º808, FLS.294-298)
Área Temática: .
Sumário: I - Em processo sumário, pode ser levada a cabo a audição sumária do arguido, que se encontra em liberdade, visando averiguar da aceitação por este de uma Suspensão Provisória do Processo.
II - Nestes casos é correspondentemente aplicável o artigo 144º do CPP.
III - Na interpretação conjugada deste preceito legal, nomeadamente do seu n.º 2, com os art.ºs 61º e 64º, todos do CPP, deve ser nomeado defensor para o primeiro interrogatório de arguido em liberdade, quando solicitado.
IV - Não tendo sido nomeado o defensor solicitado, cometeu-se nulidade insanável prevista na alínea c) do artigo 119º do CPP.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Rec. Penal n.º 54/19.6PFMTS.P1
Comarca do Porto
Juízo Local Criminal de Matosinhos.

Acordam, em Conferência, na 2ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto.
I - Relatório.
No Processo Especial Sumário n.º 54/19.6PFMTS, do Juízo Local Criminal de Matosinhos, Juiz 3, foi submetida a julgamento o arguido B…, melhor identificado na acta da audiência de julgamento constante dos autos a fls. 35 a 37 e onde o arguido foi condenado, como autor material e na forma consumada de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelo art.º 3.º, n.º 1 e 2, do Decreto Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro, praticado em 09-02-2019, na pena de multa de cinquenta (60) dias, à taxa diária de cinco euros (€5,00), perfazendo a quantia de trezentos euros (€300,00), nos termos do art.º 43 Código Penal, à qual se abate um dia correspondente à sua detenção, o que perfaz a quantia de duzentos e noventa e cinco euros (€295,00).
Foi ainda condenado nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 1/4 da UC.»
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No prazo do recurso da sentença o arguido veio recorrer, invocando a existência de uma nulidade insanável praticada no interrogatório de arguido realizado no dia 10.02.2019, que inquina a sentença e limitou os seus direitos, com as seguintes conclusões:
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O recurso foi admitido por despacho constante a fls. 44 dos autos.
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O Ministério Público junto da 1ª instância apresentou resposta, sem formular conclusões, mas de onde se respiga o seguinte:
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Nesta Relação, o Exmo. PGA emitiu Parecer acompanhando a posição do Ministério Público junto da 1ª instância, entendendo que o recurso deve ser julgado procedente.
Foi cumprido o artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Colhidos os vistos, e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
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II- Fundamentação.
Como é jurisprudência assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – vícios decisórios e nulidades referidas no artigo 410.º, n.º s 2 e 3, do Código de Processo Penal – é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (artigo 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
1.-Questões a decidir.
Face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, pela ordem em que são enunciadas, são as seguintes as questões decidir:
- Averiguar se foi praticada a nulidade insanável invocada.
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2. Processado relevante para a decisão.
I.- O arguido B… foi detido no dia 09.02.2019, pelas 21:40h, nesse dia foi constituído arguido, tomado TIR libertado e notificado para ser presente em acto processual no dia 11.02.2019, pelas 09:30 horas. (fls. 2 a 9).
II.- O processo foi distribuído no dia 11.02.2019.
III.- Nesse dia, 11.02.2019, pelo Magistrado do MP foi proferido o seguinte despacho:
«Valido a constituição como arguido efectuada (art. 58, nº3 do CPP).
Atento o disposto no art. 384, nº1 do CPP e por estar apenas indiciada nos autos a prática pelo(a) arguido(a) (id. no TIR) do ilícito p. e p. no art. 3, nº1 e nº2 do DL 2/98 proceda ao seu interrogatório e apure:
a) porque é que cometeu os factos constantes do auto de denúncia e que explicação dá para os mesmos;
b) por não ter SPP nem antecedentes criminais relativamente a crimes desta natureza, se aceita uma suspensão provisória do processo por 3 meses, nos termos e ao abrigo do art. 281 do CPP, mediante o cumprimento das seguintes injunções: a) entregar durante o prazo de suspensão a quantia de 300 euros ao Banco Alimentar Contra a Fome disso fazendo prova nos autos ou em alternativa prestar 60 horas de trabalho a favor da comunidade a serem delineadas pela DGRSP (sendo que nesta caso a SPP será por 6 meses).(…)»
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IV.- O Auto de Interrogatório Sumario de Arguido (art. 382º, n.º2 do C.P. Penal) efectuado por técnico de justiça (por competência delegada), tem o seguinte teor conforma acta de fls. 17 e 18:
«Iniciado o presente ato, perante mim C…, Técnico de Justiça Adjunto, procedeu-se ao interrogatório do(a) arguido(a) abaixo indicado(a), o(a) qual depois de informado nos termos do disposto no art.º 143º, n.º 2 do C. P. Penal, de que a assistência de defensor neste acto só terá lugar se a solicitar, bem como do direito de escolher e constituir defensor ou requerer a concessão de apoio judiciário, nos termos do n.º 2 do art.º 39º da Lei 34/2004 de 29 de Julho, advertindo-o(a) de que, nada requerendo ou sendo indeferido o pedido de apoio judiciário e caso não constitua defensor, ser-lhe-á nomeado um para assegurar a sua defesa, podendo ficar assim responsável pelo pagamento dos honorários que o mesmo apresentar para remuneração dos serviços prestados, bem como das despesas.
Pelo(a) arguido(a) foi dito ter ficado ciente e declarou pretender ser assistido(a) por defensor.
Foi nomeado(a) ao(à) arguido(a), o(a) seguinte defensor(a) oficioso(a):

o(a) qual se encontrava presente e aceitou o cargo.
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De seguida, foi o(a) arguido(a) advertido(a) de que a falta de resposta às perguntas que lhe vão ser feitas sobre a identidade, ou a falsidade da mesma, o(a) pode fazer incorrer em responsabilidade penal, tendo respondido da seguinte forma:
Chamar-se: B… filho(a) de D… e de E… nacional de Portugal nascido em 21-05-1989; Documento(s) de identificação: NIF - ……….., BI – ………, domicílio: Rua …, Nº …, …, …. - … Porto
Local de trabalho:
Telefone(s):
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Em cumprimento das al. b), c), d) e e), do nº 4, do artº 141º (“ex-vi” artº 144º, nº 1) do C. P. Penal, foi o(a) arguido(a) informado(a) do seguinte:
1.- De que não exercendo o direito ao silêncio as declarações que prestar poderão ser utilizadas no processo, mesmo que seja julgado na ausência, ou não preste declarações em audiência de julgamento, estando sujeitas à livre apreciação da prova;
2.- Motivos da detenção:
3 - Factos que lhe são concretamente imputados, incluindo, sempre que forem conhecidas, das circunstâncias de tempo, lugar e modo:
4 – Elementos do processo que indiciam os factos imputados:
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Pelo arguido foi dito que desejava prestar declarações, não se tendo procedido ao seu registo áudio ou audiovisual por não haver meios disponíveis.
PERGUNTADO, DISSE: Que deseja prestar declarações.
Refere que não é verdade que tenha conduzido o veículo de matrícula .. – OD - .. - BMW …..
Esclarece que efectivamente foi abordado pelos agentes quando se encontrava junto do referido veiculo, parado, com a mala do carro aberta. Mais esclarece que consigo encontrava-se a sua namorada F…, cuja identificação juntará aos autos caso seja necessário e de uma amiga. Refere que o veículo é pertença da sua namorada e é a mesma que o conduz. O depoente não possui carta de condução. Face aos factos expostos o depoente não concorda com a suspensão provisória do processo. Declara ainda de que não se opõe a uma eventual desistência de queixa, caso seja legalmente admissível.
(…)»
V.- No dia 12.02.2019, por despacho constante dos autos a fls. 19, o Magistrado do MP, titular do processo, nomeou defensor ao arguido o advogado de escala e designou o dia 26.02.2019, pelas 09:00, para julgamento em processo sumário (ordenando a notificação do arguido, seu defensor e as testemunhas, sendo o primeiro com as advertências do n.º6 do artigo 382º do CPP.).»
VI.- No dia 20.02.2019 o arguido, através do defensor entretanto nomeado, deu entrada de um requerimento onde, em síntese, invoca as razões pelas quais não aceitou a suspensão provisória do processo, nomeadamente, o não estar acompanhado por defensor que o aconselhasse e o desconhecimento, por inexperiência, dos trâmites legais e eventuais consequências; alegando que não tomou uma decisão esclarecida. Pedindo que se determine a suspensão provisória do processo, pelos seis meses propostos, mediante o pagamento de 300,00€...
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3.- Apreciação do recurso.
A questão a decidir é de saber se ao ser ouvido o arguido para os fins invocados no despacho transcrito em II-2.iii sem a presença de defensor, e atento o que consta da acta transcrita em II. 2.iv. foi cometida uma nulidade insanável.
Vejamos.
Dispõe o artigo 382º, do CPP:
(Apresentação ao Ministério Público e a julgamento)
1 - A autoridade judiciária, se não for o Ministério Público, ou a entidade policial que tiverem procedido à detenção ou a quem tenha sido efetuada a entrega do detido apresentam-no imediatamente, ou no mais curto prazo possível, sem exceder as 48 horas, ao Ministério Público junto do tribunal competente para julgamento, que assegura a nomeação de defensor ao arguido.
2 - Se o arguido não exercer o direito ao prazo para preparação da sua defesa, o Ministério Público, depois de, se o julgar conveniente, o interrogar sumariamente, apresenta-o imediatamente, ou no mais curto prazo possível, ao tribunal competente para julgamento, exceto nos casos previstos no n.º 4 e nos casos previstos nos n.ºs 1 e 2 do artigo 384.º
3 - Se o arguido tiver exercido o direito ao prazo para a preparação da sua defesa, o Ministério Público pode interrogá-lo nos termos do artigo 143.º, para efeitos de validação da detenção e libertação do arguido, sujeitando-o, se for caso disso, a termo de identidade e residência, ou apresenta-o ao juiz de instrução para efeitos de aplicação de medida de coação ou de garantia patrimonial, sem prejuízo da aplicação do processo sumário.
4 - Se tiver razões para crer que a audiência de julgamento não se pode iniciar nos prazos previstos no n.º 1 e na alínea a) do n.º 2 do artigo 387.º, designadamente por considerar necessárias diligências de prova essenciais à descoberta da verdade, o Ministério Público profere despacho em que ordena de imediato a realização das diligências em falta, sendo correspondentemente aplicável o disposto no número anterior.
5 - Nos casos previstos nos n.os 3 e 4, o Ministério Público notifica o arguido e as testemunhas para comparecerem, decorrido o prazo solicitado pelo arguido para a preparação da sua defesa, ou o prazo necessário às diligências de prova essenciais à descoberta da verdade, em data compreendida até ao limite máximo de 20 dias após a detenção, para apresentação a julgamento em processo sumário.
6 - O arguido que não se encontre sujeito a prisão preventiva é notificado com a advertência de que o julgamento se realizará mesmo que não compareça, sendo representado por defensor para todos os efeitos legais.
O artigo 384º, do CPP dispõe.
(Arquivamento ou suspensão do processo)
1 - Nos casos em que se verifiquem os pressupostos a que aludem os artigos 280.º 281.º e 282, o Ministério Público, oficiosamente ou mediante requerimento do arguido ou do assistente, determina, com a concordância do juiz de instrução, respetivamente, o arquivamento ou a suspensão provisória do processo.
2 - Para os efeitos do disposto no número anterior, o Ministério Público pode interrogar o arguido nos termos do artigo 143.º, para efeitos de validação da detenção e libertação do arguido, sujeitando-o, se for caso disso, a termo de identidade e residência, devendo o juiz de instrução pronunciar-se no prazo máximo de 48 horas sobre a proposta de arquivamento ou suspensão.
3 - Se não for obtida a concordância do juiz de instrução, é correspondentemente aplicável o disposto nos n.os 5 e 6 do artigo 382.º, salvo se o arguido não tiver exercido o direito a prazo para apresentação da sua defesa, caso em que será notificado para comparecer no prazo máximo de 15 dias após a detenção.
4 - Nos casos previstos no n.º 4 do artigo 282.º, o Ministério Público deduz acusação para julgamento em processo abreviado no prazo de 90 dias a contar da verificação do incumprimento ou da condenação.
O Artigo 119º
(Nulidades insanáveis)
Constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais:
(…)
c) A ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência;

De acordo com o disposto no art.º 118.º do C.P.P., o processo penal está subordinado ao princípio da legalidade dos actos, não sendo por isso admitida a prática de actos que a lei não permita e, por outro lado, os actos previstos devem respeitar as disposições da lei do processo que dispõem sobre os pressupostos, as condições, o prazo, a forma e os termos. Porém, a violação ou inobservância das disposições da lei do processo penal só determinará a invalidade do acto quando tal consequência for expressamente cominada na lei (cf. Henrique Gaspar em anotação ao artigo 118º in CÓDIGO DE PROCESSO PENAL COMENTADO, p. 383).
Quer isto dizer que as nulidades em processo penal são típicas estando expressamente previstas na lei e que qualquer violação ou inobservância de disposições legais que não esteja prevista como nulidade determina apenas a «irregularidade» do acto.
No âmbito das nulidades insanáveis expressamente tipificadas no art. 119.º do Código de Processo Penal, que constituem a mais grave forma de invalidade do acto, por traduzirem violação de disposições processuais que afectam irremediavelmente parte ou todo o processo, sendo por isso de conhecimento oficioso em qualquer fase do procedimento, está prevista na alínea c), invocada pelo recorrente, «a ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência.»
Vistos os autos - nomeadamente a sequência processual que deixamos transcrita - e o disposto nos artigos citados, mormente numa primeira fase no disposto no artigo 382º, n.º2 e 384, n.º1 do CPP, decorre dos despachos citados que a audição sumária do arguido – que se encontrava em liberdade - visou primeiramente averiguar a aceitação pelo arguido de uma Suspensão Provisória do Processo.
Resulta do nº2, do artigo 384º e do n.º2, do artigo 382º do CPP que o Ministério Público pode ouvir sumariamente o arguido designadamente para decidir sobre a tramitação processual que há-de seguir-se.
Ora, nestes casos é correspondentemente aplicável o artigo 144º do CPP, visto que o arguido se encontrava em liberdade. Na interpretação conjugada de tal artigo, nomeadamente do seu n.º2, nomeadamente das suas als. a) e b) [A entidade que proceder ao interrogatório de arguido em liberdade informa-o previamente de que tem o direito de ser assistido por advogado.] com o art. 61º, n.º1 al. e) [e f)] e al h) do n.º1 do artigo 64º todos do CPP, deve ser nomeado defensor para o primeiro interrogatório de arguido em liberdade quando solicitado.
No caso foi solicitada a assistência por defensor pelo arguido mas o mesmo não foi nomeado, como decorre do teor do Auto de Interrogatório Sumario de Arguido, supra transcrito.
Por outro lado, como decorre da sequência processual encadeada e transcrita o arguido nunca sofreu nenhuma SPP e resulta também do despacho transcrito e do CRC junto a fls. 12 que não tem quaisquer antecedentes criminais.
Assim, tendo em atenção o exposto, afigura-se-nos sem dúvida que o facto de não lhe ter sido nomeado o defensor solicitado afectou o exercício esclarecido dos seus direitos.
Finalmente, para efeitos da referida alínea do artigo 119º do CPP, entendemos que na expressão “a ausência do defensor nos casos em que a lei exigir a lei a respectiva comparência” inclui a ausência do defensor quando o arguido previamente informado de que tem direito a ser assistido por defensor o solicitar e o mesmo não lhe for nomeado.
Pelo exposto, visto o disposto nos referidos artigos e o disposto no artigo 119º al. c) do CPP, sobrevém a existência de uma nulidade insanável, visto que o arguido no referido acto de audição sumária pretendeu ser assistido por defensor que lhe não foi nomeado, o que tem como efeito, nos termos do artigo 122º a invalidade do acto que foi praticado e os actos subsequentes, que dele dependerem, com excepção da nomeação de defensor.
Pelo exposto procede o recurso.
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III- Decisão.
Pelo exposto, acordam os juízes desta secção criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso declarando a existência de uma nulidade insanável, visto que o arguido no acto de audição sumária pretendeu ser assistido por defensor que lhe não foi nomeado, o que tem como efeito, nos termos do artigo 122º a invalidade do acto que foi praticado e os actos subsequentes, que dele dependerem, com excepção da nomeação de defensor.
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Sem custas dado o provimento do recurso.
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Notifique.
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Elaborado e revisto pela relatora – artigo 94º, n.º 2, do C.P.P.
Porto, 11 de Setembro de 2019.
Maria Dolores da Silva e Sousa
Manuel Soares