Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
179/21.8Y2VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DOLORES DA SILVA E SOUSA
Descritores: CARTA DE CONDUÇÃO
CARTA POR PONTOS
SUBTRACÇÃO DE PONTOS
CASSAÇÃO
CONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: RP20211011179/21.8Y2VNG.P1
Data do Acordão: 11/10/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4.ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: I - O sistema de subtração de pontos consubstancia uma técnica utilizada pelo legislador para sinalizar em termos de perigosidade os efeitos que determinadas condutas ilícitas penais ou contraordenacionais podem vir ou não a ter no futuro, no que toca a uma eventual reavaliação da autorização administrativa que habilita a condução ou licença de condução de veículos automóveis, atribuída a um determinado particular, reavaliação essa que poderá culminar com a aplicação de uma medida de segurança, mais precisamente com a decisão de cassação da respetiva carta de condução.
II – A decisão de cassação tem caráter administrativo e pressupõe um juízo prévio de inaptidão para o exercício da condução, assente fundamentalmente no número e gravidade daquelas condutas ilícitas e do decurso do tempo que sobre elas se vier a verificar, nomeadamente e também para efeitos de recuperação ou não de pontos, nos temos do disposto no art.º 121º-A e 148º, nºs 5 e 7, do CE.
III - Ao estabelecer, um regime de carta “por pontos”, com a possibilidade de cassação da mesma em caso de subtração de pontos decorrente de sucessivas condenações por crimes ou contra-ordenações rodoviárias, o legislador inclui mais uma condição negativa para a atribuição do título de condução.
IV – Na cassação, não se trata de perda de um direito adquirido, mas de verificação de uma condição negativa de um direito que (não sendo absoluto e incondicional) a essa condição está sujeito.
V - Como refere Damião da Cunha “não é pelo facto de o legislador associar a um crime (ou a uma pena) de alguma gravidade um ‘efeito’ que atinja estes direitos [os direitos civis, profissionais ou políticos], que fica violada um qualquer princípio constitucional, desde que seja sempre respeitado o princípio da proporcionalidade, tanto em abstracto, como em concreto (…)”.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso Penal n.º 179/21.8Y2VNG.P1
Comarca do Porto.
Juízo Local Criminal de Vila Nova de Gaia.

Acordam, em Conferência, na 2ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto

I – Relatório.
Nos presentes autos de Recurso de Contraordenação com o n.º 179/21.8Y2VNG do juízo local criminal de Vila Nova de Gaia, Juiz 2, Comarca do Porto, datada de 12.05.2021 foi proferida sentença no recurso de impugnação judicial de autoridade administrativa – Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária – onde se decidiu julgar improcedente por não provido o recurso, mantendo-se a decisão da autoridade administrativa que condenou o aqui recorrente B… na cassação do título de condução, na sequência de três condenações, duas pela prática de contraordenações, uma grave e outra muito grave e uma pela prática de crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos arts. 292º, n.º 1 e 69º, n.º 1 do Cód. Penal.
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Inconformado, o arguido, interpôs recurso finalizando a motivação com as seguintes conclusões:
«1. O artigo 148.º, n.º 4, al. c) do CE determina que a perda da totalidade dos pontos por um condutor tenha como efeito, sem mais, a cassação do seu título de condução.
2. Fá-lo de uma forma automática, prescindindo de um qualquer juízo de proporcionalidade prévio, a fazer pelo julgador, sobre a necessidade da produção de tal efeito (cassação) no caso concreto.
3. E ao assim fazê-lo viola o disposto no artigo 30.º, n.º 4 da CRP, sendo, por isso, inconstitucional.
4. O que deveria ter sido decidido pelo Tribunal “a quo” e não foi.
5. Devendo, por isso, ser revogada a douta sentença recorrida.
Termina pedindo que o presente recurso seja julgado procedente revogando-se, em consequência, a sentença proferida em primeira instância, substituindo-a por decisão que julgue inconstitucional a norma constante do artigo 148.º, n.º 4, al. c) do CE, por violação do disposto no artigo 30.º, n.º 4 da CRP e determine a absolvição do arguido.
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O recurso foi liminarmente admitido a fls. 80 dos autos.
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O MP junto do Tribunal a quo veio apresentar resposta, onde formulou as seguintes conclusões:
«1. O Código da Estrada, em especial do artigo 148º, consolidou a implementação do regime da cassação do título de condução, como uma medida inevitável da condenação do condutor pela prática de determinadas infrações, durante um certo período, sendo que, a perda de pontos de uma infracção rodoviária não determina automaticamente a cassação da carta de condução, porquanto, esta só é determinada, se o condutor cometer várias infrações, com condenação definitiva, e, se a soma de todas elas ultrapassar o número de pontos atribuídos à licença de condução que, como já assinalámos, pode atingir o limite máximo de 16 pontos.
2. A cassação do título de condução é consequência automática da perda da integralidade dos pontos prevista no art.º 148.º, n.º 2 do Cód. Estrada, porquanto não há qualquer margem de discricionariedade administrativa na ponderação das circunstâncias do caso concreto na sua determinação, sendo uma consequência automática do trânsito em julgado da decisão condenatória que aplica pena acessória de proibição de conduzir e da prática de contraordenações graves e muito graves que importam a aplicação de proibição de condução.
3. A invocada inconstitucionalidade do art.148º do Cód. Estrada, para além de não colidir com nenhum dos parâmetros do art.º 30º nº 4 da CRP, igualmente não fere o disposto no art. 34º, nº 4 da Constituição de República Portuguesa dado que, não obstante, a competência decisória da entidade administrativa, encontra-se assegurada ao cidadão, a sindicabilidade pelos Tribunais comuns daquela decisão (com duplo grau de jurisdição), pese embora os curtos parâmetros da decisão em apreciação.
4. A restrição ao exercício de uma concreta atividade profissional derivada da interdição de condução de veículos com motor, não constitui violação do direito ao trabalho.
5. A cassação do título de condução não é agora uma medida de segurança, mas uma sanção administrativa.
6. A norma (art. 148º nº 2 do Código da Estrada) tendo em conta os valores em confronto (direito à circulação automóvel e direito à vida e integridade física) que impõe a subtração de 6 pontos de cada vez que ocorre uma condenação em pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, não viola o princípio da proporcionalidade, nem os subprincípios da adequação e da necessidade.
7. Assim, reclamada a revogação da sentença que manteve os termos da decisão administrativa determinando a cassação da carta de condução ao recorrente, sem que se vislumbre resultar da sentença proferida qualquer nulidade ou irregularidade, é esta de confirmar nos seus precisos termos em contrário do que invoca o recorrente.
In casu, da análise do específico contexto do momento da prática dos factos e a subsequente tramitação em que se desenvolveu até à prolação da sentença, não se vislumbra ser atendível qualquer das razões apresentadas pelo recorrente para impugnar a sentença proferida nos autos.
Termina pedindo que o presente recurso seja julgado improcedente, mantendo-se a sentença que confirmou a decisão administrativa.
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A Exma. PGA junto deste Tribunal sufragou a improcedência do recurso.
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Foi cumprido o art. 417º n.º 2, do Cód. Proc. Penal.
Realizado exame preliminar, colhidos os vistos e realizada a Conferência cumpre decidir.
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II – Fundamentação.
1.- Como decorre do disposto no art. 412º n.º 1, do Código de Processo Penal, e é jurisprudência pacífica (cf., entre outros, Acórdão do STJ de 20/12/2006, Processo n.º 06P3661, in dgsi.pt), as conclusões do recurso delimitam o âmbito do seu conhecimento, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso.
Assim, é a seguinte a questão a decidir.
- As normas do artigo 148.º do Código da Estrada relativas à cassação do título de condução enfermam de inconstitucionalidade material, por serem contrárias ao princípio consignado no artigo 30.º, n.º 4 da Constituição.
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2.- Factualidade apurada na sentença recorrida:
«Resulta da decisão da autoridade administrativa a seguinte matéria de facto, a considerar para análise do objecto do recurso:
“Averbamentos constantes do Registo de Infrações do Condutor, referente ao titular da carta de condução P-……, B…, para efeitos do presente processo:
- Processo de contra-ordenação n.º 987833880
a) Em 21-01-2017, o condutor, ao ser submetido ao teste de álcool acusou uma TAS de, pelo menos, 0,580g/l, correspondente à TAS de 0,66g/l registada, deduzido o valor do erro máximo admissível, em infração ao disposto no art.º 81º n.º 1 do Código da Estrada;
b) Contra-ordenação classificada como grave, sendo sancionável com coima e com sanção acessória de inibição de conduzir, nos termos conjugados do art.º 136.º e do art.º 147.º, todos do Código da Estrada;
c) Decisão condenatória proferida em 18-12-2018 e notificada ao arguido em 11-01-2019;
d) Definitividade da decisão condenatória em 01-02-2019;
e) Perda de 3 (três) pontos, nos termos do artigo 148.º n.º 1 alínea b) do Código da Estrada.
f) Sanção acessória de inibição de conduzir por 30 (trinta) dias.
- Processo crime n.º 30/18.6GTSJM:
a) Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro-Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira-Juiz 1;
b) Crime de condução de veículo em estado de embriaguez, por infração ao n.º 1 do artigo 292.º do Código Penal, praticado em 22/04/2018;
c) Sentença judicial proferida e notificada ao arguido em 23/04/2018;
d) Trânsito em julgado da sentença em 16/10/2018, nos termos do artigo 411.º do Código de Processo Penal;
e) Perda de seis pontos, nos termos do artigo 148.º n.º 2 do Código da Estrada;
f) Pena acessória de inibição de conduzir pelo período de 3 (três) meses.
- Processo de contra-ordenação n.º 294518207
g) Em 02-08-2018, o condutor, ao ser submetido ao teste de álcool acusou uma TAS de, pelo menos, 0,816g/l, correspondente à TAS de 0,89 g/l registada, deduzido o valor do erro máximo admissível, em infração ao disposto no art.º 81º n.º 1 do Código da Estrada;
h) Contra-ordenação classificada como muito grave, sendo sancionável com coima e com sanção acessória de inibição de conduzir, nos termos conjugados do art.º 136.º e do art.º 146.º, todos do Código da Estrada;
i) Decisão condenatória proferida em 22-06-2019 e notificada ao arguido em 05-07-2019;
j) Definitividade da decisão condenatória em 26-07-2019;
k) Perda de 5 (cinco) pontos, nos termos do artigo 148.º n.º 1 alínea b) do Código da Estrada.
l) Sanção acessória de inibição de conduzir por 75 (setenta e cinco) dias.”
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3. Apreciação do mérito do recurso.
Sustenta o recorrente a inconstitucionalidade do artigo 148º, n.º 4, do CE, por violação do artigo 30º, n.º 4 da CRP[1].
Argumenta:
- Nos termos da disposição do CE aqui em apreciação – o n.º 4, al. c) do artigo 148.º -, a mera perda de pontos associados ao título de condução importa, só por si, que tal título seja cassado e, por isso, que o seu titular se veja privado desse direito.
- O que sucede como efeito automático da imposição dessa perda de pontos, proceda ela de crime ou de mera contra-ordenação, seja maior ou menor a gravidade do ilícito ou mais ou menos elevado grau de censurabilidade do comportamento do agente, prescindindo, por isso, da específica avaliação e decisão do julgador.
- Na sentença recorrida, o Mm.º Juiz nem sentiu a necessidade de ponderar a produção desse efeito.
- E, sendo assim, isto é, sendo tal cassação da carta de condução – e, consequentemente, a perda do direito que essa mesma carta corporiza – mera consequência necessária da condenação em pena que determine a perda de pontos associados ao título de condução, é para nós evidente que se entra, de pleno, no campo da proibição estabelecida no n.º 4 do acima citado artigo 30.º da CRP, não podendo deixar de se afirmar a inconstitucionalidade material do aludido preceito do CE.
Vejamos.
Começaremos a nossa análise pelo argumento do recorrente alegando que na sentença recorrida, “o Mm.º Juiz nem sentiu a necessidade de ponderar a produção desse efeito”; o efeito da cassação. Trata-se de um argumento desprovido de qualquer valor visto que a decisão em recurso é um recurso de impugnação judicial de uma decisão administrativa onde são tratadas, salvo questões de conhecimento oficioso, apenas as questões que são colocadas ao Tribunal, tal como serão no presente recurso.
Sob a epígrafe “Sistema de pontos e cassação do título de condução”, diz o art.º 148º, nº 1, do Código da Estrada:
A prática de contraordenação grave ou muito grave, prevista e punida nos termos do Código da Estrada e legislação complementar, determina a subtração de pontos ao condutor na data do caráter definitivo da decisão condenatória ou do trânsito em julgado da sentença, nos seguintes termos:
a) A prática de contraordenação grave implica a subtração de três pontos, se esta se referir a condução sob influência do álcool, excesso de velocidade dentro das zonas de coexistência ou ultrapassagem efetuada imediatamente antes e nas passagens assinaladas para a travessia de peões ou velocípedes, e de dois pontos nas demais contraordenações graves;
b) A prática de contraordenação muito grave implica a subtração de cinco pontos, se esta se referir a condução sob influência do álcool, condução sob influência de substâncias psicotrópicas ou excesso de velocidade dentro das zonas de coexistência, e de quatro pontos nas demais contraordenações muito graves.”
Como se escreveu no Acórdão do TRP de 09 de maio de 2018[2]que seguiremos, de início, muito de perto, resulta das normas citadas que é a prática de contraordenações graves ou muito graves que determina a perda de pontos para efeitos de uma possível cassação do título de condução, a que alude o nº 4, al. c), do mesmo artigo. Por isso, só com o caráter definitivo da decisão condenatória ou o trânsito em julgado da sentença é que esse efeito de perda de pontos ocorre. O efeito de perda de pontos, decorre diretamente da prática de um facto ilícito típico, censurável no qual se comine uma coima – art.º 1º do Regime Geral das Contraordenações, aprovado pelo DL nº 433/82, de 27/10 – independentemente da coima concretamente aplicada ou do grau de culpa do respetivo condutor concretamente apurado.
O sistema de pontos consubstancia uma técnica utilizada pelo legislador para sinalizar em termos de perigosidade os efeitos que determinadas condutas ilícitas penais ou contraordenacionais podem vir ou não a ter no futuro, no que toca a uma eventual reavaliação da autorização administrativa que habilita a condução ou licença de condução de veículos automóveis, atribuída a um determinado particular, reavaliação essa que poderá culminar com a aplicação de uma medida de segurança, mais precisamente com a decisão de cassação da respetiva carta de condução.
Decisão que tem caráter administrativo e pressupõe um juízo prévio de inaptidão para o exercício da condução, assente fundamentalmente no número e gravidade daquelas condutas ilícitas e do decurso do tempo que sobre elas se vier a verificar, nomeadamente e também para efeitos de recuperação ou não de pontos, nos temos do disposto no art.º 121º-A e 148º, nºs 5 e 7, do CE.
O sistema de pontos será assim também um sistema que permitirá à administração aferir se o titular da licença de condução reúne ou não as condições legais para poder continuar a beneficiar dela. Inserir-se-á, portanto, tal desidrato, no âmbito dos poderes de administração do Estado.
Sendo tais condutas o fundamento material da cassação que eventualmente venha a ser determinada e não propriamente a atribuição de pontos, sendo estes somente o índice ou uma tradução numérica daquela gravidade, de um modo que resulta ser proporcionado àquela gravidade.
Também o Acórdão do TRP de 30.04.2019[3] se debruçou sobre a específica questão da inconstitucionalidade aqui em causa, cuja fundamentação acompanharemos se seguida.
O Tribunal Constitucional já analisou em várias ocasiões a compatibilidade da sanção de inibição de conduzir e da pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados com o princípio consignado no artigo 30.º, n.º 4.[4]
A tese que vem sendo uniformemente seguida por esse Tribunal é a de que não se verifica a automaticidade vedada pelo referido princípio se a aplicação dessas sanções depender de uma operação judicial de mediação que pondere em concreto a sua adequação e proporcionalidade.
A cassação do título de condução decorrente do artigo 148.º do Código da Estrada poderia dizer-se não depende dessa operação de mediação judicial perante a situação concreta, uma vez que ela decorre da subtração de pontos que são consequência necessária de determinadas condenações.
O referido Acórdão do TRP considerou uma vertente da jurisprudência do Tribunal Constitucional, não diretamente relacionada com o regime do artigo 148.º do Código da Estrada, mas que entendeu que a ele se poderá ajustar, pelas razões que indica.
Nomeadamente a Jurisprudência respeitante à caducidade da carta de condução provisória[5] em caso de condenação na sanção acessória de inibição de conduzir, ou de condenação pela prática de crimes e contra-ordenações rodoviárias (hoje decorrente do artigo 130.º, n.º 3, a), do Código da Estrada).
Assim, o TC afirmou no acórdão n. 461/2000[6] em resposta à ideia de eventual incompatibilidade entre tal regime e o princípio consignado no artigo 30.º, n.º 4, da Constituição:
«(…) A resposta negativa impõe-se por duas razões fundamentais: o direito a conduzir decorre de uma licença, que no caso é apenas provisória, e que está dependente da verificação de um conjunto de condições de perícia e de comportamento psicológico; apenas existe um direito generalizado a obter uma licença se certas condições se verificarem, mas não existe, obviamente, um direito absoluto de conduzir fora desse condicionamento.
Por outro lado, prevê-se um período experimental e de licenciamento provisório, em que o condutor terá de confirmar as condições pessoais adequadas para lhe ser conferida uma licença definitiva.
A obtenção da carta ou licença de condução é, assim, um processo com várias fases, que exige o preenchimento de vários requisitos positivos e negativos, o que é justificado pelos potenciais riscos dessa actividade para bens jurídicos essenciais.
Com efeito, a lei apenas prevê que requisito da obtenção de licença definitiva seja a não instauração de procedimento por infracção de trânsito, tratando-se, portanto, de um verdadeiro requisito negativo da extinção do carácter provisório da licença. Por outro lado, ao determinar a caducidade da licença provisória, no caso da condenação em proibição de conduzir ou de inibição de conduzir, a lei apenas consagra um requisito negativo da obtenção da carta.
Assim sendo, não se verifica sequer um efeito sobre direitos adquiridos, mas apenas a valoração de uma pena relacionada com a condução automóvel nas condições de obtenção da licença de condução.
Ora, que a não condenação numa pena de inibição de conduzir possa ser um requisito de uma licença relacionada com a verificação de requisitos adequados para obter uma licença de condução é algo de natureza absolutamente diferente do efeito automático de uma condenação sobre direitos existentes anteriormente, pois, como se referiu, situa-se no plano da formulação dos requisitos para a obtenção de licença em que a condenação na pena pode ser reveladora da inexistência das condições necessárias à obtenção da licença. Por outro lado, não há qualquer não razoabilidade ou falta de proporcionalidade em prever que a não instauração de procedimento por infracção de trânsito seja condição de uma decisão de licenciamento definitivo ou que a caducidade de uma licença provisória se verifique quando haja uma condenação em inibição de conduzir.
Aliás, a ausência de possibilidade de não conversão da licença provisória em definitiva faria perder todo o sentido à existência de período provisório no processo de obtenção de carta ou da licença de condução – o qual constitui, materialmente, uma espécie de período probatório.
(…)»
Tal entendimento foi reafirmado nos acórdãos nºs 574/2000, 45/2001 e 472/2007[7]
E continua o referido Acórdão do TRP, é certo que a situação em apreço difere da que nesses acórdãos é analisada. Não estamos, no caso concreto, em que está em jogo a cassação de um título de condução por subtração de pontos decorrente de sucessivas condenações, perante um título provisório e perante requisitos negativos de atribuição do título definitivo. No entanto, o raciocínio subjacente à tese exposta pode ser aplicado ao caso em apreço pela razão seguinte.
A tese do Tribunal Constitucional assenta na ideia de que a atribuição de licença de condução não é um direito absoluto e incondicional e que é legítimo que o legislador estabeleça requisitos positivos e negativos para a sua atribuição, entre eles o da ausência de condenações rodoviárias durante um período experimental. Não sendo o direito em causa incondicional, não pode dizer-se que estamos perante a perda de um direito adquirido (perda a que se reporta o artigo 30.º, n.º 4, da Constituição) quando se retiram as consequências da verificação de uma sua condição negativa.
O legislador ao estabelecer, um regime de carta “por pontos”, com a possibilidade de cassação da mesma em caso de subtração de pontos decorrente de sucessivas condenações por crimes ou contra-ordenações rodoviárias, estabelece mais uma condição negativa para a atribuição do título de condução.
Também por estas perspetiva não estamos perante a perda de um direito adquirido, mas perante a verificação de uma condição negativa de um direito que (não sendo absoluto e incondicional) a essa condição está sujeito.
No fundo, com o sistema de “carta por pontos” nunca a licença de condução pode considerar-se definitivamente adquirida, pois ela está continuamente sujeita a uma condição negativa relativa ao “bom comportamento rodoviário”. É como se o período experimental correspondente ao título de condução provisório se prolongasse continuamente (embora em termos diferentes dos desse período). Em conclusão não estaremos, perante a perda de um direito, mas perante a verificação de uma condição negativa a que o mesmo está, à partida e continuamente, sujeito.
Uma situação com alguma analogia com a que está em apreço foi analisada no acórdão do Tribunal Constitucional nº 25/2011.[8]
Estava em causa, no caso, o regime que condiciona a atribuição da licença de guarda noturno à ausência de condenações pela prática de qualquer crime doloso O Tribunal considerou que se verificava violação do artigo 30.º, n.º 4, da Constituição, pela falta de conexão, em abstrato, dessa atividade com a prática de qualquer crime doloso, com o que estaria ferido o princípio da proporcionalidade. Diferentemente seria se a condenação fosse relativa a um crime relacionado com essa atividade e, por si, revelador da falta de requisitos para a sua prática nos termos legalmente exigidos. Como refere Damião da Cunha[9]«não é pelo facto de o legislador associar a um crime (ou a uma pena) de alguma gravidade um “efeito” que atinja estes direitos [os direitos civis, profissionais ou políticos], que fica violada um qualquer princípio constitucional, desde que seja sempre respeitado o princípio da proporcionalidade, tanto em abstracto, como em concreto (…)»
Ora, no caso em apreço, o condicionamento da atribuição de licença de condução diz respeito, não à prática de qualquer crime ou infração, mas à prática sucessiva de crimes rodoviários ou contra-ordenações muito graves ou graves. Não se verifica, pois, qualquer automaticidade contrária ao princípio da proporcionalidade.
Não se verifica, portanto, qualquer incompatibilidade entre o regime de cassação do título de condução decorrente do artigo 148.º do Código da Estrada e o artigo 30.º, n.º 4, da Constituição.
Improcede, assim, o recurso.
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III – Dispositivo
Pelo exposto, acórdão os juízes desta secção criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto e, em consequência, manter a decisão recorrida.
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O recorrente pagará 3 UC de taxa de justiça - artigo 93.º, n.º 3, do RGCO e Tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais.
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Notifique.
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(Elaborado e revisto pela Relatora – artigo 94º, n.º2 do CPP).

Porto, 10 de Novembro de 2021.
Maria Dolores da Silva e Sousa
Manuel Soares.
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[1] «Nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais e políticos».
[2] http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/8522ee80aedcdb6a80258291002f284c?OpenDocument
[3] http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/d0bb0540aae330a48025841d003e08ca?OpenDocument
[4] Cf. Os acórdãos n.ºs 522/1995, 202/2000 e 563/2003, in www.tribunalconstitucional.pt).
[5] Que também não depende de uma operação de mediação judicial.
[6] (in www.tribunalconstitucional.pt.
[7] Também acessíveis in www.tribunalconstitucional.pt.
[8] Também acessível in www.tribunalconstitucional.pt.
[9] In Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, T. I, 2.ª ed., Coimbra Editora, 2010, 686-687.