Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
445/14.9GBOAZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RENATO BARROSO
Descritores: ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
COACÇÃO AGRAVADA
Nº do Documento: RP20160413445/14.9GBOAZ.P1
Data do Acordão: 04/13/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 996, FLS.56-60)
Área Temática: .
Sumário: I – A rejeição da acusação por ser considerada manifestamente infundada [art. 311.º, do CPP] implica que a acusação padeça de deficiências estruturais de tal modo graves que, em face dos seus próprios termos, não tenha condições de viabilidade, por os factos nela descritos não constituírem crime.
II – Mas tal conclusão – da irrelevância penal dos factos imputados ao arguido – tem de ser manifesta, indiscutível, evidente, inequívoca, não bastando que seja meramente discutível por uma das várias correntes seguidas pela jurisprudência.
III – Nessa medida, só e apenas quando de forma incontroversa os factos que constam na acusação não constituem crime, é que o tribunal a pode rejeitar por manifestamente infundada, ao abrigo do aludido comando legal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. 445/14.9GBOAZ.P1
1ª Secção

ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

1. RELATÓRIO

A – Decisão Recorrida

Pelo M.P. da Comarca de Aveiro, Instância Local de Oliveira de Azeméis, foi deduzida acusação contra B…, para julgamento em tribunal singular, pela prática de quatro crimes de coacção agravada, sendo um deles na forma tentada, p.p., pelos Artsº 154 nº1 e 155 nº1 als. a) e b), ambos do C. Penal.

Em sede de Secção Criminal, J1, esta acusação foi rejeitada por manifestamente infundada, nos termos do Artº 311 nsº2 al. a) e 3 do CPP.

B – Recurso

Inconformado com o assim decidido, recorreu o M.P., com as seguintes conclusões (transcrição):

A) O objeto do presente recurso consiste no despacho proferido a fls. 68 a 64 que, nos termos do disposto no art. 311.º, n.º 2, alínea a) e n.º 3, do Código de Processo Penal, rejeitou o recebimento da acusação pública deduzida nos autos a fls.36 a 38 contra o aqui arguido B…, pela prática, em autoria material e concurso efetivo, de três crimes de coação agravada, previsto e punidos pelos artigos 154.º, n.º1 e 155.º, n.º1, alínea a) e b), ambos do Código Penal, e de um crime de coação agravada, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 154.º, n.º1 e 2 e 155.º, n.º1, alíneas a) e b), ambos do Código Penal, por entender que a factualidade ali vertida não integra o conceito de violência ou ameaça com mal importante necessário para a enquadrar nos crimes de coação imputados ao arguido mas poderia enquadrar-se no tipo legal de crime, previsto e punido pelo artigo 145.º do CP, na forma tentada;
B) Face ao princípio do acusatório o tribunal só pode rejeitar a acusação por manifestamente infundada, por os factos não constituírem crime, quando a factualidade em causa não consagra de forma inequívoca qualquer conduta tipificadora de um crime, juízo que tem de assentar numa constatação objetivamente inequívoca e incontroversa da inexistência de factos que sustentam a imputação efetuada.
C) - Em nosso entendimento, a acusação por nós deduzida contra o arguido B… é manifestamente fundada, integrando os factos nela vertida todos os elementos objetivos e subjetivos dos crimes de coação que lhe foram imputados;
D) O Douto Despacho Recorrido violou o disposto nos arts.º 311.º, n.º 2, al. a) e n.º 3, alíneas d) do Código de Processo Penal e artigos 154.º e 155.º, ambos do Código Penal.
Nestes termos, deverá ser determinado que o Douto Despacho Recorrido seja revogado e substituído por outro que receba a acusação e designe a audiência de julgamento, assim se fazendo Justiça.

C – Resposta ao Recurso

O arguido não respondeu ao recurso.

D – Tramitação subsequente

Aqui recebidos, foram os autos com vista à Exmª Procuradora-Geral Adjunta, que militou pela procedência do recurso.
Observado o disposto no Artº 417 nº2 do CPP, não foi apresentada resposta.
Efectuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO

A – Objecto do recurso

De acordo com o disposto no Artº 412 do CPP e com a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no D.R. I-A de 28/12/95 (neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/" HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/"www.dgsi.pt, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria) o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, que aqui e pela própria natureza do recurso, não têm aplicação.
Assim sendo, importa tão só apreciar se existe razão ao recorrente, quando solicita a revogação do despacho supra transcrito e a sua substituição por outro que receba a acusação deduzida e designe data para julgamento.

B – Apreciação

Exposta a questão em discussão, eminentemente jurídica, importa atentar, primeiro, na acusação formulada, e depois, no despacho recorrido.

A primeira, reza assim (transcrição):

No dia 21 de agosto de 2014, entre as 22:00 e as 23:00 horas, crianças e adolescentes brincavam às escondidas no Caminho …, em …, perto da residência do arguido.
Entre estes encontravam-se, designadamente, C…, nascido a 30/11/2001, filho de D…, E…, nascido a 05/07/1999, filho de F…, G…, nascido a 03/01/1999, filho de H… e I…, nascido a 16/07/1998, todos menores com 12, 15, 15 e 16 anos, respetivamente, à data da prática dos factos.
Sucede que, o ora arguido, dirigiu-se aos seus galinheiros e dali, arremessou para o exterior da sua propriedade, em direção ao local onde decorriam as brincadeiras, 4 paus, com as seguintes características:
-com 94cm de comprimento, 6cm e 2cm de largura, nas duas extremidades;
-com 97cm de comprimento e 8cm de largura, pregado numa das extremidades com um prego com uma saliência de 4cm;
-com 102cm de comprimento e 2,5cm de largura;
-com 147cm de comprimento e 2,5cm de largura;
De seguida, o arguido saiu para o exterior da sua residência, trazendo consigo um cão de raça “ Pastor Alemão”, preto e branco, com 2 anos e 8 meses à data dos factos, conduzido pela trela, na direção do D…, do E…, do G… e do I…, passeando-o durante cerca de 5 minutos, e regressando a casa.
O arguido agiu do modo descrito, ou seja, atirando as tábuas e direcionando o seu cão pastor para o local onde se encontravam os menores com a intenção de os assustar, fazendo-os temer pela sua integridade física, e, assim, levá-los a fugir daquele local, bem sabendo que se tratavam de crianças e adolescentes.
Tal veio efetivamente a suceder com os menores C…, E… e o G…, os dois primeiros emigrantes na Holanda e o terceiro em França, a passarem as suas férias de verão em Portugal, o que não sucedeu com o I….

O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, com a intenção de obstar a que os menores prosseguissem com as sus brincadeiras junto da sua residência e fugissem dali em pânico para as suas casas, o que ocorreu com, pelo menos, os três menores supra identificados, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei criminal.
Pelo exposto, o arguido B… incorreu, em autoria material e em concurso efetivo, na prática de três crimes de coação agravada, previstos e punidos pelos artigos 154.º, n.º1 e 155.º, n.º1, alínea a) e b), ambos do Código Penal, na pessoa dos menores C…, E… e o G… e um crime de coação agravada, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 154.º, n.º1 e 2 e 155.º, n.º1, alínea a) e b), ambos do Código Penal, na pessoa do menor I….

O despacho judicial que a rejeitou e que gera o presente recurso, é do seguinte teor (transcrição):

O tribunal é competente.
O Ministério Público tem legitimidade para exercer a ação penal.
Questão prévia:
Dispõe o art. 311º, nº 1 que recebidos os autos o tribunal pronuncia-se sobre nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.
E, da análise da acusação pública resulta que vem imputada a prática ao arguido B… de três crimes de crime de coação agravada e um crime de coação agravada na forma tentada, previstos e punidos pelos art.ºs 22°, 23°, n.ºs 1 e 2, 73°, 154°, n .º 1 e 155°, n.° 1, al . a) e b) todos do Código Penal.
Da leitura da acusação resulta imputada ao arguido ter arremessado em direção ao local onde três menores brincavam 4 paus com as características ali descritas e aqui dadas integralmente como reproduzidas, não os atingindo porém levando-os a colocar em fuga.
Ainda que, de seguida o arguido saiu para o exterior da residência e conduzindo o seu cão, pastor alemão pela trela o passeou no local regressando a casa cerca de cinco minutos após.
Ainda que com a aludida conduta agiu o arguido com intenção de obstar a que os menores prosseguissem com as suas brincadeiras junto da sua residência.
Circunscrita assim a factualidade imputada ao arguido, importa dela extrair as seguintes ilações:
Da leitura deste tipo legal de crime em causa decorre que são elementos objetivos do tipo de ilícito em análise e que em concreto, em referencia à factualidade descrita, importa analisar.
De acordo com o disposto no artigo 154.°, n.º 1, do Código Penal, comete o crime de coação quem, por meio de violência ou de ameaça com um mal importante, constranger outra pessoa a uma ação ou omissão, ou a suportar uma atividade.
O crime em apreço é punido de forma agravada quando os factos forem realizados, designadamente, por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a 3 anos - cfr. artigo 155. º, n. ° 1, alíneas a) e artigo 132° e 164° ambos do Código Penal e ou pessoa particularmente indefesa em razão da idade ( al b).
Ainda nos termos do preceituado no art.º 22°, n.º 1 do Código Penal, há tentativa quando o agente praticar atos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se, definindo depois, o n.º 2 o que se entende por atos de execução.
A tentativa, de acordo com o art.º 23° do Código Penal, só é punível se ao crime consumado corresponder pena superior a três anos.
O tipo objetivo de ilícito da coação consiste em constranger, por meio de violência ou ameaça com mal importante outra pessoa a adotar um determinado comportamento: praticar uma ação, omitir determinada ação, ou suportar uma ação.
Note-se que a coação é um crime de resultado: constranger outra pessoa a adotar um comportamento. Sendo o bem jurídico protegido a liberdade de ação, a consumação deste crime exige que a pessoa objeto da ação de cocção tenha, efetivamente, sido constrangida a praticar a ação, a omitir a ação ou a tolerar a ação, de acordo com a vontade do coator ou contra a sua vontade. (neste sentido, AMÉRICO TAIPA DE CARVALHO, "Anotação ao artigo 154°", Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, Coimbra-1999, página 358).

E daquela factualidade assim descrita, salvo o devido respeito a factualidade assim descrita "o arremessar dos paus em direção ao local onde os menores brincavam com intenção de obstar a que aqueles ali prosseguissem com as suas brincadeiras" não integra o conceito de violência ou ameaça com mal importante, nem o facto " De seguida o arguido saiu para o exterior da sua residência trazendo consigo um cão (...) conduzindo-o pela trela (...) passeando-o durante cerca de 5 minutos e regressando a casa" – cit.
Na verdade, de tal "passeio", "conduzido o cão pela trela", conforme descrito na douta acusação pública não se extai qualquer comportamento ou indicio de que o arguido "direcionasse o cão aos menores" e nessa medida qualquer facto consubstanciado dor de violência ou mal importante integrador do tipo legal de crime.
Antes afigura-se-nos que tal factualidade assim descrita poderia enquadrar-se no tipo legal de crime p. e p. pelo artigo 145° do CP, na forma tentada / um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punível pela al. a) do n.º 1 e 2 do art.º 145º do Código Penal, por referência à al. c) do n.º 2 do art.º 132° e 143° e 22°, ambos do Código Penal.
Com efeito, nos termos do art. 143° n° 1 do Código Penal, «quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com multa».
Este tipo incriminador visa proteger um dos mais importantes bens jurídicos da ordem jurídica portuguesa, a integridade física, um bem jurídico eminentemente pessoal.
Resulta deste tipo legal que, em ordem a preencher-se o crime em causa é necessário uma conduta humana que seja a causa adequada a provocar uma ofensa no corpo ou saúde de uma pessoa.
Leal Henriques e Simas Santos, Código Penal Anotado, vol. 2, pág. 134, citam o Prof. Pinto da Costa que referia que a "matéria deste artigo tinha que ser olhada em sentido médico-legal significando, portanto, lesão corporal, isto é, «perturbação ilícita da integridade corporal e da saúde de outrem» ou, com mais rigor, ofensa pessoal, podendo ser de nível somático (interessando o corpo), de nível psíquico (atingindo a mente) ou de nível que altere o funcionamento perfeito (saúde) de uma pessoa”.
Saúde é uma expressão que deve ser entendida como o «estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença ou enfermidade” (Preâmbulo da Constituição Mundial da Saúde).
Segundo aqueles autores, ob. Cit. pág. 135, este tipo legal de crime prevê um crime de resultado exigindo-se, portanto, que haja urna ofensa efetiva à integridade física ou psíquica do ofendido.
Trata-se igualmente de um crime que pode ser consumado quer por ação quer por omissão.
E, finalmente, apresenta-se corno um crime doloso, isto é, um delito que pressupõe urna conduta intencional dirigida à lesão do corpo ou da saúde.
Por seu turno, o art. 145.º, n.º1, al a) e o º 2 do Código Penal "se as ofensas previstas nos art. 143° forem produzidas em circunstâncias que revelem a especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido com pena de prisão até quatro anos.”
De acordo com o nº2 deste normativo "são suscetíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no n° 2 do art. 132°.”
E, de acordo com a alo b) do n.º 2 do art.º 132° do Código Penal, "é suscetível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade (…) praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão da idade, deficiência, doença ou gravidez”.
E sendo um crime doloso, também punível a título de dolo eventual.
Com efeito, ao arremessar os identificados paus em direção ao local onde os menores se encontravam, colocando-se os mesmos em fuga, não logrou o arguido atingi-los conforme se descreve na douta acusação pública, o que poderia ocorrer, pois conforme se descreve tais paus direcionados ao local onde os menores se encontravam a brincar.
Este tipo legal de crime admite a forma tentada nos termos do disposto no artigo 22º do Código Penal, porquanto punível com pena superior a 3 anos de prisão.
Porém do cotejo dos factos constantes da douta acusação pública não resulta o elemento subjetivo e nos termos do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 1/2015 Uniformizador de jurisprudência no sentido de que a falta dos elementos subjetivos do crime na acusação não pode ser integrada em sede de audiência de julgamento por recurso à alteração não substancial dos factos, impede tal alteração da qualificação jurídica dos factos.

Com efeito, a falta de descrição na acusação, agora por força de eventual alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na mesma, do respetivo elemento subjetivo, nomeadamente daquele que se traduz no conhecimento da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrado, sob pena de alteração substancial dos factos nem sob recurso ao disposto no artigo 358º do CPP.
Assim sendo nos termos do disposto no artigo 311º 2 al. a) e 3 do CPP rejeita-se a acusação pública.

Dispõe o Artº 154 do Código Penal:
1. Quem, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, constranger outra pessoa a uma ação ou omissão, ou a suportar uma atividade, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2. A tentativa é punível.
3. O facto não é punível:
a) Se a utilização do meio para atingir o fim visado não for censurável; ou
b) Se visar evitar suicídio ou a prática de facto ilícito típico.
O crime de coacção constitui, como se sabe, um tipo fundamental dos crimes contra a liberdade de decisão e de acção, protegendo todas as possíveis e legítimas manifestações da liberdade pessoal.
O seu preenchimento objectivo exige o constrangimento de uma pessoa a adoptar um determinado comportamento, praticando, omitindo ou suportando uma acção, na medida em que, sendo o bem jurídico tutelado pela norma, precisamente, a liberdade pessoal, é o dito constrangimento que determina o coagido a decidir no sentido pretendido pelo coactor.
Como diz Américo Taipa de Carvalho, em Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, pág. 358, a coacção é um crime de resultado, exigindo-se «que a pessoa objecto da acção de coacção tenha, efectivamente, sido constrangida a praticar a acção, a omitir a acção ou a tolerar a acção, de acordo com a vontade do coactor e contra a sua vontade. Para haver consumação, não basta a adequação da acção (isto é, a adequação do meio utilizado: violência ou ameaça com mal importante) e a adopção, por parte do destinatário da coacção, do comportamento conforme à imposição do coactor, mas é ainda necessário que entre este comportamento e aquela acção de coacção haja uma relação de efectiva causalidade».
Ainda em sede objetiva, importa dizer que o crime se traduz na violência ou na ameaça com um mal importante – entendido em sentido não estritamente jurídico, mas numa dimensão ampla, de raiz social – cristalizado na promessa de um mal futuro, que seja relevante e cuja ocorrência dependa da vontade do agente.
A este nível, ensina o referido autor, ob e pág. Citadas, que “o critério da importância do mal reconduz-se ao critério da sua adequação a constranger, e este, tal como aquele, é um critério objectivo individual: objectivo, na medida em que se apela ao juízo do homem comum; individual, uma vez que se tem de ter em conta as circunstâncias concretas em que é proferida a ameaça, nomeadamente as sub-capacidades (...) do ameaçado...”.
A violência pode decorrer do exercício da força física, ou da utilização de outros meios que a provoquem, não se exigindo o contacto físico, sendo que o tipo inclui a violência psicológica, bastando, no fundo, para a sua consumação, a simples hostilidade idónea a coagir.
Ora, transpondo estes ensinamentos para a situação dos autos, crê-se, com alguma clareza, que a factualidade descrita na peça acusatória se pode enquadrar, sem dificuldade, na previsão normativa do ilícito referido, na medida em que, tendo o arguido atirado paus na direção do local onde se encontravam os menores a brincar, conduzindo de seguida um cão pela trela naquela direcção, durante cinco minutos, com o propósito de os assustar e os levar a, temendo pela sua integridade física, dali se afastarem, como veio a suceder, com três das quatro crianças envolvidas, desenha-se a ameaça de violência ou mal importante que levou os referenciados menores a adoptar uma comportamento que, sem a mesma, não o assumiriam.
Nessa medida, poder-se-á sem rebuço concluir, que a conduta do arguido revestiu o grau de violência necessário para a produção do resultado típico, sendo por isso subsumida ao crime de coacção – agravada tendo em conta a idade das vítimas – como lhe é assacado pela acusação.
É certo que se trata de uma matéria discutível, a exigir a prova dos factos, quer em sede objetiva – relativa à dinâmica dos acontecimentos – quer na dimensão subjectiva – reportada à intenção subjacente do arguido com o descrito comportamento – após o que se fará a correspondente e definitiva qualificação jurídica criminal.
Ora, é precisamente esta questão, de se tratar de uma matéria controvertida e em que a descrita factualidade pode ser subsumida, sem esforço, à previsão do crime de coacção agravada como o faz o M.P., que impede que o Mmº Juiz a quo rejeite a acusação por manifestamente infundada.
A acusação fixa, como se sabe, o objecto do julgamento e, sob pena de nulidade, contêm, como exige o nº3 do Artº 283 do CPP, além do mais, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o que se impõe por força do princípio do acusatório e como forma de assegurar ao arguido todas as garantias de defesa, nos termos do Artº 32 nº1 da Constituição da República Portuguesa.
O nosso modelo processual penal, vigente desde 1987, estrutura-se, no princípio do acusatório, embora mitigado com uma vertente investigatória, estabelecendo-se uma distinção clara entre a entidade que tem a seu cargo uma fase investigatória e, nesse âmbito, produz uma acusação, e uma outra, que julga, em audiência pública e contraditória, os factos objecto dessa acusação.
In casu, o tribunal da 1ª instância, ao abrigo do plasmado no Artº 311 nsº2 al. a) e 3 al. d) do CPP, rejeitou a acusação por a considerar manifestamente infundada, na medida em que, entendendo que a factualidade nela descrita não traduzia o crime de coacção agravada que ali era imputado ao arguido, mas, ao invés, um eventual crime de ofensa à integridade física qualificada, não a recebeu por nela não constarem os elementos facticos alusivos ao respectivo dolo, sendo seguro que nunca os poderia aditar, sob pena de cometer uma nulidade por alteração substancial dos factos constantes da acusação pública.
Ora, como é amplamente ensinado pela doutrina e jurisprudência, a aplicação da norma citada implica que a acusação, nessas situações, padeça de deficiências estruturais de tal modo graves que, em face dos seus próprios termos, não tenha condições de viabilidade, por os factos nela descritos não constituírem crime, mas tal conclusão, a da irrelevância penal dos factos imputados ao arguido, tem de ser manifesta, indiscutível, evidente, inequívoca, não bastando que seja meramente discutível por uma das várias correntes seguidas pela jurisprudência.
Nessa medida, só e apenas quando de forma incontroversa os factos que constam na acusação não constituem crime, é que o tribunal a pode rejeitar por manifestamente infundada, ao abrigo do aludido comando legal.
Tratando-se de matéria controvertida e sendo admissível, juridicamente, a qualificação dos factos operada na acusação pública, não basta para a sua rejeição com o referenciado fundamento, uma opinião doutrinária ou jurisprudencial divergente, por muito válida que seja, na medida em que, a esse nível, estaremos sempre no domínio da mera discussão jurídica, legítima, mas insuficiente para, ao abrigo da al. d) do nº3 do Artº 311, rejeitar uma acusação por se considerar a mesma como manifestamente infundada.
Essa é, precisamente, a descrita situação dos autos, em que o Mmº Juiz a quo, afirma a sua discordância com a qualificação jurídica efectuada pelo M.P. na acusação, reportada aos factos que são imputados ao arguido.
Todavia, sendo uma questão de mera interpretação jurídica, a divergência assinalada não permite, sob pena de violação do princípio do acusatório, a rejeição da acusação nos termos em que foi efectuada.
Sem dúvida que a acusação, em sede de julgamento, poderá vir a soçobrar – improcedendo, o que é um efeito jurídico distinto da rejeição – ou então poderá vir a entender-se que os factos ali descritos merecem outro enquadramento jurídico.
Mas esse será um juízo a fazer na fase própria, sendo que neste momento não é possível afirmar, com a segurança e certeza exigidas pela norma da al. d) do nº3 do Artº 311 do CPP, que os factos ali descritos não constituem os crimes de coacção agravada que são imputados ao arguido.
Motivo pelo qual o despacho recorrido deve ser substituído por outro, que receba a acusação e designe dia, hora e local para audiência, por não se verificarem outras circunstâncias que o impeçam.
Assim sendo, procede o recurso.

3. DECISÃO

Nestes termos, decide-se conceder provimento ao recurso e em consequência, revoga-se o despacho recorrido que deve ser substituído por outro que receba a acusação pública deduzida e designe data para julgamento.
Sem custas.
xxx
Consigna-se, nos termos e para os efeitos do disposto no Artº 94 nº2 do CPP, que o presente acórdão foi integralmente revisto e elaborado pelo primeiro signatário.
xxx
Porto, 13 de Abril de 2016
Renato Barroso
Vítor Morgado