Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
17311/17.9T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ABÍLIO COSTA
Descritores: COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
DÍVIDA À PREVIDÊNCIA
CAIXA DE PREVIDÊNCIA DOS ADVOGADOS E SOLICITADORES
CONTRIBUÍÇÕES
Nº do Documento: RP2018020517311/17.9T8PRT.P1
Data do Acordão: 02/05/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º668, FLS.5-11)
Área Temática: .
Sumário: Os tribunais judiciais comuns são incompetentes em razão da matéria para as acções executivas para pagamento de quantia certa instauradas pela Caixa de Previdência B... contra os seus beneficiários com base em certidões de dívida por si emitidas e para obter o cumprimento coercivo de contribuições alegadamente em dívida, por resultarem de relações jurídicas de direito administrativo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

Na execução comum, para pagamento da quantia de €11.510,49, relativa a contribuições não pagas, movida pela CAIXA DE PREVIDÊNCIA B… contra C…, foi proferida decisão indeferindo liminarmente o requerimento executivo, por incompetência do tribunal em razão da matéria.
Escreveu-se, entre o mais, na respectiva fundamentação:
“A exequente Caixa de Previdência B…, intentou a presente execução contra a executada C…, tendo por base uma certidão de dívida emitida nos termos do artigo 81º, nº 5, do Decreto-Lei nº 119/2015, de 29 de junho.
Porém, ressalvado o devido respeito por melhor opinião, entendemos que os Juízos de Execução não são competentes, em razão da matéria, para a tramitação das ações executivas para a cobrança de dívidas da Caixa de Previdência B…, sendo essa competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Com efeito, estabelece-se no citado normativo que a certidão da dívida de contribuições emitida pela direção constitui título executivo, devendo obedecer aos requisitos previstos no Código de Procedimento e de Processo Tributário.
A este respeito, como foi decidido no douto acórdão da Relação do Porto de 20/06/2016, nos termos do artigo 1.º do Novo Regulamento da Caixa de Previdência dos B…, publicado em anexo ao Decreto-Lei n.º 119/2015, de 29 de Junho, a Caixa de Previdência dos B… (B…) é uma instituição de previdência autónoma, com personalidade jurídica, regime próprio e gestão privativa, e visa fins de previdência e de protecção social dos C… e dos associados da D…. A B… é uma pessoa colectiva de direito público. As relações jurídicas que se estabelecem entre ela e os seus associados, no âmbito do respectivo regulamento, assumem natureza administrativa e, por isso, nos termos da al. o), do n.º 1, do artigo 4.º, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas a «Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores», como é o caso em apreço. Os tribunais comuns são incompetentes em razão da matéria para tramitar um processo em que a B… pretende obter de um seu associado a cobrança coerciva de contribuições, competindo essa função aos tribunais administrativo e fiscais”.
Inconformada, a exequente interpôs recurso.
Conclui:
- O Tribunal a quo é o tribunal competente para a decisão e tramitação deste processo executivo;
- Pois a B…, não obstante prosseguir fins de interesse público, tem uma forte componente privatística. Com efeito,
- A B… «é uma instituição de previdência autónoma, com personalidade jurídica, regime próprio e gestão privativa…» (cf. Art.º 1.º, n.º 1 do regulamento aprovado pelo Dec. Lei n.º 119/2015, de 29/06) não fazendo parte do sistema público de segurança social (cf. Ilídio das Neves in “Direito da Segurança Social – Princípios Fundamentais Numa Análise Prospectiva”);
- A B… não está sujeita a um poder de superintendência do Governo, mas a um mero poder de tutela (cf. Art.º 97.º do regulamento aprovado pelo Dec. Lei n.º 119/2015, de 29/06), sendo essa tutela meramente inspectiva;
- A B… não faz parte da administração directa ou indirecta do Estado;
- Os seus membros directivos não são designados pelo Governo, mas eleitos «pelas assembleias dos B1… e dos associados da Câmara dos B2…»;
- Mas além disso a B… não é financiada com dinheiros públicos, sejam oriundos do Orçamento do Estado ou do Orçamento da Segurança Social;
- Pelo que a B… não deve ser qualificada como uma mera “entidade pública”;
- As contribuições para a B… não têm natureza tributária, mais se assemelhando a contribuições para um fundo de pensões;
- As contribuições para a B… assentam numa verdadeira relação sinalagmática entre o montante das contribuições pagas e a futura pensão de reforma a ser percebida pelo beneficiário;
- A este facto acresce que, nos termos do disposto no art.º 80.º, n.º 4 do regulamento aprovado pelo Dec. Lei n.º 119/2015, o montante das contribuições depende em exclusivo da opção e, portanto, da única vontade do beneficiário;
- Nos termos da sentença recorrida, os tribunais administrativos e fiscais seriam os competentes para a tramitação e decisão de execução fundada em certidão de dívida reportada a contribuições para instituição de previdência;
- Todavia, o n.º 2 do art.º 148.º do CPPT impõe, para que se possa fazer uso o processo de execução fiscal, no caso de «dívidas a pessoas colectivas de direito público que devam ser pagas por força de acto administrativo», que a lei estipule expressamente os casos e os termos em que o pode fazer;
- No novo regulamento da B…, aprovado pelo Dec. Lei n.º 119/2015, de 29/06, não existe norma que, de forma expressa, determine que as dívidas à B… sejam cobradas através de processo de execução fiscal a correr nos serviços de finanças;
- O que foi confirmado, já depois da entrada em vigor do novo regulamento da B…, pela Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) à Direcção da B…. (doc.1);
- E porque “não há direito sem acção”, não resta à B… outro caminho senão recorrer aos tribunais judiciais, como no presente caso, para cobrar as contribuições em dívida por parte dos seus beneficiários, isto sob pena de ficar sem tutela jurisdicional efectiva para o apontado propósito;
- Assim a interpretação das referidas normas de modo a concluir pela incompetência do Tribunal a quo, acarretaria o incumprimento de preceito constitucional, constante do art.º 20.º, n.º 1 da CRP, que estipula que «a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos…»;
- Tendo em conta o princípio constitucional previsto no art.º 20.º, n.º 1 da CRP que dispõe que «a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos…», a interpretação conjugada da alínea o) do n.º 1 do art.º 4.º do ETAF (aprovado pela Lei n.º 32/2002, de 19/02) e do n.º 2 do art.º 148.º do CPPT, perfilhada na sentença recorrida, ou seja, de que apenas os tribunais administrativos e fiscais seriam competentes para dirimir os litígios entre a B… e os seus beneficiários, é inconstitucional por violação do disposto no art.º 20.º, n.º 1 da CRP, na medida em que, como vimos, levará a um verdadeiro “beco sem saída” pois a B… ficaria, dessa forma, sem possibilidade de poder cobrar as contribuições em dívida pelos seus beneficiários;
- Pois, as dívidas à B… não poderão ser cobradas judicialmente nem nos tribunais administrativos e fiscais, nem por meio de execuções fiscais promovidas pela AT, nem por meio de execuções fiscais promovidas pela Segurança Social, por falta de norma habilitante para o efeito;
- A sentença recorrida violou, assim, o art.º 2.º, n.º 2 do C.P.C.; o art.º 179.º, n.º 1 e 2 do NCPA e o art.º 148.º, n.º 2 do CPPT; o art.º 81.º, n.º 5 do RB…; a alínea o) do n.º1 do art.º 4.º do ETAF e, além disso, a interpretação normativa extraída do referido conjunto de preceitos legais é inconstitucional por violar o artigo o art.º 20.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
Não foram apresentadas contra-alegações.
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Questão a decidir:
- competência em razão da matéria.
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A matéria a considerar já resulta do relatório, relevando considerar ainda que, por carta de 9-11-2015, foi comunicado pela Autoridade Tributária à B… o seguinte, consoante fls 18 verso – documento junto com as alegações, junção que se admite nos termos do disposto no art.651º, nº1, segunda parte, do CPC:
“Em respeito ao assunto em epígrafe, cumpre informar que, por despacho da Diretora-Geral de 08/10/2015, foi sancionado o entendimento que considera não existir actualmente norma legal que habilite a instauração de processo de execução fiscal pela AT para cobrança de contribuições em dívida à B…. De facto, essa possibilidade não tem cabimento no Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), nem está expressamente consagrada em legislação avulsa especial.
Neste âmbito, foi analisado o Regulamento da B…, aprovado elo Decreto-Lei nº119/2015 de 29 de Junho. Contudo, também aqui não está prevista a instauração do processo de execução, nem mesmo no nº1 do artigo 85º. O teor desta norma limita-se a indicar os requisitos que devem revestir os títulos executivos a extrair pela B… na qualidade de credora, pelo que se considera não haver suporte na letra da lei que admita a instauração do processo de execução fiscal pela AT”.
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O poder jurisdicional encontra-se repartido pelos tribunais segundo diversos critérios.
Um desses critérios é o da matéria: desta decorre a existência de diferentes espécies ou categorias de tribunais, situados no mesmo plano horizontal, tendo como fundamento o princípio da especialização – cfr. A. VARELA, M. BEZERRA e S. NORA in Manual de Processo Civil, 197.
Entre aquelas categorias estão, para o que aqui interessa, os tribunais judiciais e os tribunais administrativos e fiscais – art.209º da CRPortuguesa.
Nos termos do art.211º, nº1, da CRPortuguesa: “Os tribunais judiciais são tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”. O que resulta, igualmente, do disposto no art.40º, nº1, da Lei nº62/2013, de 26/8 – Lei da Organização do Sistema Judiciário – e no art.64º do CPC.
Quanto aos tribunais administrativos e fiscais: “Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento de acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” – art.212º, nº3, da CRPortuguesa. Sendo que, apesar de terem uma competência limitada – por confronto com a competência genérica dos tribunais judiciais – resulta do disposto no art.4º da Lei nº13/2002, de 19/2 – ETAF – que os tribunais administrativos e fiscais são, hoje, os tribunais comuns em matéria administrativa e fiscal, tendo reserva de jurisdição nessas matérias, excepto nos casos em que, pontualmente, a lei atribua competência a outra jurisdição.
No caso, não existe legislação avulsa aplicável, nem a situação se enquadra nas várias alíneas específicas do nº1 daquele art.4º do ETAF. Pelo que importa averiguar se a mesma se enquadra na previsão genérica da al. o) daquele preceito legal: “Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores”.
Atento o conceito de relação jurídica administrativa – em que pelo menos um dos sujeitos é integrado pela Administração – releva apurar se a exequente tem natureza pública ou privada.
Ora, e como se escreve no ac. da Relação de Lisboa de 2-11-2017, in www.dgsi-pt:
“Como é posto em evidência no Ac. RP 20/6/2016, a B… tem traços de entidade pública, desde logo por ter sido criada pelo Estado – pelo Decreto-Lei nº36.550, de 22/10/1947 – como constituindo uma instituição de previdência, sendo que a L 4/2007, de 16/1 (Bases Gerais do Sistema de Segurança Social), a manteve em actividade, referindo no seu art.106º que «mantêm-se autónomas as instituições de previdência criadas anteriormente à entrada em vigor do Decreto-Lei nº549/77, de 31 de Dezembro, com os seus regimes jurídicos e formas de gestão privativas, ficando subsidiariamente sujeitas às disposições da presente lei e à legislação dela recorrente, com as necessárias adaptações».
É indiscutível, e isso mesmo resulta expresso do art.1º do Regulamento da Caixa de Previdência B… publicado em anexo ao DL 119/2015, que a B… visa «fins de previdência e de protecção social», e embora autónoma, se rege, nos termos do nº2 dessa mesma norma, «pelo presente Regulamento e, subsidiariamente, pelas bases gerais do sistema da segurança social e pela legislação dela decorrente, com as necessárias adaptações». Não deixa de estar sujeita à tutela dos membros do Governo responsáveis pelas áreas da justiça e da segurança social – art.97º do respectivo Regulamento – e goza das isenções e regalias previstas na lei para as instituições de segurança social e previdência social e de previdência estabelecidas na alínea c) do nº1 do art.9º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas – art.98º do seu Regulamento.
Daí que estas características públicas têm sido suficientes para conduzirem a uma firmada tendência jurisprudencial nos Tribunais Administrativos no sentido de os mesmos serem os competentes para dirimirem os conflitos entre a B… e os seus associados, não se vendo motivo material para se inverter esse enraizado entendimento: cfr jurisprudência citado no já referido acórdão desta Instância”.
No mesmo sentido cfr. o ac. desta Relação de 20-6-2016, da Relação de Lisboa 9-3-2017, e do Tribunal de Conflitos de 27-4-2017.
Pelo que, estando em causa a cobrança de contribuições à B…, pessoa colectiva de direito público, estamos perante uma relação jurídica de direito administrativo – e não e direito privado – intervindo aquela no exercício de um poder de autoridade que lhe é conferido pela lei.
Quanto à posição assumida pela Autoridade Tributária, a mesma naturalmente não tem a virtualidade de alterar a conclusão a que se chegou – resultando, aliás, do disposto no art.81º, nº5, do Regulamento da Caixa de Previdência do B… a previsão expressa para a utilização do processo de execução fiscal a que alude o nº2 do art.148º do CPPT: “poderão ser igualmente cobradas mediante processo de execução fiscal, nos casos e termos expressamente previstos na lei: a) outras dívidas ao Estado e a outras pessoas colectivas de direito público que devam ser pagas por força de acto administrativo”.
Em conclusão, as relações jurídicas administrativas estabelecidas entre a exequente e os seus associados têm natureza administrativa, cabendo na previsão geral do art.4º, nº1, al. o), do ETAF.
Não se verifica, assim, a invocada inconstitucionalidade – art.20º, nº1, da CRPortuguesa.
Pelo que o recurso não merece provimento.
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Acorda-se, em face do exposto, em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.

Porto, 5-2-2018
Abílio Costa
Augusto de Carvalho
Carlos Gil