Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1004/22.8T9AVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EDUARDA LOBO
Descritores: DECISÃO ADMINISTRATIVA DE APLICAÇÃO DE COIMA
ELEMENTO SUBJETIVO DA CONTRAORDENAÇÃO
NULIDADE
Nº do Documento: RP202211091004/22.8T9AVR.P1
Data do Acordão: 11/09/2022
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A natureza tendencialmente mais simplificada e menos formal do procedimento contraordenacional não pode constituir justificação para a não descrição de modo compreensível do facto que consubstancia o elemento subjetivo da concreta contraordenação em causa, nomeadamente em termos de saber se estamos perante uma imputação a título de dolo ou, diversamente, a título de negligência.
II - Independentemente da qualificação jurídico-processual que se atribua à decisão da autoridade administrativa de aplicação de uma coima, quer por referência à acusação (artº 283.º n.º 3 do Código de Processo Penal), quer por referência à sentença penal (artº 379º nº 1 al. a) do Código de Processo Penal), o certo é que a consequência atribuída à omissão de factos nessa decisão (nomeadamente, de factos atinentes ao elemento subjetivo) consiste sempre na nulidade dessa decisão.
III - A ausência de descrição na decisão administrativa dos elementos constitutivos da contraordenação, geradora de nulidade dessa decisão, não pode ser colmatada em fase subsequente através da remessa dos autos a essa autoridade, impondo-se, por isso, o arquivamento dos autos por falta de objeto.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 1004/22.8T9AVR.P1
1ª secção

Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto

I - RELATÓRIO
Nos autos de recurso de contraordenação que correm termos no Juízo de Competência Genérica de Vagos, Comarca de Aveiro, com o nº 1004/22.8T9AVR, foi proferida decisão em 30.05.2022 que julgou:
- improcedentes as invocadas nulidades por violação do direito de audição e de defesa e por falta de fundamentação da decisão recorrida;
- declarou a nulidade da decisão administrativa recorrida por falta de descrição dos factos subjetivos da infração e determinou o arquivamento dos autos.
Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso para este Tribunal da Relação do Porto extraindo das respetivas motivações as seguintes conclusões:
1. Por decisão administrativa proferida a 26/01/2022 pela Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro (doravante, C.C.D.R.C.), a sociedade arguida “B... Lda.” foi condenada numa coima de 24.000,00€, pela prática, a título negligente, da contraordenação prevista no artigo 20.º, n.º 1, al. d), do DL 166/2008, de 22.08, consubstanciada na realização de escavações em área incluída na “REN”.
2. Impugnada aquela decisão pela sociedade arguida, o Tribunal a quo proferiu a 30/05/2022 sentença onde, além do mais, declarou a nulidade da decisão administrativa recorrida, por falta de descrição dos concretos factos subjetivos da infração imputada à arguida “B... Lda.” e, consequentemente, determinou o oportuno arquivamento dos autos.
3. É desta decisão que versa o presente recurso, não se concordando com a declaração de nulidade, bem como entendendo-se que, mesmo que assim fosse considerado, a consequência não poderia ser o arquivamento do processo, mas sim o reenvio à autoridade administrativa.
4. Sobre o elemento subjetivo do tipo de contraordenação praticado pela sociedade arguida, na decisão administrativa deu-se como provado o ponto 4, fazendo-se constar “A arguida agiu com negligência, pois, sendo proprietária do terreno em causa, é-lhe exigível que tenha perfeito conhecimento das condicionantes de ordem legal que a oneram”.
5. É pacífico em sede jurisprudencial que, embora devendo respeitar os requisitos previstos no artigo 58º do RGCO, a decisão proferida pela autoridade administrativa não é uma sentença formulada em processo penal.
6. Entendemos que a sentença judicial recorrida foi demasiado exigente no que concerne à formulação dos factos que consubstanciam o elemento subjetivo.
7. Não é exigível qualquer descrição factual pormenorizada, extensa ou demasiado, mas apenas uma fundamentação que contenha as razões, de facto e de direito, que levaram à condenação, de forma a permitir ao arguido um juízo de oportunidade ou conveniência quanto à impugnação judicial da decisão condenatória e, posteriormente, caso haja essa impugnação, possibilitar ao tribunal que a vai apreciar conhecer o iter lógico e racional de formação da decisão administrativa.
8. Mesmo que se considerasse existir a nulidade declarada pelo Tribunal a quo, entendemos que a consequência não seria o arquivamento dos autos.
9. Seguindo o regime contraordenacional a tramitação do processo penal não se alcança qual o motivo para que, verificada uma nulidade por ausência de requisitos previstos no artigo 58º do R.G.C.O., a consequência não seja a aplicação das regras semelhantes à nulidade de sentença no processo penal, tal como previstas nos artigos 379º, n.º 2 e 414º, n.º 4 do Código de Processo Penal.
10. Em consequência, ao declarar a nulidade da decisão administrativa, o tribunal recorrido violou o disposto nos artigos 32.º, 41.º, n.º 1 e 58.º do R.G.C.O. e ainda o disposto nos artigos 374.º, n.º 2 e 3 e 379.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e artigo 15.º do Código Penal.
11. Acresce que ao determinar o arquivamento dos autos, a sentença a quo violou o disposto no artigo 64.º, n.º 3, do RGCO e, ainda, o disposto nos artigos 379.º, n.º 1, al. a), n.º 2 e 414.º, n.º 4 do Código de Processo Penal, aplicáveis por força do artigo 41.º, n.º 1, do RGCO.»
*
Na 1ª instância a arguida B... Lda. respondeu às motivações de recurso, concluindo que lhe deve ser negado provimento.
*
Neste Tribunal da Relação do Porto, a Srª. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
*
Cumprido o disposto no artº 417º nº 2 do C.P.Penal, não foi apresentada qualquer resposta.
*
Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
*
*
II - FUNDAMENTAÇÃO
A decisão sob recurso é do seguinte teor: [transcrição]
«I – RELATÓRIO
A “Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro” (doravante “CCDRC”) aplicou à arguida “B... Lda.”, com sede na Rua ..., ..., ... ..., a coima de 24.000 € (vinte e quatro mil euros), pela prática da contra-ordenação prevista no artigo 20.º, n.º 1, al. d), do DL 166/2008, de 22.08, traduzida na realização de escavações em área incluída na “REN”, a título negligente.
Não se conformando com a decisão condenatória proferida, a arguida interpôs recurso da mesma, invocando, além do mais, que a decisão recorrida é nula, porquanto:
- foi baseada no teor da informação n.º ..., da Divisão Sub-Regional de Aveiro da CCDRC, da qual não lhe foi dado conhecimento prévio, constando da mesma factos sobre os quais não teve oportunidade de se pronunciar, em violação do seu direito de audição e de defesa, previsto no artigo 50.º do RGCOC;
- é omissa quanto aos elementos que preenchem o tipo objectivo da infracção, não contendo quaisquer factos que permitam concluir que se encontrava a realizar escavações e aterros.
*
Quando da apresentação dos autos a juízo, o Ministério Público declarou não se opor a que fosse proferida decisão por simples despacho.
Recebido o recurso, por se considerar que os autos já reuniam todos os elementos necessários à decisão a proferir, foi determinada a notificação da arguida para, querendo, se opor a que se decidisse nesses termos.
Tendo a arguida declarado expressamente não se opor à prolação de decisão por escrito, passamos a proferi-la.
***
II – SANEAMENTO
O Tribunal é competente.
O Ministério Público possui legitimidade para o procedimento contra-ordenacional.
*
- Da violação do direito de defesa da arguida
(…)
Ante o exposto, impõe-se julgar improcedente a invocada nulidade do procedimento contra-ordenacional por violação do direito de audição e de defesa da arguida.
*
- Da nulidade da decisão administrativa
A arguida sustenta, ainda, que a decisão administrativa é nula por omitir os elementos que preenchem o tipo objectivo da infracção, não contendo quaisquer factos que permitam concluir que se encontrava a realizar escavações e aterros.
Cumpre decidir.
Nos termos do disposto no artigo 58.º, n.º 1, do RGCOC:
«1 - A decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter:
a) A identificação dos arguidos;
b) A descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas;
c) A indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão;
d) A coima e as sanções acessórias.»
A inobservância de tais requisitos, maxime, da fundamentação da decisão, acarreta a respectiva nulidade.
No entanto, há que ter presente que o dever de fundamentação da decisão condenatória em processo contraordenacional, proferida pela autoridade administrativa, não assume a exigência expressamente prevista no Código de Processo Penal, para a sentença penal, o que se compreende, dada a natureza menos grave das infracções em causa e das correspondentes sanções. Trata-se, pois, de um dever menos intenso, que se basta com a indicação sumária dos factos cometidos, das provas que os sustentam e dos elementos que foram considerados na decisão proferida, acrescida da mera indicação das normas violadas e das sanções aplicadas.
Com efeito, tal como se decidiu no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 02.03.2016[1] que acompanhamos:
«Não definindo a lei o âmbito do dever de fundamentação, tendo em conta a natureza do direito contraordenacional, por contraposição ao direito criminal, afastada está desde logo exigência de uma fundamentação com o rigor e exigência que se impõem no art.º 374 n.º 2 do CPP.
Note-se que a decisão administrativa, quando impugnada, converte-se em acusação, passando o processo a assumir uma natureza judicial (art.º 62 n.º 1 do DL 433/82, de 27.10).
Entendemos assim, que basta a justificação das razões pelas quais – atentos os factos descritos, as provas obtidas e as normas violadas (art.º 58 n.º 1 al.ª s b) e c)) – é aplicada determinada sanção ao arguido, em termos tais que a simples leitura da decisão permita que o arguido se aperceba do que lhe é imputado e possa, com base nessa percepção, defender-se em termos adequados - cfr. arestos citados in AcRel de Coimbra, de 6-02-2013, relator Des Jorge Dias.»
No mesmo sentido, lê-se no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 16.02.2016[2] que:
«iii. No âmbito do processo contra-ordenacional, caracterizado por tramitação processual específica, célere e acessível, o dever de fundamentar deve ser proporcional a tais características;
iv. Assim, o determinante é o entendimento e a apreensão pelos destinatários, nomeadamente o arguido, dos motivos ou razões de facto e de direito da decisão;».
In casu, é imputada à arguida a violação do disposto no artigo 20º nº 1 al. d) do DL 166/2008, de 22-08, que dispõe:
«1 - Nas áreas incluídas na REN são interditos os usos e as ações de iniciativa pública ou privada que se traduzam em:
...
d) Escavações e aterros;»
O preenchimento do tipo objetivo do tipo contra-ordenacional em análise exige, assim, que o agente se encontra a praticar actos que consubstanciem uma atividade de escavação ou aterro.
De acordo com o dicionário da língua portuguesa:
. escavar significa: Formar cavidade em; Cavar em roda; Tirar a terra de; Cavar superficialmente; Tornar côncavo ou oco; Figurado Investigar;
. e aterrar significa: Cobrir ou encher de terra (ex.: aterrar uma cisterna); Pôr um terreno em nível, enchendo de terra as depressões (ex.: aterrar um campo em declive); Formar aterro em.
Na decisão administrativa é imputada a arguida da prática dos seguintes factos:
. ter efetuado ação de movimentação de solos, com extração de massas minerais, em terrenos contíguos à sua sede, sitos no local de ..., lugar de ..., freguesia ..., ..., que integram a área da Reserva Ecológica Nacional (cf. ponto III, 1-).
Ora, apesar de a descrição da ação realizada pela arguida ser parca e pouco concreta, é possível extrair da mesma um conteúdo factual mínimo, suscetível de preencher o tipo legal contraordenacional imputado à mesma.
Com efeito, se é certo que "massas minerais" é um conceito jurídico, que deveria ter sido concretizado com factos, nomeadamente, de acordo com o exarado nos autos de contra-ordenação (saibro - fls. 118), a verdade é que a infração imputada à arguida não depende do tipo de material que estava a ser retirado, ma, apenas, de os atos praticados pela mesma consubstanciarem uma escavação ou um aterro.
Ora, afirmando a decisão administrativa que a arguida procedeu à movimentação de solos e à extração de materiais dos terrenos em causa, é possível alcançar qual a atividade que a mesma levou a cabo, concretamente, que extraiu, ou seja, tirou materiais/massas minerais daqueles, que se situam em área da Reserva Ecológica Nacional.
Tal factualidade, apesar de parca e imperfeitamente descrita, mostra-se suficiente para preencher o supra mencionado conceito de escavação, pressuposto no tipo contraordenacional cuja violação é imputada à arguida.
Assim, tendo presente que o dever de fundamentação da decisão administrativa é menos intenso e rigoroso do que o exigível na acusação deduzida e na sentença proferida em processo criminal, conforme começamos por enunciar, impõe-se considerar que a decisão recorrida não padece da nulidade apontada, no que respeita aos elementos objectivos do tipo contra-ordenacional.
Todavia, o mesmo não sucede relativamente aos elementos subjectivos do tipo.
Com efeito, a infracção objecto da decisão recorrida é imputada à arguida a título de negligência.
Nos termos do disposto no artigo 9.º, da Lei 50/2006, de 29 de Agosto:
«1 - As contraordenações são puníveis a título de dolo ou de negligência.
2 - A negligência nas contraordenações é sempre punível.
3 - O erro sobre elementos do tipo, sobre a proibição ou sobre um estado de coisas que, a existir, afastaria a ilicitude do facto ou a culpa do agente exclui o dolo.».
A definição de negligência encontra-se prevista no artigo 15.º, do Código Penal, que dispõe:
«Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:
a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização; ou
b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto.»
Ora, a «condenação por contraordenação negligente exige, antes de mais, a narração e demonstração factual objectiva e subjectiva da violação do dever de cuidado, própria da negligência.»[3].
No que respeita à atitude subjectiva e à motivação subjacente à actuação da arguida, o que se consta da decisão administrativa é, apenas, que:
«4 – A arguida agiu com negligência, pois, sendo proprietária do terreno em causa, é-lhe exigível que tenha perfeito conhecimento das condicionantes de ordem legal que o oneram» - cf. Ponto III – Factos Provados.
No ponto “V – Da Fundamentação”, por seu turno, no ponto referente à culpa, lê-se, apenas, que «afastamos, no limite, o dolo, por julgarmos não ter havido na conduta da arguida uma vontade de realização de um ilícito típico, considerando antes que a mesma agiu com negligência.».
Ora, o facto de ser exigível à arguida que tivesse conhecimento das condicionantes de ordem legal que a oneram, respeita, apenas, à consciência da proibição e da ilicitude da conduta, sendo certo que nem a decisão administrativa imputa tal desconhecimento à arguida, nem esta o invocou.
Não há, assim, que equacionar a eventual actuação em estado de erro sobre as proibições ou sobre a ilicitude, por parte da arguida, o qual, de todo o modo, apenas permitira excluir o dolo, nos termos previstos no citado artigo 9.º, n.º 3, da Lei 50/2006, de 29 de Agosto.
A afirmação de que a arguida não teve vontade de realizar o ilícito típico, por seu turno, é um juízo conclusivo, que se destina, apenas, a afastar a ocorrência de dolo, no caso em apreço.
Resta a afirmação de que a arguida actuou com negligência, a qual é meramente conclusiva, encontrando-se desprovida de qualquer facto concreto que a sustente.
Com efeito, a decisão administrativa carece de conter a descrição factual quer dos elementos objectivos, quer dos elementos subjectivos da infracção imputada ao arguido.
A descrição dos factos não se confunde, nem pode ser substituída, por conceitos conclusivos ou jurídicos, nomeadamente, pelo teor das normas ao abrigo das quais a conduta é punível.
Estando em causa uma conduta negligente, exige-se a narração factual da violação do dever de cuidado, próprio da negligência, a qual foi totalmente omitida na decisão recorrida.
Não basta, pois, afirmar-se que a arguida actuou com negligência, o que constitui um mero juízo conclusivo, antes sendo necessário descrever a atitude subjectiva do agente, que constitui a culpa negligente: o dever de cuidado que a arguida devia e podia ter adoptado e que não adoptou, por descuido ou leviandade (com ou sem representação da possibilidade de praticar o facto ilícito, consoante se trate de negligência consciente ou inconsciente, respectivamente).
Neste âmbito, como vimos, nada é dito na decisão administrativa, ainda que de modo imperfeito ou incompleto, a qual se limita a afirmar que a arguida actuou com negligência.
Tal juízo conclusivo apenas possui cabimento em sede de fundamentação de direito, tendo, porém, que ser extraído, necessariamente, de factos concretos que descrevam os elementos subjectivos da infracção imputada à arguida.
Desta feita, não estando descritos os factos imputados à arguida susceptíveis de integrar a conclusão a que a decisão recorrida chegou, de que a mesma actuou com negligência, não podemos senão considerar que esta não se encontra fundamentada em termos factuais.
Verifica-se, assim, que a decisão administrativa se encontra desprovida de factos que sejam susceptíveis de preencher o tipo legal contra-ordenacional imputado à arguida, ou qualquer outro, ao nível subjectivo.
Nessa medida, a decisão recorrida assoma-se:
. manifestamente infundada, por não descrever todos os factos susceptíveis de integrar a prática, pela arguida, de uma contra-ordenação - artigo 311.º, n.º 2, al. a) e 3, al. b) e d), do Código Penal, ex vi artigo 41.º, n.º 1, do RGCOC;
. nula, por ausência de fundamentação de facto, por não descrever os factos relativos à motivação com que a arguida actuou e que fundaram a condenação da mesma, a título de negligência - 58.º, n.º 1, al. b), do RGCOC.
*
Aqui chegados, resta apreciar qual a consequência a extrair de tais vícios.
Ora, nos termos do disposto no artigo 62.º, n.º 1, do RGCOC, a remessa dos autos ao juiz, pelo Ministério Público, vale como acusação.
A acusação desprovida da descrição dos factos imputados à arguida considera-se manifestamente infundada, devendo ser rejeitada, nos termos previstos no artigo 311.º, n.º 2, al. a) e n.º 3, al. b), do Código de Processo Penal, aplicável por via do disposto no artigo 41.º, n.º 1, do RGCOC.
Nesse mesmo sentido aponta o artigo 64.º, n.º 3, do mesmo Diploma, que estatui que «O despacho pode ordenar o arquivamento do processo, absolver o arguido ou manter ou alterar a condenação», não prevendo a possibilidade de devolução dos autos à autoridade administrativa, para efeito de suprimento da nulidade da decisão proferida por ser manifestamente infundada (sem prejuízo de poder e dever ser dada à mesma a possibilidade de sanar vícios do procedimento administrativo).
Assim, tal como se decidiu no acórdão da Relação de Guimarães de 19-05-2016[4] que sufragamos:
«1 - A decisão da autoridade administrativa é suscetível de impugnação judicial, impugnação essa que, apresentada, embora, àquela, é enviada para o Ministério Público que, se a tornar presente ao juiz, vale como acusação.
2 - Valendo, em face da lei, após apresentação judicial, como acusação, se tal decisão for omissa quanto a factos, não se lhe deve aplicar o regime legal supletivo vigente para a sentença que omita a fundamentação.
3 - Nessa medida, considerando-se a decisão administrativa/acusação manifestamente infundada, se o juiz não decidir o arquivamento por despacho, na sentença proferida após julgamento, deverá absolver o arguido da prática da contraordenação que lhe foi imputada.». (sublinhado nosso)
No mesmo sentido se decidiu, entre outro, no aresto da Relação de Coimbra de 11-11-2020[5] onde se lê que:
«Em boa verdade, a equivalência da decisão administrativa, se judicialmente impugnada, à acusação transporta-nos para a disciplina do artigo 283.º do CPP enquanto comina de nulidade a acusação que não contiver a narração dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ou medida de segurança; patologia esta, que, respeitando à ausência de descrição completa dos elementos constitutivos do crime, não pode vir em momento processual subsequente a ser colmatada, não se vendo razão para que o mesmo não seja aplicável ao ilícito contraordenacional.».
Aplicando esse entendimento ao caso dos autos, e porque nos encontramos em sede de decisão por simples despacho, importa declarar a nulidade da decisão administrativa e determinar o arquivamento dos autos.
***
III - DECISÃO
Pelo exposto, decide-se:
A) julgar improcedentes as invocadas nulidades por violação do direito de audição e de defesa da arguida e por falta de fundamentação da decisão recorrida, no que respeita aos elementos objectivos da contra-ordenação imputada àquela;
B) declarar a nulidade da decisão administrativa recorrida, por falta de descrição dos concretos factos subjectivos da infracção imputada à arguida “B... Lda.” e, consequentemente, determinar o oportuno arquivamento dos autos.
*
Custas pela arguida, na parte em que decaiu, que se fixam no mínimo legal, sendo certo que, de acordo com a jurisprudência fixada no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2014, a taxa de justiça liquidada pela interposição do recurso de contra-ordenação não é restituída, mesmo em caso de procedência do mesmo.
*
Notifique e comunique, nos termos do disposto no artigo 70º, n.º 4 do DL 433/82 de 27.10.
Deposite, nos termos do artigo 372º, n.º 5 do Código de Processo Penal, aplicável por força do artigo 41º do RGCO.»
*
Por se mostrar de grande relevo para a decisão a proferir, atentos os fundamentos do recurso, transcreve-se, de seguida, a matéria de facto considerada provada na decisão administrativa, alvo de impugnação:
«FACTOS PROVADOS
1 - Nos dias 12 de Março de 2020, 17 de Dezembro de 2020 e 11 de Janeiro de 2021, verificou-se que a firma B... Lda. com sede em Rua ..., ..., ... ..., tinha efetuado ações de movimentação de solos, com extração de massas minerais, no local de ..., lugar de ..., freguesia ..., ..., em terrenos contíguos, situados em Reserva Ecológica Nacional, tipologia "Áreas de Máxima Infiltração", a que corresponde a nova tipologia "Áreas de proteção e Recarga de Aquíferos" e inserido na Área Alargada de Proteção ..., criada por força da Portaria nº 31/91 de 2 de janeiro, e atualmente delimitada pela Portaria nº 840/2008 de 16/10;
2 - Esta prática é interdita, por força do disposto na alínea d) do nº 1 do artigo 20º do D.L nº 166/2008 de 22/08, alterado e republicado pelo D.L. nº 124/2019 de 28/08 - interdição de "escavações e aterros" - em Reserva Ecológica Nacional;
3 - Pelo que praticou a arguida uma única contraordenação ambiental muito grave, nos termos da alínea a) do nº 3 do artigo 37º do citado diploma legal, punível com coima de € 24.000 a € 144.000, nos termos da alínea b) do nº 4 do artigo 22º da Lei nº 50/2006de 29/08, na redação dada pela Lei nº 114/2015 de 28/08, por ser imputada a título de negligência e por se tratar de pessoa coletiva;
4 - A arguida agiu com negligência, pois, sendo proprietária do terreno em causa, é-lhe exigível que tenha perfeito conhecimento das condicionantes de ordem legal que o oneram.»
*
*
III - O DIREITO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[6], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P[7].
De acordo com as conclusões do recurso interposto, as questões que a recorrente coloca à apreciação deste tribunal consistem em saber:
- se a descrição do elemento subjetivo constante da decisão administrativa é suficiente para se considerar preenchido esse requisito, não padecendo essa decisão da nulidade apontada na decisão recorrida;
Caso se entenda que se verifica essa nulidade:
- saber se deverá ser determinado o arquivamento dos autos ou, antes, o reenvio da decisão à autoridade administrativa para suprimento dessa nulidade, com prolação de nova decisão.

1. Da nulidade da decisão administrativa impugnada:
A questão que ora importa apreciar consiste em saber se, no âmbito da responsabilidade contraordenacional, a decisão administrativa que aplica a coima deve efetuar a imputação da contraordenação ao agente, quer na sua vertente objetiva, quer na vertente subjetiva e qual a consequência processual, caso a decisão seja omissa quanto ao elemento subjetivo da infração.
O direito de mera ordenação social, ligado historicamente à concretização do princípio da subsidiariedade do direito penal e ao movimento de descriminalização, pretendeu construir um modelo em que a proteção de interesses eticamente neutros, de natureza eminentemente administrativa, mas cuja violação justificaria reações que devam exprimir uma censura de natureza social, fosse levada a cabo através da previsão e aplicação de sanções de natureza administrativa, com o "sentido de mera advertência despido de toda a mácula ético-jurídica", e desprovidas dos sinais ou cargas que caracterizam as sanções de natureza penal.
Na realidade, estamos perante comportamentos humanos – igualmente contrários à lei - que angariam uma censura ética com menor ressonância que as condutas criminais.
«Uma coisa será o direito criminal, outra coisa o direito relativo à violação de uma certa ordenação social, a cujas infrações correspondem reações de natureza própria. Este é, assim, um aliud que, qualitativamente, se diferencia daquele, na medida em que o respetivo ilícito e as reações que lhe cabem não são diretamente fundamentáveis num plano ético-jurídico, não estando, portanto, sujeitas aos princípios e corolários do direito criminal»[8].
Através da aplicação de medidas que devem constituir advertências de natureza social «a Administração limita-se a reagir contra a desobediência a certos imperativos visando, mediante o forte apelo em que se traduzem, tornar sensíveis as suas intenções». No fundo, o que está em causa, afinal, é «utilizar uma de entre as muitas medidas através das quais a Administração afirma a sua vontade relativamente ao cidadão desobediente, e cuja aplicação é, portanto, da sua estrita competência»[9].
Assim, o DL n.º 433/82 de 27.10 estabeleceu o regime geral do direito de mera ordenação social, definindo os princípios gerais aplicáveis à determinação de comportamentos que constituam contraordenações e às regras sobre o respetivo sancionamento (plano material), e a conformação do procedimento para aplicação das sanções (plano processual), não estabelecendo, porém, um regime material autónomo completo, remetendo-se, subsidiariamente, ao regime substantivo do direito penal.
Assim mesmo dispõe o artigo 32.º: «Em tudo o que não for contrário à presente lei, aplicar-se-ão subsidiariamente, no que respeita à fixação do regime substantivo das contraordenações, as normas do Código Penal». Também relativamente ao regime adjetivo, dispõe o artº 41º do mesmo diploma que "1. sempre que o contrário não resulte deste diploma, são aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal. 2. No processo de aplicação da coima e das sanções acessórias, as autoridades administrativas gozam dos mesmos direitos e estão submetidas aos mesmos deveres das entidades competentes para o processo criminal, sempre que o contrário não resulte do presente diploma".
Quanto à natureza das infrações em causa, dispõe o artº 1º do RGCC aprovado pelo Dec-Lei nº 433/82 de 27.10, com as alterações introduzidas pelo Dec-Lei nº 244/95 de 14.09, que "constitui contraordenação todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima".
Por outro lado, o artº 8º nº 1 do mesmo diploma estabelece que "só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, como negligência".
Pese embora, como acima referimos, a culpa no domínio das contraordenações não esteja baseada numa censura ética, como a jurídico-penal, ela não deixa de ser um elemento subjetivo indispensável à punição. E também aqui pode existir quer na modalidade de dolo, quer de mera negligência. Aliás, a necessidade desse elemento subjetivo resulta, desde logo, do ciado artº 1º, que afasta a possibilidade de punição a título de contraordenação independentemente do carácter censurável do facto.
Aliás, «o facto é o ponto de partida do juízo de subsunção e o postulado primeiro da subsunção jurídica. Mas, porque o facto, ou acontecimento, é sempre o fruto de uma ação humana e esta sempre consequência de uma decisão de agir ou omitir, isto significa que o agente ao atuar, racionalmente, empresta ao facto, enquanto acontecimento meramente objetivo, uma dimensão subjetiva, na qual se espelha a própria personalidade do sujeito. (…) Por isso o facto, enquanto base essencial da decisão, tem de ser apreciado na sua relação com o sujeito atuante. Só esta dupla dimensão em que o facto deve ser encarado respeita e é compatível com a ideia de um Direito Penal que puna pela culpa do agente[10].» Este mesmo raciocínio é extensível ao direito contraordenacional, atento o disposto no citado artº 1º do RGCC, que não dispensa o juízo de culpa do agente.
O que se compreende, pois se assim não fosse, estaria aberta a porta para a punição como contraordenação a título de responsabilidade objetiva. Bastaria que a administração imputasse ao agente a materialidade objetiva dos factos praticados para que o mesmo fosse condenado na coima respetiva, independentemente de se saber se a respetiva conduta é ou não censurável, ou seja, se o agente podia ou devia, nas circunstâncias concretas, ter agido de outro modo. De forma alguma se pode admitir que os elementos do dolo ou da negligência, quando não descritos na decisão que aplica a coima, possam ser deduzidos por extrapolação dos factos objetivos, com «recurso á lógica, à racionalidade e à normalidade dos comportamentos, de onde se extraem conclusões suportadas pelas regras da experiência comum»
Tal equivaleria a conceptualizar o dolo como emanação da própria factualidade objetiva, ou como inerente a essa factualidade, um dolus in re ipsa, nos moldes das antigas “presunções do dolo”. Claro que isso não é impeditivo de «o juiz comprovar a existência do dolo através de presunções naturais (não jurídicas) ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral ou às chamadas máximas da vida e regras da experiência»[11]. Contudo, no caso em apreço, não se trata de uma questão de prova, mas de efetiva alegação do elemento subjetivo da infração.
É certo que situações haverá em que a descrição objetiva da conduta permite presumir o elemento subjetivo da conduta integradora da respetiva infração. O próprio Supremo Tribunal de Justiça chegou a estabelecer, no caso das contraordenações rodoviárias que, estando o infrator devidamente habilitado para conduzir, sendo portador da respetiva licença, partiu da presunção que o mesmo estava em condições de observar as regras estradais, agindo sem o cuidado a que estava obrigado[12].
Nas restantes situações, porém, em que não é possível extrair tal presunção, a imputação de um "facto contraordenacional" e a sua responsabilização, exigem sempre um nexo de imputação subjetiva, seja através de uma conduta dolosa, seja através de uma conduta negligente. E essa imputação subjetiva deve constar expressamente da decisão administrativa, não só porque não é indiferente o grau de culpa determinante da conduta, mas, acima de tudo, porque desse mesmo grau depende a determinação da própria coima aplicável, cuja variação, v. g. no caso das contraordenações ambientais, pode ser extremamente onerosa para o responsável.
Com efeito, a natureza tendencialmente mais simplificada e menos formal do procedimento contraordenacional não pode constituir justificação para a não descrição de modo compreensível do elemento subjetivo da concreta contraordenação em causa, nomeadamente em termos de saber se estamos perante uma imputação a título de dolo ou, diversamente, a título de negligência.
No caso em apreço, da simples leitura da decisão administrativa impugnada e acima parcialmente transcrita, resulta que a mesma não encerra em si e nos factos imputados à arguida B... Lda., nenhum facto de natureza subjetiva, comummente os chamados elementos subjetivos do tipo (nem a qualquer titulo de dolo nem de negligência- vide artigos 13º, 14º e 15º do Código Penal).

Impõe-se, assim, determinar qual a consequência jurídico-processual nos casos, como o presente, em que a administração omite pura e simplesmente, na descrição dos factos provados, os elementos subjetivos da infração, já que, como bem se refere na decisão recorrida e o próprio recorrente não contesta, a alusão feita à negligência é meramente conclusiva e acaba por confundir a negligência com a consciência da ilicitude.
Dispõe o art.º 58.º do RGCO que a «decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter: [b] descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas», havendo de considerar-se tais exigências satisfeitas quando as indicações contidas na decisão sejam suficientes para permitir ao arguido o exercício desses direitos.
De facto, os ditos requisitos visam, precisamente, a salvaguarda da possibilidade de exercício efetivo dos direitos de defesa, que só poderá existir com um conhecimento perfeito dos factos que lhe são imputados, das normas legais em que se enquadram e condições em que pode impugnar judicialmente aquela decisão (MANUEL SIMAS SANTOS e JORGE LOPES DE SOUSA, Contra-Ordenações – Anotações ao Regime Geral das Contraordenações e Coimas, 2.ª edição de Janeiro de 2003, Vislis Editores, p.334; assim como o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.01.2007, processo n.º 06P3202, Henriques Gaspar).
Como se refere no Ac. do STJ de 06.11.2008[13], «Uma imputação de factos tem de ser precisa e não genérica, concreta e não conclusiva, recortando com nitidez os factos que são relevantes para caracterizarem o comportamento contraordenacional, incluindo as circunstâncias de tempo e de lugar. Para além disso, deve conter os elementos do tipo subjetivo do ilícito contraordenacional, pois, nos termos do art. 8.º do RGCO só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos previstos na lei, com negligência. No caso sub judice, a contraordenação só é punível a título de dolo. Por conseguinte, teriam de constar dos factos (e não constam) também aquelas circunstâncias referidas à vontade de praticar o ato e à consciência da sua ilicitude, bem como ao seu carácter proibido, de modo a poder apreender-se se a arguida agiu com dolo em qualquer das suas modalidades.
A indicação dos factos imputados com menção das provas obtidas é uma exigência do art. 58.º, n.º 1 do RGCO, em tributo aos mais elementares princípios que devem reger um direito de carácter sancionatório e que têm a ver sobretudo com garantias mínimas relacionadas desde logo com o direito de defesa, por muito sumário e expedito que se apresente o processo contraordenacional, pois a própria Constituição estende a este tipo de processos essas garantias (art. 32.º, n.º 10).
Entre essas garantias mínimas de defesa, avulta, como se refere no Acórdão deste STJ de 21/9/2006, Proc. n.º 3200-06, da 5.ª Secção, de que o presente relator foi um dos adjuntos, a de “serem conhecidos os factos que são imputados ao arguido, pois sem que os mesmos estejam estabelecidos não é possível avaliar a justiça da condenação, fica inviabilizado o direito ao recurso e não há salvaguarda do ne bis in idem”.
... Ora, na fase de recurso, valendo a apresentação dos autos ao juiz pelo Ministério Público como acusação (art. 62.º, n.º 1 do RGCO), torna-se necessário, no que toca aos elementos imprescindíveis a que nos vimos reportando, o recurso ao art. 283.º, n.º 3, alínea b) do CPP, aplicável subsidiariamente ao processo das contraordenações (art. 41.º, n.º 1 do mesmo diploma legal). E segundo este dispositivo, a acusação contém sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.
Como vimos, a decisão impugnada não contém esses elementos imprescindíveis, devidamente adaptados a este tipo de processo e que são tendentes a caracterizar uma ação ou omissão (uma narração objetiva, individualizada e concreta dos respectivos factos), e ainda uma caracterização daquelas circunstâncias que permitem estabelecer um nexo psicológico de ligação desses factos ao agente e uma sua imputação a título de dolo».

Para determinarmos qual a consequência jurídico-processual para a omissão, na decisão administrativa que aplica uma coima, do elemento subjetivo da infração, importa que apreciemos, antes de mais, a natureza da referida decisão.
Nos termos do artº 62º do RGCC "recebido o recurso, ... deve a autoridade administrativa enviar os autos ao Ministério Público, que os tornará presentes ao juiz, valendo este ato como acusação".
Porém, a circunstância de a lei fazer equivaler à acusação a apresentação ao juiz do recurso da autoridade administrativa, não significa, só por si, que deve ser aplicada a sanção prevista no artº 283º nº 3 do Código de Processo Penal à decisão da autoridade administrativa que não contenha os elementos indispensáveis a que alude o artº 58º do RGCC.
A jurisprudência tem divergido quanto à verdadeira natureza da decisão administrativa proferida no processo de contraordenação.
A decisão recorrida, apoiada na jurisprudência que cita, entendeu que "a equivalência da decisão administrativa, se judicialmente impugnada, à acusação transporta-nos para a disciplina do artigo 283º do CPP enquanto comina de nulidade a acusação que não contiver a narração dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ou medida de segurança; patologia esta que, respeitando à ausência de descrição completa dos elementos constitutivos do crime, não pode vir em momento processual subsequente a ser colmatada, não se vendo razão para que o mesmo não seja aplicável ao ilícito contraordenacional".
Por outro lado, o Supremo Tribunal de Justiça no seu acórdão de 29.01.2007[14] entendeu que «embora de forma menos intensa, o conteúdo da decisão sancionatória da autoridade administrativa no processo de contraordenação aproxima-se da matriz da decisão condenatória em processo penal, nomeadamente no que respeita à enunciação dos factos provados, com indicação das provas obtidas. A função dos elementos da decisão no procedimento por contraordenação consiste, tal como na sentença penal, em permitir, tanto a apreensão externa dos fundamentos, como possibilitar, intraprocessualmente, o controlo da decisão por via de recurso.
A fundamentação da decisão constitui um pressuposto essencial para verificação, simultaneamente, da pertinência e adequação do processo argumentativo e racional que esteve na base da decisão, e uma garantia fundamental dos respetivos destinatários.
Por isso, a decisão que não contenha os elementos nos termos e pelo modo que a lei determina não é prestável para a função processual a que está vinculada - a definição do direito do caso, e consequentemente, é um ato que não suporta todos os elementos necessários à sua validade.
A consequência, no âmbito do processo penal, vem cominada no artigo 379º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Penal (CPP): a nulidade da sentença que não contenha a enumeração dos factos provados e não provados, e a exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão.
Dada a natureza (sancionatória) do processo por contraordenação, os fundamentos da decisão que aplica uma coima (ou outra sanção prevista na lei para uma contraordenação) aproximam-na de duma decisão condenatória, mais do que a uma decisão da Administração que contenha um ato administrativo. Por isso, a fundamentação deve participar das exigências da fundamentação de uma decisão penal - na especificação dos factos, na enunciação das provas que os suportam e na indicação precisa das normas violadas.
A fundamentação da decisão deve exercer, também aqui, uma função de legitimação - interna, para permitir aos interessados conhecer, mais do que reconstituir, os motivos da decisão e o procedimento lógico que determinou a decisão em vista da formulação pelos interessados de um juízo sobre a oportunidade e a viabilidade e os motivos para uma eventual impugnação; e externa, para possibilitar o controlo, por quem nisso tiver interesse, sobre as razões da decisão.
Elementos essenciais da fundamentação de uma decisão sancionatória - a um tempo base e pressuposto de toda a fundamentação e da possibilidade de controlo da própria decisão - são os factos que forem considerados provados e que constituem a base sine qua da aplicação das normas chamadas a intervir.
A indicação precisa e discriminada dos elementos indicados na norma do artigo 58º, nº 1 do RGCOC constitui, também, elemento fundamental para garantia do direito de defesa do arguido, que só poderá ser efetivo com o adequado conhecimento dos factos imputados, das normas que integrem e das consequências sancionatórias que determinem.
A consequência da falta dos elementos essenciais que constituem a centralidade da própria decisão - sem o que nem pode ser considerada decisão em sentido processual e material - tem de ser encontrada no sistema de normas aplicável, se não direta quando não exista norma que especificamente se lhe refira, por remissão ou aplicação supletiva; é o que dispõe o artigo 41º do RGCOC sobre "direito subsidiário", que manda aplicar, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal
Independentemente da qualificação jurídico-processual que se atribua à decisão da autoridade administrativa, quer por referência à acusação (artº 283º nº 3 do C.P.P.), quer por referência à sentença penal (artº 379º nº 1 al. a) do CPP), o certo é que a consequência atribuída à omissão de factos nessa decisão (nomeadamente, de factos atinentes ao elemento subjetivo) não poderá deixar de se traduzir na nulidade dessa decisão.
No sentido da nulidade da acusação (por força da equivalência a que alude o artº 62º nº 1 do RGCC) pronunciaram-se, entre outros, o Ac. R. Guimarães de 19.05.2016 e o Ac. R. Coimbra de 11.11.2020, citados na decisão recorrida. No sentido da nulidade da sentença (artº 379º do C.P.P.) decidiram os Acs. do STJ de 29.01.2007 e de 06.11.2008, acima citados.
No Ac. do STJ de 29.01.2007 concluiu-se que "a decisão da autoridade administrativa que aplique uma coima, e que não contenha os elementos que a lei impõe, é nula por aplicação do disposto no artigo 374º, nº 1, alínea a) do CPP para as decisões condenatórias". Por outro lado, no Ac. do STJ de 06.11.2008 concluiu-se que "a sanção para o incumprimento da alínea b) do n.º 1 do referido art. 58.º do RGCO é a nulidade da decisão impugnada, nos termos dos arts. 283.º, n.º 3, 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, alínea a) do CPP, aplicável subsidiariamente."
Inexiste, assim, qualquer fundamento para a revogação da decisão recorrida, improcedendo por isso o recurso, nesta parte.
*
2. Do arquivamento dos autos ou do reenvio à autoridade administrativa:
Face à apontada nulidade da decisão administrativa, a questão que ora se coloca consiste em saber se tal nulidade deve ser sanada pela autoridade administrativa ou, ao invés, como defende a sentença recorrida, deve ser determinado o arquivamento dos autos.
Alega o recorrente que "a verificar-se a nulidade apontada, o que não se concorda, sempre o Tribunal a quo teria que a declarar, determinando o reenvio do processo à autoridade administrativa para esta proferir nova decisão, suprindo as nulidades declaradas em sede judicial".
Também quanto a esta questão a jurisprudência não tem sido uniforme.
Uma parte da jurisprudência sustenta que a nulidade resultante da violação da al. b) do Nº 1 do artº 58º do RGCC, enquanto não contém uma descrição completa dos factos imputados, deve ser suprida pela autoridade administrativa- cfr., v. g., o Ac. do STJ de 06.11.2008 (proc. n.º 08P2804), os Acs. do TRL de 28.04.2004 (proc. n.º 1947/2004-3), de 19.02.2013 (proc. n.º 854/11.5TAPDL.L1-5) e o Ac. do TRE de 25.09.2012 (proc. n.º 82/10.7TBORQ.E1). No mesmo sentido, escreve Pinto de Albuquerque[15]: “O tribunal pode, no exercício dos seus poderes de controlo da legalidade, ainda declarar a nulidade da decisão administrativa recorrida e ordenar a remessa dos autos à autoridade administrativa competente para a sanação do vício”.
No sentido de que a referida nulidade determina a absolvição do arguido, pronunciaram-se o Ac. do STJ de 29.01.2007 (proc. nº 06P3202), Ac. do TRG de 19.05.2016 (proc. nº 4302/15.3T8VCT.G1 e Ac. do TRL de 31.10.2019 (proc. nº 344/19.8T9MFR.L1-9).
Como se salienta na decisão recorrida, o artigo 64º nº 3 do RGCC estatui que o "despacho pode ordenar o arquivamento do processo, absolver o arguido ou manter ou alterar a condenação", não prevendo a possibilidade de devolução dos autos à autoridade administrativa, para efeito de suprimento da nulidade da decisão proferida por manifestamente infundada.
Por outro lado, ao nível das consequências da nulidade da decisão, a questão não pode ser encarada como se de um vício da decisão se tratasse, designadamente do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a determinar o "reenvio" para a entidade que a proferiu. Trata-se de problemática que se coloca a montante desse tipo de vício, produzindo um efeito/consequência muito mais definitivo.
Acresce que, permitir-se a sanação da nulidade, através do acrescento de elementos constitutivos do elemento subjetivo que inicialmente não constavam da decisão administrativa, corresponderia a uma alteração fundamental da decisão, equivalendo a transformar uma conduta atípica numa conduta típica. E o certo é que os factos constantes da decisão administrativa (aqueles concretos factos) não constituem infração contraordenacional, por não conterem todos os pressupostos essenciais de que depende a aplicação ao agente de uma coima - por manifesta ausência de caracterização das circunstâncias que permitem estabelecer um nexo psicológico de ligação dos factos objetivos ao agente e a sua imputação a título de negligência.
Entendemos, por isso, como a sentença recorrida, que "a ausência de descrição completa dos elementos constitutivos do crime (no presente caso, contraordenação), não pode vir em momento processual subsequente a ser colmatada", impondo-se por isso o arquivamento dos autos por falta de objeto (artº 64º nº 3 do RGCC).
Improcede, assim, mais este fundamento do recurso.
*
*
IV - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, confirmando consequentemente a douta decisão recorrida.
Sem tributação.
*
Porto, 09 de novembro de 2022
(Elaborado pela relatora e revisto pelos signatários, seguindo-se o voto de vencido do primitivo relator)
Eduarda Lobo
Castela Rio
Pedro Vaz Pato [Voto de vencido:
Com todo o respeito que merece a posição que fez vencimento e a qualidade da argumentação em que assenta, dela discordo pela razão seguinte.
A decisão recorrida declarou a nulidade da decisão administrativa de que havia sido interposto recurso, por falta da descrição dos concretos factos subjetivos da contra-ordenação imputada, a título de negligência. à arguida “B... Lda.”. Essa decisão administrativa será manifestamente infundada, por não descrever todos os factos suscetíveis de integrar a prática, pela arguida, de uma contra-ordenação - artigo 311.º, n.º 2, al. a) e 3, al. b) e d), do Código Penal, ex vi do artigo 41.º, n.º 1, do Regime Geral das Contra-Ordenações; e nula, por ausência de fundamentação de facto, por não descrever os factos relativos à motivação com que os representantes da arguida atuaram e que fundaram a condenação da mesma, a título de negligência - 58.º, n.º 1, al. b), do Regime Geral das Contra-Ordenações.
Considera a decisão recorrida que, estando em causa uma conduta negligente, exige-se a narração factual da violação do dever de cuidado, próprio da negligência, a qual foi totalmente omitida na decisão administrativa em apreço. Não basta afirmar, como se verifica nesta decisão, que os representantes da arguida atuaram com negligência, o que constitui um mero juízo conclusivo, antes sendo necessário descrever a atitude subjetiva do agente, que constitui a culpa negligente: o dever de cuidado que a arguida devia e podia ter adotado e que não adotou, por descuido ou leviandade (com ou sem representação da possibilidade de praticar o facto ilícito, consoante se trate de negligência consciente ou inconsciente, respetivamente). Neste âmbito, nada é dito na decisão administrativa, ainda que de modo imperfeito ou incompleto. a qual se limita a afirmar que a arguida atuou com negligência. Tal juízo conclusivo apenas possui cabimento em sede de fundamentação de direito, tendo, porém, que ser extraído, necessariamente, de factos concretos que descrevam os elementos subjetivos da infração imputada à arguida.
O recorrente Ministério Público considera, pelo contrário, que não se verifica a apontada omissão, tenho em conta a menor exigência formal própria das decisões administrativas relativas à prática de contra-ordenações no confronto com as sentenças judicias relativas à prática de crimes.
Vejamos.
É verdade que a afirmação de que a arguida, ou, mais corretamente, os seus representantes atuaram com negligência configura um juízo conclusivo que tem cabimento na fundamentação, não na descrição de factos. E também é verdade que a prática de crimes ou contra-ordenações a título de qualquer das modalidades de dolo e a título de negligência consciente supõe a ocorrência de factos subjetivos, relativos à consciência e vontade do agente, que devem ser descritos nas acusações e decisões relativas à aplicação de alguma dessas infrações.
O mesmo não se verifica, porém, no que se refere à prática de alguma dessas infrações a título de negligência inconsciente (como sucederá no caso em apreço). A negligência inconsciente supõe a violação objetiva de um dever de cuidado, independentemente de algum facto subjetivo (relativo à consciência e vontade) do agente. Afirmar que o agente violou determinado dever de cuidado é também uma afirmação conclusiva, como afirmar que ele atuou com negligência. Se estiver em causa uma negligência inconsciente, a qualquer dessas duas conclusões se pode chegar apenas a partir de uma descrição objetiva de factos, sem atender a algum estado subjetivo do agente (e dizer que esta atuou por descuido, desatenção ou esquecimento é absolutamente irrelevante, desde que se trate de um comportamento, em qualquer caso, inconsciente). Para concluir que o agente violou algum dever de cuidado a que estava obrigado é algo a que se chega partindo apenas de factos objetivos, sem atender a algum facto subjetivo. Consequentemente, também pode concluir-se que o agente atuou com negligência inconsciente partindo apenas de factos objetivos, sem atender a algum facto subjetivo.
Ora, na decisão em apreço são descritos factos objetivos de onde podem retirar-se as conclusões de que os representantes da arguida violaram deveres de cuidado a que estavam obrigados e, consequentemente, atuaram com negligência inconsciente.
Não se verificam, por isso, os vícios da decisão administrativa em apreço assinalados na decisão ora recorrida. E é assim mesmo sem considerar a menor exigência formal própria das decisões administrativas relativas à prática de contra-ordenações no confronto com as sentenças judicias relativas à prática de crimes.
Não se verificando a nulidade da decisão administrativa em apreço declarada na decisão recorrida e sendo que esta declarou improcedentes os restantes fundamentos que serviram de base à impugnação dessa decisão administrativa em apreciação, da procedência do presente recurso resultaria a improcedência dessa impugnação.
Concederia, pois, provimento ao recurso em apreço.]
_____________
[1] Processo: 750/15.7T9LRA.C1, Relator: ISABEL VALONGO, em www.dgsi.pt.
[2] Processo: 931/14.0T9STR.E1, Relator Maria Isabel Duarte, em www.dgsi.pt.
[3] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 15-12-2016, Processo: 95/16.5T8GDL.E1, Relator: João Amaro, em www.dgsi.pt.
[4] Processo: 4302/15.3T8VCT.G1, Relator: Manuela Fialho, em www.dgsi.pt.
[5] Processo: 351/19.0T8MBR.C1, R. Maria José Nogueira, em www.dgsi.pt
[6] Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 3ª ed., pág. 347 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[7] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95.
[8] Cfr. Eduardo Correia, "Direito penal e direito de mera ordenação social", in Boletim da Faculdade de Direito, vol. XLIX (1973), pp. 257-281.
[9] Cfr. Eduardo Correia, in loc. cit.
[10] Cfr. Frederico Isasca, in "Alteração Substancial Dos Factos E Sua Relevância No Processo Penal Português", Livraria Almedina, Coimbra, 2.ª edição, 1995, pp. 240-242.
[11] Cfr. Figueiredo Dias, "Ónus de alegar e de provar em processo penal", in Revista de Legislação e Jurisprudência nº 3474, pág. 142.
[12] Cfr. Ac. do STJ de 06.12.2006, relatado pelo Cons. Oliveira Mendes.
[13] Proferido no Proc. nº 08P2804, Cons. Rodrigues da Costa, e disponível in wwww.dgsi.pt.
[14] Proferido no Proc. nº 06P3202, Cons. Henriques Gaspar, disponível in www.dgsi.pt.
[15] In "Comentário do Regime Geral das Contra-Ordenações”, Universidade Católica Editora, 2011, pág. 263.