Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1/11.3PGPRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO VAZ PATO
Descritores: CONCURSO APARENTE DE CRIMES
CRIME PÚBLICO
CRIME SEMI-PÚBLICO
LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO
ALTERAÇÃO DA QUALIDADE JURÍDICA
PRINCÍPIO DO ACUSATÓRIO
Nº do Documento: RP201509161/11.3pgprt-A.P1
Data do Acordão: 09/16/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Verificando-se entre dois crimes uma relação de concurso aparente, a impossibilidade de pronúncia ou condenação pela prática do crime dominante não impede a pronúncia ou condenação pela prática do crime dominado. Isso verifica-se se não houver indícios, ou não se provarem, factos típicos próprios do crime dominante, havendo indícios, ou provando-se, os elementos típicos comuns ao crime dominante e ao crime dominado. Analogamente, tal também se verifica se o procedimento criminal se extinguir por algum motivo (como poderá ser a desistência de queixa num crime semi-público) relativo apenas ao crime dominante, e não ao crime dominado (se este não for de natureza semi-pública).
II - No entanto, o princípio acusatório impede que o Ministério Público altere a qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, de crime de natureza semi-pública para crime de natureza pública, quando não tem legitimidade para acusar pelo referido crime de natureza semi-pública.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Pr 1/11.3PGPRT-A.P1

Acordam os juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto

I – O Ministério Público veio interpor recurso da decisão instrutória proferida pelo Juiz 4 da UP 2 da 2ª Secção Central de Instrução Criminal do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, na parte em que não pronunciou B… pela prática de três crimes de fraude sobre mercadorias, p. e p. pelo artigo 23º, nº 1, b), do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de janeiro.

Da motivação do recurso constam as seguintes conclusões:
«1. Constitui objecto do presente recurso o segmento da decisão instrutória que indeferiu o requerimento do Ministério Público relativo à alteração da qualificação jurídica dos factos dos constantes dos pontos 1.3, 1.4 e 1.5 da acusação pública para três crimes de fraude sobre mercadorias.
2. Nos presentes autos, foi o arguido B… acusado – entre outros crimes - pela prática de três crimes de burla simples, com referência à factualidade constante dos pontos 1.3, 1.4 e 1.5 da acusação pública, vindo, em sede de instrução, a ser não pronunciado por tais crimes, em virtude de a ofendida dos factos constantes nos pontos 1.3 e 1.4 ter desistido da queixa apresentada e o ofendido dos factos constantes no ponto 1.5 ter renunciado ao exercício do direito de queixa.
3. No decurso da instrução, o Ministério Público requereu, em acta, uma alteração da qualificação jurídica dos factos descritos nos mencionados pontos 1,3, 1.4 e 1.5, pugnando que os mesmos deviam passar a integrar a prática de três crimes de fraude sobre mercadorias, p. e p. pelo art. 23.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, ilícito de natureza pública que se encontra numa relação de concurso aparente com o crime de burla por via de subsidiariedade legal expressa.
4. Todavia, a Mma. Juiz a quo indeferiu tal requerimento, entendendo que a alteração da qualificação jurídica requerida configura uma alteração substancial de factos na medida em que, no seu entender, a desistência e renúncia ao direito de queixa dos ofendidos implica a expurgação do processo dos factos constantes nos pontos 1.3, 1.4 e 1.5 da acusação, razão pela qual a alteração da qualificação jurídica dos mesmos implicaria a sua reintrodução nos autos o que consubstancia uma decisão surpresa para o arguido.
5. Trazemos tal decisão à censura de Vossas Excelências por entendermos que:
(i) A desistência ou renúncia ao exercício do direito de queixa não implica a expurgação automática dos factos do processo quando tais factos também integrem ilícitos de natureza pública em concurso aparente por via de uma relação de subsidiariedade legal expressa com os crimes semipúblicos que perderam relevância criminal por vontade do ofendido.
(ii) A alteração da qualificação jurídica, in casu, não configura qualquer alteração – substancial ou não substancial – de factos e, por conseguinte, não implica qualquer decisão surpresa para o arguido.
6. Comete um crime de fraude sobre mercadorias “Quem, com intenção de enganar outrem nas relações negociais, transformar, introduzir em livre prática, importar, exportar, reexportar, colocar sob um regime suspensivo, tiver em depósito ou em exposição para venda, vender ou puser em circulação por qualquer outro modo mercadorias de natureza ou de qualidade e quantidade inferiores às que afirmar possuírem ou aparentarem” - art. 23.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro.
7. Tal ilícito encontra-se numa relação de subsidiariedade legal expressa relativamente a outros tipos de ilícito que punam a mesma conduta com pena mais grave, tendo em conta que, na fixação da respectiva moldura penal, o legislador estipulou a seguinte punição - “prisão até 1 ano e multa até 100 dias, salvo se o facto estiver previsto em tipo legal de crime que comine para mais grave”.
8. Ora, tal relação de subsidiariedade entre o crime de burla e o crime de fraude sobre mercadorias sucede com frequência, na medida em que são ambos crimes de engano e contra o património.
9. No caso dos autos, os factos descritos na acusação nos pontos 1.3, 1.4 e 1.5, na medida em que consubstanciam a realização de vendas de veículos a consumidores cuja quilometragem ostentada no conta-quilómetros se encontra alterada pelo arguido que, no acto da venda, enganou os compradores/ consumidores quanto ao número de quilómetros real percorrido pelos veículos, ostentando, para o efeito, livros de revisões e fichas de inspecção que não continham dados verídicos, são susceptíveis de enquadrar quer a prática de um crime de fraude sobre mercadorias, quer a prática de um crime de burla.
10. Quando assim é, tendo em conta a subsidiariedade legal expressa contida no segmento incriminatório do art. 23.º, n.º 1, in fine, do referido diploma legal, o arguido deve ser acusado pelo crime de burla e não pelo crime de fraude sobre mercadorias, quedando a incriminação pelo crime de fraude sobre mercadorias (“norma dominada”) com a não possibilidade de incriminação do crime de burla (“norma dominante”) – Cf. Neste sentido, acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 21/11/2005, proferido no âmbito do processo n.º 1965/05.1, disponível em www.dgsi.pt; e Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal à Luz da CRP e da CEDH, Universidade Católica Editora, pp. 133 e 134, notas n.ºs 6 e 7.
11. Na verdade, seria perverso que tais desistências de queixa e renuncia ao exercício do direito de queixa tivessem por efeito precludir o Ministério Público de prosseguir criminalmente quanto aos crimes de natureza pública que subsistem na “norma dominada” – in casu, 3 (três) crimes de fraude sobre mercadorias.
12. Aliás, tendo em conta a unidade do sistema jurídico-penal, jamais se poderia colocar “nas mãos do ofendido” o exercício da acção penal por parte do Ministério Público quanto a crimes de natureza pública em relação de subsidiariedade legal expressa com crimes de natureza semipública em que estes configurem a “norma dominante”.
13. É importante ter presente que a desistência de queixa “Não é um direito do arguido à absolvição ou sequer à extinção do procedimento criminal” – cf. acórdão do STJ de 04/04/2013, proferido no âmbito do processo n.º 493/09.0PAENT-A.S1.
14. A razão de ser da distinção entre crimes de natureza pública, semipública e particular, situa-se na graduação da respectiva gravidade, tendo-se em conta os interesses jurídicos violados e a necessidade de ordem pública e colectiva em os proteger.
15. No caso dos autos, a conduta imputada ao arguido B… pode ser mais severamente punida pelo crime de burla, tendo em conta o engodo criado directamente aos ofendidos causando-lhes prejuízo. No entanto, não nos podemos olvidar da opção do legislador em punir autonomamente a conduta por via de um crime público – fraude sobre mercadorias - quando nenhum outro tipo de ilícito com moldura penal mais grave se aplique.
16. Com efeito, o legislador, ao tipificar um crime de natureza pública em relação de subsidiariedade legal expressa com um crime semipúblico, pretendeu acautelar a punição dos agentes quando os ofendidos não exerçam a sua faculdade de queixa.
17. Face ao exposto, as desistências de queixa apresentadas jamais podem ter por efeito automático, como diz a Mma. Juiz a quo, a expurgação dos factos constantes dos pontos 1.3, 1.4 e 1.5 do processo. Tal expurgação só ocorreria se a factualidade em causa no presente recurso não integrasse, também, a prática de crimes públicos em concurso aparente com os crimes de natureza semipública, sob pena de atentar contra a unidade do sistema jurídico e colocar nas mãos do ofendido a legitimidade do Ministério Público para prosseguir criminalmente crimes públicos.
18. Isto posto, cumpre referir que o art. 303.º, n.º 5, do Código de Processo Penal, permite que o juiz de instrução altere a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, sempre que tal alteração não implicar a introdução de novos factos “extras” ao objecto do processo – factos - já fixado pelo Ministério Público.
19. No caso dos autos, a alteração da qualificação jurídica do crime de burla para o crime de fraude sobre mercadorias que foi requerida ao Tribunal a quo não carecia de ser acompanhada de qualquer alteração de factos já que os factos constantes na acusação pública se subsumem, per si, ao mencionado ilícito. Com efeito, dos pontos 1.3, 1.4 e 1.5 da acusação pública consta, em suma, que – cf. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09/03/2005, proferido no âmbito do processo n.º 0411496, disponível em www.dgsi.pt:
(i) O arguido B… vendeu a consumidores/ ofendidos veículos com uma quilometragem real superior àquela que era ostentada no seu conta-quilómetros que aliás foi por si reduzido – elemento objectivo.
(ii) O arguido tinha conhecimento que estava a vender veículos com qualidades inferiores àquelas que aparentam, nomeadamente no que concerne à quilometragem percorrida, quilometragem essa que foi por si reduzida com o propósito de enganar os seus compradores, o que logrou – elemento subjectivo.
20. A este propósito, o STJ já esclareceu que “não há qualquer alteração relevante para este efeito, pois que o arguido se defendeu em relação a todos os factos, embora venha a ser condenado por diferente crime”- cf. acórdão de 07/11/2002, proferido no âmbito do processo n.º 02P3158, disponível em www.dgsi.pt.
21. In casu, além do crime de burla ter uma moldura penal superior ao crime de fraude sob mercadorias, os direitos de defesa do arguido com a alteração da qualificação jurídica requerida não ficam beliscados, na medida em que todos os factos integrantes do mesmo constavam já do objecto do processo delimitado na acusação pública.
22. Ao decidir da forma como decidiu, a Mma. Juiz a quo violou o disposto nos arts. 303.º, n.ºs 1 e 5, do Código de Processo Penal e art. 23.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro.»

O arguido B… apresentou resposta a tal motivação, pugnado pelo não provimento do recurso.

O Ministério Público junto desta instância emitiu douto parecer, pugnando pelo não provimento do recurso.

Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora decidir.

II – A questão que importa decidir é, de acordo com as conclusões da motivação do recurso, a de saber se o arguido B… deverá ser pronunciado pela prática de três crimes de fraude sobre mercadorias, p. e p. pelo artigo 23º, nº 1, b), do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de janeiro, no que se refere aos factos que consubstanciariam três crimes de burla, p. e p. pelo artigo 217º, nº 1, do Código Penal, em relação aos quais não foi tal arguido pronunciado por falta de legitimidade do Ministério Público para acusar. Essa questão depende da questão de saber se estaremos perante uma alteração substancial de factos que impede tal pronúncia, como entende a decisão recorrida, ou uma alteração de qualificação jurídica que não impede tal pronúncia, como pretende o recorrente.

III – Consta o seguinte da douta decisão recorrida:

«(…)
Inconformado com a acusação pública contra si deduzida veio o arguido B… requerer a abertura da instrução alegando, em síntese:
- Quanto aos três crimes de burla simples p. e p. pelo art. 217º, nº 1 do Código Penal, que o Ministério Público carece de legitimidade para deduzir o procedimento criminal, por não ter sido exercício pelos ofendidos o direito de queixa;
- Quanto aos dois crimes de falsificação de documento p. e p. pelos art. 255º e 256º, nº 1, al. d) do Código Penal, que a alteração do número de quilómetros do conta-quilómetros de uma viatura não consubstancia a prática do crime de falsificação;
- Quanto aos quatro crimes de fraude sobre mercadoria p. e p. pelo art. 23º, nº 1, al. b) do DL 28/84 de 20/1, que a alteração do número de quilómetros do conta-quilómetros de uma viatura não tem relevância penal, que informou todos os compradores da diferença entre o número de quilómetros percorridos e os que constavam do conta-quilómetros e ainda a ausência de prova que permita imputar-lhe a prática de tal ilícito no que se refere à viatura de matrícula ..-EM-...
Termina pugnando pela não pronúncia.
(…)
Como questão prévia o arguido invoca a ilegitimidade do Ministério Público para deduzir acusação pela prática de três crimes de burla simples.
Em função dessa ilegitimidade o Ministério Público requereu que o tribunal alterasse a qualificação jurídica desses mesmos factos de modo a passarem a integrar a prática pelo arguido de três crimes de fraude sobre mercadorias p. e p. pelo art. 23º, nº 1, al. b) do DL 20/84 de 20/1.
Cumpre, portanto, em primeiro lugar, conhecer daquela questão prévia, que obsta à apreciação do mérito da causa e, em segundo, aferir da possibilidade de alteração da qualificação jurídica desses mesmos factos.
*
Os factos imputados ao arguido B…:
Na acusação pública imputa-se-lhe a prática dos seguintes factos:
- O arguido B… dedica-se à compra e venda de automóveis novos e usados, sendo proprietário do Stand "C…, Lda.", sito na rua …, nº …, …, Matosinhos.
1.1.Veiculo ..-..-PF
- No dia 7 de Abril de 2010, o veículo ligeiro de passageiros, marca Jeep, modelo …, cor cinzenta, com a matrícula ..-..-PF, foi apresentada pela sua proprietária, à data, D…, para inspecção periódica no centro de inspecções E…, em …, Coimbra, altura em que registava uma quilometragem de 167.621 Km.
- Em 24 de Junho de 2010, esse veículo foi vendido por D… ao arguido B… que a adquiriu com vista à sua revenda, embora não tenha procedido ao respectivo registo.
- Após tal aquisição, o arguido B…, em data e de forma não concretamente apurada, mas seguramente entre 24/06/2010 e 28/07/2010, diminuiu a quilometragem indicada no conta-quilómetros dessa viatura com vista à sua posterior venda por um preço superior, reduzindo-a em, pelo menos, 32.345 Km.
- Com vista a conferir credibilidade à nova quilometragem ostentada no conta-quilómetros da viatura, o arguido B…, no dia 28 de Julho de 2010, apresentou-a para inspecção no centro F…, em Matosinhos.
- Nessa ocasião, e com o fito de se eximir ao cumprimento do disposto no art. 11º, nº 2, do Decreto-Lei nº 554/99, que exige que quando uma viatura seja apresentada a inspecção tenha que exibir a ficha da última inspecção onde constava uma quilometragem superior à exibida no conta-quilómetros da viatura à data daquela inspecção, o arguido B… assinou uma declaração onde mencionou que o veículo ..-..-PF "não foi submetido a inspecção periódica anterior".
- Tal afirmação não correspondia à verdade, o que era do conhecimento do arguido.
- Aliás, quando a viatura foi apresentada para inspecção em 28/07/2010, encontrava-se com inspecção válida até 17/03/2011, o que, nos termos do art. 12º, nº 4, do Decreto-Lei nº 554/99, implicava a recusa de nova inspecção, circunstância que também era conhecida do arguido B….
- Sendo que se o arguido não fizesse a inspecção da viatura naquela data, não lograria alienar a viatura pelo preço de € 9.900,00 à sociedade "G…, Lda.", como veio a acontecer.
- O arguido B… quis assinar a referida declaração que continha uma declaração falsa, com o propósito de conseguir que a viatura fosse inspeccionada e ficasse a constar de documento oficial a nova quilometragem de 135.276 Km, para assim conseguir aliená-la por um valor superior ao seu valor comercial atenta a quilometragem real.
- O arguido, quando procedeu à venda do veículo à sociedade "G…", bem sabia que o mesmo ostentava no seu conta-quilómetros uma quilometragem inferior à real e, não obstante, não se inibiu de comercializar a mesma, vendendo-a.
- Em todas as condutas referidas, o arguido agiu de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era criminalmente punida.

1.2. Veículo ..-..-QF
- Em 19 de Julho de 2010, arguido B… adquiriu o veículo ligeiro de mercadorias, marca Peugeot, modelo …, cor cinzenta, com a matrícula ..-..-QF, a H…, pelo valor de € 2.000,00, altura em que a viatura ostentava no respectivo contador 187.827 Km.
- Em data não concretamente apurada, mas ocorrida entre 19/07/2010 e 29/10/2010, o arguido B…, com o fito de obter vantagens patrimoniais na posterior alienação do veículo alterou a quilometragem do mesmo, reduzindo-a em, pelo menos 41.691 Km.
- Após, em 30 de Outubro de 2010, o arguido terá alienado essa viatura ao ofendido I… pelo valor de € 3.250,00.
- O arguido quando procedeu à venda do veículo ao ofendido I…, bem sabia que o mesmo ostentava no seu conta-quilómetros uma quilometragem inferior à real e, não obstante, não se inibiu de comercializar a mesma, vendendo-a, agindo de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era criminalmente punida.

1.3.Veiculo ..-GV-..
- No dia 25 de Outubro de 2010, o veículo ligeiro de mercadorias, marca Ford, modelo …, cor branca, com a matrícula ..-GV-.., foi apresentado pela sua proprietária, à data, J…, S.A., para inspecção periódica no centro de inspecções K…, no Barreiro, altura em que registava uma quilometragem de 318.653 Km.
- Em data não concretamente apurada, mas seguramente antes de 27 de Janeiro de 2011, a referida viatura entrou na posse do arguido B…, a quem cabia diligenciar pela sua venda.
- Em 17 de Fevereiro de 2011, o arguido registou a viatura em nome do seu funcionário L….
- Enquanto deteve a viatura na sua posse, e antes de 27 de Janeiro de 2011, o arguido B…, em data e de forma não concretamente apurada, reduziu o número de quilómetros ostentados no conta-quilómetros da mesma.
- Após, em 27 de Janeiro de 2011, o arguido solicitou ao seu funcionário :.., que apresentasse a viatura a inspecção no centro F…, em Matosinhos, altura em que a mesma ostentava no conta-quilómetros 92.353Km, ou seja, menos 226.270 Km que os registados na inspecção anterior.
- Posteriormente, em 11 de Março de 2011, o arguido alienou o veículo a M… pelo valor de € 12.500,00, altura em que o mesmo ostentava cerca 92.370 Km, quilometragem que foi atestado pelo arguido à ofendida, através do fornecimento de uma cópia do livro de revisões da viatura e da exibição da ficha de inspecção realizada em 27/01/2011.
- O arguido, ao levar a cabo a conduta supra descrita, agiu com o propósito concretizado de criar perante M… uma aparência de verdade quanto aos quilómetros percorridos pela viatura, exibindo para o efeito o livro de revisões elaborado por si e a ficha de inspecção obtida após a alteração da quilometragem referida.
- Ao agir da forma descrita, o arguido induziu em erro a ofendida quanto à quilometragem da viatura, fazendo-a acreditar, de forma planeada e astuciosa, que a viatura até à data apenas tinha percorrido cerca de 92.353 Km e, por conseguinte, tinha um valor comercial superior ao que realmente tinha.
- Pretendia assim apropriar-se ilegitimamente da diferença de preço que correspondia ao valor comercial da viatura, o que logrou, agindo de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era punida e proibida por lei penal.

1.4.Viatura ..-BX-..
- No dia 19 de Julho de 2010, o veiculo ligeiro de passageiros marca Honda, modelo …, cor cinzento, com a matrícula ..-BX-.., foi apresentado a inspecção, por N…, no centro de inspecções O…, em Oeiras, altura em que apresentava uma quilometragem de 168.050 Km.
- Em 2 de Novembro de 2010, o arguido adquiriu a propriedade do referido veículo, destinando-o a posterior revenda, efectuando o seu registo em nome da sua mulher P....
- Entre 02/11/2010 e 02/12/2010, o arguido alterou a quilometragem ostentada no conta-quilómetros da viatura, reduzindo-a.
- Após, em 2 de Dezembro de 2010, o arguido solicitou à sua mulher P… que apresentasse a viatura a inspecção no centro de inspecções F…, em Matosinhos, altura em que a mesma ostentava uma quilometragem de 96.282 Km, ou seja, menos 71.768 Km relativamente à inspecção anterior.
- Em 11 de Janeiro de 2011, o arguido vendeu o veículo a M…, altura em que ostentava no seu contador cerca de 96.285 quilometragem que foi atestada pelo arguido à ofendida, através do fornecimento de uma cópia do livro de revisões e da exibição da ficha de inspecção realizada em 02/12/2010.
- O arguido, ao levar a cabo a conduta supra descrita, agiu com o propósito concretizado de criar perante M… uma aparência de verdade quanto aos quilómetros percorridos pela viatura, exibindo, para o efeito, o livro de revisões elaborado por si e a ficha de inspecção obtida após a alteração da quilometragem acima referida.
- Ao agir da forma descrita, o arguido induziu em erro a ofendida quanto à quilometragem da viatura, fazendo-a acreditar, de forma planeada e astuciosa, que o veículo, até à data, apenas tinha percorrido cerca de 92.285 Km e, por conseguinte, tinha um valor comercial superior ao que realmente tinha, pretendendo assim apropriar-se ilegitimamente da diferença de preço que correspondia ao valor comercial da viatura, o que logrou, agindo de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era punida e proibida por lei penal.

1.5.Veiculo ..-..-VL
- No dia 26 de Agosto de 2009, o veículo ligeiro de passageiros marca Volkswagen, modelo …, cor cinzenta, com a matrícula ..-..-VL, foi apresentado a inspecção pelo seu proprietário Q…, no centro de inspecções S…, em Vila Nova da Gaia, altura em que apresentava uma quilometragem de 191.212 Km.
- No dia 27 de Agosto de 2010, a referida viatura foi adquirida pelo arguido B… a uma leiloeira, denominada "T…", sita em …, Vila do Conde, pelo valor de € 10.200,00, altura em que registava uma quilometragem de 212.808 Km.
- No dia 24 de Novembro de 2010, o mencionado veículo foi novamente apresentado a inspecção pelo arguido B…, no Centro de Inspecções F…, com uma quilometragem de 132.163 Km, ou seja, com uma diferença de 80.645 Km relativamente à anterior.
- Nessa ocasião, com o fito de se eximir ao cumprimento do disposto no art. 11º, nº 2, do Decreto-Lei nº 554/99, que exige que quando uma viatura seja apresentada a inspecção tenha que exibir a ficha da última inspecção onde constava uma quilometragem superior à exibida no conta-quilómetros da viatura à data daquela inspecção, o arguido B… assinou uma declaração onde mencionou que o veículo ..-..-VL "não submetido a inspecção periódica anterior".
- Tal afirmação não correspondia à verdade, o que era do conhecimento do arguido B…, sendo que fez aquela declaração com o fito de obter um documento oficial que conferisse credibilidade à quilometragem por si alterada à viatura, pretendendo com isso, obter vantagens patrimoniais.
- Em 2 de Setembro de 2011, o arguido alienou o veículo a U…, pelo preço de € 11.000,00, altura em que ostentava uma quilometragem de cerca de 132.350 Km, quilometragem que foi atestada pelo arguido ao ofendido, através da exibição da ficha de inspecção realizada em 24/11/2010.
- Com a referida venda, o arguido teve um benefício económico ilegítimo de cerca de € 800,00.
- O arguido B… quis assinar a referida declaração que continha uma declaração que não correspondia à realidade, com o propósito de conseguir que a viatura fosse inspeccionada e ficasse a constar de documento oficial a nova quilometragem de 132.163 Km, para assim conseguir aliena-la a um valor superior.
- O arguido, ao levar a cabo a conduta supra descrita, agiu com o propósito concretizado de criar perante U… uma aparência de verdade quanto aos quilómetros percorridos pela viatura, exibindo para o efeito a ficha de inspecção obtida após a alteração da quilometragem referida.
- Ao agir da forma descrita, o arguido induziu em erro o ofendido quanto à quilometragem da viatura, fazendo-o acreditar, de forma planeada e astuciosa, que a viatura até à data apenas tinha percorrido cerca de 132.163 Km e, por conseguinte, tinha um valor comercial superior ao que realmente tinha, pretendendo assim apropriar-se ilegitimamente da diferença de preço que correspondia ao valor comercial da viatura, in casu, cerca de € 800,00, o que logrou.
- Em todas as condutas supra descritas, o arguido agiu de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era punida e proibida por lei penal.

1.6.Veículo ..-..-VC
- Em data não concretamente apurada ocorrida entre 01/06/2010 e 02/12/2010, o arguido B… adquiriu o veículo ligeiro de passageiros, marca Volkswagen, modelo …, cor branca, com a matrícula ..-..-VC, a V…, por valor não concretamente apurado.
- Nessa altura, o veículo ostentava no conta-quilómetros 212.079 Km.
- Em data não concretamente apurada, mas ocorrida entre 01/06/2010 e 02/12/2010, o arguido B…, com o fito de obter vantagens patrimoniais na posterior alienação do veículo alterou a quilometragem do mesmo, reduzindo-a em, pelo menos 78.824 Km.
- Após, em 3 de Dezembro de 2010, o arguido terá alienado essa viatura à sociedade "W…, Lda.", à data representada por X…, pelo valor de € 5.000,00, ocasião em que o veículo ostentada no seu conta-quilómetros cerca de 133.255 Km.
- O arguido quando procedeu à venda do veículo à sociedade "W…, Lda.", bem sabia que o mesmo ostentava no seu conta-quilómetros uma quilometragem inferior à real e, não obstante, não se inibiu de comercializar a mesma, vendendo-a, agindo de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era criminalmente punida.

1.7. Veículo ..-EM-..
- No dia 17 de Novembro de 2010, o arguido B… adquiriu o veículo ligeiro de mercadorias, marca Renault, modelo …, cor branca com a matrícula ..-EM-.., à "T…", com uma quilometragem de 192.154 Km.
- Sucede que o arguido, em data e de forma não concretamente apurada, terá reduzido a quilometragem ostentada no conta-quilómetros do veículo.
- Após, em 28/05/2011, o veículo foi apresentado a inspecção no centro F…, em Matosinhos, em nome do arguido, altura em que ostentava no seu conta-quilómetros 124.342 Km.
- De seguida, o arguido colocou a viatura em exposição no seu Stand para venda ao público.
- O arguido quando colocou o veículo para venda, bem sabia que o mesmo ostentava no seu conta-quilómetros uma quilometragem inferior à real e, não obstante, não se inibiu de comercializar a mesma, colocando-a em exposição, agindo de forma livre, voluntária e conscientemente.
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Por via deles, o Ministério Público imputa ao requerente da instrução a prática, em autoria material e concurso real, de:
- Três crimes de burla simples p. e p. pelo art. 217º, nº 1 do Código Penal (factos descritos em 1.3, 1.4 e 1.5);
- Dois crimes de falsificação de documento p. e p. pelo art. 256º, nº 1, al. d) do Código Penal (factos descritos em 1.1. e 1.5);
- Quatro crimes de fraude sobre mercadoria p. e p. pelo art. 23º, nº 1, al. b) do DL 28/84 de 20/1 (factos de 1.1, 1.2, 1.6 e 1.7).
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Os crimes de burla simples e a ilegitimidade do Ministério Público para promover o procedimento criminal:
O arguido vem acusado da prática, em autoria material e concurso real, de três crimes de burla p. e p. pelo art. 217º, n.º 1 do Código Penal relativamente à venda das viaturas de matrícula ..-GV-.., ..-BX-.. e ..-..-VL.
Quanto aos veículos de matrícula ..-GV-.. e ..-BX-.. imputa-se ao arguido ter reduzido o número de quilómetros ostentados no conta-quilómetros de cada um deles e ter logrado vende-los assim adulterados a M… a quem criou uma aparência de verdade quanto aos quilómetros percorridos por tais viaturas exibindo para o efeito os livros de revisões e a ficha de inspecção obtida após as reduções referidas, assim a induzindo em erro quanto à quilometragem de cada uma das viaturas, fazendo-a acreditar que tinham percorrido menos quilómetros e, por isso, que tinham um valor comercial superior ao que realmente tinham.
Quanto ao veículo de matrícula ..-..-VL imputa-se ao arguido ter reduzido o número de quilómetros registado no seu conta-quilómetros e ter logrado vende-lo, assim adulterado, a U… a quem criou uma aparência de verdade quanto aos quilómetros percorridos pela viatura exibindo para o efeito a ficha de inspecção obtida após a alteração da quilometragem referida, assim o induzindo em erro quanto à real quilometragem da viatura, fazendo-o crer que tinha percorrido menos quilómetros e, por isso, que tinha um valor comercial superior ao real.
Os crimes de burla simples assumem natureza semi-pública, tal como se alcança do disposto pelo art. 217º, nº 3 do Código Penal, uma vez que o procedimento criminal depende de queixa.
Nos termos do n.º 3 do art. 113º do Código Penal, dependendo o procedimento criminal de queixa, tem legitimidade para a apresentar o ofendido, sendo considerado como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.
Nestes casos, como dispõe o art. 49º do Código de Processo Penal, o Ministério Público apenas dispõe de legitimidade para promover o processo se for exercido o direito de queixa.
No caso em apreço, atentos os factos descritos na acusação e acima referidos, verificamos que, quanto às viaturas de matrícula ..-GV-.. e ..-BX-.. é titular do direito de queixa a ofendida M… e, quanto à viatura de matrícula ..-..-VL é titular desse direito o ofendido U….
Ora, a ofendida M… depois de ter apresentado queixa contra o arguido declarou, a fls. 989, não pretender procedimento criminal, o que significa que desistiu da queixa, desistência que o arguido aceita como expressamente resulta do requerimento de abertura de instrução que formulou.
Já o ofendido U… quando inquirido a fls. 825 declarou não desejar a instauração de procedimento criminal contra o autor dos factos, o que significa que renunciou ao exercício do direito de queixa.
Do exposto resulta que, face à desistência de queixa apresentada por um dos ofendidos e à renúncia ao exercício do direito de queixa por outro, o Ministério Público carece de legitimidade para promover o procedimento criminal contra o arguido pelos três crimes de burla simples p. e p. pelo art. 217º, nº 1 do Código Penal que lhe imputa, motivo pelo qual não poderá o arguido por eles ser pronunciado.
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Da alteração da qualificação jurídica dos factos:
Apercebendo-se da falta de legitimidade para deduzir acusação quanto a tais ilícitos o Ministério Público, no decurso da instrução, requereu que fosse alterada a qualificação jurídica dos factos que descreveu na acusação relativamente a esses três crimes de burla simples de modo a que seja imputada ao arguido a prática de três crimes de fraude sobre mercadoria p. e p. pelo art. 23º, nº 1, al. b) do DL 28/84 de 20/1.
Tal pretensão, no nosso entendimento, carece de fundamento legal.
Na verdade, como resulta demonstrado nos autos, o Ministério Público qualificou os factos praticados pelo arguido, no que se reporta à venda das viaturas de matrícula ..-GV-.. e ..-BX-.. à ofendida M… e, quanto à venda da viatura de matrícula ..-..-VL ao ofendido U…, como integrantes da prática de três crimes de burla simples. Ao assim proceder e não tendo atendido à desistência de queixa e ao não exercício do direito de queixa, fê-lo sem que tivesse legitimidade para prosseguir criminalmente por tais ilícitos. Ora, essa falta de legitimidade foi reconhecida judicialmente, o que significa que esses factos deixaram de ter relevância jurídica no processo e determinaram que a intervenção do Ministério Público, quanto a eles, cessasse (art. 51º do Código de Processo Penal) e, por isso, não pode agora o tribunal reintroduzi-los no processo de modo a imputar ao arguido pela sua prática outros três crimes, agora públicos, de fraude sobre mercadorias.
No nosso entendimento não estamos em presença de uma alteração da qualificação jurídica dos factos, estaríamos sempre perante uma alteração substancial de factos, pois o que o Ministério Público pretende é que, depois de se reconhecer a irrelevância processual desses mesmos factos, por via da desistência ou da renúncia ao exercício do direito de queixa, o juiz de instrução criminal os reintroduza no processo qualificando-os como integrantes da prática de crimes públicos.
Do princípio do acusatório consagrado no nº 5 do art. 32º da Constituição da República decorre que a acusação, a instrução e o julgamento estão em mãos diferentes, o que impede que o juiz de instrução seja também o órgão de acusação e que a acusação defina o objecto do processo.
Como se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 6/10/10, publicado em www.dgsi.pt, estrutura acusatória significa “a impossibilidade de o juiz manipular, por qualquer forma, o objecto do processo que lhe é proposto pela acusação; (...) o reconhecimento, ao longo de todo o processo, de um consistente direito de defesa do arguido (...)”.
Para garantir a inteira observância do princípio do acusatório, o Código de Processo Penal comina com a sanção de nulidade a pronúncia na parte em que pronuncie o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação ou no requerimento para abertura de instrução (art. 309º do CPP).
Factos devem ser entendidos como acontecimentos históricos, como eventos naturalísticos, como sendo aquele “pedaço de vida” que em concreto se vai analisar. O facto processual, como acontecimento ou pedaço de vida, não corresponde a um único facto, mas a uma pluralidade de factos singulares que se aglutinam em torno de certos elementos polarizadores que permitem a sua compreensão, de um ponto de vista social, como um comportamento que encerre em si um conjunto tal de elementos que tornam possível identificá-lo e individualizá-lo como um autónomo pedaço de vida, i. e., uma fracção destacável do contínuo comportamento de um sujeito, capaz de ser analisado em si e por si e, nessa medida, susceptível de um juízo de subsunção jurídico-penal, cuja cindibilidade seria tida como não natural, quer do ponto de vista da experiência social da vida (portanto não só pela sociedade como até do próprio agente), quer à luz da perspectiva jurídica.
A alínea f) do nº 1 do art. 1º do Código de Processo Penal considera alteração substancial dos factos aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
Alterar significa mudar, modificar, introduzir (factos novos).
Não é, porém, toda e qualquer modificação que a lei proíbe, mas apenas e tão só a que importe alteração do objecto do processo, a que mexa com os direitos do arguido. Por isso, não há alteração do objecto do processo quando aos factos da acusação se retira algum ou alguns, isto é, se reduz o objecto do processo já que aqueles direitos permanecem intocáveis: por um lado, teve o arguido oportunidade de se defender de todos os que restam; por outro, não se vê confrontado com qualquer decisão-surpresa.
Ora, no caso, o que o Ministério Público pretende é que, depois de se retirarem os factos do processo, por via da desistência e da renúncia ao exercício do direito de queixa, eles sejam nele reintroduzidos, sob diversa qualificação jurídica. Essa pretensão configura, por isso, uma alteração substancial dos factos, não só porque são introduzidos factos que perderam relevância processual, mas também porque constitui uma decisão surpresa para o arguido que, pugnando em sede de instrução pelo reconhecimento da ilegitimidade do Ministério Público para deduzir a acção penal, se veria confrontado com a imputação, por esses mesmos factos, de outros ilícitos cujo procedimento já não dependeria do exercício do direito de queixa.
Assim, podemos concluir que estaríamos em presença de uma alteração substancial de factos que teria por efeito a imputação de crime diverso ao arguido e que conduziria à nulidade da decisão instrutória. Por isso, não pode merecer acolhimento a pretensão do Ministério Público.
(…)
Decisão:
Em face do exposto:
1. Por via da desistência de queixa apresentada pela ofendida M… e da renúncia ao exercício do direito de queixa por parte do ofendido U…, por ilegitimidade do Ministério Público para promover o procedimento criminal não pronuncio o arguido HB… pela prática de três crimes de burla simples p. e p. pelo art. 217º, nº 1 do Código Penal (factos relativos aos veículos de matrícula ..-GV-.., ..-BX-.. e ..-..-VL);
(…)»

IV – Cumpre decidir.
Vem o recorrente alegar que o arguido B… deverá ser pronunciado pela prática de três crimes de fraude sobre mercadorias, p. e p. pelo artigo 23º, nº 1, b), do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de janeiro, no que se refere aos factos que consubstanciariam três crimes de burla, p. e p. pelo artigo 217º, nº 1, do Código Penal, em relação aos quais não foi tal arguido pronunciado por falta de legitimidade do Ministério Público para acusar; uma vez que o crime de fraude sobre mercadorias, que está numa relação de concurso aparente (subsidiariedade legal expressa) com o crime de burla, tem natureza pública (não se verifica, quanto a ele, falta de legitimidade do Ministério Público para acusar), e não, como este último, natureza semi-pública. Essa questão depende da questão de saber se estaremos perante uma alteração substancial de factos que impede tal pronúncia, como entende a decisão recorrida, ou uma alteração de qualificação jurídica que não impede tal pronúncia, como pretende o recorrente.
Considera o Ministério Público junto desta instância, no seu douto parecer, que se verifica entre o crime de fraude sobre mercadorias e o crime de burla uma relação de concurso aparente e consunção (o primeiro é o crime-meio em relação ao segundo, como crime-fim) e que a extinção do procedimento criminal quanto ao segundo impede a pronúncia ou condenação pelo primeiro, sob pena de violação do princípio constitucional ne bis in idem.
Convirá esclarecer, antes de mais, esta questão.
Verificando-se entre dois crimes uma relação de concurso aparente, a impossibilidade de pronúncia ou condenação pela prática do crime dominante não impede a pronúncia ou condenação pela prática do crime dominado. Isso verifica-se se não houver indícios, ou não se provarem, factos típicos próprios do crime dominante (a violência em relação ao crime de roubo, por exemplo), havendo indícios, ou provando-se, os elementos típicos comuns ao crime dominante e ao crime dominado (a subtração de coisa alheia em relação aos crimes de furto e roubo, por exemplo). Analogamente, tal também se verifica se o procedimento criminal se extinguir por algum motivo (como poderá ser a desistência de queixa num crime semi-público) relativo apenas ao crime dominante, e não ao crime dominado (se este não for de natureza semi-pública). São estas as regras próprias do concurso aparente de crimes, que se baseiam, precisamente, no princípio ne bis in idem.
Assim, no caso em apreço, não será o simples facto de se verificar uma extinção do procedimento criminal quanto aos crime de burla a impedir a pronúncia ou condenação quanto aos crimes de fraude sobre mercadorias.
Mas, para além dos princípios aplicáveis ao concurso de crimes (e independentemente da qualificação da relação entre os crimes em apreço como de subsidiariedade legal expressa ou consunção), está em causa, no caso em apreço, a aplicação das regras relativas aos princípios do acusatório, da vinculação temática e das garantias de defesa do arguido.
Alega o recorrente que os factos que consubstanciam o crime de fraude sobre mercadorias estão já descritos na acusação pela prática do crime de burla, como um minus em relação a esta. Assim sendo, o arguido não seria surpreendido pela pronúncia pelo primeiro desses crimes quando é acusado pela prática do segundo, nem com isso haveria violação dos seus direitos de defesa, pois, quando ele se defende quanto à prática deste segundo crime, implicitamente se defende quanto à prática do primeiro. Não haveria, sequer, que dar cumprimento ao disposto no artigo 303º, nºs 1 e 5, do Código de Processo Penal.
Vejamos.
É verdade que o que o recorrente pretende é uma alteração de qualificação jurídica, e não uma alteração de factos. Pretende que os mesmos factos que constam da acusação sejam, na pronúncia, qualificados não como crimes de burla, mas como crimes de fraude sobre mercadorias.
Também é verdade que a jurisprudência vem considerando (ver, por exemplo, e entre muitos outros, o acórdão da Relação de Coimbra de 14 de maio de 2014, in C.J., 2014, III, pg. 336) que não há que dar cumprimento ao disposto no artigo 358º do Código de Processo Penal (e, pelas mesmas razões, ao disposto no artigo 303º, nºs 1 e 5, do mesmo Código) quando a alteração em causa representa um minus em relação à acusação e desta constam já todos os factos que consubstanciam a prática do crime que resulta dessa alteração (um furto em relação a um roubo, por exemplo). Nesses casos, o arguido não será surpreendido pela pronúncia ou condenação, nem haverá violação dos seus direitos de defesa, pois, quando ele se defende quanto à prática do crime por que vem acusado, implicitamente se defende quanto à prática do crime resultante da alteração.
No entanto, e como bem se acentua na douta decisão recorrida, a situação em apreço é diferente desta.
Não estamos perante uma alteração de qualificação jurídica relativa a uma mesma acusação. Estamos perante uma alteração de qualificação jurídica que vem suprir uma falta de legitimidade do Ministério Público para acusar. Trata-se, na verdade e para todos os efeitos, de uma nova acusação, para a qual o Ministério Público já tem legitimidade, sendo que não a tinha para a primeira. Ora, isto é mais do que permite o artigo 358º do Código de Processo Penal e representa uma ofensa ao princípio acusatório.
Também não pode dizer-se que não há violação dos direitos de defesa do arguido e que este, quando se defende quanto à prática do crime por que vem acusado, implicitamente se defende quanto à prática do crime resultante da alteração. É que, como bem refere a douta decisão recorrida, ele pode assentar a sua defesa quanto à acusação precisamente na falta de legitimidade do Ministério Público para acusar pela prática do crime em questão, o que já não se aplicará ao crime resultante da alteração.
Assim, porque não o permite o princípio acusatório, não poderá o arguido B… ser pronunciado pela prática de três crimes de fraude sobre mercadorias, p. e p. pelo artigo 23º, nº 1, b), do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de janeiro, no que se refere aos factos que consubstanciariam três crimes de burla, p. e p. pelo artigo 217º, nº 1, do Código Penal, em relação aos quais não foi tal arguido pronunciado por falta de legitimidade do Ministério Público para acusar.
A decisão recorrida não é, pois, merecedora de reparo.
Deverá ser negado provimento ao recurso.

Não há lugar a custas (artigo 522º, nº 1, do Código de Processo Penal)

V – Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em negar r provimento ao recurso, mantendo o douto despacho recorrido.

Notifique

Porto, 16/09/2015
(processado em computador e revisto pelo signatário)
Pedro Vaz Pato
Eduarda Lobo