Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
145/13.7GAVLP.G1.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARTUR OLIVEIRA
Descritores: OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA QUALIFICADA
ESPECIAL CENSURABILIDADE OU PERVERSIDADE
DIREITO DE CORRECÇÃO
Nº do Documento: RP20150204145/13.7GAVLP.G1.P1
Data do Acordão: 02/04/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A qualificação decorrente das circunstâncias do artº 132º 2 CP não é automática e deriva de um tipo de culpa agravada revelado numa imagem global do facto.
II – Se da conduta do arguido resultaram lesões de pouco relevo e a ela presidiu uma intenção correctiva do pai para com o filho não ocorre a especial censurabilidade ou perversidade.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO – SECÇÃO CRIMINAL (QUARTA)
- no processo n.º 145/13.7GAVLP.G1.P1
- com os juízes Artur Oliveira [relator] e José Piedade,
- após conferência, profere, em 4 de fevereiro de 2015, o seguinte
Acórdão
I - RELATÓRIO
1. No processo comum (tribunal singular) n.º 145/13.7GAVLP, da secção de competência genérica (J1) da Instância Local de Valpaços, Comarca de Vila Real, em que é assistente B…, na qualidade de representante legal do ofendido C…, e é arguido D…, foi proferida sentença que decidiu nos seguintes termos [fls. 200-201]:
«(…) Pelo exposto, julgo a acusação totalmente procedente, e, em consequência, decide-se:
1. CONDENAR o arguido D… como autor material de um crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelo art. 143.º n.º 1, 145.º n.º 1 a) e n.º 2, com referência ao art. 132.º n.º 2 a) na pena de quatro meses de prisão.
2. Substituir a pena de prisão aplicada em 1 pela pena de 120 dias de multa, à razão diária de €7,00 (cinco euros e cinquenta cêntimos) euros o que perfaz o montante global de €840,00 (oitocentos e quarenta euros).
(…)»
2. Inconformado, o arguido recorre, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões [sic de fls. 210-211]:
«1- Pela factualidade dada como provada e no contexto em que aconteceu e tendo em atenção os casos "especial perversidade" enumerados no artigo Código Penal como agravantes neste tipo legal crime não são taxativos, não sendo, por isso, exemplo padrão, mas simplesmente constituindo exemplos, a conduta do recorrente não tipifica um crime ofensas à integridade física qualificada.
2- Tal conduta por parte recorrente tipificará, apenas, um crime ofensa à física simples
4- A conduta recorrente, apesar dos objectos utilizados como objecto de agressão, não poderá ser o reflexo de especial censurabilidade ou perversidade, mas antes o exercício duma conduta, eventualmente, desproporcionada motivada pelo mau comportamento e provocatório do ofendido, visando repreendê-lo e não como uma mera intenção lhe causar dor.
5- O meio e a agressão em si visaram só e exclusivamente corrigir o comportamento ofendido para que este possa no futuro ter uma vida dignificada pelo trabalho.
6- O objectivo pai, pelo menos para já.
Caso tal seja entendido por este Venerando Tribunal,
7- O crime ofensas corporais simples admite desistência da queixa 8 – O ofendido já requereu a extinção do procedimento criminal contra o arguido, a qual não foi deferida face à qualificação das ofensas.
Termos em que deve conceder-se provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrida, substituindo-a por outra que declare que o comportamento do arguido tipifica, apenas, um crime de ofensa à integridade física simples e, em consequência, declare extinto o procedimento criminal
Como sempre, contudo, V. Ex. farão sábia e merecida JUSTIÇA!
(…)»
3. Na resposta, o Ministério Público refuta todos os argumentos da motivação de recurso, pugnando pela manutenção do decidido [fls. 217-223].
4. Na Relação, o parecer do Ministério Público suscita, como questão prévia, a incompetência do Tribunal da Relação de Guimarães; no mais, acompanha a resposta apresentada [fls. 231-232].
5. Por despacho de 13 de dezembro último, o Tribunal da Relação de Guimarães declarou-se incompetente em razão do território para conhecer do recurso e determinou a remessa dos autos a este Tribunal da Relação [fls. 237-241].
6. Colhidos os vistos, realizou-se a conferência.
7. A sentença recorrida deu como provados e não provados os seguintes factos, seguidos da respetiva motivação [fls. 188-192]:
«(…) Factos Provados:
1. C… nasceu no dia 02.10.1997, sendo filho de D… e de B…, actualmente divorciados.
2. Desde o dia 16.11.2010 que o exercício das responsabilidades parentais relativas ao menor C… foi atribuído ao seu pai, D….
3. No dia 25.04.2013, no período da tarde, C… acompanhou o seu pai, D…, ao quintal da residência onde ambos vivem, sita no …, n.º., …, nesta comarca de Valpaços, com o objectivo de ajudá-lo a semear batatas.
4. Como C… não conseguia executar o trabalho da forma que o seu pai queria, D… pegou no cabo da enxada e desferiu-lhe duas pancadas nas pernas, as quais lhe provocaram dores, mas não causaram qualquer lesão.
5. Em virtude destas agressões, C… fugiu para o interior da residência, agarrando-se ao corrimão das escadas e negando-se a ajudar o pai naquela tarefa.
6. Acto contínuo, D… dirigiu-se para o interior da residência, apoderou-se de um cinto e desferiu várias pancadas nas costas de C…, que lhe provocaram dores e lesões, às quais recebeu tratamento no Centro de Saúde de Valpaços no dia seguinte, quando a sua mãe o levou àquela unidade de saúde.
7. Em consequência, C… sofreu:
a. Ferida contusa de cor avermelhada a nível da região escapular direita, com cerca de 9 cm de comprimento;
b. Dois hematomas a nível da região lombar, com cerca de 1,5 cm cada uma;
c. Ferida contusa de cor vermelha de 30 cm de comprimento e 3 cm de largura na região dorsal.
8. As quais lhe determinaram 8 (oito) dias de cura, sem afectação da capacidade de trabalho geral ou profissional.
9. Com a conduta descrita, o arguido D… quis ofender o corpo e o bem-estar físico e psíquico do seu filho, C…, bem sabendo que agia com especial censurabilidade, agredindo o seu filho de forma violenta e utilizando objectos susceptíveis de provocar lesões particularmente dolorosas, intentos que logrou alcançar.
10. O arguido agiu de forma livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Mais se provou:
1. O Arguido é reformado da profissão de bancário auferindo reforma mensal de 635,00 líquidos;
2. O arguido desenvolve a actividade de inspector comercial, auferindo em média o montante mensal de 300,00 euros;
3. O Arguido dá formação na área de gestão e contabilidade no E… auferindo mensalmente o montante médio de 600,00 euros.
4. O arguido é ainda presidente da comissão política do F… de Valpaços.
5. Reside com a sua mãe e filho nada despendendo pela habitação;
6. O arguido não tem antecedentes criminais registados;
7. O arguido revelou arrependimento.
Factos não provados:
Inexistem.
Motivação:
A convicção do tribunal fundou-se na prova produzida em audiência de julgamento – nomeadamente, as declarações prestadas pelo arguido, analisada e conjugada, criticamente, à luz das regras da experiência comum, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova (artigo 127.º do Código de Processo Penal).
Nas declarações do arguido que descreveu a sua condição socio-económica.
Quanto ao mais, o arguido admitiu a prática dos factos descritos na acusação pública, acrescentando porém, que no seu entender, os factos não revestem gravidade digna de tutela penal. Entende o arguido que não praticou um crime.
O ofendido descreveu de forma clara e linear o desenrolar dos factos, especificando o modo como os mesmos ocorreram. Confirmou, com segurança e espontaneidade, a matéria factual descrita na acusação pública, em termos que lograram convencer o Tribunal, para além de qualquer dúvida razoável que se pudesse suscitar.
As declarações prestadas pelo ofendido, por suficientemente descritivas, mostraram-se coerentes e objectivas, não tendo sobrevindo qualquer circunstância que pudesse levar o Tribunal a duvidar da veracidade dos factos que relatou.
Na verdade C… produziu um relato muito próximo da acusação, que a corrobora no essencial, mas não excessivamente “colado” a ela, falando com espontaneidade e a naturalidade possível em face do tempo já decorrido.
Acima de tudo, destaca-se o reconhecimento do que sabia e do que não sabia, sem procurar compor um retrato (mais) prejudicial ao arguido, seu pai.
Acresce que a sua versão dos factos foi corroborada em parte e sem hesitações pelas demais testemunhas inquiridas: G… que referiu estar na data dos factos no terreno onde o arguido plantava batatas, descrevendo a contrariedade de C… e levar a cabo as tarefas que lhe era cometidas pelo seu progenitor, sendo que em face disso o mesmo lhe desferiu uma pancada nas pernas com o cabo da enxada. Mais relatou ter visualizado o C… no chão, sendo levantado pelo arguido que envergava na mão um cinto. Adiantou que não viu o arguido bater no filho. A testemunha deu ainda conta da constante preocupação do arguido no que à educação do seu filho diz respeito.
Foi inquirida B…, que se constituiu assistente em representação de C…, a qual relatou de forma isenta e coerente a forma como tomou conhecimento das lesões no corpo do seu filho, bem como os procedimentos que levou a cabo para que o mesmo recebesse assistência hospitalar, corroborando nessa parte o depoimento de C….
H…, amigo e vizinho do arguido, deu conta ao Tribunal dos moldes em que o mesmo leva a cabo a educação do filho, demonstrando discordar da forma rígida em que por vezes o faz, tendo declarado mesmo que “quem bate não quer bem”.
I…, amigo do arguido que também por ali se encontrava, no que respeita aos facos apenas deu conta de forma serena e isenta da contrariedade de C… em levar a cabo as tarefas de semeia de batatas, expondo os motivos pelos quais, no seu entender, C… não estava a colaborar com o arguido. Descreveu o arguido como um pai muito preocupado com o seu filho.
Da conjugação das declarações prestada sobretudo pelo ofendido C…, com Relatório do episódio de urgência, de fls. verso, relatório do exame médico-legal de fls. 27 a 29, documentação clinica de fls. 74 e ainda factura de fls. 75 resultaram provadas as lesões sofridas pelo ofendido C… bem como as despesas resultantes da assistência hospitalar que efectivamente recebeu por conta da agressão sofrida.
Por sua vez, os factos relativos aos elementos subjectivos decorrem da conjugação da factualidade objectiva apurada com as regras da normalidade e da experiência comum do julgador, uma vez que, quem actua como o arguido actuou, sem qualquer interferência de elemento perturbador da capacidade intelectual e volitiva, admitindo ter-se excedido no seu comportamento e revelando arrependimento, não pode deixar de querer actuar como descrito, de ter consciência da proibição da conduta e de conformar-se com as consequências legais da mesma.
Os antecedentes criminais dos arguidos decorrem do teor do Certificados de Registo Criminal de fls. 176.
Os factos apurados no que respeita às condições económicas do arguido emergiram das suas próprias declarações porquanto as mesmas, quanto a tais pontos, revelaram-se coerentes e isentas.
(…)»
II – FUNDAMENTAÇÃO
8. Face às conclusões apresentadas, que delimitam o objeto do recurso, o recorrente insurge-se contra a qualificação jurídica dos factos alcançada pela sentença recorrida, defendendo que os mesmos integram a prática de um crime de Ofensa à integridade física simples, do artigo 143.º, n.º 1, do Cód. Penal – e não um crime de Ofensa à integridade física qualificada, do artigo 145.º n.º 1, alínea a) e n.º 2, com referência ao art. 132.º n.º 2, alínea a), do mesmo diploma, pelo qual vem condenado. Em resultado desta nova qualificação jurídica, pede para que seja considerada e homologada a desistência da queixa oportunamente formulada pelo ofendido.
9. Está em causa saber se a situação dada como provada é suscetível de integrar uma circunstância reveladora de especial censurabilidade ou perversidade, designadamente por o agente ser ascendente da vítima – alínea a) do n.º 2 do artigo 132.º, do Cód. Penal, ex vi do n.º 2 do artigo 145.º do mesmo Código.
10. Provou-se que, no dia 25 de abril de 2013, durante a execução de certos trabalhos no quintal da casa que habitam, o arguido desferiu, com o cabo de uma enxada, duas pancadas nas pernas do filho, que lhe provocaram dores mas não causaram qualquer lesão; de seguida, com um cinto, o arguido desferiu várias pancadas nas costas do filho, que lhe causaram dores e bem assim ferida contusa de cor avermelhada a nível da região escapular direita, com cerca de 9 cm de comprimento, dois hematomas a nível da região lombar, com cerca de 1,5 cm cada uma e ferida contusa de cor vermelha de 30 cm de comprimento e 3 cm de largura na região dorsal – e determinaram 8 dias de cura, sem afetação da capacidade de trabalho geral ou profissional [pontos 1 a 8 dos Factos Provados].
11. Sem pôr em causa, em momento algum, a censura que um método de correção de menores tão bárbaro e incivilizado quanto rejeitado pela comunidade nos merece, temos de convir que, atenta a pequena relevância das suas consequências físicas e os sinais de arrependimento e de reaproximação entre o pai e o filho [ponto 17 dos Factos Provados e declaração de desistência da queixa de fls. 171, subscrita pelo filho agora já com 16 anos de idade] – temos de convir, dizíamos, que a situação descrita não é suscetível de revelar especial censurabilidade ou perversidade na medida em que não evidencia um especial agravamento da culpa do arguido.
12. Como se sabe, a qualificação decorrente do n.º 2 do artigo 132.º do Cód. Penal não é automática, antes “deriva da verificação de um tipo de culpa agravado”, o que obriga a que os elementos apurados revelem “uma imagem global do facto agravada correspondente ao especial conteúdo de culpa tido em conta” [Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2ª ed., p. 49. Na jurisprudência, por todos, Ac. STJ de 21.10.2009, processo n.º 589/08.6PBVLG.S1: “(…) A ocorrência destes exemplos não determina, todavia, por si só e automaticamente, a qualificação do crime; assim como a sua não verificação não impede que outros elementos possam ser julgados como qualificadores da culpa, desde que sejam substancialmente análogos aos legalmente descritos. (…) IV -O cerne do referido ilícito está, assim, na caracterização da ação letal do agente como de especial censurabilidade ou perversidade face às circunstâncias em que, e como, agiu, ou dito de outro modo, está nas circunstâncias reveladoras ou não de especial censurabilidade ou perversidade que integram a ação letal do agente (…)” – disponível em www.dgsi.pt].
13. Assim, no caso dos autos [alínea a) do n.º 2 do artigo 132.º] não basta que o agente tenha consciência da sua relação de parentesco com a vítima. O que a lei exige é que a prática dos factos “revele uma especial censurabilidade ou perversidade do agente, indiciada (mas não ‘automaticamente’ verificada) por aquele ter vencido ‘as contramotivações éticas relacionadas com os laços básicos de parentesco’” [Figueiredo Dias, ob cit., pág. 57]. Por outras palavras: um especial juízo de culpa que se fundamente na refração (desvio), ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas [especial censurabilidade] ou que se fundamente diretamente na documentação do facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas [especial perversidade].
14. Ora, apesar da clara censura que a conduta do recorrente merece, ainda assim não atingiu níveis de censurabilidade ou de perversidade que, face ao que expusemos, possam ser considerados como especialmente desvaliosos. E como tal, os factos integram (não o tipo qualificado mas) o crime de Ofensa à integridade física simples, do artigo 143.º, n.º 1, do Cód. Penal.
15. Com o que procede este fundamento do recurso.
16. Quanto ao mais: o filho nasceu no dia 2 de outubro de 1997. E subscreveu a desistência da queixa junta aos autos, antes do início da audiência, em 7 de maio de 2014, portanto, quando já tinha completado 16 anos de idade [à data, foi considerada irrelevante por o crime imputado ao arguido ter natureza pública – fls. 174].
17. Ao concluímos por uma qualificação jurídica dos factos que admite desistência da queixa [crime semipúblico – n.º 2 do cit. art.], e considerando que esta foi apresentada antes da publicação da sentença da 1ª instância, que o direito de queixa foi exercido pelo representante legal do menor (a mãe) mas a desistência foi requerida pelo próprio depois de perfazer 16 anos de idade e que o arguido requer que, por via dela, seja extinto o procedimento criminal (não oposição) – concluímos que, nos termos do artigo 116.º, n.º 2 e 4, do Cód. Penal, estão reunidas as condições legais para a sua homologação.
A responsabilidade pela taxa de justiça
Sem tributação – face à procedência do recurso [art. 513.º, n.º 1, a contrario, do CPP].
III – DISPOSITIVO
Pelo exposto, os Juízes acordam em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido D… e assim:
● Declaram que aos factos são suscetíveis de integrar a prática de um crime de Ofensa à integridade física simples, do artigo 143.º, n.º 1, do Cód. Penal;
Homologam a desistência da queixa apresentada por C…, julgando extinto o procedimento criminal contra o arguido.
Sem tributação. D.N.
[Elaborado e revisto pelo relator – em grafia conforme ao Acordo Ortográfico de 1990]

Porto, de 4 de fevereiro de 2015
Artur Oliveira
José Piedade