Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
292/15.0PAVCD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO PEDRO NUNES MALDONADO
Descritores: CRIME DE INJÚRIAS
ESTÚPIDO
PALAVRAS OFENSIVAS
Nº do Documento: RP20170308292/15.0PAVCD.P1
Data do Acordão: 03/08/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 710, FLS. 351 - 358)
Área Temática: .
Sumário: I -No crime de injúrias praticado por palavras, o significante utilizado tem de encerrar em si uma potência ofensiva, ou seja terá de ter um significado associável a significados padronizados ou padronizáveis com essência ou núcleo ofensivos.
II -O significante “ estúpido” tem essa potencia natural ofensiva porque relacionada a uma característica própria existencial do visado (tal como a imbecilidade e idiotice) sem contornos funcionais ou ligação a competências sociais especificas.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº292/15.0PAVCD.P1

Acórdão, deliberado em conferência, na 2º secção criminal do Tribunal da Relação do Porto
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I. B… veio interpor recurso da sentença proferida no processo comum singular nº292/15.0PAVCD da instância local, secção criminal – J1, Vila do Conde, Tribunal da Comarca do Porto, que o condenou na pena de 50 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, pela prática de um crime de injúria agravada, p. e p. pelos artigos 181º, nº1, e 184º, com referência ao 132º, nº2, alínea l), do Código Penal.
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I.1. Sentença recorrida (transcrição dos segmentos com interesse para a apreciação do recurso).
II – FUNDAMENTAÇÃO
A) De facto
1. Factos provados
Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos com relevo para a decisão:
1.No dia 20 de Junho de 2015, cerca das 18.00 horas, B…, arguido neste processo, dirigiu-se à Esquadra …, sita no …, em Vila do Conde.
2.Na referida Esquadra encontrava-se, designadamente, C…, Chefe da PSP, o qual se encontrava fardado, identificado e no exercício das suas funções.
3.O arguido queixou-se de fortes dores cervicais, referindo que as mesmas se deviam a uma alegada agressão de que teria sido vítima no interior daquela Esquadra no dia 29 de Maio de 2015, solicitando que lhe fosse facultado um colar cervical e dizendo que não tinha possibilidades de o adquirir, pelo que alguém teria de pagar esse equipamento.
4.O arguido já era conhecido da PSP, tendo anteriormente apresentado queixas contra polícias.
5.C… chamou uma ambulância.
6.Entretanto, cerca das 18.20 horas, compareceu junto da Esquadra uma equipa dos Bombeiros Voluntários …, para prestar assistência ao arguido.
7.No momento em que se preparava para sair da Esquadra, o arguido dirigiu se a C… e disse-lhe “Você é um estúpido!”.
8.C… sentiu-se ofendido na sua honra e na sua dignidade pessoal e profissional.
9.Ao actuar da forma atrás descrita, o arguido agiu livre, deliberada e conscientemente.
10.Sabia que C… era um polícia que se encontrava no exercício das suas funções e que a expressão atrás enunciada era susceptível de ofender a honra e a consideração da pessoa visada.
11.Tinha conhecimento de que a sua conduta era proibida e punida por lei.
12.Nada consta do registo criminal do arguido.
13.O arguido tem actualmente 55 anos de idade.
14.É solteiro.
15.Tem 5 filhos, maiores de idade.
16.Estudou até ao 11º ano de escolaridade.
17.Presentemente, não trabalha.
18.Recebe da Segurança Social rendimento social de inserção no valor mensal aproximado de € 180 (Cento e oitenta Euros).
2. Factos não provados
Não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a decisão da causa, designadamente os que a seguir se enunciam:
1.Que houvesse sido o arguido quem teve a iniciativa de chamar uma ambulância.
2.Que nas circunstâncias de espaço e tempo atrás descritas C… se encontrasse sozinho na Esquadra ….
3. Motivação da convicção do Tribunal
O Tribunal formou a sua convicção conjugando todos os meios de prova produzidos e examinados em audiência, apreciando-os criticamente e à luz das regras da experiência comum.
C… começou por referir que antes dos factos que constituem o objecto deste processo já conhecia o arguido, por razões profissionais. A esse respeito, explicou que, na altura a que os factos se reportam, o arguido se dirigia “constantemente” à Esquadra …, queixando-se de ter sido agredido nessa Esquadra. Acrescentou que o arguido acusava o depoente de saber quem o tinha (alegadamente) agredido, mas não queria identificar os (alegados) agressores.
Continuando o seu relato, C… referiu que na data indicada na acusação se encontrava sozinho na Esquadra.
Mais declarou que o arguido se queixava de dores cervicais e queria um colar cervical, pelo que chamou os Bombeiros.
Asseverou que a determinada altura, já depois de os Bombeiros terem comparecido na Esquadra, o arguido o insultou, chamando-lhe “estúpido”.
Esta testemunha disse que perante esses factos colocou a mão no arguido e avisou-o de que se repetisse os insultos seria detido.
O depoimento de C… (à parte a questão de não se encontrar sozinho na Esquadra, adiante explicitada) mereceu o crédito do Tribunal, quer pelo seu carácter assertivo e peremptório, quer pela circunstância de essa testemunha ter reconhecido que a determinada altura colocou a mão no arguido, avisando-o de que se continuasse os insultos seria detido e essa explicação abonou a sua credibilidade.
Instado a esse respeito, C… afirmou que se considerou ofendido com a expressão que o arguido lhe dirigiu. Questionado com mais detalhe, a testemunha referiu ter entendido que o arguido, com o referido epíteto, quis significar que não percebia nada, que não sabia o que estava a fazer.
Este depoimento foi confirmado, quanto a todos os aspectos essenciais da causa (e reitere-se a ressalva de não se encontrar sozinho na Esquadra, ou pelo menos de esse facto não ter ficado assente), pelos depoimentos das restantes testemunhas.
D… e E… revelaram conhecimento directo dos factos porque foram os bombeiros que se dirigiram à Esquadra e tentaram prestar assistência ao arguido; essas testemunhas prestaram depoimentos isentos, equidistantes, objectivos, coerentes e, por todos esses motivos, convincentes.
Atentemos nesses depoimentos.
D…, situando os acontecimentos próximo do …, recordou-se da situação em concreto.
Em suma, confirmou que nas circunstâncias de espaço e tempo descritas na acusação o arguido insultou C…, chamando-lhe “estúpido”. Também aludiu ao facto de C… ter avisado o arguido de que se o voltasse a insultar, seria agredido.
Mais referiu D… que o arguido (apesar de ter sido o responsável pelo accionamento dos meios de socorro) não foi levado ao Hospital, nem sequer foi avaliado pelos Bombeiros, porque a tal se recusou.
Esta testemunha mencionou que pelo menos ao balcão da Esquadra estavam outros polícias (para além de C…).
Por seu turno, E… começou por referir que quando os Bombeiros chegaram à Esquadra, o arguido se encontrava no seu interior, sentado num banco. Mencionou que um polícia disse aos Bombeiros que a chamada se reportava ao arguido.
Confirmou que o arguido chamou “estúpido” a C…. Acrescentou que este, em face desse insulto, o puxou e o avisou de que se o voltasse a insultar seria detido.
E… também referiu a presença de outros polícias para além C….
Esta testemunha também referiu que o arguido, em vez de aceitar ser avaliado pelos Bombeiros (tendo em vista o eventual transporte ao Hospital), insistia que queria a comparência de um carro-patrulha, para tomar conta da ocorrência.
Disse ainda que o arguido assinou um termo de responsabilidade, rejeitando a assistência e dizendo que não queria ir ao Hospital.
Instado a esclarecer se, afinal, se encontrava sozinho – pois as testemunhas D… e E… referiram a presença também de outros polícias – C… afirmou que outros polícias estavam de serviço, no carro-patrulha, embora não estivessem na Esquadra (colocando-se a hipótese de esses polícias terem sido chamados, entretanto), mas na realidade as testemunhas D… e E… referiram a presença de pelo menos outro polícia na Esquadra.
Em face dos depoimentos de C…, D… e E…, ficou assente em audiência a factualidade descrita na acusação, apenas com duas ressalvas: não ficou assente que C… estivesse sozinho na Esquadra e não ficou assente que tivesse sido o arguido quem tomou a iniciativa de chamar uma ambulância. Quanto ao primeiro aspecto, como vimos, as testemunhas D… e E… afirmaram que na Esquadra se encontravam também outros polícias; e quanto ao segundo aspecto, resultou do depoimento de C… que foi este quem teve a iniciativa de chamar a ambulância, ante as queixas do arguido.
O arguido, por seu lado, reconheceu que chamou “estúpido” a C…, embora tivesse sustentado uma versão dos acontecimentos não inteiramente coincidente com a descrita pelo Ministério Público.
Vejamos.
No início das suas declarações, logo após a leitura da acusação, o arguido assinalou “Os factos não são bem assim”. Sustentou que C…, no início, não se encontrava no local. Referiu o arguido que naquela data se deslocou à Esquadra para tentar identificar os polícias que (alegadamente) o teriam agredido anteriormente (o arguido não se reportou às queixas de dores cervicais). Alegou que C… apareceu posteriormente, dizendo ao polícia com quem o arguido estava a falar “Esse gajo é um manipulador!”.
O arguido referiu que a partir de determinada altura, se começou a “sentir mal”, mas não explicou o que estava a sentir, se tinha dores, se estava indisposto, se teve sensação de desmaio ou outras sensações.
A dado passo das suas declarações, o arguido reconheceu expressamente “chamei-lhe «estúpido», na realidade”.
Mencionou que C… o agarrou pelo ombro.
Acrescentou que, já perante os bombeiros, recitou um poema.
Questionado sobre os factos que antecederam o objecto deste processo, o arguido disse que no dia 29 de Maio de 2015 foi impedido de entrar na F…, por alegada infracção ao respectivo regulamento, tendo sido conduzido à Esquadra.
No que concerne aos elementos subjectivos correspondentes à infracção criminal imputada, o Tribunal teve em conta a factualidade objectiva que considerou assente, pelos motivos atrás explanados, bem como o contexto em que os factos ocorreram e ainda a circunstância de a generalidade das pessoas saber que não se pode, por lei, insultar, injuriar outras pessoas não tendo resultado o contrário em relação ao arguido. De resto, o arguido mostrou ser uma pessoa com perfeito domínio da Língua Portuguesa, sendo fluente na expressão oral e culto (…).
I.2. Recurso do arguido (conclusões transcritas parcialmente).
1. É pacífico, na doutrina e na jurisprudência, que para o cometimento do tipo legal do crime previsto no artigo 181.º do Código Penal é suficiente a existência de dolo genérico;
2. Contudo, a expressão que resultou provado nos autos que o arguido proferiu – “você é um estúpido” - só seria injuriosa se tivesse ficado patente que tal palavra foi proferida com a intenção de ofender o destinatário da mesma, o que manifestamente não aconteceu;
4. Nas declarações que prestou em audiência de julgamento, o arguido confessou, desde logo, que proferiu contra o ofendido a expressão “você é um estúpido”. Mas referiu também que quando entrou na esquadra o ofendido não se encontrava lá. Estava sim um outro agente que não soube dizer o nome. E quando estava a
conversar de forma amena com esse outro polícia, surgiu do interior da esquadra o ofendido (chefe C…) a proferir as seguintes palavras: “tu estás a ouvir esse gajo, deixa-te de conversas com esse gajo, esse gajo é um manipulador e já nos está aqui farto de dar na cabeça” . O arguido nem lhe respondeu e começou a sentir-se muito mal, tendo-se sentado no banco. Pediu então ao outro agente que chamasse o INEM. Quando os bombeiro ao serviço do INEM chegaram o ofendido chefe C… virou-se para eles e disse “levem-me este gajo daqui que este gajo é um manipulador de merda e está farto de me dar na cabeça”. Foi então que o arguido se virou para o ofendido e lhe disse você é um estúpido, no sentido de ele ser um malcriado, grosseiro ( início das declarações - 14:34:07 horas: 00:00:01; fim das declarações - 14:54:29 horas : 00:20:21 ).
5. O recorrente desconhece as razões pelas quais o Tribunal a quo não acreditou na sua tese, supostamente não a considerando credível. Já por outro lado, o recorrente não entende nem se conforma com o facto de o Tribunal a quo ter considerado o depoimento do ofendido credível, quando é certo que ele afirmou que se encontrava sozinho na esquadra, o que foi prontamente desmentido pelas outras duas testemunhas de acusação. ( início das declarações - 14:55:53 horas: 00:00:01; fim das declarações - 15:10:09 horas : 00:14:17 ) .
6. A testemunha E… disse ao Tribunal que:”(...) Estava um senhor sentado num banco. O Senhor levantou-se e ia dirigir-se para a porta. Entretanto pararam à beira da porta e começou a haver insultos entre um polícia que estava dentro do balcão e o outro senhor. Tinha mais do que um polícia dentro do balcão. Um polícia sentado atrás do balcão (...)Houve uma troca de conversa s e o senhor chamou estúpido ao polícia(...)” - (início das declarações - 15:35:00 horas: 00:00:01; fim das declarações - 15:45:14 horas : 00:10:14).
7. A testemunha D… disse ao Tribunal que: “Entrou na esquadra e viu um senhor sentado. Tinha mais gente na esquadra. Dirigiu -se à secretaria onde estava o chefe C… e mais colegas. O senhor que estava sentando queria um colar cervical. Entretanto o senhor levantou-se e ele foi em direção a ele, cumprimentou-o, ele levantou-se e de repente chamou estúpido alto e bom som ao chefe C…” - (início das declarações - 15:19:54 horas: 00:00:01; fim das declarações - 15:34:58 horas : 00:15:03).
8. Ditam as regras da experiência comum que ninguém profere uma palavra ou expressão de desagrado contra outrem se não tiver sido previamente admoestado por esse indivíduo;
9. Analisando o conjunto de circunstâncias que envolveram os factos descritos, a expressão utilizada pelo ora recorrente não pode ter a conotação e o sentido injurioso, porque foi proferida num quadro de perturbação e de consternação em que ele se encontrava, pelo que tal expressão não preencherá o elemento volitivo do tipo legal de crime de injúria, porque carece da vontade de realização do facto;
10.A expressão “você é um estúpido” não preenche a tipicidade objetiva do crime de injúrias porque é criminalmente atípica. Admite-se que o ofendido possa ter ficado, na pior das hipóteses melindrado com a expressão;
11. A ofensa à honra ou consideração de uma pessoa não se pode confundir com atitudes ou palavras desrespeitosas ou mesmo grosseiras, ainda que direciona a uma identificada e determinada pessoa, o que não podem nem devem é ser objeto de sanção penal;
12.Salvo o devido respeito por opinião contrária, que é muito, não nos parece que a expressão “você é um estúpido”, a qual, aliás, o arguido confessou ter proferido, tenha carga pejorativa suficiente para interferir com o conteúdo ético da personalidade moral do visado, ou atinja os valores que são ética e socialmente relevantes do ponto de vista do direito penal;
13.Ou seja, a expressão proferida “você é um estúpido” não atingiu, no caso concreto, aquele que é o núcleo essencial das qualidades morais inerentes à dignidade da pessoa humana do ofendido;
14.É certo que aquela expressão poderá, porventura, traduzir grosseria e má educação mas, no contexto em que foi proferida, não assume carácter ofensivo da honra ou da consideração do lesado.
15.O dicionário de língua portuguesa dá-nos como definição de estúpido aquele que não tem inteligência suficiente ou delicadeza de sentimentos; grosseiro ; muito desagradável, bruto, enfadonho (dicionário da língua portuguesa, Porto Editora, 8.ª edição, pág. 703);
16.Ora, mesmo sabendo que as definições que o dicionário dá da palavra em causa não são decisivas para o preenchimento do elemento do tipo legal de crime de injúria a verdade, porém, é que é do conhecimento geral que a linguagem utilizada nas esquadras da polícia não é propriamente a mais polida ou rebuscada;
17.Aliás, nas declarações que proferiu em audiência de julgamento, o ofendido chefe C… disse expressamente que uma pessoa estúpida é uma pessoa que não sabe o que está a fazer. Uma pessoa que não percebe nada. Mais referiu que, antes de o arguido o ter chamado estúpido, possivelmente terá dito que ele era um manipulador (início das declarações - 14:55:53 horas: 00:00:01; fim das declarações - 15:10:09 horas : 00:14:17) ;
18.Consequentemente, o que a expressão “você é um estúpido” traduziu, no caso concreto, foi um comportamento revelador de falta de educação e de baixeza moral, que fere as regras do civismo exigível na convivência social e, no caso concreto, perante uma autoridade policial;
19.No entanto, este tipo de expressão, apesar de ser socialmente desconsiderada por ser boçal, ordinária e violadora das normas consuetudinárias da ética e da moral é, contudo, destituída de relevância penal;
20. Só são crime as injúrias que, pela sua natureza e circunstâncias, sejam tida s na comunidade como graves. A verificação da existência do ilícito penal não se pode limitar ou circunscrever à valoração isolada e objetiva da expressão proferida;
21. Exige-se, por outro lado, que a palavra ou expressão seja analisada e valorada de acordo com o circunstancialismo de tempo, modo e lugar em que foi proferida. E neste particular, o Tribunal a quo não valorou positivamente a descrição dos factos relatados pelo arguido e pelas duas testemunhas de acusação;
22. Consequentemente, o Tribunal a quo errou na apreciação da prova ao ter considerados provados os factos constantes do número 8 (C… sentiu-se ofendido na sua honra e na sua dignidade pessoal e profissional), do número 10 (Sabia que C… era um polícia que se encontrava no exercício das suas funções e que a expressão atrás enunciada era susceptível de ofender a honra e a consideração da pessoa visada) e do número 11 (Tinha conhecimento de que a sua conduta era proibida e puni da por lei) dos factos provados. Na verdade, tais factos deveriam ter sido considerados como não provados.
23.O direito penal tem um caráter subsidiário ou fragmentário, como decorre expressamente do artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, que dispõe que “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”.
24.O Tribunal a quo deveria ter aplicado os princípios constitucionais da adequação, da razoabilidade e da necessidade, considerando o caráter subsidiário da l ei penal, o que manifestamente não fez. Do princípio da necessidade enunciado no artigo 18º, 2, da Constituição da República Portuguesa , deflui que os direitos fundamentais constitucionalmente garantidos não conferem direitos absolutos. O direito de liberdade de expressão é também um direito constitucionalmente protegido, tal como como é o direito ao bom nome e à reputação.
25. Os conceitos de honra ou desconsideração não dependem da noção que cada indivíduo tem dos mesmos, da sua particular valoração moral ou ético-social. Estes conceitos devem ser interpretados dentro quadro constitucional (v.g o artigo 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa ), que alude ao “bom nome e
reputação, à imagem”, e da legislação ordinária (v.g o artigo 70.º, n.º 1, do Código Civil) , no que se refere à tutela geral da personalidade física e moral.
26.O direito não deve nem pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere susceptibilidades do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha a preço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. Se assim não fosse, a vida em sociedade seria impossível. E o direito seria fonte de conflitos, em vez de garantir a paz social, que é a sua função.
27.Para determinar se a expressão proferida pelo arguido contra o ofendido tinha relevância típica no âmbito do crime contra a honra, atendendo ao carácter subsidiário da Lei penal substantiva, o Tribunal a quo deveria ter considerado, nomeadamente, o contexto em que o arguido actuou, as razões que o levaram a agir como agiu e a maior ou menor adequação social do seu comportamento.
28.A verificação do ilícito não se pode circunscrever e ou limitar à valoração isolada e objectiva da expressão proferida. Era necessário indagar como e por quem foi proferida, no circunstancialismo de tempo, de modo e de lugar em que foi proferida. E a este propósito, o arguido foi perentório ao declarar que o ofendido se virou para
o colega e disse: “tu estás a ouvir esse gajo, deixa-te de conversas com esse gajo, esse gajo é um manipulador e já nos está aqui farto de dar na cabeça (...) Quando os bombeiro ao serviço do INEM chegaram o ofendido chefe C… virou-se para eles e disse levem-me este gajo daqui que este gajo é um manipulador de merda e está farto de me dar na cabeça”. Foi então que o arguido se virou para o ofendido e lhe disse: você é um estúpido, no sentido de ele ser um malcriado, grosseiro (início das declarações - 14:34:07 horas: 00:00:01; fim das declarações - 14:54:29 horas : 00:20:21) .
30.O arguido só procurou defender a sua honra, consideração e bom nome, que não poderá ser graduada em menor importância em relação ao ofendido, pois sentiu-se injustiçado com as expressões de que foi alvo, e ainda que se possa entender que a expressão utilizada - "você é um estúpido" foi excessiva, deve aceitar-se que, na situação e circunstâncias em que foi proferida, visou apenas exprimir a sua revolta e indignação pela forma como foi apelidado pelo ofendido.
31.Ao condenar o arguido, ora recorrente, nos termos em que o fez, o Tribunal a quo violou os artigos 181.º, n.º 1 e 184.º, com referência ao artigo 132. º, n.º 2, al. l), todos do Código Penal;
32.Ao condenar o arguido, ora recorrente, nos termos em que o fez, o Tribunal a quo violou ainda os artigos 18.º e 26 da Constituição da República Portuguesa, assim como o artigo 70.º do Código Civil.
I.3. Resposta do MºPº (motivações que se resumem).
Relativamente ao alegado erro na apreciação da prova entende que a matéria de facto provada foi motivada e mostra-se perfeitamente coerente com a prova produzida em audiência devidamente conjugada com o recurso às regras da experiência comum.
Quanto ao crime de injúria entende que a expressão utilizada ataca a personalidade e a integridade moral do visado, sendo objectiva a subjectivamente lesiva da sua honra.
I.4. Parecer do Ministério Público na Relação.
Acompanha a resposta referida.
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II. Objecto do recurso e sua apreciação.
O objecto do recurso deve ater-se às conclusões apresentadas pelo recorrente (cfr. Acórdão do STJ, de 15/04/2010, in http://www.dgsi.pt: “Como decorre do artigo 412.º do CPP, é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões(…)”, sem prejuízo, obviamente da eventual necessidade de conhecer oficiosamente da ocorrência de qualquer dos vícios a que alude o artigo 410º, do Código de Processo Penal nas decisões finais (conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, I série-A, de 28/12/95).
São as conclusões da motivação que delimitam o âmbito do recurso. Se ficam aquém a parte da motivação que não é resumida nas conclusões torna-se inútil porque o tribunal de recurso só pode considerar as conclusões e se vão além também não devem ser consideradas porque são um resumo da motivação e esta é inexistente (neste sentido, Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol. 3, 2015, págs. 335 e 336).
O recorrente entende que foi erradamente efectuado o julgamento da matéria de facto (factos provados 8., 10 e 11) e do qualificação jurídica dos factos.
II.1. Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
Através deste meio pretende o recorrente ver apreciado o erro de julgamento da matéria de facto com fundamento na errada valoração dos meios de prova que fundamentam a decisão da matéria de facto (cfr. artigos 412º, nº3, 428º e 431º, alínea b), do Código de Processo Penal).
O recurso que tem como objecto a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto deve especificar:
- os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
- as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (artigo 412º, nº3, alíneas a) e b), do Código de Processo Penal).
Por fim, quando as provas tenham sido gravadas, a referida especificação deve efectuar-se por referência ao consignado em acta (quanto ao meio de prova registado, seu inicio e termo), devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação (artigo 412º, nº4, do Código de Processo Penal).
O recorrente indica os factos (provados) que entende deverem ser dados como não provados:
8.C… sentiu-se ofendido na sua honra e na sua dignidade pessoal e profissional.
10.Sabia que C… era um polícia que se encontrava no exercício das suas funções e que a expressão atrás enunciada era susceptível de ofender a honra e a consideração da pessoa visada.
11.Tinha conhecimento de que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Indica, como concretos meios de prova que impõe decisão diversa:
- as suas declarações (que transcreve parcialmente sem indicação da sua localização no ficheiro áudio respectivo, indicando a totalidade do registo – 20.21 minutos);
- o depoimento do ofendido (que transcreve parcialmente sem indicação da sua localização no ficheiro áudio respectivo, indicando a totalidade do registo – 14.17 minutos);
- o depoimento da testemunha E… (que transcreve parcialmente sem indicação da sua localização no ficheiro áudio respectivo, indicando a totalidade do registo – 10.14 minutos);
- o depoimento da testemunha D… (que transcreve parcialmente sem indicação da sua localização no ficheiro áudio respectivo, indicando a totalidade do registo – 15.13 minutos);
Quanto a este tipo específico de recurso (da decisão sobre a matéria de facto: cfr. artigo 412º, nº3, do Código de Processo Penal) cumprirá esclarecer o procedimento legal de reapreciação, por este tribunal superior, da prova produzida em primeira instância.
O julgamento da matéria de facto em primeira instância obedece a princípios estabelecidos na lei para garantir ao máximo possível que se descobre, a partir da sua princípios avulta o da imediação na recolha da prova, que visa assegurar que existe uma relação de contacto pessoal e directo entre o julgador e a prova que terá de ser avaliada.
Ao contrário, em segunda instância, a reapreciação da matéria de facto faz-se, em regra, sem imediação, com a audição das provas registadas, cuja análise tenha sido sugerida no recurso, estando dependente do impulso dos sujeitos processuais a renovação da prova – artigos 412º nºs 3 a 6 e 417º nº 7 al. b) do CPP. Quer isto dizer que, em regra, a avaliação da prova em primeira instância, feita por um juiz singular ou por um colectivo de juízes (ou até jurados) de forma directa, oral e imediata, obedece a uma forma de procedimento que dá mais garantias de se chegar a uma decisão acertada, do que a avaliação feita com base na audição ou visualização do registo, meramente parcial, de provas produzidas no passado, à distância e perante terceiros, como sucede na Relação. Por isso, a reapreciação da prova em recurso não pode, em caso algum, equivaler a um segundo julgamento. O duplo grau de jurisdição não assegura a sujeição da acusação a dois julgamentos em tribunais diferentes, mas apenas garante que o sujeito processual afectado pode obter do tribunal superior a fiscalização e controlo de eventuais erros da decisão da matéria de facto, através do reexame parcial da prova.
Para além disso, o julgamento da matéria de facto está sujeito ao princípio da livre apreciação (que não arbítrio) estabelecido no artigo 127º do Código de Processo Penal. Isso é válido tanto para o julgamento em primeira instância como para a verificação de eventuais erros de julgamento na Relação. Quer o exposto significar que o julgador não está sujeito a um sistema de provas a que a lei atribua valores fixos e hierarquizados e tem uma margem de discricionariedade (vinculada pela fundamentação, pelo recurso a critérios objectivos jurídico-racionais e às regras da lógica, da ciência e da experiência comum).
Só existirá erro de julgamento da matéria de facto naquelas situações em que o recorrente consiga demonstrar que a convicção a que o tribunal de primeira instância chegou sobre a veracidade de certo facto é inadmissível ou implausível, que não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou existem outras conformações da realidade dadas pelas provas.
Quanto ao primeiro meio de prova (declarações do arguido) o recorrente alega desconhecer as razões pelas quais o tribunal de primeira instância não as considerou credíveis.
Passaremos a explicá-las, tal como o julgador o já fez, de forma categórica, na sentença recorrida: nenhuma das pessoas que presenciaram o episódio relataram que o ofendido terá dirigido as expressões ao arguido nos termos por este declarados.
Quanto ao segundo meio de prova (depoimento do ofendido) o recorrente alega não entender como foi o mesmo considerado credível uma vez que um dos factos que narrou (que se encontrava sozinho na esquadra) foi desmentido pelos terceiro e quarto meios de prova (depoimentos de E… e D…).
Passaremos a explicar, também nesta parte, tal como o julgador de forma criteriosamente honesta o fez na sentença recorrida (tornando desnecessária audição dos depoimentos neste tribunal): o julgador não deu como demonstrado que o ofendido se encontrava sozinho na esquadra, ao contrário do que o mesmo declarou, mas tal omissão não lhe retirou qualquer credibilidade por força da natureza assertiva e peremptória do seu testemunho, bem patente no facto de ter assumido um comportamento que, não estando narrada na acusação pública, tem virtualidade ofensiva em relação ao arguido – colocou-lhe a mão e advertiu-o que seria detido se continuasse os insultos.
Por outro lado, a imprecisão em causa é rigorosamente irrelevante para a apreciação da credibilidade da testemunha, salvo a reprodução histórica do evento dependesse exclusivamente do arguido e do ofendido, o que manifestamente não sucedeu.
Como compreenderá o recorrente, teria o mesmo de convencer este tribunal, de forma lógica, a irracionalidade, implausibilidade, insusceptibilidade de formação da convicção do julgador da primeira instância, sobre a realidade dos factos (ou sua representação) com fundamento naqueles meios de prova referidos (as testemunhas presenciais).
Improcede, o recurso, nesta parte.
II.1. Da impugnação da qualificação jurídico-penal dos factos.
Comete o crime de injúria quem, dirigindo-se a outra pessoa, lhe imputar factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou palavras, ofensivos da sua honra e consideração – artigo 181º, nº1, do Código Penal.
O bem jurídico tutelado pela incriminação é a honra, na seu vertente externa (a reputação e o bom nome comunitários) e interna (a dignidade pessoal, desembaraçada e independente do seu estatuto social).
O tipo objectivo, desde logo, exige a imputação de um facto (dado real da experiência) ou palavras (ofensivo daquela honra.
Em relação às palavras dirigidas, o significante utilizado terá de encerrar em si uma potência ofensiva, isto é: terá de ser um significante associável a significados padronizados ou padronizáveis com essência ou núcleo ofensivos. O significante “estúpido” tem essa potência natural ofensiva porque relacionada a uma característica própria existencial do visado (tal como a imbecilidade e idiotice), sem contornos funcionais ou ligação a competências sociais específicas.
Por outro lado, a expressão (conjunto de palavras) em causa não podem deixar de ser entendidos, percebidos, compreendidos, como comportamento gratuito: não existe, na representação dos factos sucedidos (ao contrário da versão alegada pelo recorrente) qualquer contextualização na história vivencial comum do declarante e do declaratário, pontual ou reiterada.
Neste sentido já esta Relação entendeu (cit. Acórdão da R.P de 20.04.2016) que “a ofensa à honra e consideração não pode ser perspectivada em termos estritamente subjetivos, ou seja, não basta que alguém se sinta atingido na sua honra – na perspectiva interior/exterior – para que a ofensa exista. Para concluir se uma expressão é ou não ofensiva da honra e consideração, é necessário enquadrá-la no contexto em que foi proferida, o meio a que pertencem ofendido/arguido, as relações entre eles, entre outros aspectos” e, ainda (cit. Acórdão da R.P. de 11.11.2105, ambos consultáveis em www.dgsi), que “a protecção penal conferida à honra só encontra justificação nos casos em que objectivamente as expressões que são proferidas não têm outro sentido que não seja o de ofender, que inequívoca e em primeira linha visam gratuitamente ferir, achincalhar, rebaixar a honra e o bom nome de alguém.”.
A expressão utilizada é proferida no local de trabalho do ofendido, local que o recorrente procurou. Não se consegue perceber o comportamento do recorrente como uma ofensa pura, gratuita, uma vez que se não apurou, não obstante ter sido excutida a existência de outro contexto narrado pelo recorrente, qualquer motivação distinta da apurada.
Por fim, apesar da conclusão que as palavras em causa são susceptíveis de ofender a honra (“mínimo de condições, especialmente de natureza moral, que são razoavelmente consideradas essenciais para que um indivíduo possa com legitimidade ter estima por si, pelo que é e vale ou consideração do recorrente”) ou consideração (“aquele conjunto de requisitos que razoavelmente se deve julgar necessário a qualquer pessoa, de tal modo que a falta de algum desses requisitos possa expor essa pessoa (…) ao desprezo público” – cit. Beleza dos Santos, in “Algumas Considerações Jurídicas sobre Crimes de Difamação e de Injúria”, RLJ ano 92, n.º3152, pág.167/168) do ofendido, teremos de apreciar, com fundamento no principio fragmentário do direito penal (cfr. artigo 18º, nº2, da Constituição da República Portuguesa) e na metódica de solução da colisão autêntica entre direitos fundamentais (cfr. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª edição, pág.1270) (a saber, o direito do ofendido ao bom nome e reputação – artigo 26º da CRP – e o direito do recorrente a exprimir e divulgar livremente o seu pensamento – cfr. artigo 37º, nº1, da CRP), se o segundo direito pode prevalecer.
A resposta é negativa: na concreta situação apurada a liberdade de expressão do recorrente, de forma desadequada, desproporcional e excessiva, desrespeitou o direito à honra e reputação do ofendido, não foi exercida nos pressupostos axiológicos da sua consagração constitucional.
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III. Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e confirma-se a sentença recorrida.
Custas a cargo do recorrente, fixando em 4 UCs a taxa de justiça (cfr. artigo 513º, nº1, do Código de Processo Penal e tabela III anexa ao RCP)
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Porto, 09 de Março de 2017
João Pedro Nunes Maldonado
Francisco Mota Ribeiro