Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1066/13.9TJPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EUGENIA CUNHA
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RECUSA
Nº do Documento: RP202002101066/13.9TJPRT.P1
Data do Acordão: 02/10/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O incidente de exoneração do passivo restante - medida algo afastada da filosofia geral do CIRE, regulada nos artigos 235º e segs - permite ao insolvente, pessoa singular, mediante a satisfação de determinados ónus a revelar o merecimento de uma outra oportunidade, libertar-se do passivo restante e recomeçar a sua vida económica de novo, “limpo” das dívidas. Visa conceder ao devedor um fresh start, permitindo-lhe recomeçar a sua atividade, sem o peso da insolvência anterior.
II - Implica, também, uma nova oportunidade para os credores de obterem a satisfação dos créditos, pois, após o encerramento do processo de insolvência, e portanto esgotada a função do administrador de insolvência com a repartição do saldo do património atual pelos credores, se o houver, ainda se vai efetuar a cessão do rendimento disponível do devedor a um fiduciário durante cinco anos, com a função de o repartir pelos credores.
III - Este incidente, que tem dois momentos fundamentais: o despacho inicial e o despacho de exoneração. Após aferir, no despacho liminar, a que se reportam os artigo 237º e 238º, do CIRE, da existência de condições mínimas, justificando-se a concessão ao devedor de uma oportunidade, o juiz submete-o a um “período de prova”, de que pode ou não, a final, resultar a exoneração.
IV - Durante tal período (período de cessão), de 5 anos, o devedor fica obrigado a entregar o seu rendimento disponível ao fiduciário e a cumprir o conjunto dos deveres acessórios de conduta (n.º 4, do art. 239º, do CIRE), destinados a assegurar a efetiva concretização da cessão do rendimento disponível por aquele a este.
V - A cessão do “rendimento disponível” (cfr. nº2, do art. 239º, do CIRE) constitui um ónus imposto ao devedor como contrapartida de ser exonerado do passivo, integrando tal rendimento (destinado a satisfação dos credores) todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão dos referidos nas alíneas do nº3, do art. 239º, do mencionado diploma.
VI - Decorrido o período de cessão, a exoneração tem de ser recusada se o devedor tiver violado, durante o referido período, com dolo ou negligência grave, a obrigação principal de entrega ao fiduciário do rendimento disponível ou deveres acessórios de conduta fixados no n.º 4, do art. 239º, do CIRE, e, dessa violação, resulte, como consequência direta e necessária, prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência – v. art. 239.º, n.º4, al. a) e c), 243.º, n.º1, al. a), e 244.º, n.º2, do CIRE.
VII - Tal situação verifica-se no caso, em que a recusa da exoneração do passivo restante se impõe por a devedora, que tinha de conter os seus gastos, ao longo dos referidos 5 anos, nada ter entregue ao fiduciário do rendimento disponível, bem sabendo da obrigação de o fazer, utilizando-o para fazer face às suas necessidades sem nada, sequer, vir aos autos requerer, revelando tal atuação (de dispor de mais de dez mil euros, destinado aos credores) dolo e causando prejuízo aos credores naquela importância, não sendo merecedora de nova oportunidade.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo do Juízo Local Cível do Porto – J3

Apelação nº 1066/13.9TJPRT.P1

Relatora: Eugénia Maria de Moura Marinho da Cunha
1º Adjunto: Maria Fernanda Fernandes de Almeida
2º Adjunto: António Eleutério
Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto
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Sumário (nº 7, do art.º 663º, do CPC):
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I. RELATÓRIO
Apelante: B…
Apelados: C…, Sa e outros
Nos presentes autos de processo de insolvência, a que B… se propôs e em que requereu, na petição inicial, a exoneração do passivo restante, declarando preencher todos os requisitos necessários e se dispor a observar todas as condições a que se referem os artigos 237º e segs, do CIRE, foi, após sentença a declarar a insolvência, proferida em 16 de julho de 2013, em 16 de setembro de tal ano, em Assembleia de credores em que estava presente o ilustre mandatário da insolvente, de acordo com o disposto no art. 230º, nº1, al. e), do CIRE, declarado encerrado o processo, por insuficiência da massa, e proferido despacho de deferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante (logo notificado aos presentes, cfr. ata de fls 135 a 137), com o seguinte teor:
“(…) nos termos do art. 239º, nº1 do CIRE admito liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante e determino que a exoneração será concedida uma vez observadas pelos devedores as condições previstas no referido art. 239º durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência.
Nos termos do nº2 do art. 239º do CIRE, determino que durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considere cedido ao fiduciário adiante designado, com exclusão do mencionado no nº3 do art. 239º.
Durante o referido período de cinco anos o devedor fica sujeito às obrigações previstas no nº4 do art. 239º do CIRE.
Fixo o rendimento necessário ao sustento minimamente digno da devedora na quantia equivalente a 1 salário mínimo nacional, em cada momento – art. 239º nº3, b) i do CIRE.
Nomeio fiduciário, a Sra Administradora da Insolvência”, o qual foi notificado à devedora em 24/9/2013 (cfr. fls 139).
Concluído o período de cinco anos de cessão, informou, a fls 211, a Senhora Fiduciária que “a insolvente não procedeu ao depósito dos valores (10.094,55€) a ceder à massa fiduciária nos 5 anos de exoneração do passivo restante”.
Ouvidos os credores e a insolvente nos termos do disposto na parte final do nº1, do art. 244º, nº1, do CIRE, a Credora reclamante “D…” veio requerer, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 244º do CIRE, a recusa do benefício da exoneração do passivo restante.
A insolvente, a fls 227 e seg, sustenta dever ser-lhe concedido o referido benefício porque, apesar de nunca ter entregue qualquer valor, a título de rendimento disponível, não o fez porque teve necessidade de afetar todo o seu rendimento a necessidades básicas de sobrevivência.
A Senhora Fiduciária tomou posição, a fls 231 e segs, sustentando que, perante as necessidade da insolvente e na medida em que tem vindo a ser paga extrajudicialmente a dívida à “C…”, descontados os valores das custas e remuneração do Fiduciário, os valores a repartir entre os credores seriam diminutos, concluindo, por isso, não ter havido prejuízo relevante para os credores.
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Foi, a fls 422 e seg, proferida decisão a recusar à insolvente o benefício da exoneração do passivo restante nos seguintes termos:
(…)Importa atender aos seguintes factos:
1) No despacho de deferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante foi fixado o rendimento indisponível no valor do Salário Mínimo Nacional.
2) Entre Outubro de 2013 e Setembro de 2018, a insolvente recebeu sempre um rendimento superior ao Salário Mínimo Nacional.
3) Tais valores ascendem a 10.094,55€.
4) A insolvente não apresentou qualquer requerimento nos autos após Outubro de 2013.
Constituem, designadamente, fundamentos para a recusa da exoneração do passivo restante a omissão de informação ao tribunal e ao fiduciário sobre os rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado e a falta de entrega imediata ao fiduciário da parte dos rendimentos objecto de cessão (art. 239.º, n.º4, al. a) e c), 243.º, n.º1, al. a), e 244.º, n.º2, do CIRE).
Ora, perante a factualidade evidenciada, impõe-se concluir pela violação da referida obrigação de entrega.
Repare-se que, independentemente dos factos alegados relativos às necessidades da insolvente, nem quanto aos mesmos alega a superveniência relativamente ao despacho liminar, nem em momento algum ao longo dos cinco anos veio a juízo sustentar uma alteração da situação financeira e requerer a alteração do decidido quanto ao rendimento disponível.
Desta forma, só se pode concluir que incumpriu reiterada e deliberadamente a obrigação de entrega, ao longo de sessenta meses, descurando por completo o processo e as obrigações que nele lhe foram impostas.
É de notar que mesmo depois de confrontada com o incumprimento, não se propôs entregar por qualquer forma, solicitando o deferimento do prazo ou o pagamento em prestações como tantas vezes é solicitado. Nada.
Veio o Fiduciário argumentar, em abono da insolvente (o que nem disso a própria se procurou prevalecer) que entretanto tem vindo a ser cumprida a obrigação em dívida perante a “C…” e que, deduzidos do valor do rendimento disponível, as custas e a remuneração do Fiduciário, o valor a ratear pelos credores seria diminuto, não advindo por isso da falta de entrega prejuízo para estes.
Importando pressupor que os pagamentos à “C…” não têm vindo a ser feitos pela insolvente, sob pena de grave violação do disposto no art. 239.º, n.º4, al. e), do CIRE, cumpre avaliar a argumentação do Fiduciário.
As custas e despesas com o incidente – concretamente a remuneração e despesas do fiduciário – saem precípuas do rendimento disponível, pelo que se não for entregue aquele rendimento, o primeiro prejudicado é o Estado que é sempre credor.
A argumentação do Fiduciário esquece isto por completo. Então os cerca de 5.000,00€ de crédito do Estado são irrelevantes? Não representam um prejuízo grave para um credor?
Quanto ao remanescente de cerca de 5.000,00€ também não pode deixar de se considerar uma quantia substancial, ainda que no rateio caiba pouco a dois desses credores.
Naturalmente que a falta de entrega de 10.094,55€ prejudicou os credores.
Desta forma, importa concluir pela actuação dolosa da insolvente e que importou o prejuízo para a satisfação dos credores.
O exposto impõe que se conclua pela recusa da exoneração.
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Pelo exposto, recuso à insolvente o benefício da exoneração do passivo restante.
Custas a cargo da requerente (insolvente), sem prejuízo do disposto no art. 248.º, n.º1 e 2 do CIRE.
Notifique e publicite.
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A Insolvente, notificada de tal decisão, apresentou recurso, pugnando pela sua revogação, formulando as seguintes
CONCLUSÕES:
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Não foram apresentadas contra - alegações.
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Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto.
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II. FUNDAMENTOS
- OBJETO DO RECURSO
Apontemos as questões objeto do presente recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações da recorrente, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Assim, após enquadramento jurídico do incidente de exoneração do passivo restante, a questão a decidir traduz-se em saber:
- se o tribunal a quo incorreu em erro de direito ao recusar a conceção à insolvente da exoneração do passivo restante.
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II.A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Os factos relevantes para a decisão constam já do antecedente relatório, sendo, ainda, de atentar nos seguintes factos provados, considerados pelo Tribunal a quo:
1. No despacho de deferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante foi fixado o rendimento indisponível no valor do Salário Mínimo Nacional.
2. Entre Outubro de 2013 e Setembro de 2018, a insolvente recebeu sempre um rendimento superior ao Salário Mínimo Nacional.
3. Em valores ascendem a 10.094,55€.
4. A insolvente não apresentou qualquer requerimento nos autos após Outubro de 2013.
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II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
- Enquadramento jurídico de incidente de exoneração do passivo restante -
Entre as medidas especiais de proteção do devedor pessoa singular instituídas pelo Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, doravante designado, abreviadamente, CIRE, conta-se, nos arts. 235º e segs, o instituto da exoneração do passivo restante, embora o objetivo fundamental do processo de insolvência continue a ser a satisfação, o mais eficiente possível, dos direitos dos credores.
Estatui o artigo 235.º, do CIRE, sob a epígrafe “Princípio geral” que “Se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições do presente capítulo”.
Trata-se de um preceito “inovador que se inspira nas disposições da Insolvenzordnung relativas à libertação das obrigações (§§ 286 e ss) e à insolvência dos consumidores (§§ 304 e seg)”[1]. Incluiu-se “a possibilidade de conceder aos devedores pessoas singulares a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não sejam integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste. Visa-se com esta medida, algo afastada da filosofia geral do Código, conceder ao devedor um fresh start, permitindo-lhe recomeçar a sua actividade, sem o peso da insolvência anterior”[2].
O CIRE introduziu esta nova medida de proteção do devedor, que seja pessoa singular, a qual permite que, na situação deste não satisfazer integralmente os créditos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerra­mento, venha a ser exonerado do pagamento desses mesmos créditos, caso satisfaça as condições fixadas no incidente de exoneração do passivo restante.
Esta situação não traduz “grande prejuízo para os credores já que, apesar da exoneração do passivo restante implicar a extinção dos seus créditos, a verdade é que os mesmos já representavam um valor insignificante, dada a situação económica do devedor. Na verdade, o processo de exoneração do passivo restante implica já uma dupla oportunidade de os credores obterem a satisfação dos créditos, uma vez que, após o encerramento do processo de insolvência, e portanto esgotada a função do administrador de insolvência com a repartição do saldo do património actual pelos credores, ainda se efetua a cessão do rendimento disponível do devedor a um fiduciário durante cinco anos, com a função de o repartir pelos credores”[3].
Este incidente, que tem dois momentos fundamentais: o despacho inicial e o despacho de exoneração, inspirou-se, no chamado modelo de fresh start, nos termos do qual o devedor, declarado insolvente, pessoa singular tem a possibilidade de se libertar do passivo e recomeçar a sua vida económica de novo, o que é útil e válido não só para o mesmo mas para a sociedade em geral.
A decisão liminar de exoneração do passivo restante - onde é aferido da existência de condições mínimas para aceitar o pedido de exoneração do passivo restante - confere ao devedor a oportunidade de se submeter a um período probatório, no final do qual pode advir para si um desfecho favorável, dependente da sua atuação durante o mesmo.
Mas, para se ter acesso a tal benefício e ser deferido o pedido, a lei impõe requisitos e procedimentos, fixados nos artigos 236.º a 238.º.
Como se refere no Acórdão da Relação de Lisboa de 12-12-2013, Processo 1367/13.6TJLSB-C.L1-6 o despacho liminar embora verdadeiramente o não seja (já que pode obrigar à produção de prova e impõe um juízo de mérito sobre o preenchimento dos requisitos – cfr. Assunção Cristas, “Exoneração do Devedor pelo Passivo Restante” – Themis/Revista de Direito/Setembro de 2005, página 169) não pode confundir-se com o despacho a que alude o art. 244º do diploma referido – decisão final da exoneração – em que o tribunal decide sobre a concessão ou não da exoneração do passivo. Só a partir daí, e verificado o condicionalismo legalmente imposto, o devedor fica “limpo” do passivo restante. Até lá, durante o denominado período da cessão, o devedor fica obrigado a uma série de deveres, tendencialmente destinados a recolher para a massa insolvente todos os rendimentos disponíveis (com excepção, basicamente, dos destinados a assegurar o “sustento minimamente digno” do devedor e da sua família, bem como o exercício da actividade profissional do mesmo - art. 239º), assim se harmonizando a moderna tendência de “reabilitação” dos insolventes “primários” (sem práticas criminais anteriores e sem já antes terem gozado de idêntico benefício) com o primordial interesse dos credores em assegurar a liquidação do património do insolvente e a repartição do produto obtido (art. 1º).
Daí que, em sede de despacho “liminar” do pedido de exoneração do passivo restante, excetuado o circunstancialismo atinente ao prazo, se não justifique um grande rigor probatório relativamente aos requisitos legalmente enunciados, geradores desde logo do indeferimento liminar daquele.(…) explicada fica, a nosso ver, a razão pela qual o legislador entendeu pôr a cargo do devedor/requerente apenas o ónus da declaração/alegação de que preenche os requisitos e se dispõe a observar as condições enunciadas nos art. 237º e seguintes do CIRE (cfr. art. 236º nº3 desse diploma)…
É isso, claramente, o que resulta do ponto 45 do Preâmbulo do DL 53/2004, de 18 de Março, que aprovou o atual Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) onde se deixou consignado o seguinte:
“O Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da “exoneração do passivo restante[4].
A pedra angular nesta matéria é poder ser concedida ao devedor, pessoa singular, a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste. Porém, a obtenção de tal benefício exige que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de cinco anos (designado período da cessão) adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele compromete-se, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível (como definido na lei) a um fiduciário (entidade designada pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência), que afetará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que, então, liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento.
O que justifica a conceção deste benefício e a consequente reintegração na vida económica é a ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e a sua conduta reta, pautada pelos ditames da boa fé.
Nesta conformidade, o CIRE estabelece fundamentos que justificam a não concessão liminar da possibilidade de exoneração do passivo restante, os quais se traduzem em comportamentos do devedor, relativos à sua situação de insolvência e que para ela contribuí­ram ou a agravaram, os quais se destinam a determinar, ab initio, os casos em que o devedor não merece que lhe seja dada a oportunidade de se submeter a um período probatório de que, no final, poderia resultar um desfecho favorável a si. É no despacho inicial que se tem de analisar, através da ponde­ração dos dados objetivos tipificados, se a conduta do devedor tem a possibilidade de ser merece­dora de uma nova oportunidade.
Assim, as situações consagradas no nº 1, do artigo 238º, do CIRE, a verificarem-se no caso concreto, justificam o indefe­rimento liminar da pretensão do insolvente de exoneração do seu passivo restante.
Carvalho Fernandes e João Labareda[5], referem que as alíneas do nº1, do art. 238.º, embora pela negativa, enumeram os requisitos a que deve sujeitar-se a verificação das condições de exoneração, sendo o pedido de exoneração é liminarmente indeferido se:
a) For apresentado fora do prazo;
b) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver fornecido por escrito, nos três anos anteriores à data do início do processo de insolvência, informações falsas ou incompletas sobre as suas circunstâncias económicas com vista à obtenção de crédito ou de subsídios de instituições públicas ou a evitar pagamentos a instituições dessa natureza;
c) O devedor tiver já beneficiado da exoneração do passivo restante nos 10 anos anteriores à data do início do processo de insolvência;
d) O devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica;
e) Constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do art. 186.º;
f) O devedor tiver sido condenado por sentença transitada em julgado por algum dos crimes previsto e punidos nos artigos 227.º a 229.º do Código Penal nos 10 anos anteriores à data da entrada em juízo do pedido de declaração de insolvência ou posteriormente a esta data;
g) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do presente Código, no decurso do processo de insolvência.
Como se refere no Acórdão da Relação de Coimbra de 7/3/2017, Processo 891/16.4T8VIS.C1[6] A excepcionalidade desse instituto exige que o recurso ao mesmo só possa ser reconhecido ao devedor que tenha pautado a sua conduta por regras de transparência e de boa-fé, no tocante às suas concretas condições económicas e padrão de vida adoptado, à ponderação e protecção dos interesses dos credores, e ao cumprimento dos deveres para ele emergentes do regime jurídico da insolvência, em contrapartida do que se lhe concede aquele benefício excepcional. (…) Estando em causa uma pessoa singular não titular de uma empresa, logo não sujeita ao dever de apresentação à insolvência (art. 18º/2 do CIRE), o pedido de exoneração do passivo restante só pode ser objecto de indeferimento liminar com fundamento no art. 238º/1/d do CIRE se estiveram verificados, cumulativamente, os seguintes requisitos: a) ter o devedor deixado de se apresentar à insolvência nos seis meses seguintes à verificação da insolvência; b) ter causado, com o atraso, prejuízo aos credores; c) sabendo ou não podendo ignorar, sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica, sendo uniforme a jurisprudência no sentido de que são os factos impeditivos da admissão liminar do pedido de exoneração do passivo restante constantes da al. d), do referido preceito, de verificação cumulativa (cfr. designadamente o Acórdão da Relação de Lisboa de 12-12-2013, Processo 1367/13.6TJLSB-C.L1-6, in dgsi.net).
O objetivo final é como refere Catarina Serra[7], a extinção das dívidas e a libertação do devedor para que, aprendida a lição, este não fique inibido de começar de novo e de, eventualmente, retomar o exercício da sua atividade económica. A obtenção de tal benefício conduz a que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de cinco anos (designado período de cessão) ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível a um fiduciário que afetará os montantes recebidos ao pagamento dos credores., integrando o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão dos previstos nas als. a) e b) do n.º 3, do artigo 239.º, impondo simultaneamente o n.º 4 deste mesmo artigo ao devedor uma série de obrigações acessórias decorrentes da cessão do rendimento disponível, tendo em vista assegurar a efetiva prossecução dos fins a que é dirigida.
No termo desse período e tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre si impendiam, é proferido despacho de exoneração, que o liberta das dívidas ainda pendentes de pagamento. “A exoneração do passivo restante aparece como subsidiária ao plano de insolvência e tem como contrapartida a cessão do rendimento disponível do devedor, nos termos do art. 239º”[8].
Dispõe o nº1, do artigo 239.º, do CIRE, que “Não havendo motivo para indeferimento liminar (do pedido de exoneração do passivo restante), é proferido o despacho inicial na assembleia de apreciação do relatório ou nos 10 dias subsequentes esta ou ao decurso dos prazos previstos no nº4, do art. 236º”. E o n.º 2, do referido artigo, consagra que “O despacho inicial determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário, escolhida pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência, nos termos e para os efeitos do artigo seguinte”.
“A previsão da cessão do rendimento disponível constitui um ónus imposto ao devedor como contrapartida do facto de ser exonerado do passivo que possuía” sendo “uma verdadeira cessão de créditos futuros, veja-se Assunção Cristas, Themis, edição especial (2005), pp 174 e ss. (176) e Carvalho Fernandes/João Labareda, Código da Insolvência, sub art. 239º, nº 6, p. 907(…) tendemos a seguir hoje a posição de que se trata de uma efectiva cessão de créditos futuros”[9], sendo que a parte do rendimento que o devedor venha a auferir que se considera cedida ao fiduciário (“rendimento disponível” para satisfação dos credores) é integrada, nos termos do nº3, do art. 239º, do CIRE, por “todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exlusão dos referidos nas alíneas do mencionado preceito”.
Na verdade, como se decidiu no Ac. da Relação de Guimarães de 30/5/2018, Proc. 3578/11.0TBGMR (relator: José Alberto Moreira Dias, em que a ora relatora foi adjunta) “Precisamente porque o instituto em causa visa salvaguardar os interesses do devedor insolvente e, bem assim dos seus credores, é manifesto que o mesmo não consubstancia “um brinde ao incumpridor”[10], pelo que esse perdão não pode ser concedido ao insolvente, pessoa singular, sem critérios mínimos de razoabilidade, sob pena de se banalizar o próprio instituto ao qual todos recorrem sem qualquer sentido de responsabilidade e sacrifício, pois que não foi manifesto propósito do legislador que a exoneração tivesse como escopo a desresponsabilização do devedor, sequer que o processo judicial possa ser uma porta aberta para tal desiderato. (negrito nosso).
Deste modo, para que a exoneração do passivo restante seja concedida é necessário que antes do processo de insolvência, durante este e, bem assim até ao termo do ano subsequente ao trânsito em julgado da decisão que lhe confira a exoneração (art. 246º do CIRE) o devedor tem de justificar ser merecedor de uma segunda oportunidade, que lhe permita “começar de novo”. “Neste âmbito, quem antes ou depois do procedimento não procura um trabalho remunerado, tem ou revela intenção de nada pagar, não pretende nem demonstra fazer qualquer esforço na alteração do seu estilo de vida tem que ver negada a exoneração do passivo”[11]”[12].
Aí bem se analisa que “pondera Assunção Cristas, “…para ser proferido despacho inicial é necessário que o devedor preencha determinados requisitos e desde logo que tenha tido um comportamento anterior ou atual pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa-fé no que respeita à sua situação económica e aos deveres associados ao processo de insolvência, aferindo-se da sua boa conduta, dando-se aqui especial cuidado na apreciação, apertando-a, com ponderação de dados objetivos passíveis de revelarem se a pessoa se afigura ou não merecedores de uma nova oportunidade e apta para observar a conduta que lhe será imposta”[13].
O juiz aceita ou rejeita este pedido, com base num juízo de prognose, avaliando as possibilidades que o devedor tem de cumprir as exigências legais deste procedimento, devendo rejeitá-lo se criar a convicção de que o insolvente não é merecedor da exoneração[14].
O despacho inicial, tem, consequente, como único objetivo, a aferição da existência de condições mínimas, a ser emitido segundo um juízo de prognose e prova sumária, para o pedido de exoneração do passivo restante, aferição liminar e sumária essa que se destina a decidir se ao devedor deve ser dada uma oportunidade de submeter a uma espécie de período de prova (período de cessão) que, uma vez terminado, pode resultar ou não na exoneração do passivo restante e, no caso positivo, fixar as obrigações a que o devedor, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência fica sujeito (arts. 239º, 244º e 245º do CIRE), de onde resulta que o não indeferimento liminar do pedido não significa que essa exoneração lhe venha efetivamente a ser concedida, mas apenas que há condições para proferir o despacho inicial em que se determina o início do prazo de cinco anos – período de cessão -, durante o qual o rendimento disponível do devedor se considera cedido a uma entidade, denominado fiduciário, e fixa os comportamentos a que o devedor fica adstrito durante esse prazo, e só findo este prazo é que o juiz decide, em definitivo, sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante (arts. 239º, n.ºs 2, 3 e 4 e 244º, n.º 1 do CIRE)[15].
O despacho inicial “só promete conceder a exoneração efetiva se o devedor, ao longo de cinco anos, observar certo comportamento que lhe é imposto. A concessão efetiva da exoneração depende, pois, da verificação dessas condições (…) e é decidida no despacho regulado no art. 244º, se, entretanto, não tiver havido cessão antecipada do procedimento de exoneração, nos termos do art. 243º”[16].
Deste modo, embora a inexistência de indeferimento liminar do requerimento da exoneração do passivo restante constitua pressuposto para a sua concessão (art. 237º, n.º 1, al. a) do CIRE), trata-se de uma mera promessa que esse benefício será concedido ao devedor, pessoa singular, insolvente, caso aquele cumpra, ao longo dos cinco anos, as obrigações que lhe são impostas (al. b), do n.º 1 daquele art. 237º), pelo que condição para que lhe seja concedido esse perdão é que aquele, ao longo desse período de cessão de cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência, cumpra com as obrigações que lhe foram impostas como condição para a concessão desse perdão de dívida.
Resulta do que se vem dizendo que o momento adequado para avaliar, concreta e definitivamente, se o insolvente é ou não merecedor do benefício excecional em causa, é o momento da prolação da decisão final a que alude o art. 244º do CIRE, caso anteriormente, não tenha havido lugar a cessão antecipada, em que decorridos os cinco anos do período de cessão, incumbe ao juiz decidir, no prazo de dez dias, se o insolvente cumpriu com as obrigações que lhe foram impostas e, por conseguinte, se é ou não merecedor desse perdão, pois só então se terão os elementos suficientes para avaliar da sua boa-fé, diligência e propósitos de vida futura[17].
Durante o prazo de cessão de cinco anos, como dito, o devedor fica obrigado a entregar o seu rendimento disponível ao fiduciário (n.ºs 2 e 3 do art. 239º, do CIRE), sendo que para estes efeitos, não está aqui “apenas perante rendimentos em sentido técnico, sendo antes abrangidos quaisquer acréscimos patrimoniais. Assim, se o insolvente receber uma herança durante o período de cessão, o património hereditário que lhe compete deve igualmente considerar-se cedido ao fiduciário. A tal não obsta o art. 2028º, n.º 2, dado que a cessão do rendimento disponível constitui uma hipótese legalmente prevista”[18].
No entanto, durante o período de cessão o devedor insolvente não se encontra apenas obrigação a ceder ao fiduciário o seu rendimento disponível, mas encontra-se sujeito a um conjunto de deveres acessórios de conduta fixados no n.º 4 do enunciado art. 239º do CIRE, destinados a assegurar a efetiva concretização dessa cessão.
Com efeito, conforme ponderam Carvalhos Fernandes e João Labareda “o n.º 4 impõe ao devedor uma série de obrigações acessórias decorrentes da cessão do rendimento disponível, às quais preside, genericamente, a preocupação de assegurar a efetiva prossecução dos fins a que é dirigida. Neste plano, e para esses fins, importa, desde logo, que o tribunal e o fiduciário tenham conhecimento dos rendimentos efetivamente auferidos pelo devedor. Assim, não devendo este ocultá-los ou dissimula-los, está ainda obrigado a prestar todas as informações que aquelas entidades lhe solicitem, não só quanto aos rendimentos, mas também quanto ao seu património (als. a) e d)). Na generalidade das pessoas, o trabalho é a fonte normal e mais significativa dos seus rendimentos. Daí, a preocupação que o n.º 4 revela quanto a este ponto. Para além de impor ao devedor a obrigação de exercer uma atividade remunerada, proibindo-lhe o seu abandono injustificado, determina que, ocorrendo uma mudança de empresa onde exerce a sua atividade, deve informar o tribunal e o fiduciário, no prazo de dez dias. Mas para além disso, se ocorrer uma situação de desemprego, o devedor está obrigado (als. b) e d)): a) a procurar diligentemente novo emprego, informando, no prazo de dez dias, o fiduciário e o tribunal do que para tanto tenha diligenciado, se lhe for solicitado; b) não recusar, salvo se ocorrer fundamento razoável, qualquer emprego para que tenha aptidão. No sentido de permitir ao fiduciário o desempenho da função que primordialmente lhe compete – pagamento à custa dos rendimentos cedidos -, a al. c) do n.º 4 impõe ao devedor a obrigação de «entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão»”[19].
Como já salientado, decorrido o prazo de cessão de cinco anos, caso não tenha havido lugar a cessação antecipada, incumbe então ao juiz, proferir despacho, decidindo pela concessão, ou não, da exoneração do passivo restante, após ter ouvido o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência (n.º 1 do art. 244º do CIRE).
A recusa da concessão da exoneração apenas pode ser sustentada se houver fundamento para a cessação antecipada (art. 244º, n.º 2 do CIRE), não sendo relevante a oposição ou não dos credores ou do fiduciário à concessão desse beneficio, posto que o juiz não dispõe de um poder discricionário de conceder, ou não, a exoneração, estando obrigado a concede-la nos casos em que não ocorra nenhum motivo que possa justificar a cessação antecipada e recusá-la no caso contrário[20].
Os casos em que é admitida a cessação antecipada e em que, consequentemente, se pode fundar a recusa do juiz em conceder a exoneração, encontram-se elencados no n.º 1 do art. 243º do CIRE, importando, no que ao caso sobre que versam os autos respeita, chamar à colação a al. a), do n.º 1 desse art. 243º, uma vez que foi com base nele que a decisão recorrida recusou a exoneração do passivo restante.
Preceitua este normativo que “antes ainda de terminado o período da cessão, deve o juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, quando o devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado algumas das obrigações que lhe são impostas pelo art. 239º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
Conforme resulta limpidamente deste preceito para que o tribunal possa recusar a exoneração do passivo restante decorrido que seja o período de cessão, é necessário que se encontrem preenchidos os seguintes pressupostos legais cumulativos: a) o devedor tenha violado, durante o período de cessão, a obrigação principal de entrega ao fiduciário do rendimento disponível ou as obrigações acessórias já enunciadas a que alude o n.º 4 do art. 239º, destinadas a assegurar a efetiva entrega desse rendimento disponível; b) que o devedor tenha incorrido na violação dessas obrigações a título doloso (em qualquer uma das suas modalidades – dolo direto, necessário ou eventual)[21] ou negligência grave; e c) que em consequência direta e necessária dessa sua conduta resulte prejuízo direto para a satisfação dos créditos sobre a insolvência”[22].
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– Do erro de direito na recusa da conceção à insolvente exoneração do passivo restante
Recusou o tribunal a quo a exoneração do passivo restante à apelante por a mesma ter incumprido a obrigação de entrega do rendimento disponível à fiduciária, com dolo e, com isso, ter causado prejuízo aos credores.
Reconhecendo a apelante que devia ter tido outra conduta, faz apelo às particulares circunstâncias da sua vida (viúva), idade (74 anos), escolaridade e meio social em que se insere e dificuldades, que lhe não permitiram libertar valores para entregar à Sr.ª Fiduciária, sem embargo de a manter, sempre, ao corrente da situação vivida, como dos autos resulta, e insurge-se contra a decisão recorrida sustentando que a mera omissão de entrega de valores reduzidos, não é suficiente, por si só, desacompanhada dos requisitos da ação culposa e do prejuízo para os credores, para sustentar a recusa da concessão do benefício.
Ora, in casu, adianta-se já, nunca o benefício poderia ser concedido.
Com efeito, tendo, no despacho de deferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, sido fixado o rendimento indisponível no valor do Salário Mínimo Nacional e tendo, entre Outubro de 2013 e Setembro de 2018, a insolvente recebido, sempre, um rendimento superior ao Salário Mínimo Nacional, ascendendo os valores a entregar a 10.094,55€, bem sabendo das obrigações impostas e a que estava adstrita, a insolvente nada entregou, não tendo, sequer, apresentado qualquer requerimento nos autos após Outubro de 2013, gastando o referido montante nas suas necessidades, como ela própria afirma.
A devedora, ora apelante, estava ciente de que até ao termo do período de cessão, todos os rendimentos que viesse a receber e que excedessem o salário mínimo nacional, teriam de ser, por ela, entregues, mal recebidos, à senhora fiduciária, para esta dar pagamento aos credores da insolvência.
E constitui, na verdade, fundamento para a recusa da exoneração do passivo restante, para além da omissão de informação ao tribunal e ao fiduciário sobre os rendimentos e património na forma e no prazo em que tal lhe seja pedido, a falta de entrega imediata ao fiduciário da parte dos rendimentos objecto de cessão (art. 239.º, n.º4, al. a) e c), 243.º, n.º1, al. a), e 244.º, n.º2, do CIRE).
Contrariamente ao sustentado pela apelante, conhecendo a mesma a obrigação que sobre si impendia, de entregar o rendimento disponível à senhora fiduciária, e não o fazendo, ao assim agir, atuou com, pelo menos, negligência grave (objetiva e subjetiva falta grave de observação do dever), melhor será, mesmo, dizer, atuou com dolo, pois que se lhe impunha que o entregasse, bem sabia dever fazê-lo e disso era capaz e quis não o fazer, não tendo efetuado as entregas por ter resolvido usar, o que se lhe impunha que entregasse, para o que bem entendeu.
Ora, a falta de entrega, aliada ao conhecimento que tinha da obrigação imposta - de proceder às entregas determinadas - impõe que se conclua pela violação dolosa, e, se não dolosamente, seguramente, com negligência grave foi cometida, pois que bem conhecia a obrigação que tinha e decidiu não a observar, utilizando o que se destinava aos credores. Tal incumprimento, doloso, da referida obrigação de entrega é, pois, justificativo da recusa.
E, na verdade, como bem refere o Tribunal a quo, independentemente de prova dos factos alegados relativos às necessidades da insolvente, o certo é que, quanto aos mesmos, nem alegada vem a superveniência relativamente ao despacho liminar, e, mais do que isso, nem, em momento algum ao longo dos cinco anos, se apresentou a devedora a juízo a sustentar uma alteração da situação financeira e a requerer a alteração do decidido quanto ao rendimento disponível, pelo que só resta, efetivamente, a constatação de que incumpriu, reiterada e, mesmo, até, deliberadamente, a obrigação de entrega, ao longo de sessenta meses, descurando, completamente, o processo e as obrigações que nele lhe foram impostas e, mesmo depois de confrontada com o incumprimento, não se propôs, sequer, entregar o que quer que fosse.
Foi, na verdade, a Fiduciária que se apresentou a argumentar, embora com argumentos nunca poderiam colher, que tem vindo a ser cumprida a obrigação em dívida perante a “C….” e que, deduzidos do valor do rendimento disponível, as custas e a remuneração do Fiduciário, o valor a ratear pelos credores seria diminuto, não advindo, por isso, da falta de entrega prejuízo para estes.
É evidente que a falta de entrega de 10.094,55prejudicou os credores, sendo que aquele valor se não mostra insignificante, sequer reduzido. E, na verdade, as custas e despesas com o incidente – concretamente a remuneração e despesas do fiduciário – saem precípuas do rendimento disponível, pelo que a não entrega daquele rendimento causa, desde logo, prejuízo ao Estado, que credor é, como bem fundamenta o Tribunal a quo.
E resulta, sem qualquer dúvida, que a apelante incumpriu com dolo, pelo menos, negligência grave, a obrigação de entrega a que alude o n.º 2, do art. 239º, do CIRE, prejudicando, em consequência direta e necessária desse seu comportamento ilícito a satisfação do direito dos credores, privando-os de 10.094,55€, que devia ter entregue à Senhora fiduciária, para que pagasse àqueles.
Bem conclui o Tribunal a quo pela atuação dolosa da insolvente (sendo que a gravemente negligente, que nunca se poderia considerar não verificada, bastava) e dessa atuação resultou prejuízo para a satisfação do direito dos credores, impondo-se, por isso, a recusa à insolvente do benefício da exoneração do passivo restante, que se revelou dele não ser merecedora.
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Improcedem, por conseguinte, as conclusões da apelação, não ocorrendo violação de qualquer normativo invocado pela apelante, devendo, por isso, a decisão recorrida ser mantida.
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III. DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, os Juízes desta secção cível do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmam, integralmente, a decisão recorrida.
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Custas pela apelante – art. 527º, nº1, do CPC.
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Porto, 10 de fevereiro de 2020
Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores
Eugénia Cunha
Fernanda Almeida
António Eleutério
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[1] Luís Manuel Teles de Meneses Leitão, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 9ª Edição, 2017, pág 285
[2] Ibidem, pág 286
[3] Luís Manuel Teles de Meneses Leitão, 8ª Edição, 2018, Almedina, pág 364
[4] Acórdão da Relação de Lisboa de 12-12-2013, Processo 1367/13.6TJLSB-C.L1-6, in dgsi.net.
[5] C.I.R.E Anotado, vol. II, pág. 190.
[6] In dgsi.net
[7] In O Novo Regime Jurídico da Insolvência, pág. 73.
[8] Luís Manuel Teles de Meneses Leitão, Idem, pág 287
[9] Ibidem, pág 290
[10] Alexandre de Soveral, “Um Curso de Direito de Insolvência”, 2016, 2ª ed., pág. 584.
[11] Luís M. Martins, ob. cit. pág. 535.
No mesmo sentido, vide Ac. RP. de 06/04/2017, Proc. 1288/12.0TJPRT.P1, in base de dados da DGSI.
[12] Ac. RG de 30/5/2018, Proc. nº 3578/11.0TBGMR (Relator: José Alberto Moreira Dias)
[13] Assunção Cristas, “Novo Direito da Insolvência”, in Revista da Faculdade de Direito da UNL, 2005, ed. especial, pág. 264.
[14] Ac. RP. de 09/01/2006, Proc. 0556158, in base de dados da DGSI.
[15] Ac. RC. de 03/06/2014, Proc. 747/11.6TBTNV-J.C1, in base de dados da DGSI.
[16] Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação da Empresa Anotado”, 3ª ed. Quid Juris, pág. 853.
[17] Ac. RL. de 12/12/2013, Proc. 1367/13.6TJLSB-C.L1-&, in base de dados da DGSI.
[18] Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, “Direito da Insolvência”, 3ª ed., Almedina, 2011, pág. 327.
[19] Carvalho Fernandes e João Labareda, in ob. cit., pág. 861.
[20] Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., pág. 869.
Luis M. Martins, ob. cit., pág. 559.
[21] Ac. RC. de 03/06/2014, Poc. 747/11.6TBTNV-J.C1, in base de dados da DGSI.
[22] Citado Ac. RG de 30/5/2018, Proc. nº 3578/11.0TBGMR (Relator: José Alberto Moreira Dias)