Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
202/13.0GAVLG-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO PEDRO NUNES MALDONADO
Descritores: REMESSA PARA OS MEIOS COMUNS
PEDIDO CIVIL
PERÍCIA
RETARDAMENTO DE PROCESSO
Nº do Documento: RP20180131202/13.0GAVLG-A.P1
Data do Acordão: 01/31/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 746, FLS.194-197)
Área Temática: .
Sumário: Se por força das exigências probatórias emergentes do pedido civil deduzido no processo penal este é objecto de retardamento que atinge o limite de intolerabilidade por comprometimento das suas finalidades próprias (descoberta da verdade material através da sua representação histórica e o restabelecimento da paz jurídica do arguido e da comunidade) justifica-se remeter as partes para os meios comuns.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº202/13.0GAVLC-A.P1

Acórdão deliberado em conferência na 2º secção criminal do Tribunal da Relação do Porto
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I. B… veio interpor recurso da decisão proferida no processo comum singular nº202/13.0GAVLC, no Juízo de competência genérica de Vale de Cambra, Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, que remeteu as partes para os tribunais civis em relação às questões de natureza estritamente civil.
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I.1. Decisão recorrida (que se transcreve parcialmente, nos segmentos com interesse para a apreciação dos recursos).
O Digno magistrado do MP promove a remessa das partes civis para os tribunais civis.
Devidamente notificados, as partes pronunciaram-se nos doutos termos que antecedem, opondo-se a essa mesma remessa.
Apreciando e decidindo.
Como aponta a douta promoção, o despacho a que alude o artigo 311.°, do Código de Processo Penal, foi proferido no dia 15/02/2016 (cf. fls. 486-487), tendo sido designado o dia 17/05/2016 para realização da audiência de julgamento.
De facto, compulsados os autos, a única questão que obsta o início do julgamento criminal está relacionada como o pedido de indemnização civil, a respetiva perícia realizada nesse âmbito e as reclamações apresentadas.
Assim sendo, ao abrigo do disposto no n° 3 do artigo 82.° do Código de Processo Penal, remeto as partes para os tribunais civis na parte respeitante às questões de natureza estritamente civil.
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I.2. Recurso do demandante civil (conclusões que se sintetizam).
2º A decisão recorrida teve por pressuposto o facto da única questão que obsta ao início do julgamento criminal estar relacionada com o pedido de indemnização civil, a respectiva perícia realizada e as reclamações apresentadas.
4º O Recorrente é Assistente e Demandante Civil nos presentes autos, tendo, aquando da dedução do pedido de indemnização civil e para prova de danos ali alegados, requerido a realização de prova pericial, a qual foi deferida.
5º Por requerimento de 29-01-2017 o Assistente/Demandante Cível apresentou Reclamação contra o Relatório de Perícia de Avaliação de Dano Corporal em Direito Civil de fls. 735 a 742, pelas razões com que então detalhadamente fundamentou.
6º Na sequência de tal Reclamação, foi entendido pelo Tribunal, em despacho de 18-04- 2017, que os fundamentos apresentados pelo Assistente "merecem ser atendidos", pelo que foi ordenada a notificação aos senhores peritos do teor do requerimento do Assistente de fls. 755 e ss. e, para, nesses termos, prestarem os esclarecimentos suscitados, em 10 dias.
7º Por notificação expedida a 29-05-2017, foi o Requerente notificado dos esclarecimentos dos Srs. Peritos, datada de 28-04-2017.
8º Perante o teor destes, o Assistente/Demandante Cível, por requerimento de 12-06-2017, apresentou Reclamação perante tal suposto novo relatório, contendo os pretensos esclarecimentos, tendo, de forma criteriosa, objectiva e fundamentada, justificado das razões de tal reiterada Reclamação, bem como do pedido para a realização da 2ª perícia, nos termos do disposto no artigo 487°, n.° 1 e 2 e 488°, ambos do CPC e do artigo 4º do CPP.
9º Perante este e em suma deambular e tramitação processual o Ministério Público, por promoção de 20-06-2017, alegou que "... tendo decorrido mais de um ano sobre a data inicialmente indicada para a realização da audiência de julgamento, sem que os referidos intervenientes processuais concordem com o inicio do julgamento (reclamando, sucessivamente, dos relatórios e dos esclarecimentos prestados nos autos), e tornando agora a apresentar nova reclamação, importa concluir que as questões suscitadas pelo PIC estão a gerar incidentes que já retardaram excessivamente o julgamento da matéria criminal..."
10° Na sequência de tal promoção e uma vez observado e cumprido o contraditório, foi proferido o despacho de que ora se recorre.
11° Acontece que, os "atrasos" verificados e que segundo o MP terão, no passado, já retardado excessivamente o julgamento, não emergem de incidentes que pela sua natureza e complexidade tenham ou possam vir a levar ao retardamento intolerável do processo.
12° Não se afigura que um novo pedido de esclarecimentos aos senhores peritos ou de uma segunda perícia médico-legal, aliás sem que sobre tal tenha havido qualquer decisão, possa permitir a conclusão pelo retardar intoleravelmente do julgamento penal.
13° De qualquer modo, caso fosse do entendimento do Tribunal recorrido que as diligências requeridas, em sede pericial, seriam de deferir e levar a cabo, as mesmas apresentam inequívoca
relevância não só para o pedido cível, como para a procedência da acusação, em face do tipo de crime que é imputado ao arguido. Os resultados da perícia são também determinantes para apreciar a ilicitude dos actos praticados pelo arguido, o grau da sua culpa, a medida da pena e o montante da indemnização a atribuir pelas lesões causadas ao ofendido.
14° O comportamento do Arguido que consubstancia responsabilidade penal é também gerador de responsabilidade civil, pelo que a prova produzida e a produzir serve ambos os propósitos, pelo que a remessa para os meios comuns, nos termos em que foi ordenada, implicará uma duplicação inadmissível de diligências probatórias, atentando contra o princípio da economia processual.
15° A desvantagem que a lei quis evitar ao excepcionar a remessa para os meios comuns - o retardar do processo penal - já alegadamente ocorreu, donde nada justifica o momento em que foi feita a remessa para os tribunais civis. Pelo contrário, trará um prejuízo acrescido para as partes, que a somar ao retardamento do processo acrescerão as desvantagens da dedução do pedido em separado, com o desperdício de meios e custos e o risco de julgamentos contraditórios.
16° Os fundamentos do despacho recorrido revelam-se insuficientes, superficiais e não consubstanciados em elementos concludentes para a decisão.
17° A decisão recorrida não justificou, cabalmente, o facto de, perante um mero requerimento do Demandante Civil apresentado a 12-06-2017 para a prestação de esclarecimentos por parte dos peritos e realização de 2ª perícia e sem decisão sobre o seu conteúdo, ter concluído pela verificação de pressuposto ínsito no n° 3 do artigo 82° do CPP, ou seja, que as questões suscitadas pelo pedido de indemnização civil passaram a gerar, a partir de então, incidente que retardava intoleravelmente o processo penal.
18º No momento próprio, quando requerida a perícia, não foi ordenada a remessa para os meios comuns, por não terem sido previsíveis incidentes e os surgidos não são adequados a retardar intoleravelmente o julgamento penal.
19° O disposto no artigo 82°, n° 3 do CPP tem caracter de excepção, pelo que a sua aplicação impõe uma particular fundamentação, que inexiste na decisão recorrida.
20° Quando da prolação da decisão recorrida inexistiam quaisquer questões relativas à matéria cível susceptíveis de gerar incidentes que retardassem intoleravelmente o processo penal.
21° A decisão recorrida não interpretou, nem aplicou correctamente e, nessa medida, violou o disposto nos artigos 71°, 82°, n° 3, 124°, n° 2, 125° e 97°, n° 5, todos do CPP e os Princípio da Adesão e da Economia Processual.
I.3.Resposta do MºPº (conclusões que se transcrevem integralmente).
1. Nos termos do previsto no nº 3 do artigo 82º do CPP, como garantia do princípio da adesão, plasmado no artigo 71.- do mesmo CPP, o tribunal só pode remeter as partes para os tribunais civis quando as questões suscitadas pelo pedido de indemnização civil inviabilizarem uma decisão rigorosa ou forem suscetíveis de gerar incidentes que retardem intoleravelmente o processo penal.
2. Ou seja, é inegável que o legislador compreendeu que existem situações tais que justificarão o afastamento daquele princípio.
3. No caso em apreço, o Tribunal a quo fundamentou a sua decisão na suscetibilidade de o pedido de indemnização civil atrasar de forma intolerável o andamento do processo penal.
4. A audiência de julgamento já se encontrou agendada por cinco vezes, tendo de ser adiada em consequência de não se considerarem respondidos os quesitos formulados para a perícia médico-legal relativa ao pedido de indemnização civil.
5. O processo encontra-se, desde 31/03/2016, apenas a aguardar a realização da audiência de julgamento (relativamente a factos ocorridos em 31/05/2013) em resultado de incidentes relacionados com o pedido de indemnização civil.
6. Verifica-se que "a única questão que obsta o início do julgamento criminal está relacionada com o pedido de indemnização civil, a respetiva perícia realizada nesse âmbito e as reclamações apresentadas".
7. Quando o legislador, no artigo 82.° nº3, do CPP, prevê a possibilidade de reenvio das partes civis para os tribunais civis com fundamento na suscetibilidade de o pedido de indemnização civil gerar incidentes que retardem intoleravelmente o andamento do processo penal, não está a limitar esta possibilidade de reenvio às situações em que este atraso possa ser imputável a qualquer uma das partes, exigindo apenas que esse atraso esteja relacionado com as questões do pedido de indemnização civil - o que é, indubitavelmente, o caso em apreço.
8. Não foi o facto de o Recorrente ter solicitado esclarecimentos à perícia realizada, nem a realização de uma nova perícia, nem mesmo de uma segunda perícia, nem sequer "o retardamento da perícia por motivos de dificuldade de reunião dos peritos" que motivou o referido reenvio.
9. É verdade que, quando formulados os quesitos pelo Recorrente, as partes não foram desde logo remetidas para os tribunais cíveis, mas também é verdade que, posteriormente, as questões em causa vieram a revelar-se de uma complexidade superior àquela que inicialmente pode ser compreendida pelo Juiz e pelo Ministério Público, como aliás facilmente se conclui pela já demasiado longa sequência de respostas do INML e reclamações apresentadas pelo Recorrente: até à data e apenas desde o despacho que ordenou a resposta pericial aos quesitos formulados pelo Recorrente, o INML já juntou aos autos 4 (quatro) respostas (entre novos relatórios e esclarecimentos).
10. Não se pode também concordar que as questões que o Recorrente considera encontrarem-se ainda por responder sejam "determinantes para apreciar a ilicitude dos atos praticados pelo arguido, o grau da sua culpa, a medida da pena".
11. 0 despacho recorrido não padece de fundamentação insuficiente, pois, para além de precisar aquilo que considera um atraso intolerável, fundamenta o reenvio no facto de se verificar que "a única questão que obsta o início do julgamento criminal está relacionada como o pedido de indemnização civil, a respetiva perícia realizada nesse âmbito e as reclamações apresentadas", remetendo para a promoção do Ministério Público.
12. Pelo que fica dito, considera-se que bem andou o Tribunal a quo ao remeter a questão do pedido de indemnização civil para os tribunais cíveis.
I.4. Parecer do Ministério Público na Relação.
No sentido referido na primeira instância.
I.5. Resposta do recorrente ao parecer.
Dá por reproduzidos os argumentos recursivos.
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II. Objecto do recurso.
Verificação dos fundamentos do mecanismo de reenvio para os tribunais civis da apreciação do pedido de indemnização civil aderente ao processo penal.
O principio da adesão da acção civil à acção penal consagrado no artigo 71º do Código de Processo Penal determina que o pedido de indemnização civil que apresente como fonte da obrigação de indemnização a responsabilidade civil decorrente da prática de um crime deve ser deduzido no processo penal.
Esta regra assenta em três fundamentos de fácil compreensão.
O primeiro reside no princípio da economia processual: num único processo e pelo mesmo julgador se apreciará a responsabilidade criminal e civil do facto, único, gerador do dano (não dependendo a apreciação da segunda da procedência da primeira – artigo 377º, nº1, do Código de Processo Penal).
O segundo visa a uniformização de julgados: permite uma única apreciação da representação da realidade histórica submetida a julgamento.
O terceiro pode reconduzir-se à maior probabilidade de celeridade e eficácia do reconhecimento do direito de indemnização do lesado (por confronto ao ritualismo do processo civil – prazos, preclusões e ónus de alegação e de prova).
Note-se, porém, que a coexistência das duas acções (por força da identidade da realidade histórica apreciada) não tem virtualidade para provocar a fusão dos seus objectos (que se mantêm autónomos) nem para obstar (ou sequer questionar) as finalidades do processo penal (com particular destaque, dentro delas, a descoberta da verdade material e o restabelecimento da paz jurídica comunitária e do arguido) que exigem, como seu pressuposto essencial, que o tempo de duração do processo seja tolerável, razoável, suficiente para a sua necessária maturação e cognição. Dito de outra forma: o decurso do tempo dificulta a prova relativa à representação da verdade histórica do objecto do processo, mina a confiança da comunidade no seu próprio sistema de justiça e prolonga a submissão do arguido a um estatuto desgastante e estigmatizante.
Esta concepção (da razoabilidade do tempo do processo penal) determinou excepções à regra do principio da adesão.
Uma primeira foi consagrada no artigo 72º, nº1, alínea a), do Código de Processo Penal, que afastou a obrigatoriedade de adesão da acção civil, permitindo a sua dedução em separado, quando o processo penal não tiver conduzido à acusação dentro de 8 meses a contar da notícia do crime ou estiver sem andamento durante esse lapso de tempo. Compreensivelmente, esta excepção, destinada a proteger o interesse do lesado na apreciação célere e eficaz do seu direito de indemnização, constitui uma faculdade só pelo mesmo exercível.
A segunda, com fundamento nas referidas finalidades do processo penal, permite que o juiz, oficiosamente ou a requerimento, remeta as partes para os tribunais civis quando as questões suscitadas pelo pedido de indemnização civil foram susceptíveis de retardarem intoleravelmente o processo penal – artigo 82º, nº3, do Código de Processo Penal.
Esta decisão não depende da livre resolução do tribunal (caso em que seria irrecorrível, como defende Henriques Gaspar, CPP Comentado, 2012, pág.255) uma vez que traduz uma solução excepcional em relação ao princípio (regra) da adesão e terá de encontrar conforto nos referidos princípios do processo penal.
Apesar de o processo penal se ter iniciado em 01.06.2013 (e os factos remontarem a 31.05.2013) com a denúncia do ora recorrente, por força da instrução realizada e do recurso da decisão instrutória, apenas em 15.02.2016 foi admitido o pedido de indemnização civil, tendo sido requisitada a realização da perícia médico-legal ao IML em 29.06.2016.
O IML apresentou o relatório pericial em 19.01.2017, o ora recorrente dele reclamou em 30.01.2017 e o julgador em 18.04.2017 ordenou a prestação de esclarecimentos, efectuados em 16.05.2017 e, por fim, em 14.06.2017, veio o ora recorrente requerer uma segunda perícia.
No caso concreto o processo de avaliação do dano corporal em direito civil, a efectuar por perícia (artigo 388º do Código Civil) requisitada ao IML (artigo 467º, nº1, do Código de Processo Civil) e que releva, apenas (ao contrário do sustentado pelo recorrente), para efeitos de reparação civil do dano (cfr. artigo 2º, nº2, do Decreto-Lei nº 352/2007, de 23 de Outubro) teve o seu início há cerca de 1 ano contado até à data da decisão recorrida.
A primeira perícia teve uma duração total (contando, apenas, os prazos que decorreram desde a notificação do IML para a prática dos actos ordenados) de 7 meses, prazo que teremos por adequado perspectivar para a segunda perícia (a efectuar por delegação distinta do IML).
Entendemos que, face ao tempo decorrido desde a prática dos factos alegados no despacho de pronúncia (31.05.2013) o processo penal será objecto de retardamento que atinge o limite de intolerabilidade por comprometimento das supras referidas finalidades próprias (a descoberta da verdade material através da sua representação histórica e o restabelecimento da paz jurídica do arguido e da comunidade).
Por fim, a solução adoptada pelo julgador não traduz, actualmente, qualquer risco de julgados contraditórios ou, sequer, de desperdício de meios de prova. Com efeito, a sentença penal condenatória produz efeitos de caso julgado em relação ao arguido relativamente aos factos que integram os pressupostos da punição, os elementos do tipo legal e as formas do crime e constitui presunção ilidível dos mesmos em relação a terceiros (cfr. artigo 623º do Código de Processo Civil).
Também no que concerne à prova pericial já produzida, pode a mesma ser objecto de invocação no processo civil – artigo 421º, nº1, do Código de Processo Civil.
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III. Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas a cargo do recorrente, de acordo com a Tabela I B anexa ao RCP, sendo a taxa de justiça calculada de acordo com o valor atribuído ao pedido de indemnização civil (artigo 523º do Código de Processo Penal).

Porto, 31 de Janeiro de 2018
João Pedro Nunes Maldonado
Francisco Mota Ribeiro