Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
113/15.4T8MCN.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
OBRIGAÇÕES SOCIAIS
CONFUSÃO ENTRE PATRIMÓNIO SOCIAL E PATRIMÓNIO PESSOAL
ÓNUS DA PROVA
INVERSÃO DO ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RP20160707113/15.4T8MCN.P1
Data do Acordão: 07/07/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 67, FLS.13-20)
Área Temática: .
Sumário: I - Numa acção instaurada pelo credor para obter do sócio-gerente da sociedade devedora o pagamento de uma dívida social, com fundamento na figura da desconsideração da personalidade jurídica baseada na mistura dos patrimónios social e pessoal, em proveito do sócio e detrimento dos credores sociais, cabe ao autor o ónus da prova dos factos que revelem a mistura de patrimónios alegada.
II - A inversão do ónus da prova prevista no art. 344.º, n.º 2, do CC tem aplicação nos casos em que a parte sobre quem recai o ónus é impedida de fazer a prova dos factos que lhe competem por a parte contrária ter culposamente destruído, feito desaparecer ou impedido a produção de determinado meio de prova imprescindível ou de especial relevância para a prova dos factos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação
Processo n.º 113/15.4T8MCN.P1 [Comarca Porto Este/Inst. Local/M. Canavezes/Sec. Cível]

Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório:
B…, com o NIF ………, residente em Marco de Canaveses, intentou acção declarativa contra C…, com o NIF ………, e D…, com o NIF ………., residentes em Marco de Canaveses, pedindo que se desconsidere ou levante a personalidade jurídica da sociedade comercial “E…, Lda.” e se condenem os réus a pagarem-lhe a quantia de €45.917,00, acrescidos de juros de mora desde o fim de Dezembro de 2014 até integral pagamento.
Para o efeito, alegou que até 27.10.2004 foi sócia da sociedade E…., Lda., pessoa colectiva n.º ………, com sede em …, altura em que dividiu a sua quota no valor nominal de €50.000 em duas e cedeu-as C… e F…, sócios gerentes da dita sociedade, os quais, aquando da cessão das quotas, em representação da sociedade outorgaram um documento escrito no qual a sociedade se reconhecia devedora à autora da quantia de €91.834,00 a título de suprimentos realizados pela autora à sociedade e se obrigava a pagar à autora esse valor até Dezembro de 2014, sem juros. Em 16.06.2006, a autora teve conhecimento que o estabelecimento que a sociedade explorava e onde se encontrava a sua sede tinha encerrado, estando a funcionar nesse espaço outra sociedade. O sócio F…, contactado pela autora, prontificou-se a pagar-lhe metade do valor uma vez que tinham vendido a empresa, repartido entre si de igual forma o produto da venda e usado capitais da sociedade para fins pessoais, com o intuito de prejudicar a aqui autora. A sociedade não possuiu, nem possuía à data do seu encerramento, mais nenhum estabelecimento ou negócio, nem abriu a sua actividade em qualquer outro local, deixando, após o encerramento do estabelecimento de ter qualquer património susceptível de satisfazer minimamente as obrigações assumidas no acordo. Aquando da outorga do acordo o réu já teria em mente não proceder ao pagamento dos suprimentos com o objectivo de prejudicar a autora e encerrou a sociedade propositadamente para concretizar essa intenção e ficar com o respectivo capital para seu proveito.
Os réus contestaram a acção, arguindo a excepção da ilegitimidade da ré mulher e impugnando os factos alegados pela autora, alegando basicamente que quem assumiu a responsabilidade perante a autora foi a sociedade e não o réu, que a sociedade teve sucessivos prejuízos, encerrando a sua actividade para efeitos de IVA em 2006 e de IRC em 2013, o seu capital foi consumido com o pagamento de dívidas sociais, a cessão de exploração do estabelecimento da sociedade não gerou nenhum proveito tendo a cessionária assumido em contrapartida dívidas da sociedade, a sociedade foi dissolvida em 2013.
Após julgamento foi proferida sentença julgando a acção improcedente e absolvendo os réus do pedido.
Do assim decidido, a autora interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
I – Na Sentença em crise existem determinadas enxertos, que articulados e concertados entre si levaram à sua prolação que entendemos sem qualquer razão, que denotam a forma errada da divisão do ónus da prova, referindo: “(…) Donde se conclui que a imputação da elaboração de um plano ardiloso para se apoderar do dinheiro da Autora, a consciência prévia de que iria ser esvaziada a sociedade do seu património e o intuito de não a reembolsar teria necessariamente de ser feita não só em relação ao réu marido, mas também em relação ao outro sócio, F…. Ambos o assinaram e ambos a ele vincularam, de igual forma, a sociedade que aí – de forma expressa – estavam a representar. Se a actuação de ambos os sócios foi exactamente idêntica, porque é que a Autora imputa apenas ao aqui réu um plano engenhoso para se enriquecer pessoalmente à sua custa?”
II - Mais adiante refere que: “.” A autora também escamoteia que entre a data da assinatura do acordo – 2004 – e a transmissão do estabelecimento comercial – em 2006 – mediaram cerca de dois anos. Pergunta-se: então em 2004, ambos os sócios já sabiam, já estavam em negociações para vender o estabelecimento? Nada disso se provou, sequer se demonstrou indiciariamente.”
III - Na mesma senda: “Assim como não produziu a mínima prova de que o réu usou o dinheiro da Autora para fins pessoais. O que resulta dos autos é que tal dinheiro foi usado no âmbito da via empresarial da sociedade. Que uso particular e pessoal deu o réu, ou ambos os réus, aos empréstimos efectuados pela Autora? Se bem atentarmos na petição, verificamos que a Autora alega essa “confusão”, mas não a descreve com factos concretos. Tal dinheiro foi usado pelos réus para comprar carros pessoais? Para fazer férias? Para pagar despesas da casa? Não se sabe, porque nada se alegou e, mais ainda, nada disso sequer se indiciou em sede de julgamento.”
IV - Nenhuma prova testemunhal apresentada pelos réus foi ouvida em sede de audiência de julgamento.
V - Conforme é alegado, a autora recorreu ao mecanismo da “desconsideração da personalidade jurídica”, referindo ter havido mistura de patrimónios. Só existe “mistura de patrimónios” para efeito de “desconsideração de personalidade” da sociedade comercial se a autonomia patrimonial da mesma – a separação entre o património da sociedade e o património dos sócios, ou sócio neste caso – não tiver sido respeitada, sendo ainda exigível que não seja possível identificar/individualizar os actos pelos quais não foi respeitada a separação entre esses patrimónios (ou seja, “opacidade” contabilística).
VI - Aí, a par de outros meios, se a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade já estivesse previamente desconsiderada, por força da inexistência da respectiva autonomia patrimonial. Na verdade, a mistura de patrimónios, assim definida, constitui um típico grupo de casos neste contexto, única solução na qual é de afirmar sem reservas a insubsistência da personalidade jurídica da sociedade para, consequentemente, fazer os sócios responder perante os credores sociais (de facto, uma vez posta em causa a autonomia patrimonial da sociedade comercial, fica arredada a possibilidade de se afirmar a personalidade jurídica desse ente.
VII - A questão da tutela dos credores sociais é geradora, nestas situações específicas da “mistura de patrimónios” de algumas perplexidades. Desde logo, porque à aqui autora está vedado o acesso a uma informação completa e fidedigna acerca da factualidade relevante, suficiente para que a situação em causa possa ser reconduzida a este “grupo de casos”: uma vez que faz parte do seu quadro caracterizador o facto de existir “opacidade contabilística”, é impossível que a realidade patrimonial e empresarial da sociedade seja suficientemente conhecida da autora, atente-se à data da sua cedência de quotas, a data da cessação da actividade, a data da venda do estabelecimento e a data do vencimento da obrigação.
VIII - Então a questão da distribuição do ónus da prova assume um papel essencial, à qual o recurso ao disposto no artigo 344.º n.º 2 do Código Civil permite dar resposta adequada: deve deslocar-se para a esfera jurídica da parte “que tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado” a prova de demonstrar que a autonomia patrimonial ainda existe. Por outras palavras: perante indícios seguros da existência de comportamento dos sócios que impliquem o desrespeito pela separação de patrimónios (e há e são reconhecidos pelo Tribunal “a quo” e por um dos sócios) e uma vez que a autora não se encontra em condições de fazer a prova de factos relevantes (as perguntas feitas na Sentença), deverá caber aos réus a quem tais comportamentos são imputados, a fim de evitarem consequências que eventualmente venham a ser estabelecidas para o caso de “mistura de patrimónios”, fazer a prova que os comportamentos que atentaram contra a separação patrimonial podem ser individualizados, e os respectivos efeitos no património social neutralizados através do recurso às soluções do direito civil e/ou societário positivo.
IX - Caso os réus não façam prova, como não fizeram, pode afirmar-se a insubsistência da determinação exacta daquele que seria o património social na ausência dos referidos comportamentos pelos réus. Em suma, pode afirmar-se a existência de uma situação de “mistura de patrimónios”, para o efeito de fazer o património dos Réus responder pelas obrigações sociais. Neste caso, já não subsistindo a personalidade jurídica – instituto que não prescinde da existência da autonomia patrimonial dos réus – responderão os réus que constituem o substrato pessoal da sociedade, ou seja, os sócios. Cabe ainda, todavia, dar resposta à questão de saber se todos os sócios deverão ser chamados a responder, ou apenas aqueles a quem á imputável a “mistura de patrimónios”, ora, no presente caso foram chamados a responder os dois únicos sócios, tendo um deles liquidado a sua parte do crédito da Autora, e só em face desse facto se intentou acção contra os aqui réus.
X - Parece-nos claro que no caso dos autos que a prova das dúvidas do Tribunal “a quo” incumbia aos réus nos termos do artigo 344.º n.º 2 do Código Civil, pois o documento dado aos autos como reconhecimento dos suprimentos realizados pela Autora é de 2004, a data para pagamento do valor é Dezembro de 2014, a sociedade para efeitos de IVA encerrou e a sua actividade em Dezembro de 2006, revogando o contrato de locação financeira que possuía com o Banco G… SA, em Julho de 2006.
XI – Uma vez que o Tribunal “a quo” só valorou positivamente as declarações do sócio F…, que entendeu as declarações por este prestadas como objectivas e credíveis, por força deste depoimento a matéria dada como não provada teria que ser dada como provada, pelo menos parte, mas mais que suficiente para a procedência da acção.
XII - O Tribunal “a quo” dá como não provado “que C…, aquando da assinatura do acordo referido em 4), tinha em mente não proceder ao pagamento da quantia devida”, mas conforme resulta do depoimento de sócio F…, tal facto deveria ter sido dado como provado. Aí refere a testemunha no seu depoimento: “Por razões que agora penso não será necessário estar aqui a falar, eu e o Sr. D… assumimos a totalidade do capital dessa empresa e, ficou acordado, em Dezembro de 2014 entregar o capital social e creio que havia suprimentos, também, à D. B…, sem juros.” E “ (…) há quem entenda, eu entendo que a minha empresa tem um rosto, as questões formais eu nem discuto, e o que eu me, o nosso entendimento é que haveria o pagamento, que seriamos nós, nós sócios, os responsáveis pelo pagamento à D. B….” E ainda “Por questões financeiras, de tesouraria, era uma empresa que estava a começar, era só investimento, aqui também havia alguma responsabilidade da D. B… porque entrou como sócia e depois, embora ela não pudesse controlar essa questão, porque creio que era o Intermarché que não a deixava fazer parte da sociedade.” Mais “A única que eu posso dizer é que quando chegamos a este acordo, éramos nós e que, dissemos à D. B… que lhe pagaríamos, em 2014, éramos nós os sócios que estávamos lá, isto, o acordo é um instrumento, mas fomos nós.”
XIII - Parece-nos sem dúvida que em face do depoimento da única testemunha credível que C…, aquando da assinatura do acordo referido em 4), tinha em mente não proceder ao pagamento da quantia devida, ou pelo menos no decurso do tempo, consciente da sua obrigação pessoal, passou a ter em mente não pagar a quantia devida no dia em que trespassou o estabelecimento, o facto dado como não provado deverá ser dado como provado.
XIV - O Tribunal “a quo” dá como não provado “que vendeu o património da sociedade com o intuito de não proceder ao pagamento do crédito de B…” mas conforme resulta do depoimento de sócio F…, tal facto deveria ter sido dado como provado. Aí refere a testemunha no seu depoimento: “Nós entretanto vendemos o espaço porque era uma área que de facto …”, perguntado em que altura foi vendido o espaço, referiu que “2006 vendemos o espaço, fizemos trespasse do negócio e a empresa teve actividade suspensa até ser encerrada.” Perguntado se era aquela a única actividade que tinha a sociedade referiu que era a única, referindo que logo a seguir ao trespasse suspenderam a actividade. Referiu que “Entrou dinheiro na sociedade e que saiu da mesma forma para pagar dívidas.” Acrescentou que “A sociedade quando encerrou não tinha dívidas a ninguém.” Perguntado se com excepção da divida à Apelante respondeu de forma pragmática “ Sr. Dr., no meu entendimento eram os sócios que deviam.” Perguntado porque não procederam ao pagamento à ora Apelante na altura do trespasse respondeu “O pagamento foi pessoal, não foi a sociedade, eu pelo menos fiz o meu pagamento pessoal.”
XV - Parece-nos sem dúvida que em face do depoimento da única testemunha credível que C…, que quando foi vendido o único património da sociedade o réu marido, aqui apelado teve como único intuito não proceder ao pagamento do crédito da aqui apelante, pelo que tal facto deveria ter sido dado como provado.
XVI – Ao dar-se como provados os dois factos referidos, que foram dados como não provados na sentença, sem dúvida que a acção teria que ser procedente, uma vez que se verificam todos os pressupostos para a desconsideração da responsabilidade jurídica da sociedade “E…”, sendo os réus condenados no pagamento da quantia peticionada judicialmente.
XVII - Embora não estejamos em face de nenhuma nulidade ou sequer irregularidade, parece-nos, com o devido respeito que uma sentença em que se formulam questões não existe qualquer certeza da sua convicção da sua decisão, nomeadamente se essas questões nem sequer foram colocadas pelas partes.
XVIII - As questões colocadas ao longo da sua fundamentação, o Tribunal “a quo”, não dá cumprimento a este preceito, para além de denotar uma evidente temeridade da sua decisão, como que a evitar o “non liquet”.
XIX – No caso dos autos temos a chamada “mistura de patrimónios”, ou seja, uma mistura entre património societário e pessoal, sendo que o recurso à “desconsideração” é a única solução capaz de assegurar a tutela adequada dos credores sociais, sendo este o caso dos autos e que se justifica plenamente o recurso a esta figura jurídica.
XX - “Desconsiderada” a sociedade comercial “E…”, as pessoas que constituem o seu substrato pessoal, os sócios, deverão ser chamados a responder com os seus patrimónios pessoais, no presente caso só foi chamado um dos sócios porque o outro sócio procedeu ao pagamento de metade da obrigação assumida pelos dois.
XXI - Refere a sentença que o instituto da “desconsideração da personalidade jurídica das sociedades” reveste carácter excepcional e que no caso dos autos existem vários tipos de acções sociais, previstos no Código das Sociedades Comerciais, capazes de efectivar as responsabilidades aqui reclamadas ou peticionadas, no entanto, afigura-se-nos que o carácter excepcional da figura ou instituto tem toda a aplicabilidade nos factos destes autos.
XXII - O dever de lealdade dos sócios é um princípio jurídico estruturante do direito das sociedades.
XXIII - Não poderá a autora recorrer a qualquer acção sub-rogatória dado que o ressarcimento do dano causado iria integrar o património da sociedade, que neste caso já não existe juridicamente. O recurso ao mecanismo sub-rogatório tem, essencialmente, a função de conservar a garantia patrimonial constituída pelo património da sociedade, que como se encontra amplamente provado, já não existe.
XXIV - Mesmo que a apelante tivesse recorrido a uma acção sub-rogatória o ressarcimento do dano causado à sociedade iria ingressar de imediato no património da sociedade e como ficou provado esta até já tem a matricula cancelada, ou seja, a acção sub-rogatória nunca seria solução.
XXV - Entendemos que nos presentes autos é aplicável de forma absoluta a figura ou instituto da “Desconsideração da Personalidade Jurídica”.
Normas violadas: Artigo 344.º n.º 2 do Código Civil; artigo 607.º n.º 4 do Código de Processo Civil, artigo 406.º n.º 1 do Código Civil; artigo 334.º do Código Civil; artigo 762.º do Código Civil.
Os recorridos responderam a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões:
A. Se a decisão sobre a matéria de facto deve ser alterada em relação a dois factos julgados não provados.
B. Se o ónus da prova deve considerar-se invertido nos termos do artigo 344.º, n.º 2, do Código Civil.
C. Se os factos provados permitem recorrer à figura da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade devedora.

III. Os factos:
Na decisão recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
1. B… deteve uma participação no capital social da sociedade “E…, Lda.”, NIPC ………, até 27 de Outubro de 2004, correspondente a 50% do capital social.
2. Nessa data, B… dividiu a sua quota em duas quotas iguais, que foram cedidas nesse mesmo acto aos demais sócios, F… e C….
3. Durante o período em que esteve na sociedade como sócia, B… fez-lhe empréstimos de quantias que, no total, perfizeram o valor de €91.834,00 (noventa e um mil oitocentos e trinta e quatro euros).
4. Aquando do negócio referido em 2), B… e a sociedade “E…, Lda.”, representada pelos dois sócios, outorgaram o acordo que consta de fls. 22 dos autos, cujo teor ora se dá por reproduzido.
5. Assim, a sociedade reconheceu-se devedora para com aquela da sobredita quantia de capital, obrigando-se a mesma sociedade “a pagar aqueles montantes... até ao mês de Dezembro de 2014 sem vencimento de quaisquer juros”.
6. Em Junho de 2006, B… teve conhecimento de que, no local onde funcionava o estabelecimento da sociedade “E…, Lda.” estava a funcionar o estabelecimento comercial de uma outra sociedade.
7. A sociedade “E…, Lda.” encerrou a sua actividade para efeitos de IVA em 31 de Dezembro de 2006.
8. Encerrou a sua actividade para efeitos de IRC em 9 de Dezembro 2013, foi dissolvida e encerrada a sua liquidação a 9 de Dezembro de 2013, tendo já cancelada a sua matrícula.
9. F… pagou a B…, a título pessoal, a quantia de €45.917,00 (quarenta e cinco mil novecentos e dezassete euros).
10. Nada mais foi pago a B… após Dezembro de 2014.
11. “E…, Lda.” apresentou os seguintes resultados negativos: a) ano de 2004: € 46.952,22; b) ano de 2005: €387.299,58; c) ano de 2006: €143.628,80; d) ano de 2007: €751,68; e) ano de 2009: €8.496,28.

IV. O mérito do recurso:
A] impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
Na decisão recorrida foram julgados não provados, entre outros, os seguintes factos:
- Que C…, aquando da assinatura do acordo referido em 4), tinha em mente não proceder ao pagamento da quantia devida. [A]
- Que vendeu o património da sociedade com o intuito de não proceder ao pagamento do crédito de B….[C]
No recurso a recorrente impugna a decisão da 1.ª instância de julgar não provados estes factos sustentando, ao invés, com base apenas no depoimento da testemunha F…, que eles devem ser julgados provados.
Para haver impugnação da decisão sobre a matéria de facto é necessário que o recorrente sustente que no que concerne à matéria de facto a decisão recorrida está errada, que foi feita uma avaliação incorrecta dos meios de prova, que foi produzida prova em função da qual determinado facto deve ser julgado diferentemente do modo como o foi em 1.ª instância, que manifeste a vontade de que a decisão relativa à matéria de facto seja alterada e, finalmente, que especifique a decisão que pretende seja proferida.
Conforme prevê o artigo 640.º do Código de Processo Civil, querendo impugnar a decisão da matéria de facto o recorrente tem de especificar, obrigatoriamente e sob pena de imediata rejeição do recurso nessa parte, os seguintes aspectos: os concretos pontos de facto considerados incorrectamente julgados, os concretos meios probatórios que na óptica dos recorrentes impunham decisão diversa e o sentido da decisão que deve ser proferida, sendo que no tocante aos depoimentos gravados carece de indicar as passagens da gravação em que se funda o seu recurso.
A lei impõe assim ao recorrente que individualize os factos que estão mal julgados, que especifique os meios de prova concretos que impõem a modificação da decisão, que indique o sentido da decisão a proferir e, inclusivamente, tratando-se de depoimentos de testemunhas gravados, que precise as passagens da gravação do depoimento que tal hão-de permitir.
Os recorridos defendem na resposta às alegações de recurso que este último requisito não foi cumprido pela recorrente uma vez que transcreveu na íntegra o depoimento em vez de indicar as passagens relevantes para a alteração da decisão sobre os pontos da matéria de facto referidos.
Nos termos do artigo 640.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes. O n.º 3 do preceito impõe ao recorrido, no caso de querer informar as conclusões do recorrente, o mesmo ónus estabelecendo que se os depoimentos tiverem sido gravados, deve indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes. A indicação da totalidade do depoimento ou da sua gravação ou a transcrição da totalidade do depoimento não são, por isso, formas válidas de cumprimento deste ónus.
Todavia, na sequência aliás da recente jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça que vem atribuindo grande elasticidade ao modo de cumprimento dos requisitos da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, temos vindo a entender que a indicação das passagens exactas da gravação dos depoimentos em que se funda o recurso serve apenas o objectivo de auxiliar o tribunal de recurso a localizar os segmentos dos depoimentos que o recorrente assinala e pretende que sejam reavaliados e já não o objectivo de delimitar os meios de prova em que o recorrente funda a sua discordância com a decisão da 1.ª instância que é o sentido último do estabelecimento de requisitos legais específicos da impugnação da decisão da matéria de facto.
Nessa medida, afigura-se-nos que esse ónus deve considerar-se satisfatoriamente cumprido nos casos em que a indicação consta apenas do corpo das alegações de recurso e não foi levada às respectivas conclusões ou nos casos em que o recorrente em vez de indicar ou transcrever as passagens relevantes do depoimento opta por o transcrever na totalidade (caso em que a imperfeição tem a natureza de excesso e não de falta). É o caso, sendo aliás certo que depois de transcrever a totalidade do depoimento, a recorrente isola partes dele para sustentar a alteração da decisão. Por esse motivo consideram-se cumpridos pela recorrente os requisitos de que depende a impugnação da matéria de facto.
Passando à apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, recordamos que a recorrente indica um único meio de prova para sustentar a alteração da decisão, mais concretamente o depoimento da testemunha F…, cuja gravação ouvimos na totalidade.
Basta ouvir a gravação ou ler o teor do depoimento que a recorrente transcreveu (e que respeita o conteúdo da gravação), e, sobretudo, as passagens do mesmo que isolou a págs. 56 e 57 das alegações, para concluir com total segurança que este meio de prova não pode, em circunstância nenhuma, ser tido como suficiente para julgar provados os factos focados pela recorrente.
A recorrente pretende que se julgue provado que o réu “aquando da assinatura do acordo tinha em mente não proceder ao pagamento da quantia devida”. A testemunha não só não afirma em momento algum esse facto, como dá a entender pela distância temporal entre a celebração do acordo e o prazo nele fixado para o pagamento (10 anos) e pelas circunstâncias em que o acordo foi celebrado (a autora entrou como sócia mas afinal não podia fazer parte da sociedade, quem aparecia a representá-la era outra pessoa, H…, o valor a pagar-lhe afinal incluía o próprio capital, que aliás face à certidão permanente junta aos autos não estava sequer totalmente realizado) que nessa data havia a expectativa e a intenção de todos os intervenientes de o cumprirem.
A recorrente pretende ainda que se julgue provado que o réu “vendeu o património da sociedade com o intuito de não proceder ao pagamento” à autora. Quanto a este facto a improcedência da impugnação é ainda mais manifesta e chega a ser desconcertante que a recorrente consiga defender o contrário.
Na verdade, a testemunha afirmou peremptoriamente que a sociedade tinha prejuízos e acumulou dívidas e que o valor (que não concretiza sequer) obtido com a transferência do estabelecimento para terceiros foi usado para pagar dívidas, designadamente aos fornecedores dos equipamentos do supermercado e do recheio que tinha o supermercado (a sociedade não era dona do espaço, tinha apenas a sua locação ao abrigo de contrato de locação financeira).
É certo que esse valor não foi usado para pagar à autora, mas a testemunha não afirmou em momento algum que esse valor fosse suficiente para pagar também à autora ou que esta devesse ser privilegiada em relação aos demais credores e sustenta mesmo que quem tinha de efectuar o pagamento não era a sociedade mas os respectivos sócios a título pessoal.
De referir que esta testemunha era, tal como o réu, gerente da sociedade, e cada um deles era titular de quotas sociais (uma própria e outra adquirida à autora) correspondentes a 50% do capital social, pelo que, conforme bem se assinala na motivação de decisão sobre a matéria de facto, qualquer actuação para a transmissão do estabelecimento, a utilização do respectivo produto, o encerramento da actividade ou a dissolução e liquidação da sociedade tinha de ser deliberada e assumida por ambos os sócios-gerentes, razão pela qual o intuito único não proceder ao pagamento à autora que esta imputa ao réu tinha de ser comum à testemunha o que não foi admitido por esta em momento algum, sequer implicitamente.
Em suma, a decisão proferida sobre os dois factos que são objecto da impugnação da recorrente é inatacável e encerra uma rigorosa e correcta análise e avaliação do único meio de prova referido pela recorrente para fundar decisão oposta, pelo que nesta parte o recurso é manifestamente improcedente.

B] matéria de direito:
B.1] questão do ónus da prova:
Defende a recorrente que o ónus da prova deve inverter-se, ao abrigo do disposto no artigo 344.º, n.º 2, do Código Civil, recaindo sobre os réus o ónus de demonstrarem que não confundiram o seu património com o da sociedade devedora.
Sem prejuízo de melhor opinião, não podemos acompanhar este entendimento.
O artigo 342.º do Código Civil estabelece que àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado. Alegando que o direito de crédito de que é titular tem como sujeito jurídico do lado passivo da obrigação (devedor) a sociedade comercial da qual o réu é (era) sócio-gerente, a autora coloca-se na posição de necessitar de um específico fundamento jurídico para transferir para o réu essa sujeição jurídica.
Ao invocar a inversão do ónus da prova (num sinal de que sem a inversão lhe caberia a si o ónus), a própria recorrente acaba por acolher que para poder obter a condenação do réu a fazer o pagamento que era da responsabilidade de outra pessoa jurídica (a sociedade), necessitava de fazer a prova dos factos constitutivos já não do direito de crédito sobre o réu, mas da responsabilidade do réu pelo pagamento de dívidas da sociedade.
Admitindo que a figura doutrinária da desconsideração da personalidade jurídica das pessoas colectivas possa ser a fonte dessa responsabilidade, a forma jurídica de imputar aos gerentes ou administradores ou titulares do capital social das sociedades comerciais a responsabilidade por obrigações sociais ou pelas consequências do incumprimento pela sociedade de obrigações sociais, a autora necessitava assim de fazer a prova dos factos jurídicos concretos necessários para preencher a aludida figura, nalguma das suas concretizações teóricas[1], sendo que no caso a aventada pela autora era a da mistura de patrimónios ou confusão entre o património social e o património pessoal do gerente, administrador ou titular do capital social.
A inversão do ónus da prova prevista no artigo 344.º, n.º 2, do Código Civil tem lugar, na expressão da norma, quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado. A situação tratada na norma é a de a parte contrária ter destruído, feito desaparecer ou impedido a produção de um meio de prova e dessa forma ter tornado impossível à parte onerada fazer a prova dos factos que lhe compete demonstrar.
É o caso, por exemplo, da destruição de um documento, do encobrimento de uma coisa[2] ou do impedimento da realização de um exame pericial quando tais meios de prova sejam imprescindíveis para a demonstração do facto, designadamente por serem os únicos meios de prova possíveis para demonstração do facto, ou, ao menos, tenham especial relevância para esse efeito, designadamente em função do valor probatório particular que lhes seria atribuído e do menor valor probatório dos remanescentes meios probatórios possíveis.
A situação abordada no referido preceito e que justifica a inversão do ónus da prova nada tem a ver com a situação dos autos. Com efeito, a autora não sustenta não é que os réus a tenham impedido de fazer uso de qualquer meio de prova específico determinante ou especialmente relevante para a demonstração dos factos constitutivos da mistura de patrimónios. O que a autora reclama é que devem ser os réus a provar que não houve qualquer mistura de patrimónios. Nessa medida, do que se trata não é de operar a inversão do ónus da prova com fundamento no artigo 344.º, n.º 2, do Código Civil, mas de definir as regras do ónus da prova válidas para as acções instauradas contra os sócios com fundamento na desconsideração da personalidade jurídica das sociedades obrigadas, sendo certo que, como vimos, ao pretender beneficiar da aludida inversão, a autora aceita que ab initio o ónus da prova é seu, como de facto é.
Como escreveu Rui Rangel, in O ónus da prova no processo civil, Almedina 3.ª edição, pág. 198, «por regra, a maior ou menor dificuldade de produção da prova não deve, só por si, justificar a inversão do ónus da prova», desde logo porque na elaboração das regras do ónus da prova o legislador não podia deixar de ter presente essa dificuldade, sendo aliás ela que se vislumbra por detrás de algumas das regras estabelecidas, mas entendeu não a estabelecer como regra geral, eliminando mesmo as dúvidas com recurso à fórmula do artigo 342.º, n.º 3, do Código Civil. Daí que, segundo o autor, «a simples verosimilhança dum facto ou a natural dificuldade da sua prova não alteram a repartição do ónus da prova, podendo, quando muito, tornar aconselhável, com as adaptações necessárias, a máxima “iis quae difficilioris sunt probatoris leviares probationes admittuntur”».
Perante o incumprimento de uma obrigação assumida por uma sociedade, o credor não pode colocar-se na posição de entender que a responsabilidade pelo cumprimento passa a ser dos sócios da sociedade a não ser que estes demonstrem que no caso concreto não se verifica nenhuma das situações normalmente tipificadas pela doutrina[3] e pela jurisprudência[4] como integradoras da figura da desconsideração da personalidade jurídica das pessoas colectivas. Tal equivaleria ao estabelecimento de uma presunção de responsabilidade dos sócios que não se encontra prevista em qualquer norma legal do nosso ordenamento jurídico.
O credor tem de contar com o risco do incumprimento, para o que a ordem jurídica lhe disponibiliza inclusivamente meios de tutela, como são as garantias pessoais ou reais que quando não são exigidas fazem exponenciar esse risco. O incumprimento é por isso uma vicissitude inerente à constituição de obrigações, não se podendo deduzir da mera ocorrência do incumprimento que o mesmo se deveu a uma actuação culposa ou abusiva do devedor ou dos seus representantes. Acresce que a autonomia da personalidade jurídica das pessoas colectivas se impõe como regra e que a desconsideração dessa autonomia e a deslocalização da obrigação do seu titular para outro titular assumem natureza de excepção, só tendo lugar em situações qualificadas e cuja afirmação não pode dispensar a demonstração dos factos jurídicos que as caracterizam.
O recurso improcede assim na parte em que se defende que caberia aos réus demonstrar que não misturaram o património social com o seu património pessoal ou que não usaram em proveito pessoal aquele património em prejuízo dos credores.

B.2] a desconsideração da personalidade por mistura de patrimónios:
A natureza subsidiária da figura da desconsideração da personalidade colectiva tem sido afirmada para assinalar a ideia de que a excepcionalidade da figura justifica que havendo outros meios jurídicos à disposição do credor para obter o cumprimento da obrigação, seja pela sociedade devedora, seja pelos respectivos representantes legais, tal figura não tem aplicação.
Porém, essa ideia não significa que não havendo outro meio jurídico a desconsideração da personalidade possa ser operada independentemente da verificação dos factos jurídicos que constituem os pressupostos materiais das diversas situações típicas em que ela é decomposta.
Nessa medida, de nada adianta discutir na acção se a autora dispunha de outros meios legais para obter o pagamento do seu crédito pela sociedade ou pelos seus representantes legais, até pela simples razão de que sendo a causa de pedir da acção constituída pela figura da desconsideração da personalidade colectiva apenas esta pode ser conhecida na acção, a qual não fornece elementos discutir se existem ou não outros meios jurídicos para se alcançar o resultado desejado ou afirmar a sua viabilidade.
O que releva para efeitos do mérito da acção é se a matéria de facto permite de alguma forma afirmar que os réus misturaram o património social com o seu património pessoal, em prejuízo dos credores e proveito pessoal contrário aos interesses e autonomia jurídica da sociedade comercial devedora, por ter sido esse o único fundamento jurídico invocado pela autora para fundar o pedido de condenação dos réus.
A resposta que a matéria de facto provada fornece a esta questão é de tal forma cristalina que dispensa grandes divagações teóricas sobre o assunto.
Não existe na matéria de facto absolutamente nenhum facto que permita considerar que o réu usou a condição de sócios para se aboletar com o património social, usando-o não para o objectivo social da sociedade mas em proveito pessoal, abusando da personalidade jurídica da sociedade por forma a frustrar os direitos dos credores sociais. Não foi demonstrado qualquer facto que revele, traduza ou sequer indicie ou permita presumir que o réu actuou de forma culposa, com violação das regras da boa-fé, aproveitando-se ilegitimamente da sociedade para causar, com intenção, prejuízos à autora.
Face à matéria de facto provada a sentença recorrida não pode deixar de ser confirmada e o recurso não pode deixar de improceder.

V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso improcedente e, em consequência, confirmam a sentença recorrida.
Custas do recurso pela autora (tabela I-B).

Porto, 7 de Julho de 2016.
Aristides Rodrigues de Almeida (Relator; 289)
Teles de Menezes e Melo
Mário Fernandes
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[1] Nesse sentido, por exemplo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.02.2006, Revista n.º 3704/05, 1.ª Secção Paulo Sá, Sumários, in www.stj.pt, onde se assinala que «A prova de que ocorreram actuações susceptíveis de justificar a desconsideração da personalidade jurídica de determinada sociedade implicaria a alegação e prova pelo autor dos respectivos factos, por serem constitutivos do direito, atento o disposto no art. 342.º, n.º 1, do CC
[2] Cf. Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª edição revista, pág. 309.
[3] Para Menezes Cordeiro, in O Levantamento da Personalidade Colectiva, Almedina, 2000, pág. 147 e 148, a figura da desconsideração da personalidade colectiva aplica-se essencialmente nos seguintes grupos de casos: «situações de violação não-aparente de norma jurídicas: a pretexto da personalidade colectiva, são descuradas normas de contabilidade, de separação de patrimónios ou de clareza nas alienações; situações de violação de normas indeterminadas ou de princípios: as pessoas que têm a seu cargo a administração de pessoas colectivas agem sem a diligência legalmente requerida para tais funções; situações de violação de direitos alheios ou de normas destinadas a proteger interesses alheios, sob invocação da existência duma pessoa colectiva; situações de emulação nas quais, sem razões justificativas, alguém usa uma pessoa colectiva para causar prejuízos a terceiros; situações de violação da confiança ou de atentado às valorações subjacentes, através duma pessoa colectiva; situações em que pessoas colectivas são usadas fora dos objectivos que levaram as normas constituintes respectivas a estabelecê-las; situações em que jogos de pessoas colectivas são montados ou actuados para além dos princípios básicos do sistema».
[4] Afirma-se no sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03.02.2009, relatado por Paulo Sá, in www.dgsi.pt, que «IV - Estão mais ou menos sistematizadas as condutas societárias reprováveis que, na vertente do abuso da responsabilidade limitada (que não se confunde com a do abuso da personalidade), podem conduzir à aplicação do instituto da desconsideração da personalidade, avultando, de entre elas: a confusão ou promiscuidade entre as esferas jurídicas da sociedade e dos sócios; a subcapitalização, originária ou superveniente, da sociedade, por insuficiência de recursos patrimoniais necessários para concretizar o objecto social e prosseguir a sua actividade; as relações de domínio grupal. V - Para além destas situações, também se podem perfilar outras em que a sociedade comercial é utilizada pelo sócio para contornar uma obrigação legal ou contratual que ele, individualmente, assumiu, ou para encobrir um negócio contrário à lei, funcionando como interposta pessoa. VI - A aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica tem carácter subsidiário, pois só deverá ser invocada quando inexistir outro fundamento legal que invalide a conduta do sócio ou da sociedade que se pretende atacar.»