Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4031/15.8T8MTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE SEABRA
Descritores: PRIVAÇÃO DO USO
EQUIDADE
Nº do Documento: RP201810084031/15.8T8MTS.P1
Data do Acordão: 10/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 681, FLS 71-87)
Área Temática: .
Sumário: I - Demonstrados os pressupostos da responsabilidade civil do lesante e, bem assim, que o lesado fazia da sua viatura uma utilização regular na sua vida pessoal, familiar e/ou profissional, dela retirando as utilidades que advêm do seu uso, a privação do uso, em tal contexto, importa a existência de um dano patrimonial merecedor de indemnização, posto que essas utilidades, consideradas em si mesmas, têm um valor susceptível de avaliação pecuniária.
II - Para efeitos de determinação do quantum indemnizatur a privação do uso deve ser aferida em termos casuísticos e segundo critérios de equidade, de harmonia com o preceituado no art. 566º, n.º 3 do Código Civil, podendo, para o efeito e na ausência de outros elementos, ser utilizado o valor locativo diário de uma viatura idêntica, embora apenas como critério orientador.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 4031/15.8T8MTS.P1 - Apelação
Origem: Juízo Local Cível de Matosinhos - J3.
Relator: Des. Jorge Seabra
1º Adjunto Des. Maria de Fátima Andrade
2º Adjunto Des. Fernanda Almeida
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Sumário (elaborado pelo Relator):
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Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO:
1. B... e C..., residentes em Rua ..., n.º ..., Barcelos, intentaram a presente acção declarativa sob a forma de processo comum contra “D..., SA”, com sede em ..., ..-.., ..., e “E..., SA”, com sede em Avª ..., n.º ., Lisboa, pedindo, a final, a condenação das RR. no pagamento dos danos patrimoniais e não patrimoniais por si sofridos – e que discriminam na petição inicial - em consequência de acidente de viação ocorrido a 10.05.2013, na A 28, ... – ....
Para tanto, alegaram, no essencial, que no dito acidente foram intervenientes o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-NI-.., o veículo ligeiro de mercadorias de matrícula ..-..-ZP, conduzido pelo autor e pertença da autora, e o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula ..-CL-.., sendo certo que o dito acidente ocorreu por culpa única e exclusiva dos condutores dos veículos NI e CL, os quais haviam transferido a sua responsabilidade civil pelos danos causados a terceiros e emergentes da circulação de tais veículos para as 1ª e 2ª RR., contratos titulados, respectivamente, pelas apólices n.º .......... e ...........
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2. Citadas, ambas as RR. deduziram contestação, impugnando parcialmente a factualidade alegada e os danos invocados pelos AA. e, em particular, imputando a responsabilidade na eclosão do acidente ao condutor do veículo NI (versão da Ré “D..., SA”) ou ao condutor do veículo CL (versão da Ré “D...”).
Concluíram, assim, as RR. pela improcedência da acção e sua consequente absolvição do pedido.
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3. Foi proferido despacho saneador, fixando-se o objecto do litígio e enunciaram-se os temas de prova.
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4. Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente a acção, condenando a Ré “F..., SA” (que incorporou a Ré “D..., SA”) no pagamento ao autor B... da quantia de € 2.005,56, a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação e até integral pagamento, da quantia de € 3.000,00, a título de danos não patrimoniais, acrescida dos mesmos juros de mora desde a data do trânsito em julgado da sentença e até integral pagamento e, ainda, no pagamento à autora C... da quantia de € 11.865,00, a título de danos patrimoniais, acrescidos de juros de mora à taxa legal desde a data da citação e até integral pagamento.
No mais, foi a mesma Ré absolvida, o mesmo sucedendo com a Ré “E..., SA”, que foi integralmente absolvida dos pedidos contra si deduzidos.
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5. Inconformada com a sentença, dela veio interpor recurso de apelação a Autora C..., oferecendo alegações e nelas deduzindo, a final, as seguintes
CONCLUSÕES
I. Discorda a Recorrente com a Douta Sentença, no que concerne à quantia atribuída à A. a título de: Valor venal do veículo à data do sinistro e Privação do uso;
II. Ora, a Autora pretende impugnar o facto 1.44 do facto dado como não provado. O Tribunal a quo considerou provado que: 1.44: Por carta datada de 28.05.2013, a ré “D...” comunicou à autora que “foram apurados para o veículo em referência os seguintes valores que, determinam estarmos operante uma Perda Total: Estimativa da reparação: 6.162,62 €; Valor venal do Veículo: 3.250 € (…) Valor do veículo danificado: 300 €.
(…).Assim, apura-se um montante de 2950€, tendo em conta a melhor valorização obtida para o veículo, já deduzido do valor que o mesmo tem danificado.”
III. Concretos meios probatórios, constantes do processo nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida – art. 640º, nº 1, al. b) do CPC: Documento nº 7 da Petição Inicial.
IV. Sob o teor deste documento, vislumbramos que antes do sinistro em causa, nomeadamente em 12-04-2013, a Autora possuía uma PROPOSTA DE COMPRA E VENDA do veículo sinistrado – documento nº 7, junto com a Petição Inicial.
V. Essa proposta de compra e venda, consistia num valor de € 5.500,00 (cinco mil e quinhentos euros).
VI. Todavia, a Recorrida “D...” atribuiu ao veículo sinistrado a módica quantia de € 3.250,00. Todavia, a Recorrente impugna o valor atribuído pela Recorrida, e que foi dado como provado na Douta Sentença.
VII. Salvo entendimento contrário, deveria o Tribunal valorar o documento nº 7, junto com a Petição Inicial, sendo que a referida proposta contratual foi apresentada por um terceiro, alheio à Recorrente, ao invés da Recorrida “D...”, que: sendo parte no processo, avaliou o veículo sinistrado, da forma que bem entendeu, sendo que como é de conhecimento geral, o objectivo da Recorrida é atribuir o menor valor possível.
VIII. Digamos que não deveria o Tribunal a quo atender ao valor venal do veículo na módica quantia de € 3.250, uma vez que tal valor foi fixado pela própria Recorrida.
IX. Assim sendo, não deveria o Tribunal a quo dar como provado esse facto – Assim, face à prova produzida em sede de discussão e julgamento, o Tribunal a quo deveria ter JULGADO COMO NÃO PROVADO o ponto 1.44 dos factos dados como provados, e fixar uma nova redacção a esse mesmo ponto: 1.44. O valor venal do veículo à data do sinistro rondava os € 5.500,00 (cinco mil e quinhentos euros).
X. A Autora/Recorrente, a título de dano da privação do uso, decorrente do acidente de viação peticionou a quantia de € 29.120,00 (vinte e nove mil cento e vinte euros); Ora, cfr. factos dados como provados, em consequência do acidente em mérito o veículo da Recorrente ficou destruído e foi dado como irreparável, pelo que foi para abate, pelo que a Recorrente esteve privada do seu uso durante 832 dias, o que lhe causou incómodos.
XI. A Douta Sentença fixou à Recorrente, pelos danos melhor id. supra dos factos dados como provados, apenas a quantia de € 8.320,00 (oito mil trezentos e vinte euros). Ora, para justificar essa quantia, o Tribunal a quo, sustentou a seguinte Fundamentação de Direito da Douta Sentença: (…) “Mais se provou que retirando o período durante o qual recorreu ao aluguer acima referido a autora ficou privada da utilização do seu veículo ZP por um período de 832 dias, o que lhe causou incómodos, sendo que a ré “D...” não a indemnizou pela respectiva perda, por forma a permitir-lhe adquirir um veículo que substituísse o ZP. (…)
No caso concreto, face à factualidade considerada como provada e já acima exposta, não temos dúvidas de que a privação do veículo causou prejuízos à autora e ao seu agregado familiar, com o consequente direito a uma indemnização pela privação do uso.
Consequentemente, fazendo uso do princípio da equidade previsto no art.º 566, n.º 3 do CC, e tendo em conta todas as circunstâncias do caso concreto, considera-se adequado fixar a indemnização devida a tal título na quantia de € 10,00 diários, num total de 8.320,00 €. – sublinhado e carregado nosso.
XII. Destarte, a quantia fixada, de € 8.320,00 (oito mil trezentos e vinte euros), é deveras insuficiente/reduzida para ressarcir a Autora/Recorrente pelos DANOS, a este título sofridos, que de acordo com os factos dados como provados, poderemos referir que os danos sofridos pela Recorrente são de elevada dimensão.
XIII. No que concerne à indemnização atribuída, a Recorrente discorda [com o devido respeito que é muito] com o montante atribuído - € 10,00 (dez euros) diários –, por entender que é demasiado inferior, injusto, parco e insatisfatório, bem como, contrário ao valor atribuído pelos Tribunais Superiores.
XIV. Não se pode olvidar que : “pelo aluguer do veículo, a autora pagou à empresa “M..., Lda” a quantia de € 595,00 (35€ x 17 dias) – facto 1.51 dado como provado.
XV. Pois bem, durante esse período de 17 dias em que a A. alugou um veículo automóvel de características semelhantes ao veículo ZP, da marca Ford, com a matrícula ..-JN-.., durante o período de 17 dias, designadamente entre o dia 15.05.2013 até 31.05.2013, despendeu a quantia de € 35,00 diários – cfr. os factos 1.50 e 1.51 dados como provados.
XVI. Os factos ora dados como provados confirmam que o veículo automóvel em causa não era uma simples viatura “de fim-de-semana”, pois que: a A. usava para as suas deslocações do quotidiano – facto 1.46 dos factos dados como provados; -A autora utilizava o seu veículo ZP na sua actividade profissional; - e também era utilizado pelo seu filho; - (…) o qual transportava diariamente a sua irmã G... para a Escola H..., sita em Viana do Castelo - facto 1.47 dos factos dados como provados;
XVII. Todavia, a paralisação do seu veículo durante o período supra referenciado frustrou um propósito real, concreto e efectivo, de proceder à sua utilização/rentabilização.
XVIII. Significa isto que, no caso sub iudice, a privação do uso do seu veículo provocou à Autora um dano elevadíssimo. Ademais, ficou demonstrado nos factos dados como provados, que a Autora/Recorrente usaria normalmente a coisa para ser transportada e para transportar os seus filhos, pelo que existiu um dano, à luz do art. 483º e ss. do Código Civil, e sendo assim, deveria a Recorrente ser ressarcido com uma justa e devida indemnização, de acordo com os arts. 562º, 564º e 566º, nº 3 do Código Civil.
XIX. Para além do mais, trata-se de um veículo automóvel ligeiro de mercadorias, utilizado na actividade comercial da Recorrente de distribuição de produtos hortícolas e frutas, a que a Recorrente se dedicava e dedicou após o acidente em lide.
XX. O valor atribuído pelo Tribunal a quo, com o devido respeito que é muito, peca por defeito, em virtude do uso e fruição da propriedade da Autora configurar-se com a sua indisponibilidade de uso daquele veículo num determinado período de tempo, vendo-se impossibilitada de o utilizar diariamente – como vinha fazendo, antes da data do acidente – na sua via quotidiana, profissional, e, sendo também utilizado pelos seus filhos.
XXI. Pelo exposto, deve a quantia fixada para indemnização pelo dano de privação do uso ser corrigida e alterada, devendo a mesma ser aumentada para um valor mais justo e equitativo, que se deverá fixar entre os € 15,00 e os € 35,00 diários, dado que ao não fazê-lo incorreu, a MMa. Juíza do Tribunal a quo, na violação expressa do disposto enunciado no art. 562º e ss. do Código Civil.
XXII. Decidindo de modo diverso, fez a Douta Sentença, má aplicação do Direito aos factos provados e violou, além de outras, as normas dos artigos 562º, 563º, 564º e 566º todos do Código Civil.
XXIII. Assim, a título do dano de privação do uso, deverá ser atribuído por este digníssimo Tribunal ad quem, a quantia a fixar entre os € 12.480,00 e os € 29.120,00.
NESTES TERMOS e nos demais de Direito, deve o presente recurso ser julgado procedente e provado, e, em consequência, alterar-se a Sentença proferida nos autos, e serem os valores supra, a título de danos patrimoniais e dano de privação do uso serem aumentados nos temos da equidade e jurisprudenciais.
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6. A recorrida “F...” ofereceu contra-alegações pugnando, no essencial, pela improcedência da impugnação de decisão de facto e, em consequência, pela manutenção da decisão recorrida nas concretas questões suscitadas.
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7. Foram cumpridos os vistos legais.
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II. DELIMITAÇÃO do OBJETO DO RECURSO.
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. arts. 635º, nº 3, e 639º, nsº 1 e 2, do novo Código de Processo Civil, na redacção emergente da Lei n.º 41/2013 de 26.06 [doravante designado apenas por CPC].
Destarte, neste enquadramento, as questões suscitadas pelo recorrente e a decidir no presente recurso são as seguintes:
a). Impugnação da decisão de facto quanto ao ponto 1.44 do elenco dos factos provados;
b). Indemnização a título de “ valor venal “ do veículo pertença da ora apelante;
c). Indemnização por privação do uso do mesmo veículo.
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III. FUNDAMENTAÇÃO de FACTO:
O Tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos:
1.1. No dia 10 de Maio de 2013, pelas 11:50 horas, na A28, ao km 9,950, no sentido .../..., na freguesia ..., concelho de Matosinhos, ocorreu um embate no qual intervieram o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-NI-.., conduzido por I..., o veículo ligeiro de mercadorias de matrícula ..-..-ZP, propriedade da autora C... e conduzido pelo autor B..., e o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-CL-.., conduzido por J....
1.2. O veículo ZP é da marca Renault, modelo ....
1.3. O autor conduzia com o respectivo cinto de segurança.
1.4. Nas circunstâncias de tempo e local identificadas em 1.1., o autor tripulava o veículo ZP pela A28, no sentido .../..., pela via mais à direita da faixa de rodagem.
1.5. O autor tripulava o veículo ZP a uma velocidade de cerca de 90 Km/hora.
1.6. A faixa de rodagem, no local do embate, é uma recta com mais de 500 metros de comprimento, com piso betuminoso, em estado de conservação regular.
1.7. A faixa de rodagem no sentido .../... tem uma largura de 10,20m, com três vias de circulação.
1.8. O tempo estava seco, o piso tinha boas condições de aderência.
1.9. Não havia obstáculos na faixa de rodagem.
1.10. A visibilidade era boa e os encandeamentos inexistentes.
1.11. Naquele dia e hora a intensidade do trânsito era moderada.
1.12. No local havia o sinal de proibição C13 (indicação da proibição de circular a velocidade superior a 100 km/h), o sinal D8 (obrigação de transitar à velocidade mínima de 50 km/h), linha contínua (marca M1), linha descontínua (marca M2), setas de selecção (marcas M15 e M15d) e guias (Marca M19).
1.13. Nas circunstâncias de tempo e lugar identificadas em 1.1., circulava o veículo CL, da marca Fiat, modelo Doblo Cargo D, a uma velocidade não concretamente apurada mas superior a 50 km/h e inferior a 100 km/h.
1.14. Circulava pela via do centro da faixa de rodagem, no mesmo sentido que o autor.
1.15. Nas circunstâncias de tempo e lugar identificadas em 1.1., o veículo NI, da marca Porsche, modelo ..., ..., circulava na via mais à esquerda da faixa de rodagem.
1.16. Circulava a uma velocidade de pelo menos 164 km/h.
1.17. O veículo NI embateu com a frente direita na traseira esquerda do veículo CL.
1.18. O embate ocorreu quando o veículo CL mudou da faixa do meio para a faixa mais à esquerda, contando que ali não circulasse nenhum veículo, nem esperando que ali de repente surgisse o NI àquela velocidade, sendo que tal mudança de faixa teve a ver com a manobra de ultrapassagem empreendida pelo condutor do veículo CL relativamente a um veículo que seguia na mesma faixa, à sua frente.
1.19. Em consequência do embate, o veículo CL entrou em despiste para a direita, tombou lateralmente, galgou o separador e os rails desse lado, tendo vindo a imobilizar-se capotado, de lado, na saída “K...”, a cerca de 40 m do local do embate, junto da placa “K...”.
1.20. O veículo NI continuou a marcha após o embate no CL e foi embater com a sua frente na traseira esquerda do veículo ZP que seguia na via mais à direita.
1.21. Em consequência do embate, o autor perdeu o controlo do veículo ZP que rodopiou sobre o seu eixo, embateu nos rails do lado direito da via e capotou, vindo a imobilizar-se a cerca de 30 metros do viaduto ali existente, com a frente virada para o sentido .../....
1.22. Do embate identificado em 1.17. resultou a morte do condutor do veículo CL.
1.23. Em consequência do embate, o autor B... sofreu equimoses nas mãos, hematomas e escoriações.
1.24. Após o embate, o autor foi assistido pela Corporação de Bombeiros Voluntários que o transportaram para o Hospital ....
1.25. Nos serviços de urgência do Hospital ..., o autor foi sujeito a exames radiológicos e complementares de diagnóstico.
1.26. Foram-lhe ministrados medicamentos.
1.27. Os ferimentos sofridos pelo autor determinaram-lhe 22 dias de doença, incapacitando-o para o trabalho.
1.28. No próprio dia do embate o autor obteve alta hospitalar.
1.29. Despendeu o autor, no episódio de urgência, os valores de € 19,40 (taxa moderadora) e de € 56,16.
1.30. O autor regressou a casa, onde se manteve convalido e retido no leito durante 22 dias, em virtude de ter fortes dores nas mãos e de não conseguir movimentá-las, para além de sentir todo o corpo dorido, nomeadamente, sentia dores nas costas e no peito.
1.31. Após o embate e durante cerca de 22 dias, o autor sentia-se diariamente estonteado e desorientado, sendo que as dores que sentia o impediam de descansar e, designadamente, de dormir.
1.32. Durante o período de cura das escoriações e equimoses, o autor aplicava diariamente nas suas mãos “betadine” e água oxigenada, nos quais despendeu cerca de 30,00 €.
1.33. No momento do embate o autor sofreu um susto, sentiu aflição e receou pela própria vida.
1.34. Em consequência do embate o autor sofreu incómodos e angústia.
1.35. Devido ao embate, o autor tem receio de conduzir veículos automóveis, em especial na A28.
1.36. Após o embate, o autor tinha pesadelos relacionados com o mesmo e não conseguia dormir, situação essa geradora de ansiedade.
1.37. A ocupante que seguia com o autor no veículo ZP ficou ferida.
1.38. O autor tornou-se uma pessoa nervosa.
1.39. Em consequência do embate, o autor sofre de crises de ansiedade, tendo já tido necessidade, por duas vezes, de recorrer aos serviços de urgência do Hospital L....
1.40. Em consequência do embate, o autor viu destruídos os seguintes bens, os quais se encontravam no interior do veículo ZP: um computador portátil, marca Toshiba, um computador portátil, marca HP; um telemóvel, marca Samsung, modelo ...; um GPS ...; um casaco de couro; um casaco de malha de cor preto; uns óculos de sol, marca Arnette; e, um par de sapatos.
1.41. O valor dos bens identificados em 1.40. totaliza, pelo menos, a quantia de 1.900,00€.
1.42. Por efeito do embate, o veículo ZP sofreu danos a nível da chaparia, pintura e motor, ficando impossibilitado de circular.
1.43. Esteve paralisado desde 10.05.2013, data do embate, até ser enviado para abate.
1.44. Por carta datada de 28.05.2013, a ré “D...” comunicou à autora que “foram apurados para o veículo em referência os seguintes valores que, determinam estarmos operante uma Perda Total:
Estimativa da reparação: 6.162,62 €
Valor venal do Veículo: 3.250 €
Valor do veículo danificado: 300 €.
Assim, apura-se um montante de 2950€, tendo em conta a melhor valorização obtida para o veículo, já deduzido do valor que o mesmo tem danificado.”
1.45. As rés não colocaram qualquer veículo de substituição à disposição da autora.
1.46. A Autora utilizava o veículo ZP nas suas deslocações do quotidiano.
1.47. O veículo era também utilizado pelo seu filho, o aqui autor, o qual transportava diariamente a sua irmã G... para a Escola H..., sita em Viana do Castelo.
1.48. Em consequência do embate, a autora ficou privada da utilização do veículo ZP por um período de 832 dias, o que lhe causou incómodos.
1.49. A autora utilizava o seu veículo ZP na sua actividade profissional.
1.50. A autora contratou o aluguer de uma viatura automóvel de características semelhantes ao veículo ZP, da marca Ford, com a matrícula ..-JN-.., durante o período de 17 dias, designadamente entre o dia 15.05.2013 até 31.05.2013.
1.51. Pelo aluguer do veículo, a autora pagou à empresa “M..., Lda. ”, a quantia de € 595,00 (35€ x 17 dias).
1.52. O veículo ZP encontrava-se em bom estado de conservação, tendo efectuado as revisões periódicas.
1.53. O valor do veículo ZP, à data do embate, era de pelo menos € 3.250,00.
1.54. Por contrato de seguro titulado pela apólice n.º .........., em vigor à data do embate, a ré “D...” assumiu a responsabilidade civil por danos causados a terceiros pelo veículo NI.
1.55. Por contrato de seguros titulado pela apólice n.º ........., em vigor à data do embate, a ré “E...” assumiu a responsabilidade civil por danos causados a terceiros pelo veículo CL.
1.56. O veículo NI, após o embate no veículo ZP, rodou sobre si mesmo, embateu com a traseira nas guardas de protecção e veio a imobilizar-se a cerca de 130 metros do local do primeiro embate, debaixo de um viaduto ali existente, virado no sentido de marcha .../....
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IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA:
IV.I. Impugnação da decisão de facto:
Como resulta da fixação do objecto do presente recurso [delimitado, como se referiu, pelas conclusões recursivas, salvo no que seja de conhecimento oficioso] a primeira questão que importa dirimir refere-se à impugnação da decisão de facto proferida pelo tribunal recorrido.
Em matéria de impugnação da decisão de facto, é de dizer que, como é consabido, a reapreciação da prova produzida em 1ª instância, enquanto garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto, está subordinada à observância de determinados ónus que a lei adjectiva impõe ao recorrente.
Na verdade, a apontada garantia nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida na audiência final, impondo-se, por isso, ao recorrente, no respeito dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa-fé processuais, que proceda à delimitação com toda a precisão dos concretos pontos da decisão que pretende questionar, dos meios de prova, disponibilizados pelo processo ou pelo registo ou gravação nele realizada, que imponham, sobre aqueles pontos, distinta decisão, e a decisão que, no ver do Recorrente, deve ser encontrada para os pontos de facto objecto da impugnação, deduzindo a sua (própria) apreciação crítica da prova.
Neste sentido, preceitua, sob a epígrafe ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, o n.º 1 do art. 640º do CPC que «Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.»
Deve, assim, o recorrente, sob cominação de imediata rejeição do recurso - sem possibilidade de convite ao aperfeiçoamento do requerimento recursivo [1] -, especificar com toda a precisão os concretos pontos da decisão de facto que pretende questionar, com enunciação nas alegações e síntese nas conclusões [2], motivar o seu recurso através da indicação dos meios de prova constantes dos autos ou que neles tenham sido registados e que impõem decisão diversa quanto a cada um dos factos, e relativamente aos pontos da decisão de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, cumpre-lhe, ainda, indicar com exactidão as passagens da gravação relevantes.
Por outro lado, ainda, terá o recorrente de deixar expressa a decisão que, no seu entendimento, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos. [3]
Dito isto, e sendo certo que, a nosso ver, deu a apelante cumprimento aos aludidos ónus, cumpre conhecer da presente impugnação de facto.
No caso ora sob escrutínio a matéria de facto posta em crise é a que consta do ponto 1.44 dos factos provados da sentença recorrida, sustentando, neste âmbito, a apelante que o tribunal recorrido, à luz do documento n.º 7 junto à petição inicial (a fls. 74 dos autos), deveria ter julgado como não provada a matéria ali feita constar e, ao invés, ter como provado que o valor do veículo ZP à data do acidente “ rondava os € 5.500,00”.
Neste conspecto, é de dizer que não assiste razão à apelante.
Desde logo, a impugnação em causa parte de um equívoco devidamente salientado pela recorrida nas suas contra-alegações.
Com efeito, o ponto 1.44 do elenco dos factos provados [único que se mostra impugnado no corpo das alegações e nas conclusões do recurso interposto pela apelante] não se refere ao valor do veículo NP à data do acidente em apreço, mas antes, como dele expressamente consta, ao teor da carta de 28.05.2013, enviada pela Ré “D..., SA.” à Autora, dando-lhe conta dos valores propostos para efeitos de ressarcimento pela perda do veículo NP no sinistro e ali indicando, para tanto, o valor estimado da reparação, o valor venal (comercial) do veículo e, ainda, o valor dos “salvados”, isto é, o valor do veículo danificado.
Ora, não tendo a Autora (que, aliás, foi quem juntou aos autos a dita carta – vide fls. 71 dos autos) posto em causa a emissão de tal carta pela “D..., SA” e o recebimento da mesma, é evidente, a nosso ver, que a matéria feita constar do ponto 1.44 não pode ser alterada nos termos propostos pela apelante e, em particular, por mero confronto com o documento de fls. 71 dos autos (proposta de aquisição do veículo por um terceiro e pelo valor de € 5.500,00), pois que uma realidade nada tem a ver com a outra.
Com efeito, como é bom de ver, a circunstância de a apelante ter recebido uma proposta de aquisição do veículo em apreço pelo aludido preço não prejudica, nem afasta que a seguradora “D..., SA” tenha emitido e enviado à autora a carta de fls. 71, sendo certo que, como já se salientou, é essa a única matéria de facto dada como provada sob o aludido ponto 1.44 da sentença.
Por conseguinte, a impugnação, por esta simples razão, deve, desde logo, improceder.
Mas, ainda, outras razões se podem convocar para essa improcedência.
Com efeito, é certo que, segundo se depreende do conteúdo e sentido da impugnação da apelante em face da decisão recorrida, o que a mesma verdadeiramente impugna não é o ponto 1.44 dos factos provados, mas o valor comercial do veículo ZP à data do acidente, ou seja, o ponto 1.53 do mesmo elenco da sentença recorrida, onde se deu como provado que “o valor do veículo ZP, à data do embate, era de pelo menos € 3.250,00.”
Porém, certo é também que a apelante não impugna este outro facto (e incumbe-lhe, como já antes se referiu, especificar com toda a precisão a matéria de facto de cujo julgamento dissente – cfr. art. 640º, n.º 1 al. a) do CPC) e, por outro lado, ao tribunal de recurso não está atribuído o poder de, a título oficioso, corrigir a impugnação da decisão de facto que o apelante deduziu, convertendo-a na impugnação que o mesmo deveria ter deduzido, mas não deduziu, sendo certo que, como se vê do texto das alegações e das conclusões, não se trata, manifestamente, de um qualquer erro ou lapso de escrita evidente ou notório no contexto da impugnação deduzida pela apelante.
O que significa, pois, que a impugnação da decisão de facto não pode proceder, antes se impondo a sua improcedência, mantendo-se o ponto 1.44 do elenco dos factos provados da sentença recorrida.
Mas mesmo que assim não se entenda – e olhando o recurso mais sob uma perspectiva substantiva, abstraindo do aspecto, dir-se-ia, formal da questão -, não obstante, a improcedência da impugnação deduzida sempre se imporia.
Com efeito, não basta para efeitos de prova do valor venal ou comercial do veículo à data do acidente proceder-se à junção de um documento particular (que foi impugnado pelas RR.) a “titular” uma pretensa proposta de compra por um determinado valor quando, como bem se refere na motivação da decisão de facto constante da sentença, essa proposta não foi confirmada de nenhuma forma pela demais prova pessoal produzida em julgamento e, em particular, quando o/a pretenso/a proponente à aquisição do veículo em causa não confirmou, de viva voz em audiência e de forma sustentada e credível, essa sua oferta para a aquisição do veículo em causa.
Por conseguinte, à luz de todo o exposto, e tendo presente os subsídios probatórios constantes dos autos, só nos resta concluir que nenhuma razão válida e séria se evidencia para alterar nesta instância o dito ponto 1.44 do elenco dos factos provados, nem, ainda, sequer, para alterar o ponto 1.53 do mesmo elenco e, neste último ponto, admitindo, por dever de cautela, que seria ele o facto que a apelante quereria impugnar, embora o não tenha feito.
Improcede, assim, a impugnação de decisão de facto, mantendo-se, na íntegra, a decisão proferida quanto ao julgamento da matéria de facto, a qual servirá, pois, de base à decisão do mérito do recurso, sendo certo que nenhum outro facto se mostra impugnado.
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IV.II. Da indemnização arbitrada à apelante a título de perda total do veículo – valor venal:
Fixado o quadro factual relevante, a primeira questão que se mostra suscitada pela apelante é a do valor venal que na sentença foi atribuído ao seu veículo atingido pelo acidente em apreço nos autos e que, fruto do mesmo, foi dado como “perdido”, ou seja, sem possibilidade de reparação, tendo permanecido paralisado desde a data do acidente e até ser enviado para abate - cfr. pontos 1.42 e 1.43 da factualidade provada.
Neste conspecto, como é consabido o instituto da responsabilidade civil extracontratual aplicável em situação de danos ocorridos em consequência de acidente de viação tem em vista tornar indemne o lesado, ou seja, repor a situação em que (tanto quanto possível) estaria o mesmo lesado se não tivesse tido lugar o facto danoso.
Com efeito, como resulta do princípio geral consignado no art. 562º do Cód. Civil “quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”, sendo certo também que, como decorre do n.º 1 do art. 564º do mesmo Código, “o dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão.”
Destarte, e como é pacífico, atenta a sobredita finalidade da obrigação indemnizatória a cargo do lesante, no domínio dos danos materiais ou patrimoniais (pois que é nesse âmbito que se situa a questão suscitada) a obrigação de indemnizar abrange não só o ressarcimento dos danos emergentes – o prejuízo causado nos bens ou nos direitos já existentes na titularidade do lesado à data do evento -, mas, ainda, os lucros cessantes - benefícios, proventos que o lesado deixou de obter por causa do facto ilícito, mas a que não tinha ainda direito à data do evento. [4]
No caso dos autos, é indiscutido à luz das conclusões recursivas [que delimitam o objecto do recurso e, consequentemente, a actividade jurisdicional do tribunal de 2ª instância] que o veículo da apelante ficou, como já se referiu, substancialmente danificado em consequência do acidente, não sendo viável a sua reparação, tendo, pois, sido levado para “abate”.
Vale, pois dizer que, no caso dos autos, a questão não se coloca em sede de reparação do veículo e da eventual onerosidade dessa reparação por confronto com o valor venal/comercial do veículo, rectius, valor de substituição do veículo à data do acidente [5], mas em sede de estrito valor comercial do veículo à data do acidente – ou seja, o valor pecuniário que o veículo ZP representava no património da autora à data do acidente e que, por via do mesmo, foi suprimido -, valor este que o tribunal fixou em € 3.250,00, assim obtendo, deduzido o valor dos salvados (€ 300,00), o quantum indemnizatório de € 2.950,00, que, neste âmbito, fixou em favor da autora e ora apelante.
Com efeito, é deste valor que a ora apelante discorda, pois que, como já antes se expôs em sede de impugnação da decisão de facto, sustenta que o valor comercial a considerar para efeitos de fixação do quantum indemnizatur deveria ter sido € 5.500,00.
Ora, contendo-se o litígio neste domínio, como é bom de ver, a procedência desta pretensão da apelante só poderia ter provimento – e sendo indiscutido, como é, à luz do regime jurídico que emerge dos citados arts. 562º e 564º do Cód. Civil, que lhe assiste direito ao recebimento do valor comercial do viatura à data do sinistro – se tivesse ela logrado demonstrar que essa viatura ZP tinha, à data do evento, o valor comercial de € 5.500,00, como alegou, mas não provou, antes se provando (como já exposto em sede de impugnação da decisão de facto) que esse valor era, à data do sinistro, de € 3.250,00, o que deduzido do valor dos salvados (€ 300,00) conduz, pois, ao montante indemnizatório fixado na sentença recorrida de € 2.950,00.
Na verdade, dúvidas não existem que o dano e o seu quantitativo, enquanto elementos constitutivos da pretensão indemnizatória, têm de ser demonstrados pelo lesado, como emerge da conjugação do preceituado nos arts. 342º, n.º 1 e 483º do Cód. Civil. [6]
O que vem a significar que, neste segmento ou questão, não ocorrem razões jurídicas para nos desviarmos do sentenciado em 1ª instância, improcedendo, assim, as conclusões I a IX do recurso.
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IV.III. Do dano de privação do uso do veículo:
Dirimida a questão antecedente, cumpre agora conhecer da questão da privação do uso do veículo da autora/apelante, sendo certo que, neste âmbito, a única questão que verdadeiramente se mostra esgrimida nesta sede é o montante diário que o tribunal teve por referência para o cálculo da indemnização em apreço, ou seja, € 10,00, sustentando, ao invés, a apelante que deveria o tribunal ter por referência um valor “entre os € 15,00 e os € 35,00 diários”, consignando, ainda, que o valor considerado na sentença é insuficiente e contrário ao valor atribuído pelos Tribunais Superiores.
Nesta matéria relevam os seguintes factos:
1.42. Por efeito do embate, o veículo ZP sofreu danos a nível da chaparia, pintura e motor, ficando impossibilitado de circular;
1.43. Esteve paralisado desde 10.05.2013, data do embate, até ser enviado para abate.
1.45. As Rés não colocaram qualquer veículo de substituição à disposição da autora;
1.46. A Autora utilizava o veículo ZP nas suas deslocações do quotidiano.
1.47. O veículo era também utilizado pelo seu filho, o aqui autor, o qual transportava diariamente a sua irmã G... para a Escola H..., sita em Viana do Castelo.
1.48. Em consequência do embate, a autora ficou privada da utilização do veículo ZP por um período de 832 dias, o que lhe causou incómodos.
1.49. A Autora utilizava o seu veículo ZP na sua actividade profissional.
1.50. A Autora contratou o aluguer de uma viatura automóvel de características semelhantes ao veículo ZP, da marca Ford, com a matrícula ..-JN-.., durante o período de 17 dias, designadamente entre o dia 15.05.2013 e até 31.05.2013.
1.51. Pelo aluguer do veículo, a autora pagou à empresa “M..., Lda.” a quantia de € 595,00 (35€ x 17 dias).
Tendo por base o supra descrito quadro factual, na sentença recorrida decidiu-se atribuir à autora a quantia de € 595,00 antes referida sob o ponto 1.51 [questão que se mostra definitivamente dirimida, pois que, neste segmento, a decisão recorrida não é posta em crise pela apelante] e a quantia de € 8.320,00, a título de indemnização pela privação do uso, partindo-se de um referencial diário de € 10,00 [832 dias de privação do uso x 10,00 = 8.320,00].
Por seu turno, segundo a apelante, esse referencial utilizado pelo tribunal a quo é desajustado e inferior aos valores usualmente atribuídos na jurisprudência.
É esta, assim, a única e concreta questão colocada à reapreciação deste Tribunal.
Quid iuris?
Nos casos, como o presente, em que em consequência de acidente de viação ocorra a imobilização de veículo - haja privação temporária de uso ou privação definitiva da viatura [7] – podem ocorrer os seguintes danos:
- um dano emergente, derivado da utilização mais onerosa de um meio de transporte alternativo, designadamente o aluguer de um outro veículo através das empresas do ramo; Este dano tem, em face do já expendido, de ser indemnizado, enquanto despesa originada pelo acidente, como no caso sucedeu através da atribuição da quantia que, a esse título, a autora despendeu, ou seja, os já referidos € 595,00 que a ré foi condenada a pagar à autora, acrescida dos respectivos juros de mora.
Neste segmento, como já se referiu, a decisão recorrida não se mostra posta em crise, tratando-se, pois, de questão definitivamente dirimida.
- um lucro cessante, em consequência da perda de (eventual) rendimento que o veículo proporcionava, no caso de o mesmo ser utilizado em alguma actividade comercial;
No caso dos autos, não obstante estar demonstrado que o veículo era utilizado pela autora na sua actividade profissional, certo é que o quadro factual que emerge da sentença não ilustra que, por força da privação do veículo ZP, tenha emergido para essa actividade profissional uma qualquer repercussão negativa. Aliás, nesse conspecto, nada foi alegado pela autora na sua petição inicial e, consequentemente, nada se provou.
Por outro lado, como se vê dos termos do recurso, a questão não se mostra suscitada sob a perspectiva de eventuais lucros cessantes decorrentes da privação do veículo, mas antes no estrito domínio da privação do uso do mesmo e respectiva indemnização.
Ora, além dos danos já referidos, cujo ressarcimento não suscita quaisquer dúvidas posto que a respectiva indemnização e a determinação do seu quantum decorre da teoria da diferença tal como consignada nos arts. 562º e 566º, n.º 2 do Cód. Civil, pode, ainda, concorrer um outro dano que consiste na privação do uso do veículo.
O ressarcimento deste último dano tem, como é consabido, merecido entre nós algumas reservas, sendo que o principal óbice que tem sido erigido à sua ressarcibilidade prende-se com a sua natureza abstracta, quando é certo que a responsabilidade civil exige a produção de um dano concreto cuja medida sirva para quantificar a indemnização, acrescentando-se ainda que o simples dano da privação do uso não seria compatível com a teoria da diferença, uma vez que a comparação que esta pressupõe (entre a situação real e a situação que existiria se não fosse o evento danoso) não pode revelar a existência daquele dano.
Por conseguinte, o problema do ressarcimento do dano da privação do uso está longe de merecer uma resposta doutrinal e jurisprudencial unívoca, desde logo quanto à natureza patrimonial ou não patrimonial do dano em apreço.
Contudo, esta clivagem não se limita à qualificação da natureza do dano de privação do uso no quadro dos danos patrimoniais ou não patrimoniais.
Com efeito, mesmo quando se aceita a natureza patrimonial do dano em causa, posição que sufragamos, para uns [8], o dano da mera privação do uso não é indemnizável, já que para que a privação seja ressarcível terá de fazer-se prova do dano concreto e efectivo, isto é, da existência de prejuízos decorrentes directamente da não utilização do bem, para outros [9], a simples privação do uso, só por si, constitui um dano indemnizável, mesmo que nada se prove a respeito da utilização ou destino que seria dado ao bem e, ainda, outros [10] defendem que, se por um lado, não basta a mera privação do uso do bem, também não é de exigir a prova de danos efectivos e concretos, bastando a prova da frustração de um propósito real, concreto e efectivo de proceder à sua utilização.
A nível doutrinário, as posições também são divergentes; Uma parte da doutrina [11] defende a ressarcibilidade da simples privação do uso, independentemente do uso efectivo que é dado ao bem, outra parte [12] recusa a indemnização pela mera privação do uso, exigindo para tanto a prova de um propósito concreto de utilização efectiva do bem (uso regular do bem a nível pessoal ou familiar/profissional), a partir do qual será de presumir (por presunção natural) a existência de danos concretos, merecedores de ressarcimento.
Por nossa parte, e ainda que no caso a questão não se revele decisiva, atenta a prova quanto à utilização pessoal, familiar e profissional do veículo sinistrado, afigura-se-nos que a privação do gozo de uma coisa pelo titular do direito perpetrado por terceiro constitui, à partida, um facto ilícito que o sistema jurídico prevê como fonte da obrigação de indemnizar, pois que, por norma ou regra, essa privação impede o proprietário de dela dispor e fruir as utilidades próprias da sua natureza.
Não obstante, como tem salientado o Supremo em alguns dos aludidos arestos já citados, a questão do ressarcimento da privação do uso não pode ser apreciada e resolvida em abstracto, aferida pela mera privação objectiva de utilização da coisa, obrigando, ao invés, a uma análise casuística.
Na verdade, em nosso ver, uma coisa é a privação do uso e outra, que conceptualmente não coincide necessariamente, será a privação da possibilidade de uso.

Uma pessoa só se encontra realmente privada do uso de alguma coisa, sofrendo com isso prejuízo digno de ser ressarcido, se realmente a pretender usar e utilizar caso não fosse a impossibilidade de dela dispor. Não pretendendo fazê-lo, apesar de também o não poder, está-se perante a mera privação da possibilidade de uso, sem repercussão económica, que, só por si, não revela, a nosso ver, um dano patrimonial indemnizável.
É que bem pode acontecer que alguém seja titular de um bem e apesar de privado da possibilidade de o usar durante certo tempo, não sofra com isso qualquer lesão por não se propor aproveitar das respectivas vantagens ou utilidades, como pode suceder com o dono de um automóvel que o não utiliza ou utiliza em circunstâncias que uma certa indisponibilidade não afecta, ou com o proprietário de um prédio ou de terreno que lhe não dá qualquer espécie de utilização. Bastará, no entanto, como salienta Maria Graça Trigo, op. cit., pág. 64 e tem sido salientado pela mais recente jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça que a realidade processual evidencie que o lesado pretendia usar a coisa ou que normalmente a usaria, para que o dano decorrente da sua privação ocorra e, por via disso, a respectiva indemnização pela privação do uso seja devida, e ainda que não se comprove um acréscimo de despesa, v.g., a título de aluguer de um veículo alternativo ou com a utilização de outros meios de transporte, como seja, transportes públicos ou táxi.
Daí que, em nosso ver, e com o devido respeito por opinião em contrário, não baste a simples privação, em si mesma, sendo necessário ainda que se alegue e prove a frustração de um propósito de proceder à utilização da coisa, demonstrando o lesado que a pretenderia usar, dela retirando utilidades que a mesma normalmente lhe proporcionaria, não fora a privação dela pela actuação ilícita de outrem, o lesante. [13]
Com efeito, como faz notar Paulo Mota Pinto, na obra já antes citada, se a afectação das faculdades de uso e fruição, integrantes do direito de propriedade, constitui um acto ilícito, uma vez que ilicitude e dano não se confundem e uma não significa a outra, a verificação da mera privação do uso não gera automaticamente a obrigação de indemnizar, sendo suposto, pois, que o lesado demonstre, para além da mera privação da possibilidade do uso, a privação de concretas utilidades que para si provinham do uso da coisa, como sejam, a utilização regular a título pessoal, familiar e/ou profissional do veículo, como, aliás, será o normal nos nossos dias. [14]
Dito isto, no caso dos autos é indiscutido que este dano de privação de uso do veículo ZP se mostra cabalmente demonstrado, pois que, como emerge da factualidade provada, a autora utilizava o mesmo com regularidade, em termos quotidianos, para a sua vida pessoal, familiar e para a sua actividade profissional, dele tendo ficado privada durante 832 dias.
Neste ponto, aliás, como já antes se cuidou de referir, apelante e apelada não põem em crise a existência do dano de privação do uso sofrido pela autora, dano esse que, como se viu da exposição anterior também temos como demonstrado, o que verdadeiramente esgrimem é os termos do respectivo cálculo.

Diremos, assim, que a questão que se coloca é a de saber em que termos deve ser fixado o quantum indemnizatur em situação como a presente, sendo certo que a teoria da diferença (artigo 566.º, n.º 2 do Cód. Civil), que serve de critério para essa determinação, não se revela, em concreto, operacional para tal efeito.
Na verdade, quando a privação do uso não se traduza numa diferença patrimonial quantificável entre a situação que existiria se não ocorresse a privação e aquela que existe por causa dela, ficamos carecidos de valores para calcular a diferença, não obstante a existência de um dano que deve, nos termos já acima expostos, ser indemnizado.
A este propósito, Menezes Leitão [15] preconiza que a atribuição da quantia indemnizatória pode ter como referencial o valor locativo do veículo.
Afigura-se-nos, no entanto, que a indemnização pela indisponibilidade do veículo nunca se poderá pautar, em termos estritos e exactos, pelo preço praticado pelas empresas de rent-a-car e para o aluguer de um automóvel da mesma classe do acidentado, porquanto neste custo (de aluguer) entram as mais diversas componentes, incluindo as despesas de exploração da empresa de aluguer e o seu lucro. Nesta perspectiva, o valor locativo não ser definido como critério abstracto para efeitos indemnizatórios antes deve apenas ser tomado como um critério de referência ou meramente orientador. [16]
Se pretendermos aferir o valor de uso do veículo para uso próprio, na esteira do entendimento sufragado no acórdão da Relação de Coimbra de 6.03.2012 [17], será possível aproximar-nos desse valor se somarmos o preço de aquisição e as despesas de manutenção médias ao longo do período previsível da sua utilização (revisões, reparações e seguros), dividindo a soma pelo número de dias de vida média calculada para o veículo.
Porém, ainda assim, este valor difere do preço de aluguer de um veículo, já que, nesse caso, além do preço do automóvel e despesas de manutenção, entram outras componentes, como o lucro do empresário e os custos gerais da empresa (impostos, salários e custos com trabalhadores, seguros, etc.).
Por tais razões, o valor do aluguer tem de ser, naturalmente, superior ao valor de “uso doméstico” e daí que não se mostre adequado, salvo se corrigido.
Segundo Paulo Mota Pinto, em alternativa, para efeitos indemnizatórios, poder-se-á seguir o seguinte critério: “Pensamos que o dano da privação do uso deverá ser quantificado num valor que pode ser obtido de uma de duas formas; ou (como de “cima para baixo”) a partir dos custos de um aluguer durante o lapso de tempo em causa, mas “depurados” do lucro do locador, dos custos gerais como os gastos com a manutenção da frota, as provisões para períodos de paragem dos veículos, as amortizações, etc. (no direito alemão os valores constantes das referidas tabelas rondam cerca de um terço dos custos de aluguer normalmente praticados); ou (como que “de baixo para cima”), designadamente, para viaturas de profissionais e empresas, a partir dos custos de capital imobilizado necessário para obter a disponibilidade de um bem, como aquele durante o período de tempo necessário (por ex., os custos necessários para constituir uma reserva de um bem como o que está em causa).”[18]

Evidentemente que, para se usarem os mecanismos propostos, as partes têm de fornecer os ditos elementos factuais para que o tribunal possa chegar a alguma conclusão, pois que não contendo os autos o pertinente substracto factual, o tribunal ficará impedido de aplicar estes outros critérios.
Todavia, ainda que o tribunal não disponha de elementos suficientes para calcular a diferença patrimonial entre a situação actual e a que o lesado teria se não tivesse ocorrido o evento, como ocorre no presente caso, sempre o tribunal deverá recorrer à equidade para fixar uma indemnização, nos termos previstos no artigo 566.º, n.º 3 do Cód. Civil.
Com efeito, como se sublinha no Acórdão do STJ de 3.05.2011, antes citado, “a avaliação do dano em causa, se outro critério não puder ser adoptado, será determinada pela equidade, dentro dos limites do que for provado, nos termos estabelecidos no art. 566º, n.º 3 do Cód. Civil.”
Em idêntico sentido refere também Maria da Graça Trigo, op. cit., pág. 64, que feita a prova do uso regular do veículo no âmbito da via pessoal, familiar e /ou profissional, e aplicando o critério do art. 566º, n.º 3, do CC, o valor locativo há-de servir como tecto máximo para efeitos indemnizatórios; “Até esse montante, o juiz deverá encontrar um valor equitativo ad hoc.”
Ora, neste enquadramento, atenta a factualidade provada e a utilização quotidiana, pessoal, familiar e profissional que era efectuada do veículo, atento o período em que a autora esteve privada do mesmo, atento (como critério orientador) o valor de aluguer de um veículo similar, apelando a critérios de equidade e ponderando os valores usuais na nossa jurisprudência [19], cremos ser adequado, no caso sub judice, à luz das regras da boa prudência, de um criteriosa ponderação das realidades da vida e do bom senso prático, fixar o montante diário em € 15,00, a título de dano pela privação do uso do veículo da autora ao invés dos € 10,00 fixados na sentença recorrida.
Por conseguinte, a indemnização devida pela Ré ascenderá, neste segmento, ao valor de € 12.480,00 (€ 15,00 x 832 dias), superior, portanto, ao montante de € 8.320,00 que a esse título se fixou na sentença recorrida.
O que vem, pois, a traduzir-se na parcial procedência da apelação, neste segmento.
*
V. DECISÃO:
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto em julgar parcialmente procedente a apelação, condenando a Ré “F..., SA” a pagar à Autora C..., a título de privação do uso, a quantia de € 12.480,00 (doze mil quatrocentos e oitenta euros), mantendo em tudo o mais a sentença recorrida.
*
Custas do recurso pela apelante e apelada, na proporção do respectivo decaimento - art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC. -, sem prejuízo do apoio judiciário concedido à apelante.
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Porto, 8.10.2018
Jorge Seabra
Fátima Andrade
Fernanda Almeida

(O presente acórdão não obedece na sua elaboração às regras do novo acordo ortográfico)
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[1] Vide, neste sentido, por todos, A. ABRANTES GERALDES, “ Recursos No Novo Código de Processo Civil ”, Almedina, 2ª edição, 2014, pág. 134.
[2] Vide, ainda, A. ABRANTES GERALDES, op. cit., pág. 132 e, por todos, AC STJ de 23.02.2010, relator FONSECA RAMOS, in www.dgsi.pt.
[3] Vide, ainda, A. ABRANTES GERALDES, op. cit., pág. 132-133.
[4] Vide, por todos, neste sentido, A. VARELA, “Das Obrigações em Geral”, I volume, 6ª edição, pág. 569 e L. MENEZES LEITÃO, “Direito das Obrigações”, I volume, 7ª edição, pág. 337.
[5] Sobre a problemática em referência vide, por todos, JÚLIO GOMES, “Custo das reparações, valor venal ou valor de substituição?”, Cadernos de Direito Privado, n.º 3 (Julho-Setembro de 2013), pág. 55 e seguintes e MARIA da GRAÇA TRIGO, “Responsabilidade Civil – Temas Especiais”, 2015, pág. 45 e seguintes e a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça referenciada esta última obra sob a pág. 41.
[6) Vide, neste sentido, por todos, P. LIMA, A. VARELA, “Código Civil Anotado”, I volume, 4ª edição, pág. 305.
[7] Vide sobre a matéria MARIA GRAÇA TRIGO, op. cit., pág. 66-67.
[8] Vide, neste sentido, AC STJ de 6.05.2008, relator URBANO DIAS, AC STJ de 30.10.2008, relator SALVADOR da COSTA e AC STJ de 4.05.2010, relator SEBASTIÃO PÓVOAS, todos in www.dgsi.pt.
[9] Vide, neste sentido, AC STJ de 8.10.2009, relator OLIVEIRA ROCHA, AC STJ de 29.04.2010, relator SOARES RAMOS e AC STJ de 8.05.2013, relator MARIA dos PRAZERES PIZARRO BELEZA, disponíveis in www.dgsi.pt.
[10] Vide, neste sentido, AC STJ de 9.12.2008, relator MOREIRA ALVES, AC STJ de 3.05.2011, relator NUNO CAMEIRA e AC STJ de 9.07.2015, relator FERNANDA ISABEL PEREIRA, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
[11] Vide, neste sentido, A. SANTOS GERALDES, “Indemnização do Dano de Privação do Uso”, Almedina, 2001, pág. 30 e seguintes, L. MENEZES LEITÃO, “Direito das Obrigações”, cit., pág. 339 (e nota 702), JÚLIO GOMES, RDE, ano 12, 1986, pág. 169 e seguintes.
[12] PAULO MOTA PINTO, “Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo”, I volume, pág. 568-596 e MARIA da GRAÇA TRIGO, op. cit., pág. 64.
[13] Vide, neste sentido, além dos arestos do Supremo já citados sob a nota 10, ainda, AC RP de 24.11.2015, relator JOSÉ IGREJA, AC RP de 8.092014, relator ALBERTO RUÇO, AC RP de 30.06.2014, relator MANUEL DOMINGOS FERNANDES e AC RP de 15.06.2013, relator RUI MOREIRA, todos in ww.dgsi.pt.
[14] PAULO MOTA PINTO, op. cit., pág. 568-596, citado por MARIA da GRAÇA TRIGO, op. cit., pág. 60.
[15] L. MENEZES LEITÃO, op. cit., pág. 339, nota 701.
[16] Vide, neste sentido, por todos, AC STJ de 24.04.2017, relator HÉLDER ROQUE, disponível in www.dgsi.pt.
[17] Relatado por ALBERTO RUÇO, disponível in www.dgsi.pt.
[18] PAULO MOTA PINTO, op. cit., pág. 592.
[19] Vide sobre a matéria, por todos, AC RC de 20.03.2007, relator CARDOSO de ALBUQUERQUE, AC RC de 6.03.2012, antes citado, AC RL de 18.09.2007, relator MARIA JOSÉ SIMÕES, AC RL de 29.04.2014, relator MARIA TERESA PARDAL, AC RG de 19.01.2017, relator HIGINA CASTELO, AC RP de 16.06.2014, relator MANUEL DOMINGOS FERNANDES, todos disponíveis in ww.dgsi.pt.