Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2224/17.2T8AVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA CECÍLIA AGANTE
Descritores: DELIBERAÇÕES SOCIAIS
REDUÇÃO
CAPITAL SOCIAL
REEMBOLSO
CAPITAL REDUZIDO
INTERPRETAÇÃO DA DELIBERAÇÃO
PODERES DO CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO
Nº do Documento: RP201904112224/17.2T8AVR.P1
Data do Acordão: 04/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º885, FLS.201-219)
Área Temática: .
Sumário: I - Às deliberações sociais das sociedades comerciais é aplicável o princípio geral de interpretação da declaração negocial segundo a teoria da impressão do destinatário.
II - Nessa medida, relevando o interesse dos sujeitos diferentes dos votantes cuja esfera jurídica é atingida pelos efeitos da deliberação, o autor assume a posição de declaratário.
III - Tendo a deliberação autorizado o Conselho de Administração ao reembolso do capital libertado, proporcionalmente às ações detidas pelos acionistas, por uma ou mais vezes, conforme achar oportuno em função das disponibilidades de liquidez, e sem prejuízo para a normal atividade da sociedade ré e das empresas participadas, o sentido apreendido por um declaratário normal, colocado na posição do autor, só pode ser o de que a restituição será feita segundo o juízo de oportunidade do Conselho de Administração.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo 2224/17.2T8AVR
Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Juízo de Comércio de Aveiro - Juiz 3
Acórdão
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I. RELATÓRIO
B…, casado, residente na Rua …, …, …. - … …, instaurou esta ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra C…, S.A., com sede na Rua …, salas ..., …. - … …, pedindo a sua condenação:
«a) A pagar-lhe a quantia de €572.028,60;
b) No pagamento dos juros legais, vincendos, contados desde a citação até integral pagamento; e
c) Nas custas do processo e nos honorários do mandatário do autor, sendo que este último pedido deverá ser remetido para liquidação em execução de sentença, porquanto o seu apuramento ainda não ser possível».
Alegou, em síntese, que é acionista da ré, em cujo capital social detém 5.720.286 ações, correspondentes a 12,74% do capital social que era, à data de 29/12/2016, de €35.913.449,00, representado por 44.891.811 ações, no valor de €0,80 cêntimos cada uma. Na assembleia geral realizada no dia 30/12/2016, considerando que o capital social da firma apresentava um valor excessivo face às necessidades decorrentes do normal exercício da atividade social e atendendo à situação patrimonial líquida da sociedade, espelhada nas contas do último exercício anual, a administração propôs a redução do capital social para o montante de €31.424.267,70, mediante diminuição do valor nominal de todas as ações para o valor de €0,70, ficando o conselho de administração autorizado a deliberar o reembolso aos sócios do capital libertado, proporcionalmente às ações que estes detiverem, por uma ou mais vezes, conforme achar oportuno em função das disponibilidades de liquidez e sem prejuízo da normal atividade da sociedade e das empresas participadas. Essa proposta foi submetida a deliberação dos sócios e foi aprovada pela unanimidade dos acionistas presentes e representados, não estando presente o autor, que viu reduzido o valor nominal da sua participação social em €572.028,60. A ré não lhe restituiu tal quantia, não obstante as contas da sociedade, à data de 31/12/2016, e a declaração do Presidente do Conselho de Administração na Assembleia Geral não exibirem fundamento para retenção das quantias monetárias em causa. Essa conduta provoca-lhe um prejuízo no montante correspondente à redução da sua participação social, sendo que o reembolso do capital reduzido aos acionistas está apenas dependente da apreciação do Conselho de Administração «… em função das disponibilidades de liquidez...» da ré. Sabendo-se que a quantia total do capital reduzido a reembolsar aos acionistas é de €4.488.821,30, as contas da ré mostravam disponibilidades em caixa e depósitos à ordem que ascendiam a €2.585.081,86, o que permite constatar que, logo naquela data, e só considerando aquelas disponibilidades (caixa e depósitos à ordem), a ré estava em condições de poder reembolsar os seus acionistas em mais de metade do capital reduzido.

A ré contestou, aceitando a redução do capital social e a participação social do autor, mas alegando que, apesar de as disponibilidades em caixa e depósitos à ordem, em 31/12/2016, ascenderem a €2.585.81,86, as contas do exercício de 2016 ainda não estavam aprovadas, podendo sofrer alteração, mercê de análise em curso sobre a influência da informação recebida sobre uma participada indireta. Mais sustentou que o autor confunde um excesso de capital social com um excesso de liquidez e só isso explica a propositura da ação. A circunstância de o capital social exceder, em determinado momento, as necessidades de exploração e funcionamento da sociedade e de tutela dos credores sociais não significa que ela esteja em condições de proceder ao seu imediato reembolso. Assim como não significa que os sócios, quando decidem reduzir o capital, estejam obrigados a deliberar simultaneamente a restituição do valor da redução. Os sócios têm a temporária obrigação de manter no património social, nomeadamente a título de reservas livres, os bens que deixam de estar afetos à cobertura do capital social, por força da operação de redução, a significar que a deliberação da redução do capital social não gera, por si só, depois de cumpridas as formalidades legais, um crédito de cada sócio sobre a sociedade e, muito menos, um crédito imediatamente exigível. A deliberação autorizou o conselho de administração a deliberar o reembolso aos sócios do capital libertado, proporcionalmente às ações detidas, por uma ou mais vezes, conforme achar oportuno em função das disponibilidades de liquidez, e sem prejuízo para a normal atividade quer da ré quer das empresas participadas. Já houve uma redução do capital social em 2010 e outra em 2012, ficando o valor da redução registado na conta de capital próprio “53 Outros instrumentos de capitais próprios”. A deliberação de redução de capital tomada em 30/12/2016 deixou expressa a prática seguida nas duas operações anteriores, em que o valor da redução se manteve no património da sociedade, sem controlo dos acionistas, até ao momento em que o conselho de administração considerou oportuno restituí-lo, face às disponibilidades de liquidez e ao decurso da atividade da sociedade e das suas participadas. Como resulta do balanço, a ré tinha, em 31/12/2016, um passivo corrente de €20.348.747,05, a confrontar com um ativo corrente de €4.107.270,35, pelo que a atuação do autor contraria os termos da deliberação da redução do capital e está imbuída de abuso do direito.

Frustrada a conciliação das partes na diligência, para o efeito, convocada, foi proferido despacho saneador, fixado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.

A ré apresentou articulado superveniente, alegando que, na sequência da deliberação tomada na assembleia geral de 30/12/2016, o conselho de administração deliberou, em 03/11/2017, efetuar o reembolso aos acionistas no montante global de €897.836,26, correspondente a 20% do capital libertado. Em execução dessa deliberação, remeteu ao autor, em 28/11/2017, os cheques sacados sobre o D…, no valor total de €114.405,72, os quais foram debitados na sua conta. Tal deliberação adveio do recebimento de dividendos de €850.000,00 da participada E…, o que proporcionou disponibilidade para o reembolso operado.
Admitido liminarmente esse articulado, pronunciou-se o autor, reduzindo o pedido na medida correspondente, o que deu azo à prolação de despacho de admissão da redução do pedido naquele montante.

Realizou-se a audiência de julgamento com observância das formalidades legais e foi proferida sentença que julgou a ação totalmente improcedente, com a consequente absolvição da ré de todos os pedidos, sem prejuízo do disposto no artigo 621º do Código de Processo Civil, condenando o autor no pagamento integral das custas.

Irresignado, o autor apelou da sentença, formulando as subsequentes conclusões:
«A. Vem o presente recurso interposto da douta sentença pela qual foi decidido “julgar a acção totalmente improcedente e em consequência absolvo a ré de todos os pedidos, sem prejuízo do disposto no artigo 621º do Código de Processo Civil (…)”
B. Dos documentos juntos aos autos resulta que ao decidir nos termos em que decidiu, o Douto Tribunal “a quo” incorreu em error in judicandum, não só (aliás fundamentalmente) no que se refere à matéria de direito, mas também no que diz respeito à matéria de facto, a qual, indubitavelmente, se deverá ter como indevida, ou melhor, insuficientemente julgada;
C. O Autor/recorrente considera incorrectamente julgados os Factos Provados sob os números 15), 16) e 17).
D. Tal erro não reside na matéria que ali consta como Provada (que está correcta, mas insuficiente), mas antes em virtude do facto de o Tribunal “a quo”, ao fazer referência ao constante das contas da Ré/Recorrida, ter escolhido, apenas, os dados referentes às disponibilidades de caixa e depósitos”, ao “passivo corrente” e ao “activo corrente”, desprezando, deste modo, toda a demais informação e dados constantes daquelas contas do exercício de 2016 aprovadas pela Assembleia Geral.
E. Para além daqueles dados “escolhidos” pelo Tribunal “a quo” para constarem dos Factos Provados, deveria figurar igualmente, entre aquele acervo de matéria assente, o “Total do Activo”;
F. O “Total do Activo” confere uma ideia concreta da capacidade económica da sociedade para fazer face aos seus compromissos para com os seus credores.
G. O “Total do Activo” era, de acordo com as contas da Ré referentes ao ano 2016, de €114.321.035,00 (cento e catorze milhões, trezentos e vinte e um mil, e trinta e cinco euros) e o “Total do Passivo” ascendia a €23.768.326,00.
H. Ao referir, como Facto Provado, apenas uma parte dos dados financeiros da Ré/recorrida, o Mmº Juiz “a quo” não permite uma avaliação correcta da verdadeira situação das contas sociedade, das quais resulta uma situação económico-financeira muito confortável.
I. De acordo com o que consta das contas da Ré/recorrida, deverão ser modificados os factos números 15) e 16), devendo passar a constar dos mesmos, também, o “Total do Activo” e o “Total do Passivo”, passando aqueles “Factos Provados”, consequentemente, a ter a seguinte redacção:
“15) Em 31 de Dezembro de 2016, constava do balanço da ré:
a. Disponibilidades em caixa e depósitos no valor de €2.585.081,86;
b. Um passivo corrente de €20.348.747,05;
c. Um activo corrente de €4.107.270,35;
d. O Total do Activo era de €115.225.775,51;
e. O Total do Passivo era de €20.348.747,05.”
“16) Nas contas aprovadas relativas a 2016 ficaram a constar os seguintes valores:
a. Disponibilidades em caixa e depósitos no valor de €2.585.082,00;
b. Um passivo corrente de €23.768.326,00;
c. Um activo corrente de €4.107.270,00;
d. O Total do Activo era de €114.321.035,00;
e. O Total do Passivo era de €23.768.326,00.”
J. Encontra-se, ainda, incorrectamente expresso (em termos de rigor jurídico) o Facto Provado nº 17, já que não foi “a redução do capital social” que “foi inscrita sob a rubrica de capitais próprios “outros instrumentos de capital próprio”, sendo que o que, de facto, foi inscrito sob aquela rubrica contabilística “outros instrumentos de capital próprio” foi o valor (no montante de €4.489.181,10) correspondente à redução do capital social.
K. Portanto, deverá o Facto nº 17 passar a ter a seguinte formulação:
“17) O valor (no montante de €4.489.181,10) correspondente à redução do capital social supra referida foi inscrita sob a rubrica de capitais próprios “outros instrumentos de capital próprio”
L. A questão em apreço, como bem assinalou o Mmº Juiz “a quo”, versa sobre a questão de saber se “a ré estava obrigada a pagar de imediato ao autor o valor proporcional à sua participação social em resultado da redução do capital social”, o que corresponde, no prisma do Autor/recorrente, à questão de saber se este tem direito a receber, de imediato, o valor correspondente à redução da sua participação social em resultado da redução do capital social;
M. Mal decidiu o Tribunal “a quo” ao considerar que o Autor/recorrente (e os demais accionistas, evidentemente) não tem o direito ao recebimento do valor correspondente à efectiva redução do seu activo, do seu património.
N. O Tribunal “a quo” não indicou qualquer norma jurídica como fundamento da sua decisão de considerar improcedente a acção.
O. Nos presentes autos discute-se se a Ré/recorrida pode (se tem o direito) de reter quantias que pertencem ao Autor/recorrente (e aos demais accionistas), sem que este o tivesse consentido e sem que exista deliberação da Assembleia Geral que o permita ou titule.
P. Sendo o Autor/recorrente, à data de 29 de Dezembro de 2016 (portanto no dia anterior à deliberação de redução do capital social) detentor de participação social, no capital da Ré/recorrida, no valor nominal de €4.576.228,80 (quatro milhões, quinhentos e setenta e seis mil, duzentos e vinte e oito euros e oitenta cêntimos) – correspondente à multiplicação das 5.720.286 acções (Facto Provado nº 1) pelo respectivo valor nominal de €0,80 (oitenta cêntimos) (Facto Provado nº 2), por força da redução do capital deliberada em 30 de Dezembro de 2016, aquela participação social passou a ter o valor nominal de €4.004.200,20 (quatro milhões, quatro mil, duzentos euros e vinte cêntimos) – correspondente à multiplicação das 5.720.286 acções (Facto Provado nº 1) pelo respectivo
valor nominal, após redução, de € 0,70 (oitenta cêntimos) (Facto Provado nº 8).
Q. Por força da redução do capital da Ré/recorrida o património do Autor/recorrente foi amputado em €572.028,60 (quinhentos e setenta e dois mil e vinte e oito euros e sessenta cêntimos);
R. Resulta dos Factos Provados nºs 3), 4) e 8), que o Conselho de Administração da Ré/recorrida apresentou proposta (que viria a ser votada favoravelmente pela Assembleia Geral) no sentido de ser deliberada a redução do capital social da mesma, a qual fundamentou no facto de considerar que “o capital social da firma apresenta atualmente um valor excessivo face às necessidades decorrentes do normal exercício da atividade social” e que a “situação patrimonial líquida da sociedade espelhada nas contas do último exercício anual” permitia aquela operação de redução do capital (naturalmente restituindo aos accionistas o valor de €0,10 por cada acção).
S. Importa salientar que foi o Conselho de Administração – e não qualquer accionista ou grupo de accionistas – quem (certamente após devida ponderação) apresentou a proposta de redução de capital da sociedade;
T. Fê-lo porque considerava que o capital social tinha um valor excessivo para as necessidades do normal exercício da actividade social e porque a situação patrimonial líquida da sociedade permitiria fazer face à restituição do valor correspondente à redução.
U. Ao efectuar a proposta de redução de capital o Conselho de Administração terá efectuado juízo de oportunidade e de disponibilidade para efeitos da efectiva restituição aos accionistas do valor correspondente à redução.
V. Não se compreenderia que o Conselho de Administração impusesse aos accionistas uma redução do seu património efectivo (correspondente, pelo menos, à redução do valor nominal das acções da sociedade), sem que o mesmo fosse acompanhado do respectivo reembolso aos mesmos do correspondente valor (naturalmente sem prejuízo do cumprimento do prazo disposto no artº 96º do CSC).
W. Não pode deixar de considerar-se totalmente desprovida de sentido a afirmação do Mmº Juiz “a quo”, segundo a qual não estaria excluído “que a sociedade não venha a dispor de liquidez para o efeito e/ou que os sócios possam vir a deliberar que o montante da redução do capital ainda não pago possa continuar alocado para fazer face a necessidades da sociedade.”
X. Tal conclusão, repete-se, seria totalmente desprovida de sentido, quer em face da deliberação dos accionistas (e da respectiva proposta do Conselho de Administração que a antecedeu), quer em face das exigências legais (nomeadamente do CSC) respeitantes à disponibilização de valores pelos accionistas à sociedade (seja qual for o respectivo título).
Y. Não está em causa nestes autos a validade da deliberação, reclamando o Autor/recorrente que o Conselho de Administração cumpra o que foi decidido pela Assembleia Geral e que não se substitua a esta (e ao universo dos accionistas) nas competências – exclusivas – que lhe cabem no que se refere à redução do capital social (e respectiva deliberação).
Sempre salvo o devido respeito.
Z. A proposta de redução do capital social da recorrida, submetida – pelo Conselho de Administração – à deliberação dos accionistas, apresentava como expressa justificação (ou pressuposto) a “situação patrimonial líquida da sociedade espelhada nas contas do último exercício anual”, afirmação não pode deixar de significar que o Conselho de Administração, após ponderação, considerava que a situação patrimonial líquida da sociedade espelhada nas contas do último exercício anual” permitia restituir aos accionistas o valor correspondente à redução de cada uma das suas participações sociais.
AA. E essa restituição aos accionistas não era para ser diferida no tempo, “ad eternum”, com prejuízo dos mesmos, os quais se viram (e permanecem) efectivamente afectados no seu património por força da redução do valor das acções pelos mesmos detidas (no caso do Autor/recorrente, o seu património ficou reduzido na quantia de €572.028,60).
BB. Considerando a justificação apresentada pelo Conselho de Administração da Ré/recorrida (alicerçada, evidentemente, nas contas da sociedade), inexiste fundamento para que os accionistas não recebam (e não tivessem recebido), de imediato, o quantitativo que lhes é devido por força da deliberada redução do capital social da sociedade.
CC. Nos termos do disposto no artº 95º do CSC, a Assembleia Geral (e só esta) pode deliberar a redução do capital social, a qual poderá destinar-se a cobrir prejuízos, a libertar excesso de capital ou a finalidade especial.
DD. No caso vertente, é inquestionável que a finalidade da redução de capital da Ré/recorrida foi a libertação de capital em excesso (“o capital social da firma apresenta atualmente um valor excessivo face às necessidades decorrentes do normal exercício da atividade social;” (Facto Provado 3).
EE. A restituição efectiva, aos accionistas, do valor correspondente à redução das respectivas participações sociais ficava, apenas dependente de “disponibilidades de tesouraria da empresa” (Facto Provado nº 6) e não de qualquer situação líquida da sociedade.
FF. A situação líquida da sociedade (aliás a “situação patrimonial líquida da sociedade espelhada nas contas do último exercício anual”) já havia sido objecto de ponderação – pelo Conselho de Administração – previamente à apresentação da proposta de redução do capital social da recorrida (constituindo, aliás, um dos fundamentos da mesma).
GG. Como se encontra devidamente espelhado no Balanço da sociedade Ré/recorrida, o Total do Activo ascendia, a 31/12/2016, a €114.321.035,00 (dos quais €2.585.082,00 de disponibilidades em caixa e depósitos), sendo a diferença entre o Total do Activo e o Total do Passivo, no montante de €90.552.709,00.
HH. A sociedade Ré/recorrida tinha (e tem) uma situação extremamente confortável e folgada, pelo que inexistia (e inexiste) razão ou justificação para que o Conselho de Administração – órgão ao qual incumbia executar a deliberação da Assembleia Geral – retivesse o pagamento/reembolso aos accionistas dos valores a que os mesmos têm direito em resultado da redução do capital social da Ré/recorrida.
II. A partir do momento em que foi deliberada a redução do capital social da Ré/recorrida, o Autor/recorrente passou a ser credor da mesma, no montante de € 572.028,60, correspondente à redução da respectiva participação social, valor do qual ainda só foi reembolsado de 20%, no quantitativo de €114.405,72 (Facto Provado nº 14).
JJ. A afirmação produzida por Vogal do Conselho de Administração, após a deliberação da Assembleia Geral, segundo a qual o valor da redução permanecia “no capital próprio da empresa”, não faz parte da deliberação, nem foi submetida qualquer proposta nesse sentido à votação/deliberação da Assembleia Geral.
KK. As “disponibilidades de liquidez” referidas no Ponto 2. da deliberação (Facto Provado nº 8) correspondem às “disponibilidades de tesouraria da empresa” a que o Presidente do Conselho de Administração se referiu quando declarou, e ficou exarado em acta, o seguinte: o Conselho de Administração propunha uma redução do capital através da redução de dez cêntimos no valor de cada acção, o que se traduziria na redução do capital no montante de 4.231.768,30€ (quatro milhões duzentos e trinta e um mil setecentos e sessenta e oito euros e trinta cêntimos, a ser feita oportunamente e conforme as disponibilidades de tesouraria da empresa, na proporção do número de acções detidas por cada accionista” (Facto Provado nº 6)
LL. Na verdade, a questão da situação líquida da sociedade Ré/recorrida já havia sido ponderada (“Atendendo à situação patrimonial líquida da sociedade espelhada nas contas do último exercício anual” – Facto Provado nº 3), como justificação e pressuposto da proposta de redução do capital social.
MM. Ao invés do que viria a ser concluído (erradamente) pelo Mmº Juiz “a quo”, inexistiu qualquer deliberação social que permitisse a afectação do “capital libertado” (em virtude da redução de capital social) a outra finalidade que não fosse o reembolso do mesmo aos accionistas, na proporção das suas participações sociais.
NN. Não poderia, pois, o Mmº Juiz “a quo” ter aceitado que a Ré/recorrida (ou o seu Conselho de Administração) argumentasse, em abono da retenção dos valores que lhe não pertencem (pois pertencem aos accionistas), que “transferiu” os valores resultantes da redução de capital social, para “prestações acessórias de capital” e assim permanecendo os mesmos “no capital próprio da empresa”.
OO. A Assembleia Geral não deliberou (nem tal lhe foi proposto) que os accionistas procedessem a “prestações acessórias”, fosse qual fosse o respectivo montante.
PP. O tratamento contabilístico – o qual não tem qualquer efeito substancial, ao nível dos direitos e obrigações das partes – que o Conselho de Administração deu ao valor (no montante de €4.489.181,10) correspondente à redução do capital social (€0,10 por acção) é manifestamente incorrecto e, inclusive, ilícito (contra lei expressa).
QQ. Decorre de imposição legal que a chamada de prestações acessórias e suplementares de capital encontram-se subordinadas a diversos requisitos imperativos, tendo, nomeadamente, de estarem previstas no contrato de sociedade e serem objecto de deliberação dos sócios (em Assembleia Geral, evidentemente) – cfr. artºs 209º a 213º e 287º do CSC – e tratando-se de prestações suplementares de capital, as mesmas têm de ter sempre dinheiro por objecto (artº 210º, nº 2 do CSC) (neste sentido, entre outros, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23 de Fevereiro de 2010, disponível em www.dgsi.pt, número convencional JTRP00043664);
RR. Pese embora inexista, no caso sub judice, deliberação no sentido de os accionistas procederem a prestações acessórias ou suplementares de capital à sociedade, a Ré/recorrida decidiu (contra a deliberação tomada pela Assembleia Geral) reter os valores que deveria reembolsar aos accionistas e, para além disso, ao invés de tratar esses valores como um crédito dos accionistas sobre a sociedade, tratou-o como se de prestações acessórias ou suplementares de capital se tratassem (tratando como capital próprio, o que na verdade é uma dívida da sociedade para com os seus accionistas), actuando, assim, de forma manifestamente ilícita e ilegítima;
SS. No caso vertente, a Assembleia Geral deliberou a redução do capital social da Ré/recorrida, mas nada determinou ou deliberou (nem tal foi proposto) sobre a constituição de reservas livres, nem sobre a chamada de prestações acessórias ou suplementares de capital pelos accionistas, antes tendo determinado que a redução do capital social destinava-se ao “reembolso aos sócios do capital ora libertado” (Factos Provados nºs 3 e 8).
TT. Decorrido o prazo previsto no artº 96º do CSC, caberia ao Conselho de Administração da Ré/recorrida reunir as condições de tesouraria necessárias e adequadas ao cumprimento da obrigação de reembolso aos accionistas dos valores de que os mesmos ficaram efectivamente desembolsados por força da redução do capital social.
UU. O entendimento do Mmº Juiz “a quo” segundo o qual “os accionistas da ré autorizaram o conselho de administração da ré deliberar o reembolso aos sócios do capital conforme achasse oportuno em função das disponibilidades de liquidez.é manifestamente errado (salvo, sempre, o devido respeito), porquanto, desde logo, a questão da liquidez já havia sido avaliada pelo Conselho de Administração previamente à proposta de redução do capital social apresentada à Assembleia Geral – com efeito, aquela proposta referia expressamente que a mesma era apresentada “Atendendo à situação patrimonial líquida da sociedade espelhada nas contas do último exercício anual” (Facto Provado nº 3) e o Presidente do Conselho de Administração fez constar em acta que “a decisão agora tomada não implicará qualquer dificuldade na empresa, continuando preparada para a prossecução dos negócios.” (Facto Provado nº 9)
VV. A dita “autorização” concedida ao Conselho de Administração para este “deliberar o reembolso aos sócios do capital ora libertado, proporcionalmente às ações que estes detiverem, por uma ou mais vezes, conforme achar oportuno em função das disponibilidades de liquidez, e sem prejuízo para a normal atividade da firma e das empresas participadas” não pode ser entendido em termos de ser frustrada a deliberação de redução do capital (com finalidade de libertação de capital excessivo) e o consequente (e querido pelos accionistas) “reembolso aos sócios do capital ora libertado”.
WW. A redução do capital social e o destino a dar ao valor resultante dessa redução são matérias da competência exclusiva da Assembleia Geral.
XX. A autorização ao Conselho de Administração para este deliberar o reembolso aos sócios do capital ora libertado, não pode ter por efeito a frustração das deliberações da Assembleia Geral, devendo, antes, ser lida como uma instrução dirigida ao Conselho de Administração para cumprir com o decidido pela Assembleia Geral e reunir as disponibilidades de tesouraria necessárias e adequadas para prover ao deliberado reembolso aos accionistas dos valores a que os mesmos têm direito, por força da redução do capital social.
YY. Ao tratar o capital libertado – que pertence, por direito próprio e de forma incondicional, aos accionistas – como prestações acessórias ou suplementares de capital (única forma que existe para classificar contabilisticamente aqueles valores como outros instrumentos de capital próprio”, e assim contabilizá-los para apuramento dos capitais próprios), a Ré/recorrida está a tratar como seus valores que lhe não pertencem, nem lhe foram, por qualquer forma disponibilizados.
ZZ. Mal decidiu, portanto, o Mmº Juiz “a quo “, ao considerar que os “accionistas da Ré” (assumindo-se que pretendesse referir-se à Assembleia Geral) “delegaram no conselho de administração o momento em que tal restituição ocorreria no âmbito de prerrogativas próprias que resultam do contrato de sociedade e de harmonia com os interesses da maioria.”
AAA. A redução do capital é matéria da competência exclusiva da Assembleia Geral, não podendo a mesma ser delegada ao Conselho de Administração.
BBB. Também a chamada de prestações acessórias ou suplementares de capital, tem de ser específica e objectivamente deliberada pela Assembleia Geral, não podendo ser “delegada” no Conselho de Administração (artºs 209º, 210º e 287º do CSC).
CCC. Inexistem “prerrogativas próprias” do Conselho de Administração nestas matérias de redução do capital social e de chamada de prestações acessórias ou suplementares de capital;
DDD. O Mmº Juiz “a quo” não conhece (porque não se encontra nos autos) o contrato de sociedade, pelo que não poderia fazer referência às pretensas “prerrogativas próprias” do Conselho de Administração (que, aliás, não existem);
EEE. Também a restituição de prestações acessórias ou de suplementares exige a verificação de condições económicas e depende de deliberação da Assembleia Geral, pois assim o determina, nomeadamente, o artº 213º, nºs 1 e 3 do CSC, pelo que não poderia ser deliberada/realizada pelo Conselho de Administração.
FFF. Nessa conformidade, o reembolso de 20% já “decidido” pelo Conselho de Administração (Facto Provado nº 13) foi realizado manifestamente contra lei expressa, pois o artº 213º, nº 2 do CSC dispõe que “A restituição das prestações suplementares depende de deliberação dos sócios.”
GGG. Para além de não lhe poder dar aquele tratamento contabilístico, a Ré/recorrida não pode opor tal afectação (como prestações suplementares de capital) ao Autor/recorrente, pois carece da necessária deliberação da Assembleia Geral.
HHH. Também nos casos em que os sócios pretendam deliberar que o valor resultante da redução do capital seja alocado a “reservas livres” devem fazê-lo sob a forma de deliberação, em reunião de Assembleia Geral e mediante proposta nesse sentido.
III. É evidente que no caso vertente nada disso ocorreu, porquanto os accionistas não deliberaram que os valores resultantes da redução do capital fossem alocados a reservas livres, não tendo, existido, sequer, qualquer proposta que tenha sido submetida à deliberação dos accionistas, pelo que a Assembleia Geral não se debruçou nem pronunciou sobre tal alocação, sendo que, ao invés, os accionistas deliberaram expressamente que o valor da redução destinava-se a ser reembolsado aos accionistas (“O Conselho de Administração fica autorizado a deliberar o reembolso aos sócios do capital ora libertado, proporcionalmente às acções que estes detiverem (…)”) devendo, para tanto, aquele Conselho de Administração reunir as disponibilidades de tesouraria necessárias e suficientes;
JJJ. Não tem, igualmente, razão o Mmº Juiz “a quo” quando refere que “não existe lei expressa que obrigue ao imediato pagamento do capital social libertado (…)”, já que é manifestamente evidente que o direito dos accionistas ao reembolso dos valores resultantes da redução do capital nasce (é devido) imediatamente após a deliberação social nesse sentido (sem prejuízo do cumprimento do disposto no artº 96º do CSC).
KKK. O que, ao invés, o Mmº Juiz deveria ter mencionado a este respeito é que não existe nenhuma lei que permita ao devedor (“in casu” a sociedade Ré/recorrida) reter valores que pertencem ao credor, obstando à sua entrega com o argumento de não lhe ser oportuno o pagamento.
LLL. Tendo o Conselho de Administração considerado que “o capital social da firma apresenta atualmente um valor excessivo face às necessidades decorrentes do normal exercício da atividade social” e que “atendendo à situação patrimonial líquida da sociedade espelhada nas contas do último exercício anual” deveria propor aos accionistas que os mesmos deliberassem a redução do capital social, não poderá deixar de ser condenado a cumprir imediatamente aquilo a que se obrigou.
MMM. O Mmº Juiz “a quo” olvidou-se, claramente, do disposto nomeadamente nos artºs 762, 763º, 777º e 778º do Código Civil.
NNN. Em conformidade com aquelas normas legais, é evidente que o Autor/recorrente tem direito a exigir que a recorrida cumpra integralmente a sua obrigação, pois as suas contas (com base, aliás, nas quais o Conselho de Administração fundamentou a sua proposta de redução do capital) apresentam meios suficientes para tanto.
OOO. Perante a ausência de estipulação de data (o que deverá significar que a obrigação se vence imediatamente após transcorrido o prazo imposto pelo artº 96º do CSC) estabelece o artº 777º Código Civil que “(…) o credor tem o direito de exigir a todo o tempo o cumprimento da obrigação, assim como o devedor pode a todo o tempo exonerar-se dela.”
PPP. Mesmo que se entendesse que a obrigação da Ré/recorrida estava dependente da possibilidade de cumprimento (nos termos previstos no artº 778º do Código Civil), é manifestamente evidente que essa possibilidade estava verificada, resultando a mesma não só das contas da Ré/requerida [sendo a diferença entre o total do activo e o total do passivo de 90.552.709,00 (noventa milhões, quinhentos e cinquenta e dois mil, setecentos e nove euros)], como do “considerando” da proposta de redução (“Atendendo à situação patrimonial líquida da sociedade (…)” – Facto Provado nº 3), bem como da afirmação expressa do Presidente do seu Conselho de Administração, segundo o qual: “(…) a decisão agora tomada não implicará qualquer dificuldade na empresa, continuando preparada para a prossecução dos negócios.” (Facto Provado nº 9).
QQQ. Com base em qualquer daquelas normas, terá de ser reconhecido o direito do Autor/recorrente a exigir da Ré/recorrida o cumprimento imediato da sua obrigação de reembolso, na totalidade, das quantias respeitantes à redução do capital social, na proporção das acções por si detidas.
RRR. Verificando-se que não se encontra, na deliberação sub judice, fixado prazo para o reembolso aos accionistas, sempre poderá/deverá lançar-se mão – analogicamente – do regime estabelecido para o aumento de capital (que, de facto, corresponde ao “movimento” inverso ao da redução), constante do artigo 89º, nº 2 do CSC, no qual se dispõe que “Se a deliberação for omissa quanto à exigibilidade das entradas em dinheiro que a lei permite diferir, são elas exigíveis a partir do registo definitivo do aumento de capital.”
SSS. O pagamento do reembolso aos accionistas dos valores a que os mesmos têm direito em resultado da redução do capital deveria, nos termos daquela interpretação sistemática e analógica, ter sido realizado imediatamente após o registo daquela redução (registo que, de acordo com o Facto Provado nº 11, foi efectuado em 20/01/2017).
TTT. É, igualmente, carecida de fundamento a conclusão tirada pelo Mmº Juiz “a quo” de que o Autor/recorrente pretenderia “fazer tábua rasa a uma deliberação social ainda em vigor, procurando obter por outra via uma pretensão que a maioria dos sócios não quis.”, porquanto a única pretensão do Autor/recorrente é que lhe seja entregue o valor a que tem direito em virtude da redução do valor nominal das sua acções;
UUU. Não se crê – nem foi feita qualquer prova nesse sentido – que os demais accionistas se encontrem satisfeitos com o facto de, decorridos mais de dois anos, ainda se encontrar por reembolsar 80% do valor a que os mesmos têm direito por força da redução do capital [a qual lhes foi proposta pelo Conselho de Administração “Atendendo à situação patrimonial líquida da sociedade espelhada nas contas do último exercício anual” e porque “o capital social da firma apresenta atualmente um valor excessivo face às necessidades decorrentes do normal exercício da atividade social” (Facto Provado nº 3)].
VVV. Tendo o Presidente do Conselho de Administração, previamente à votação/deliberação dos sócios, explicado que “(…) a exemplo do que aconteceu em 2010 e 2012, o Conselho de Administração propunha uma redução do capital social através da redução de dez cêntimos no valor de cada acção (…) a ser feita oportunamente e conforme as disponibilidades de tesouraria da empresa, na proporção do número de acções detidas por cada acionista.” (Facto Provado nº 6) e em face do texto da proposta, os accionistas poderiam legitimamente esperar que o Conselho de Administração iria “oportunamente” (isto é, com sentido de oportunidade e diligentemente) actuar no sentido de reunir as disponibilidades de tesouraria que lhe permitissem proceder ao reembolso aos accionistas dos valores a que os mesmo têm direito.
WWW. Erra, finalmente, o Mmº Juiz “a quo” (salvo sempre o devido respeito) ao considerar que o reembolso aos accionistas, dos valores resultantes da redução do capital social da Ré/recorrida, estava dependente da verificação de “condição” – que seria a disponibilidade de “liquidez” –, e que a mesma ainda não se teria verificado.
XXX. Porém, em face da factualidade provada (mormente do Facto nº 3) não pode aceitar-se que a disponibilidade de liquidez constituísse condição futura para o reembolso aos accionistas.
YYY. A situação líquida da sociedade (ora Ré/recorrida) constituiu um dos pressupostos para que o Conselho de Administração tivesse apresentado a proposta de redução do capital social.
ZZZ. Para apresentação da proposta de redução do capital social, para libertação de excesso de capital, o Conselho de Administração não pode ter deixado de ponderar e concluir que, após a redução (que ele próprio, Conselho de Administração, propusera) o capital manter-se-ia conforme com a normal actividade da sociedade e das suas participadas, tal como os accionistas a dimensionaram;
AAAA. A última passagem da deliberação não constitui uma condição do reembolso do capital reduzido aos accionistas, mas antes um pressuposto prévio à deliberação: só pode ser deliberada a redução se o capital se mantiver conforme e adequado à normal actividade da sociedade e das suas participadas.
BBBB. Ainda que assim não se entendesse (o que não se concede), sempre teria de considerar-se que a condição já estaria preenchida, por força da própria natureza e alcance da deliberação de redução de capital e das palavras, registadas em acta, do Presidente do Conselho de Administração (nomeadamente Factos Provados nºs 3, 7, 8 e 9).
CCCC. O próprio Presidente do Conselho de Administração esclareceu, previamente à submissão da proposta a votação (Facto Provado nº 6), que o reembolso aos accionistas do capital libertado (quantitativo que, repete-se, lhes foi efectivamente retirado) estava apenas dependente “…das disponibilidades de liquidez...” da Ré/recorrida.
DDDD. A menção constante da parte final da deliberação em apreço, segundo a qual o cumprimento da obrigação de reembolso aos accionistas deveria ser realizada “sem prejuízo para a normal atividade da firma e das empresas participadas.“ (Facto Provado nº 8), trata-se de cautela inútil, porquanto estava em causa uma redução do capital social para libertação de excesso de capital, pelo que obviamente que o capital excessivo não era necessário para a actividade normal da Ré/recorrida e suas participadas (aliás, só o facto de o não ser permite compreender a iniciativa do Conselho de Administração de propor a redução do capital social) – aliás o próprio Presidente do Conselho de Administração declarou que “a decisão agora tomada não implicará qualquer dificuldade na empresa, continuando preparada para a prossecução dos negócios.” (Facto Provado nº 9);
EEEE. Aquela declaração não consubstancia, pois, qualquer condição, mas antes uma manifestação dirigida aos accionistas tranquilizando-os relativamente à operação proposta e deliberada.
FFFF. A conduta da Ré/recorrida (perpetrada pelo seu Conselho de Administração) é absolutamente desconforme com a deliberação da Assembleia Geral e consubstancia acto ilícito, que provoca, directa e inexoravelmente, ao Autor/recorrente, prejuízo no montante correspondente à redução da sua participação social [€ 572.028,60 (quinhentos e setenta e dois mil, vinte e oito euros e sessenta cêntimos)], deduzida da quantia, já reembolsada, de € 114.405,72 (Facto Provado nº 14).
GGGG. A partir do momento em que foi deliberada a redução do capital social – em virtude da ponderação segundo a qual “o capital social da firma apresenta atualmente um valor excessivo face às necessidades decorrentes do normal exercício da atividade social” (Facto Provado nº 3)) –, decorrido o prazo previsto no artº 96º do Código das Sociedades Comerciais (CSC) e realizado o registo comercial da operação (de redução do capital social), o Autor/recorrente passou a deter sobre a Ré/recorrida direito de crédito no montante correspondente à redução da respectiva participação social – in casu, €572.028,60, quantia que na presente data se encontra reduzida a €457.622,88 (quatrocentos e cinquenta e sete mil, seiscentos e vinte e dois euros e oitenta e oito cêntimos), por força do pagamento parcial da quantia de €114.405,72 (Facto Provado nº 14);
HHHH. Considerando a proposta do Conselho de Administração e as declarações do Presidente do Conselho de Administração da Ré/recorrida, exarada naquela Acta nº 31 (Factos Provados nºs 7 e 9) – terá, necessariamente, de ter-se como seguro que a sociedade Ré/recorrida tinha, logo à data da deliberação, meios suficientes para, de imediato, reembolsar o Autor/recorrente (e os demais accionistas) das quantias a que os mesmos têm direito, por força da redução das respectivas participações sociais.
IIII. Uma operação (redução do capital para libertação de capital em excesso) que, nas palavras do Prof. Dr. Paulo Olavo Cunha deveria ser “(…) uma operação que não prejudica os sócios; antes pelo contrário, viabilizando a distribuição de bens até então indisponíveis”, veio, “in casu”, a mostrar-se prejudicial aos accionistas, designadamente ao Autor/recorrente, o qual viu o valor da sua participação social reduzida em mais de meio milhão de euros, sem que lhe tenham sido, até à presente data, disponibilizados/distribuídos os bens que até à deliberação da redução estavam indisponíveis.
JJJJ. Mal andou, pois, o Tribunal “a quo” ao não condenar a Ré/recorrida nos pedidos formulados na presente acção, designadamente no reembolso ao Autor/recorrente da quantia correspondente à redução da sua participação social, no montante de € 572.028,60 (quinhentos e setenta e dois mil, vinte e oito euros e sessenta cêntimos), deduzida da quantia de €114.405,72, entretanto já reembolsada (Facto Provado nº 14).
KKKK. Termos em que a douta sentença proferida terá de ser, necessariamente, revogada e substituída por outra que julgue procedente a acção e condene a Ré/recorrida nos pedidos.
LLLL. Ao decidir nos termos em que decidiu, violou o Mmº Juiz “a quo”, entre outras do Mui Douto suprimento desse Venerando Tribunal, as normas dos artºs 89º, nº 2, 95º, 209º, 210º, nºs 1 e 2, 211, nº 1, 213º, nº 2 e 287º do Código das Sociedades Comerciais e artºs 762º, 763º, nº 2, 777º e 778º do Código Civil.
Nestes termos e nos demais do Mui Douto suprimento de Vossas Excelências, deverá ser concedido provimento ao presente recurso e, consequentemente, ser revogada a decisão recorrida, e a mesma substituída por Acórdão que:
a) Proceda, ao abrigo do disposto, nomeadamente, no artº 662º nº 1 do CPC, à alteração da decisão do Tribunal sobre a matéria de facto e, nessa conformidade, seja:
i. Modificado o Facto Provado nº 15, passando o mesmo a ter a seguinte redacção:
“15) Em 31 de Dezembro de 2016, constava do balanço da ré:
a. Disponibilidades em caixa e depósitos no valor de €2.585.081,86;
b. Um passivo corrente de €20.348.747,05;
c. Um activo corrente de €4.107.270,35;
d. O Total do Activo era de €115.225.775,51;
e. O Total do Passivo era de €20.348.747,05.”
ii. Modificado o Facto Provado nº 16, passando o mesmo a ter a seguinte redacção:
“16) Nas contas aprovadas relativas a 2016 ficaram a constar os seguintes valores:
a. Disponibilidades em caixa e depósitos no valor de €2.585.082,00;
b. Um passivo corrente de €23.768.326,00;
c. Um activo corrente de €4.107.270,00;
d. O Total do Activo era de €114.321.035,00;
e. O Total do Passivo era de €23.768.326,00.”; e seja
iii. Modificado o Facto Provado nº 17, passando o mesmo a ter a seguinte
redacção:
“17) O valor (no montante de €4.489.181,10) correspondente à redução do capital social, supra referida, foi inscrita sob a rubrica de capitais próprios “outros instrumentos de capital próprio”
E que
b) Efectue devida interpretação e aplicação do Direito aos factos e, consequentemente,
i. Condene a Ré/Recorrida nos pedidos formulados pelo Autor/Recorrente na acção; e
ii. Condene a Ré/Recorrida nas custas do processo, como é, aliás, de elementar Justiça».

Respondeu a Ré, emitindo o seguinte juízo conclusivo:
«1. A douta sentença recorrida não merece qualquer reparo, seleccionou e decidiu irrepreensivelmente a matéria de facto, face à prova produzida, e aplicou correctamente o Direito.
2. Os factos que foram considerados provados sob os pontos 15 e 16 foram alegados pelo A. no artigo 34º da petição inicial e pela R. no artigo 46º da contestação, resultando as divergências de valores entre os dois pontos das diferenças entre o balanço inicialmente elaborado pelo Conselho de Administração e aquele que este viria a submeter à aprovação dos accionistas, no que se refere ao passivo corrente. Nem o A. nem a R. alegaram nos articulados o que quer que fosse sobre o” Total do Activo” ou o “Total do Passivo”, pelo que nada a ficou a figurar nos temas de prova a tal propósito, sendo certo que se trata de factos instrumentais que – mesmo a admitir-se a sua relevância no caso concreto, o que não se concede – não cabem no elenco dos factos provados ou não provados. Na verdade, os factos instrumentais “atenta a função secundária que desempenham no processo, tendente a justificar simplesmente a prova dos factos essenciais, para além de, em regra, não integrarem os temas de prova, nem sequer deverão ser objecto de um juízo probatório específico” – Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Pires de Sousa, Código de Processo Civil anotado, Vol. I, Almedina 2018, p. 719, anotação 12.
Por conseguinte, nada há a apontar à decisão da matéria de facto quanto a esses dois pontos que, contrariamente ao que sustenta o apelante, foram julgados bem e de forma suficiente.
3. A deliberação da redução de capital tomada pelos accionistas da recorrida na assembleia geral de 30.12.2016 é de meridiana clareza e foi bem interpretada na douta sentença recorrida.
Tendo presente, de acordo com a informação do Conselho de Administração constante da proposta, que “o capital social da firma apresenta… um valor excessivo face às necessidades do normal exercício da actividade social” e ponderando a “situação patrimonial líquida da sociedade”, os accionistas deliberaram reduzir o capital social para o montante de € 31.424.267,70, mediante diminuição do valor nominal de todas as acções para € 0,70 cada uma. No entanto, deliberaram também autorizar o Conselho de Administração a “deliberar o reembolso aos sócios do capital... libertado”, proporcionalmente às acções detidas, “por uma ou mais vezes, conforme achar oportuno em função das disponibilidades de liquidez, e sem prejuízo para a normal actividade da firma e das empresas participadas”. Nesta segunda parte da deliberação, em que explicitaram a finalidade da redução – o reembolso do capital libertado –, os accionistas regularam os termos e condições que deveriam balizar a restituição do valor do capital excedentário, deixando claro que tal restituição dependeria das disponibilidades de liquidez e das repercussões para a normal actividade da firma e das empresas participadas, umas e outras a aferir pelo Conselho de Administração.
Apesar da precisão da convocatória para a assembleia geral de 30.12.2016, na qual não compareceu, nem se fez representar, e da clareza da deliberação nela tomada, que não impugnou, o recorrente pretende agora adulterar o sentido do deliberado, confundindo a situação patrimonial líquida da recorrida, que conduziu à redução do capital, com as disponibilidades de liquidez de que ficou a depender o reembolso aos accionistas do capital libertado.
Duvida-se que o recorrente, ao fim de tantos anos como Presidente do Conselho de Administração de uma sociedade de dimensão apreciável, como é a recorrida, ainda desconheça que a situação patrimonial líquida traduz apenas a diferença entre o activo e o passivo da sociedade, representando os capitais próprios aplicados no prosseguimento do objecto social, sem qualquer correspondência necessária com o dinheiro, depósitos ou outros bens de fácil mobilização que constituem as designadas disponibilidades de liquidez. A circunstância de o capital social se mostrar excessivo, face às necessidades do desenvolvimento da actividade da sociedade e à sua situação patrimonial líquida – que o mesmo é dizer aos capitais próprios nela investidos –, não significa que a sociedade disponha de meios facilmente realizáveis para restituir imediatamente aos accionistas a totalidade do capital excedentário, sem prejudicar a sua actividade.
E foi isso mesmo que os accionistas reconheceram quando, decidida a redução do capital, deliberaram seguidamente fazer depender a oportunidade do reembolso da apreciação do Conselho de Administração, face às disponibilidades de liquidez e às exigências da normal actividade da firma e das empresas participadas – posto que, convém não o esquecer, o objecto da recorrida consiste na gestão de participações sociais de outras sociedades, como forma indirecta de exercício de actividades económicas.
4. Como resulta dos factos provados sob os pontos 13 e 14, o Conselho de Administração actuou em estrita conformidade com a decisão dos accionistas, já tendo deliberado reembolsar 20% do capital libertado, do que resultou uma restituição ao recorrente de €114.405,72.
Nessa deliberação, cuja cópia foi junta com o articulado superveniente da R. de 04.06.2018, o Conselho de Administração, fundamentando o juízo de oportunidade exigido pelos accionistas, ponderou que o recebimento de 850.000,00€ de dividendos da participada E… proporcionava disponibilidades de liquidez que permitiam entregar aos sócios o referido valor, sem repercussões negativas para a normal actividade da sociedade e das participadas, pois já tinha assegurada a satisfação das necessidades financeiras do grupo, no ano que terminava. Foi precisamente este juízo de oportunidade por parte do Conselho de Administração que os accionistas pretenderam com o deliberado na assembleia geral de 30.12.2016, que o recorrente não impugnou.
Aliás, apesar da relativa insatisfação da sua avidez, o recorrente não tem razão para se dizer patrimonialmente prejudicado. De facto, ainda que, com a deliberação tomada na assembleia geral de 30.12.2016, o valor nominal das participações sociais dos accionistas da recorrida se tenha reduzido, o seu valor patrimonial manteve-se, visto que, por essa simples deliberação, a situação patrimonial da sociedade, reflectida no valor das participações, não sofreu qualquer alteração, não se tendo verificado qualquer redução do seu activo ou aumento do seu passivo.
Com efeito, só se deu uma verdadeira alteração do valor das participações dos accionistas no momento do reembolso de 20% do capital excedentário, e por via dele, visto que só então se reduziu o património da recorrida, ainda que sem consequências nocivas para os sócios. Por efeito desse reembolso, o valor da participação social de cada accionista diminuiu proporcionalmente…, mas na exacta medida da importância que recebeu da sociedade, pelo que nenhum sofreu qualquer prejuízo. Ou seja: no caso do recorrente, só ocorreu diminuição do valor da sua participação social na data em que recebeu €114.405,72 da sociedade, mas daí não lhe adveio prejuízo, visto que tal importância ingressou no seu património.
5. Não atentando devidamente nos contornos da deliberação da redução do capital, o recorrente pretende, sem qualquer fundamento, qualificar a operação como uma espécie de constituição forçada de prestações acessórias ou suplementares de capital. Como bem se observou na douta sentença recorrida, na operação de redução de capital os sócios tanto podem deliberar que lhes seja imediatamente atribuído o capital excedentário, como podem deliberar que este seja alocado a reservas livres, para fazer face a necessidades da sociedade, o que mostra bem que à redução de capital não corresponde, necessariamente, o imediato nascimento de um crédito dos sócios sobre a sociedade, como pretende o recorrente. A definição do destino a dar ao capital excedentário é prerrogativa dos sócios e, na deliberação em apreço, os accionistas da recorrida não pretenderam que ele lhes fosse imediatamente atribuído. Quiseram, isso sim, delegar no Conselho de Administração a verificação dos requisitos dessa atribuição: existência de liquidez, mas liquidez de acordo com um juízo de oportunidade a formular por esse órgão, face às necessidades da normal actividade da sociedade e das suas participadas.
A deliberação social de redução do capital da recorrida, não chegando ao ponto de alocar o capital excedentário a reservas – o que implicaria uma nova deliberação da assembleia geral para a sua posterior distribuição –, também não o atribuiu desde logo aos accionistas, o que impede que estes se possam arrogar um direito de crédito, ou pelo menos um direito de crédito imediatamente exigível, como quer o recorrente.
Face à relativa permanência do valor da redução do capital no património da sociedade, a deliberação dos accionistas justifica que tal valor seja contabilizado como uma parcela do capital próprio. Porém, tal tratamento contabilístico não significa que o recorrente seja tratado como um sócio a quem foi exigida a constituição de prestações acessórias ou suplementares.
Na verdade, o recorrente, por força da deliberação, não só não teve que fazer qualquer desembolso, mas também não se viu privado de qualquer direito sobre a sociedade, como ainda não ficou dependente da verificação dos requisitos legais da restituição do dinheiro de prestações acessórias ou suplementares para receber o capital excedentário que lhe cabe.
De resto, a sentença recorrida não fundamenta a improcedência da acção com a existência de uma qualquer deliberação de constituição de prestações acessórias ou suplementares com o valor da redução do capital. É, aliás, bem clara no sentido de que a improcedência da acção decorre de não se ter verificado a condição de que depende a restituição do capital excedentário, nos termos definidos pelos accionistas.
6. À luz do deliberado pelos accionistas da recorrida é manifesto que o recorrente não tem qualquer crédito exigível sobre a sociedade enquanto o Conselho de Administração não deliberar o reembolso, no todo ou em parte, do valor remanescente da redução do capital.
Como se explana na douta sentença, a condição de que depende o pagamento ao recorrente da quantia correspondente à redução da sua participação social ainda não se verificou nos termos definidos pelos accionistas.
E, como é próprio do funcionamento da condição, que subordina a produção dos efeitos de um negócio jurídico a um acontecimento futuro e incerto, a mesma poderá até não se verificar, como o Senhor Juiz “a quo” pertinentemente adverte. Bastará para tanto que, por uma evolução imprevista da conjuntura da sociedade, não se reúnam as circunstâncias de que os accionistas fizeram depender o reembolso do capital excedentário, a saber: (i) disponibilidades de liquidez e (ii) não prejudicar a normal actividade da recorrida e das suas participadas. Por conseguinte, a sentença recorrida não olvidou o disposto nos artigos 762º, 763º, 777º e 778º do Código Civil. É que, até à verificação da condição imposta pelos accionistas, tais preceitos são inaplicáveis, exceptuada, eventualmente, a primeira parte do nº 1 do artigo 778º, ainda que a verificação da possibilidade de cumprir caiba ao Conselho de Administração da recorrida, como resulta da deliberação social de 30.12.2016 que, recorde-se mais uma vez, foi aprovada por unanimidade dos presentes e não foi impugnada. Certo é, em todo o caso, que o recorrente não logrou provar que a possibilidade de cumprimento se tenha, entretanto, verificado.
7. Por fim, cumpre dizer que não há qualquer analogia na situação em apreço com a que é disciplinada pelo regime estabelecido no artigo 89º, nº 2, do C.S.C. para o aumento de capital. Na realidade, este regime aplica-se a uma hipótese diametralmente oposta à da redução do capital, pois o que nele se prevê é o vencimento de uma obrigação dos sócios perante a sociedade e não o vencimento de uma obrigação desta perante os sócios, sendo, obviamente, diferentes os interesses subjacentes às duas hipóteses.
Além disso, o regime do artigo 89º, nº 2, do C.S.C. pressupõe que a deliberação de aumento de capital seja omissa quanto à exigibilidade das entradas em dinheiro que a lei permite diferir, omissão que, na deliberação de redução de capital da recorrida, não ocorre relativamente à exigibilidade do reembolso do capital excedentário, visto que ficou previsto que esta dependa de um juízo de oportunidade do Conselho de Administração sobre a existência de liquidez, face às necessidades da normal actividade da sociedade e das suas participadas.
Termos em que deve improceder o recurso».
II. Objeto recursivo
Sendo o thema decidendum balizado pelas conclusões da alegação do recorrentes, salvo as questões de conhecimento oficioso (artigos 635º/1, 639º/3 e 4 e 608º do Código de Processo Civil, doravante designado “CPC”), cabe apreciar:
1. A impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
2. A redução do capital social e o reembolso aos sócios.
III. Fundamentação
1. A impugnação da decisão sobre a matéria de facto
Considera o Autor/recorrente incorretamente julgados os factos provados sob os números 15), 16) e 17), aduzindo que tal erro não reside na matéria que ali consta como provada, que está correta, mas na sua insuficiência. E explica que o tribunal a quo, ao fazer referência a algumas rubricas das contas da Ré/Recorrida escolheu os dados referentes às “disponibilidades de caixa e depósitos”, ao “passivo corrente” e ao “ativo corrente”, desprezando a restante informação resultante das contas do exercício de 2016. Pugna, por isso, que demos por apurado o “Total do Ativo”, no valor de €114.321.035,00, e o “Total do Passivo”, que ascendeu a €23.768.326,00. Também o Facto Provado sob o nº 17, com o seguinte teor: «A redução do capital social supra referida foi inscrita sob a rubrica de capitais próprios “outros instrumentos de capital próprio» carece de rigor, porque “a redução do capital social” foi inscrita sob a rubrica contabilística “outros instrumentos de capital próprio”.
A tanto se opõe a Recorrida, alegando que tais factos não foram alegados pelo Autor nos articulados e, sendo instrumentais, a sua função secundária, tendente a justificar a prova dos factos essenciais.
A matéria em causa não foi, efetivamente, alegada pelas partes, mas resultou da discussão da causa e encontra-se documentalmente provada pelos elementos contabilísticos relativos ao exercício do ano de 2016, juntos aos autos por linha, cujas contas foram aprovadas em assembleia geral e aceitas pela demandada. Portanto, estando os dados em causa comprovados pelas contas desse exercício, sem qualquer impugnação da Ré, estão reunidas condições processuais para os considerar apurados.
Consabido que às partes cabe alegar os factos essenciais, que integram a causa de pedir e as exceções, a verdade é que o juiz está legitimado a considerar os factos instrumentais que resultem da instrução da causa, os que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa e os factos notórios, bem como aqueles de que o tribunal teve conhecimento em virtude do exercício das suas funções (artigo 5º/1 e 2 do CPC). Assim, tendo tais factos resultado da instrução e da discussão da causa e, sendo complementares dos que foram alegados pelas partes, cremos estarem reunidas condições para a sua aquisição processual. Aliás, isso mesmo considerou a sentença recorrida ao dar como apurados alguns dados financeiros extraídos das contas do exercício de 2016, deixando, no entanto, por registar aqueles que o Recorrente agora sinaliza, todos da mesma natureza e sustentados pelo mesmo meio de prova, sem que haja fundamento para distinguir. Identicamente, os elementos contabilísticos revelam que a redução do capital foi inscrita na rubrica de capitais próprios como “outros instrumentos de capitais próprios”, assim impondo a correspondente correção. Portanto, passarão os indicados factos a exibir a seguinte redação:
«15) Em 31 de Dezembro de 2016, constava do balanço da ré:
a. Disponibilidades em caixa e depósitos no valor de €2.585.081,86;
b. Um passivo corrente de €20.348.747,05;
c. Um activo corrente de €4.107.270,35;
d. O Total do Activo era de €115.225.775,51;
e. O Total do Passivo era de €20.348.747,05
«16) Nas contas aprovadas relativas a 2016 ficaram a constar os seguintes valores:
a. Disponibilidades em caixa e depósitos no valor de €2.585.082,00;
b. Um passivo corrente de €23.768.326,00;
c. Um activo corrente de €4.107.270,00;
d. O Total do Activo era de €114.321.035,00;
e. O Total do Passivo era de €23.768.326,00
«17) O valor de €4.489.181,10,correspondente à redução do capital social, foi inscrita sob a rubrica de capitais próprios ‘outros instrumentos de capital próprio’».
2. Factos provados
1) O autor é acionista da ré C…, S.A., sociedade em cujo capital social detém 5.720.286 de ações, correspondentes a 12,74% do capital social da ré.
2) Em 29 de Dezembro de 2016, o capital social da ré era de €35.913.449,00, representado por 44.891.811 ações, no valor de €0,80 cada uma.
3) Na assembleia de sócios da referida sociedade, realizada em dia 30 de dezembro de 2016, conforme ata nº 31, o conselho de administração da ré apresentou uma proposta com o seguinte teor: «Considerando que o capital social da firma apresenta atualmente um valor excessivo face às necessidades decorrentes do normal exercício da atividade social; e Atendendo à situação patrimonial líquida da sociedade espelhada nas contas do último exercício anual, O Conselho de Administração propõe aos Srs. Acionistas:
A) - Que o capital social, atualmente fixado em €35.913.449,00 (trinta e cinco milhões, novecentos e treze mil, quatrocentos e quarenta e nove euros), seja reduzido para o montante de €31.424.267,70 (trinta e um milhões, quatrocentos e vinte e quatro mil, duzentos e sessenta e sete euros e setenta cêntimos) mediante diminuição do valor nominal de todas as ações para o valor de €0,70 (setenta cêntimos) cada uma;
B) - Que o Conselho de Administração fique autorizado a deliberar o reembolso aos sócios do capital ora libertado, proporcionalmente às ações que estes detiverem, por uma ou mais vezes, conforme achar oportuno em função das disponibilidades de liquidez, e sem prejuízo para a normal atividade da firma e das empresas participadas».
4) Tal proposta constou da ordem dos trabalhos com a seguinte redação: “UM - Redução do capital social de €35.913.449,00 (trinta e cinco milhões, novecentos e treze mil, quatrocentos e quarenta e nove euros) para o novo capital que a assembleia venha a deliberar, nunca inferior à situação patrimonial líquida da firma acrescida de vinte por cento, mantendo-se o número atual de ações, e procedendo à redução geral e proporcional do respetivo valor de forma a libertar o capital excessivo».
5) O autor não esteve presente na referida assembleia geral da ré.
6) Ficou ainda consignado em ata que o presidente do conselho de administração «(…) explicou que, a exemplo do que aconteceu em 2010 e 2012, o Conselho de Administração propunha uma redução do capital através da redução de dez cêntimos no valor de cada ação, o que se traduziria na redução do capital no montante de 4.231.768,30€ (quatro milhões duzentos e trinta e um mil setecentos e sessenta e oito euros e trinta cêntimos, a ser feita oportunamente e conforme as disponibilidades de tesouraria da empresa, na proporção do número de ações detidas por cada acionista».
7) O fiscal único da ré, Sr. Dr. F… (Revisor Oficial de Contas) declarou «não ter qualquer observação a fazer«.
8) Colocada a deliberação dos sócios, a proposta foi deliberada favoravelmente pela unanimidade dos acionistas presentes e representados nos seguintes termos:
« UM – Reduzir o capital social para o montante de €31.424.267,70 (trinta e um milhões, quatrocentos e vinte e quatro mil, duzentos e sessenta e sete euros e setenta cêntimos) mediante diminuição do valor nominal de todas as ações para o valor de €0,70 (setenta cêntimos) cada uma;
DOIS – O Conselho de Administração fica autorizado a deliberar o reembolso aos sócios do capital ora libertado, proporcionalmente às ações que estes detiverem, por uma ou mais vezes, conforme achar oportuno em função das disponibilidades de liquidez, e sem prejuízo para a normal atividade da firma e das empresas participadas».
9) Na sequência da deliberação supra descrita, o presidente do conselho de administração, Engº G…, declarou o seguinte: «(…) a decisão agora tomada não implicará qualquer dificuldade na empresa, continuando preparada para a prossecução dos negócios».
10) Ficou ainda consignado em ata o seguinte: “O Vogal do Conselho, (…) complementou o referido pelo Engº G…, explicando o sentido do movimento contabilístico consequente a esta deliberação, dado que o valor sai de capital social mas mantem-se, para já, no capital próprio da empresa».
11) Em 20/01/2017, foi inscrita na Conservatória de Registo Comercial a redução do capital social para €31.424.267,70.
12) Após tal deliberação e até à data da instauração da ação, a ré não restituiu aos sócios, incluindo ao autor, a quantia correspondente à redução de capital na proporção do número de ações detidas por cada acionista.
13) O Conselho de Administração, em reunião realizada em 03/11/2017, deliberou, por unanimidade, efetuar o reembolso aos acionistas de um montante global de €897.836,26, correspondente a 20% do valor do capital libertado, proporcionalmente às ações por eles detidas à data da deliberação de redução do capital social.
14) Na sequência do que a ré restituiu ao autor o montante de €114.405,72.
15) Em 31 de dezembro de 2016, constava do balanço da ré:
a. Disponibilidades em caixa e depósitos no valor de €2.585.081,86;
b. Um passivo corrente de €20.348.747,05;
c. Um activo corrente de €4.107.270,35;
d. O Total do Activo era de €115.225.775,51;
e. O Total do Passivo era de €20.348.747,05 (alterado pela Relação).
16) Nas contas aprovadas relativas a 2016 ficaram a constar os seguintes valores:
a. Disponibilidades em caixa e depósitos no valor de €2.585.082,00;
b. Um passivo corrente de €23.768.326,00;
c. Um activo corrente de €4.107.270,00;
d. O Total do Activo era de €114.321.035,00;
e. O Total do Passivo era de €23.768.326,00 (alterado pela Relação).
17) O valor de €4.489.181,10, correspondente à redução do capital social, foi inscrito sob a rubrica de capitais próprios “outros instrumentos de capital próprio” (alterado pela Relação).
18) O autor foi presidente do conselho de administração da ré, nos quadriénios 2010/2013 e 2014/2017.
19) Na assembleia geral realizada em 23/12/2010, os sócios da ré deliberaram reduzir o capital de €44.891.811,00 para €40.402.630,00, tendo o valor da redução ficado registado na conta de capital próprio “Outros instrumentos de capitais próprios”, nos termos constantes da ata nº 22, constante de fls. 28v a 31 dos autos.
20) O reembolso aos acionistas viria a fazer-se mediante uma primeira entrega de €2.500.00,00, ocorrida em 02/05/2012, completada com uma segunda que incluiu o valor remanescente de € 1.989.181,00, em 05/06/2013.
21) Na assembleia geral realizada em 28/12/2012, os acionistas da ré deliberaram reduzir o capital de €40.402.630,00 para €35.913.449,00, tendo o valor da redução ficado registado na conta “Outros instrumentos de capitais próprios”.
22) O reembolso aos acionistas viria a fazer-se mediante uma primeira entrega de €10.819,00, em 05/06/2013, que se completou em 04/10/2016 com a entrega do valor remanescente de €4.478.362,00.
3. Enquadramento jurídico
Vem discutido se a ré/recorrida tem o direito de reter a quantia que cabe ao autor, correspondente à redução de capital social, uma vez que nisso não consentiu e sem que exista deliberação da Assembleia Geral nesse sentido. Para a dilucidação desta questão, destacamos que, em 29/12/2016, dia anterior à deliberação da assembleia geral que decidiu a redução do capital social, o autor/recorrente detinha a participação social no valor nominal de €4.576.228,80 (quatro milhões, quinhentos e setenta e seis mil, duzentos e vinte e oito euros e oitenta cêntimos), traduzido em 5.720.286 ações ao valor nominal de €0,80 (oitenta cêntimos) (factos provados 1 e 2). Nessa Assembleia Geral de 30/12/2016 foi deliberado, por unanimidade, a redução do capital social da sociedade demandada, passando o valor nominal de cada ação para €0,70 (setenta cêntimos) (facto provado 8). Logo, por via dessa redução, a participação social do autor no capital social da ré passou para €4.004.200,20 (quatro milhões, quatro mil, duzentos euros e vinte cêntimos), correspondente ao produto das 5.720.286 ações pelo seu valor nominal, a significar que o autor tem direito a ser reembolsado da quantia de € 572.028,60 (quinhentos e setenta e dois mil e vinte e oito euros e sessenta cêntimos), correspondente à redução da sua participação social. Não há dissídio sobre o direito do autor a tal restituição, residindo a controvérsia na sua exigibilidade e, enquanto este entende que pode fazê-lo imediatamente, a demandada opõe que o reembolso é deliberado pelo Conselho de Administração por razões de oportunidade e de liquidez da empresa e das demais empresas participadas. No fundo, reclama o autor/recorrente que o Conselho de Administração cumpra o que foi decidido pela Assembleia Geral de imediato.
A relação jurídica entre o sócio e a sociedade é una e complexa. Una, porque se estabelece uma relação jurídica entre cada um dos sócios e a sociedade, e complexa, porque contém uma pluralidade de situações jurídicas ativas e passivas, de natureza diversificada, mas unificada em redor da posição subjetiva do sócio. E no seio da relação jurídica societária há poderes e vinculações de variada natureza: poderes de domínio, poderes creditícios, poderes potestativos, vinculações pecuniárias, obrigações de facere e de non facere, sujeições. Porém, o conteúdo da relação jurídica estabelecida pelo sócio com a sociedade é móvel, podendo ser modificada por deliberação social e até pela lei[1]. Isso mesmo sucedeu in casu, vendo o autor reduzida a sua participação social no capital social sem nisso ter colaborado, uma vez que não esteve presente na Assembleia Geral que deliberou a redução do capital social da ré. Contudo, não tendo usado do poder de impugnar tal deliberação, está submetido à decisão ali alcançada, circunscrevendo-se a questão a decidir se a deliberada redução do capital social faculta o imediato reembolso do valor que cabe aos acionistas.
O capital social desempenha várias funções, seja ao nível interno, como critério de definição das posições jurídicas dos sócios ou na função de produção, seja no domínio externo, particularmente como função de garantia dos credores. Embora seja modelado por determinados princípios, como a intangibilidade, que corresponde à impossibilidade de distribuição aos sócios de bens ou valores necessários à cobertura do capital social (artigo 32.º do Código das Sociedades Comerciais[2]), o capital social não é imutável e, não raramente, é objeto de variações positivas, sempre que a sociedade delibera proceder ao seu aumento. A redução do capital social representa uma variação negativa e implica uma alteração estatutária traduzida na substituição do montante do capital social ínsito ao contrato da sociedade, vigente no momento deliberativo, por um montante inferior. São-lhe, por isso, aplicáveis todas as normas que versem sobre alteração dos estatutos.
A redução do capital social é, na sua essência, motivada por uma dupla ordem de razões: libertação de excesso de capital ou cobertura de prejuízos. O mesmo é dizer que o capital social se pode mostrar excessivo para os negócios da sociedade e ela propõe-se reembolsar os sócios das quantias que se tornaram supérfluas para os objetivos societários a atingir ou podem ter ocorrido vicissitudes que comprometeram parte do património societário que imponham a reposição do capital social num nível compatível com o do ativo remanescente ou, ainda, a qualquer outra finalidade especial (artigo 95º do CSC)[3].
Na situação que apreciamos, a deliberada redução do capital social da sociedade demandada ocorreu num cenário de sobrecapitalização e, portanto, teve em vista a recuperação de parte do investimento feito pelos acionistas na sociedade, por se ter revelado excessivo e/ou improdutivo, o que determinou a alteração do seu contrato de sociedade, no qual parte do capital social foi eliminada por redução.
O regime da redução do capital social sofreu as modificações introduzidas pelo decreto-Lei n.º 8/2007, de 17 de janeiro, que procurou uniformizar o regime de redução para cobertura de perdas com o regime de redução por excesso de capital e aboliu a exigência de autorização judicial para a redução do capital social exuberante. Logo, atualmente, o principal requisito para a redução do capital social superabundante é a situação líquida da sociedade não ficar a exceder o novo capital em, pelo menos, 20%. Por outro lado, é permitido deliberar a redução do capital a um montante inferior ao mínimo estabelecido na lei para o respetivo tipo de sociedade se tal redução ficar expressamente condicionada à efetivação de aumento do capital para montante igual ou superior àquele mínimo, a realizar nos 60 dias seguintes àquela deliberação (artigo 95º/ 1 e 2 do CSC)[4]. É o chamado efeito de harmónio, que consiste em reduzir o capital para cobrir as perdas e, sucessivamente, aumentar o capital, ficando a redução condicionada àquela realização do aumento[5].
O regime legal admite, portanto, que o capital excessivo, porque improdutivo, seja reduzido e libertado da finalidade a que está adstrito [artigo 94º/1, a) do CSC]. «Trata-se de uma operação que não prejudica os sócios; antes pelo contrário, viabilizando a distribuição de bens até então indisponíveis, O património líquido, que acompanha no mesmo montante a variação do capital social, situar-se-á a um nível inferior, permitindo a criação de reservas livres, que anteriormente integravam o capital social, ou a atribuição de bens aos sócios»[6]. Por isso se vem entendendo que a imediata finalidade da redução do capital social para libertação de bens excessivos visa a direta atribuição aos sócios das importâncias libertadas, correspondendo ao reembolso parcial do capital investido, a igualdade dos sócios ou a criação de reservas livres para acautelar o futuro societário.
Recentrados na deliberação tomada pelos acionistas da sociedade ré no sentido da redução do capital social, vemos que está adquirido que, em 29/12/2016, o capital social era de € 35.913.449,00, representado por 44.891.811 ações, no valor de € 0,80 cada uma, e, na assembleia geral de 30/12/2016, o conselho de administração apresentou uma proposta com o seguinte teor: «Considerando que o capital social da firma apresenta atualmente um valor excessivo face às necessidades decorrentes do normal exercício da atividade social; e atendendo à situação patrimonial líquida da sociedade espelhada nas contas do último exercício anual, o Conselho de Administração propõe aos Srs. Acionistas:
A)- Que o capital social, atualmente fixado em €35.913.449,00 (trinta e cinco milhões, novecentos e treze mil, quatrocentos e quarenta e nove euros), seja reduzido para o montante de €31.424.267,70 (trinta e um milhões, quatrocentos e vinte e quatro mil, duzentos e sessenta e sete euros e setenta cêntimos) mediante diminuição do valor nominal de todas as ações para o valor de € 0,70 (setenta cêntimos) cada uma;
B)- Que o Conselho de Administração fique autorizado a deliberar o reembolso aos sócios do capital ora libertado, proporcionalmente às ações que estes detiverem, por uma ou mais vezes, conforme achar oportuno em função das disponibilidades de liquidez, e sem prejuízo para a normal atividade da firma e das empresas participadas.» (n.ºs 2 e 3 dos factos provados). Essa proposta, explicitada na ordem de trabalhos, foi apreciada e, tendo o presidente do Conselho de Administração explicado que, «a exemplo do que aconteceu em 2010 e 2012, o Conselho de Administração propunha uma redução do capital através da redução de dez cêntimos no valor de cada ação, o que se traduziria na redução do capital no montante de 4.231.768,30€ (quatro milhões duzentos e trinta e um mil setecentos e sessenta e oito euros e trinta cêntimos, a ser feita oportunamente e conforme as disponibilidades de tesouraria da empresa, na proporção do número de ações detidas por cada acionista» (n.os 5 e 6 dos fundamentos de facto). Sem qualquer objeção do revisor oficial de contas, a proposta foi deliberada por unanimidade nos seguintes termos: «UM – Reduzir o capital social para o montante de €31.424.267,70 (trinta e um milhões, quatrocentos e vinte e quatro mil, duzentos e sessenta e sete euros e setenta cêntimos) mediante diminuição do valor nominal de todas as ações para o valor de € 0,70 (setenta cêntimos) cada uma; DOIS – O Conselho de Administração fica autorizado a deliberar o reembolso aos sócios do capital ora libertado, proporcionalmente às ações que estes detiverem, por uma ou mais vezes, conforme achar oportuno em função das disponibilidades de liquidez, e sem prejuízo para a normal atividade da firma e das empresas participadas.» (n.ºs 7 e 8 dos factos provados).
Não obstante o que ficou exarado em ata, é evidente que uma deliberação desta natureza supõe a ponderação da atividade da empresa e dos seus projetos para futuro, o que tem de ser feito por uma maioria qualificada de 2/3 dos votos, uma vez que está em causa uma sociedade anónima (artigo 386º/3 do CSC).
Não vem questionada a validade da deliberação social, nem a finalidade visada com a redução do capital social nem o reembolso do montante de capital reduzido. A única questão controvertida, reiteramos, é se a restituição deverá ser imediata, como defende o autor/recorrente, ou quando o Conselho de Administração o entender, segundo o juízo de oportunidade que lhe foi deferido pela Assembleia geral, como entendem a sentença recorrida e a apelada.
A Assembleia Geral entendeu deferir ao Conselho de Administração da sociedade a oportunidade do reembolso aos acionistas do capital e outra não pode ser a interpretação do teor da deliberação exarada, e, ainda assim, condicionada às disponibilidades de liquidez e sem prejuízo para a normal atividade sociedade ré e das sociedades participadas.
A administração das sociedades anónimas é exercida com autonomia em relação à Assembleia Geral e aos acionistas e, mesmo nas sociedades anónimas com estrutura orgânica dualista, o Conselho de Administração só tem a obrigação de informação perante o Conselho Geral e, embora sujeita à sua fiscalização, não está submetida à sua orientação (artigo 432º do CSC)[7]. Nessa linha orgânica da sociedade anónima, tendo sido deferida ao Conselho de Administração a oportunidade do reembolso do capital reduzido, adiantamos o acerto da sentença apelada, pois não nos parece que a deliberação social expressa na ata da Assembleia Geral ofereça outra interpretação, in claris non fit interpretatio. A vontade dos acionistas objetivada no teor literal da ata não capta o sentido deliberativo pretendido pelo autor, que é o imediato reembolso do capital reduzido.
Às deliberações sociais das sociedades comerciais é aplicável o princípio geral de interpretação plasmado no artigo 236º/1 do Código Civil, segundo o qual a declaração negocial vale com o sentido que um declaratório normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com aquele. Declaração negocial que valerá de acordo com a vontade real do declarante, se esta for conhecida do declaratário (artigo 236º/2 do Código Civil). Reportados estes princípios à deliberação social, não pode deixar de relevar o interesse dos sujeitos diferentes dos votantes cuja esfera jurídica é atingida pelos efeitos da deliberação e que correspondem ao 'declaratário' tutelado pela norma. Desta asserção resulta que o autor, ausente na Assembleia Geral em que foi votada a deliberação social em causa, assume, à luz da teoria da impressão do destinatário, a posição de declaratário, pelo que o sentido juridicamente relevante da deliberação será colhido daquele que possa ser deduzido por um declaratário normal, colocado na posição do declaratário real (o autor), salvo se este não puder razoavelmente contar com ele[8]. Ainda assim, nos negócios formais, a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto (artigo 238º/1 do Código Civil). O mesmo é dizer que o sentido atribuído pelo declaratário normal deverá estar expresso, ainda que de forma imperfeita, no próprio texto do documento que corporiza a deliberação (a ata).
Em suma, em homenagem aos princípios da proteção da confiança e da segurança do tráfico jurídico sobreleva o ponto de vista do declaratário, não o seu entendimento subjetivo, mas quele que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, poderia depreender. E o declaratário normal corresponde a uma pessoa com razoabilidade, conhecimento e diligência medianos, face às circunstâncias concretas do caso e àquelas que o real declaratário conheceu[9].
Para a concretização do sentido perscrutado pelo declaratário são relevantes circunstâncias complementares, anteriores ou coevas da declaração, e que dilucidam o seu sentido objetivo, prevalecente entre nós nesta matéria interpretativa: o sentido objetivo conforme à impressão do destinatário. Circunstancialismo que é do conhecimento do autor, por se encontrar exarado na ata da deliberação, designadamente a declaração do Presidente do Conselho de Administração, Engº G…, no sentido de que «(…) a decisão agora tomada não implicará qualquer dificuldade na empresa, continuando preparada para a prossecução dos negócios», e a declaração do Vogal desse Conselho que explicou o sentido do movimento contabilístico consequente à deliberação, acrescentando «que o valor sai do capital social da ré mas mantem-se, para já, no capital próprio da empresa» (n.ºs 9 e 10 dos factos provados). Proposições que denotam o alcance visado pela deliberação ao conferir ao Conselho de Administração autorização para o reembolso do capital libertado, proporcionalmente às ações detidas pelos acionistas, «por uma ou mais vezes, conforme achar oportuno em função das disponibilidades de liquidez, e sem prejuízo para a normal actividade da firma e das empresas participadas.» (n.º 8 dos factos provados).
Reputando o autor um declaratário normal, com «razoabilidade, sagacidade, conhecimento e diligência medianos, considerando as circunstâncias que ele teria conhecido e o modo como teria raciocinado a partir delas» e das circunstâncias que, em concreto, conheceu, ele teria de apreender o único um sentido declarativo compatível com o texto da deliberação: o reembolso só ocorrerá quando o Conselho de Administração o tiver por oportuno à luz da liquidez da sociedade ré e das sociedades participadas[10]. Aliás, idênticas situações já tinham ocorrido na vida societária, em 2010 e 2012, e o procedimento de reembolso do capital libertado correspondeu ao sentido interpretativo atribuído à deliberação agora sob escrutínio (n.ºs 19 a 22 dos factos provados).
Insiste o recorrente na boa situação financeira da sociedade ré e nas disponibilidades de liquidez, o que está demonstrado, ao menos à data da deliberação. Contudo, essa avaliação não está deferida aos acionistas individualmente, mas ao Conselho de Administração que, sopesando a liquidez da empresa e das demais participadas, emitirá um juízo de oportunidade quanto ao reembolso, o que, aliás, já sucedeu quanto a parte do capital libertado.
Opõe o autor/recorrente que o Conselho de Administração não está legitimado a reter o capital a reembolsar aos acionistas, porque a declaração do Vogal no sentido de que ele permanecia «no capital próprio da empresa» não integra a deliberação, nem foi submetida à votação da Assembleia Geral. Afirmação que traduz a apurada realidade factual, mas a Assembleia geral deferiu a oportunidade do reembolso ao Conselho de Administração e, até lá, esse valor ficou contabilisticamente inscrito sob a rubrica de capitais próprios ‘outros instrumentos de capital próprio’ (n.º 17 dos factos provados), sem constituir as prestações acessórias a que apela o autor. Aliás, tais prestações e as prestações suplementares de capital encontram-se, como referencia o autor, subordinadas a requisitos imperativos, aqui não verificados (artigos 209º a 213º e 287º do CSC).
Do exposto concluímos em sintonia com a sentença impugnada, que não merece censura.

Regime de custas: As custas da apelação ficam integralmente a cargo do autor, que decai no recurso, por a procedência da impugnação da decisão sobre a matéria de facto não ter repercussão na decisão final (artigo 527º/1 do CPC).
IV. Dispositivo
Perante o expendido, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a sentença apelada.
Custas da apelação a cargo do recorrente.
*
Porto, 11 de abril de 2019
Maria Cecília Agante
José Carvalho
Rodrigues Pires
______________
[1] Pedro Pais de Vasconcelos, A Participação Social nas Sociedades Comerciais, Almedina, 2.ª ed., pág. 67
[2] Aprovado pelo decreto-lei n.º 262/86, de 02 de setembro, doravante denominado “CSC”.
[3] Paulo Olavo Cunha, direito das sociedades comerciais, almedina, 5.ª ed., pág. 857.
[4] João Anacoreta Correia, Maria João Dias e Miguel Durham Agrellos, Actualidad Jurídica Uría Menéndez, 37-2014, pág. 163, in www.uria.com/documentos/publicaciones /4275/ documento /p02. pdf?id=5467
[5] António Pereira de Almeida, Sociedades Comerciais, Coimbra Editora, 2.ª ed. aumentada e atualizada, pág. 330; Pedro Pais de Vasconcelos, ibidem, pág. 309.
[6] Paulo Olavo Cunha, ibidem, pág. 860.
[7] Pedro Pais de Vasconcelos, ibidem, pág. 73.
[8] Jacinto Fernandes Rodrigues Bastos, Das Relações Jurídicas, III, 1968, pág. 39.
[9] Inwww.dgsi.pt: Ac. do STJ de 12/06/2012, processo 14/06.7TBCMG.G1.S1.
[10] Paulo Mota Pinto, Declaração Tácita e Comportamento Concludente no Negócio Jurídico, Almedina, 1995, pág. 208.