Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1830/11.3JAPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LÍGIA FIGUEIREDO
Descritores: PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO
Nº do Documento: RP201410291830/11.3JAPRT.P1
Data do Acordão: 10/29/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: REENVIO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Existe uso indevido do princípio in dubio pro reo se a falta de credibilidade concedida às declarações do assistente estão na base da aplicação desse principio para dar como não provados os factos, por não constituir uma regra relativa à valoração da prova.
II - O principio in dúbio pro reo impõe a procura da verdade material da prova dos factos, e só em caso de não conseguir apurar se determinado facto ocorreu ou não se impõe fazer funcionar aquele princípio e dar o facto como não provado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: 1ª secção criminal
Proc. nº 1830/11.3JAPRT.P1
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Acordam em conferência no Tribunal da Relação do Porto:

I – RELATÓRIO:

No processo comum (tribunal singular) n.º 1830/11.JAPRT, do 3º Juízo do Tribunal Judicial de Valongo o arguido B… foi submetido a julgamento e a final foi proferida sentença de cuja parte decisória consta o seguinte:
(…)
A) – Absolvo o arguido B…, da prática, em autoria material e em concurso real de um crime de extorsão, previsto e punido pelos art.ºs 22, 23 e 223, n.ºs 1 e 3, alínea a), do Código Penal e de um crime de furto simples, previsto e punido pelo art.º 203, do Código Penal.
B) – Julgo improcedente, por não provado, o pedido de indemnização cível deduzido pelo assistente C… e, em consequência, absolvo o arguido do pedido.
C) – Condeno o assistente no pagamento das custas na parte cível, na proporção do respectivo decaimento, nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º do Código de Processo Civil ex vi do artigo 523.º, do Código de Processo Penal.
*
Sem custas do processo, na parte crime, nos termos do disposto no art.º 515, n.º 1 alínea a), do Código de Processo Penal.

(…)
*
Inconformada com a sentença a Magistrada do Ministério Público interpôs recurso, no qual retira da respectiva motivação as seguintes conclusões.
(…)
Decidiu-se, na douta sentença recorrida, absolver o arguido B…, além do mais, do crime de extorsão, p. e p. pelos artºs 22°, 23°, e 223°, nºs 1 e 3, do Código Penal, crime, esse, que lhe era imputado, em autoria material e na forma tentada, na acusação pública deduzida nos autos pelo Ministério Público.
Funda-se o presente recurso, não só na discordância perante o sentido absolutório da mencionada sentença, no tocante ao crime de extorsão, na forma tentada, imputado ao arguido, como na constatação de que, na sentença recorrida, foram dados como não provados factos que deveriam ter sido dados como provados a esse propósito.
Concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (cfr. art° 412°, nº 3, alínea a), do Código de Processo Penal), por terem sido dados como não provados:
(…)
Concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (cfr. artº 412º, nº 3, alínea b), do Código de Processo Penal):
- declarações em audiência de discussão e julgamento do assistente C… (cfr. acórdão em suporte digital através de sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em ; em uso no Tribunal Judicial da Comarca de Valongo, de a - ata datada de 04.12.2013);
- depoimento em audiência de discussão e julgamento da testemunha D… "(cfr. gravação em suporte digital através de sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal Judicial da Comarca de Valongo, de a - ata datada de 12.12.2013);
-depoimento em audiência de discussão e julgamento da testemunha E… (cfr. gravação em suporte digital através de sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal Judicial da Comarca de Valongo, de a - ata datada de 12.12.2013);
- depoimento em audiência de discussão e julgamento da testemunha F… (cfr. gravação em suporte digital através de sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal Judicial da Comarca de Valongo, de a - ata datada de 12.12.2013).
5. Foi requerida pelo Ministério Público e, por conseguinte, com a concordância do assistente e do arguido, determinada pela MMª Juíza, ao abrigo do disposto no art° 356°, nºs 2 e 5, do Código de Processo Penal, a leitura das declarações prestadas em sede de inquérito pela testemunha F…, atenta a total divergência das declarações por si prestadas em sede de audiência de discussão e julgamento com aquelas.
6. Confrontada com tal divergência, a dita testemunha confirmou as declarações por si prestadas em inquérito, explicando que, nessa altura, se lembrava melhor dos factos.
7. Resulta, assim, inequivocamente das declarações do assistente C… e dos depoimentos das testemunhas D…, E… e F… que o arguido praticou os factos integradores do crime de extorsão, na forma tentada, aqui em apreço, assim o transmitindo, sem quaisquer dúvidas, em Tribunal, nos seus depoimentos gravados através do sistema integrado de gravação H@bilus Media Studio, em uso neste Tribunal, conforme consignado nas atas de 04.12.2013 e 12.12.2013 relativas às sessões de julgamento realizadas, respetivamente, nos dias 04.12.2013 e 12.12.2013.
8. Tendo em conta tais declarações/depoimentos, não se entende que, fazendo apelo ao princípio in dubio pro reo, o arguido tenha sido absolvido do crime de extorsão em análise.
9. O assistente relatou de forma objetiva, embora compreensivelmente emocionada, a forma como tudo se passou, confirmando a factualidade descrita na acusação e as suas declarações foram confirmadas pelos depoimentos das testemunhas D…, E… e F…, na medida do que era exigido saber a cada um deles.
10. Saliente-se que, o arguido, em sede de audiência de discussão e julgamento, ao abrigo de um direito que a lei lhe confere, remeteu-se ao silêncio (cfr. art° 61º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Penal).
11. O uso de tal direito, como bem sabemos, não o pode prejudicar. Mas, no caso vertente, também não o pode beneficiar.
12. Na verdade e embora saibamos também que o ónus da prova recai sobre o Ministério Público e não sobre o arguido, não podemos deixar de anotar com estranheza que o aqui arguido não tenha sequer negado de forma genérica a prática dos factos que lhe eram imputados! O que, quanto a nós seria o normal se não os tivesse praticado!
13. Nenhuma dúvida nos resta, salvo o muito respeito devido por opinião diversa, que a douta sentença recorrida efetuou uma incorreta aplicação da prova e violou, como se vê do que precede, o disposto no artº 127º nº1 do Código de Processo Penal.
14. Impõe-se, assim, no nosso modesto entendimento, alterar a matéria de facto constante da douta sentença recorrida, devendo constar dos factos provados os seguintes factos que, na dita sentença em análise foram dados como não provados:
(…)
15. Da conjugação dos supra referidos elementos probatórios resulta a demonstração dos factos integradores da prática do crime de extorsão, na forma tentada, p. e p. pelos art'º 22°, 23°, 223°, nºs 1 e 3, alínea a), por referência ao art° 204°, nº 2, alínea a), e 202°, alínea b), todos do Código
16. Da fundamentação jurídica constante da douta sentença recorrida, decorre que o único fator que obstaculizou a condenação do arguido pelo referido crime foi uma dúvida insanável sobre o que se teria passado.
17. Dissecando a prova produzida e conjugando-a com as regras da experiência, da lógica e da normalidade das coisas, facilmente se conclui que tal dúvida não pode subsistir.
18. Ficando, no nosso modo de ver, comprovados todos os supra referidos elementos típicos, impõe-se a condenação do arguido pela prática, e [autoria material, do crime de extorsão, na forma tentada, p. e p. pelos a cf 22º, 23º, 223º, nºs 1 e 3, alínea a), por referência ao art° 204°, nº 2,alíea a), e 202°, alínea b), todos do Código Penal.
19. Ao decidir da forma constante da douta sentença ora em causa, a MMª Juíza violou, no nosso modesto entendimento, o preceituado nos 22°, 223°, nºs 1 e 3, alínea a), por referência ao art° 204°, nº 2, alínea a), e 202º, alínea b), todos do Código Penal e no art° 127° do Código de Processo Penal, pelo que, deverá ser proferido douto acórdão pelo Venerando Tribunal d Relação do Porto, condenando o arguido em conformidade com a alteração da decisão da matéria de facto supra exposta.
Também o assistente C… interpôs recurso da sentença no qual retira da respectiva motivação as seguintes conclusões:
(…)A – O douto Tribunal a quo cometeu um grave vício de fundamentação, ao não justificar a razão da credibilização ou não credibilização das declarações das testemunhas, não sendo bastante uma enumeração ou resumo seletivo (sem o devido fundamento do porquê daquela seleção e não outra) do que foi dito em audiência de julgamento.
B – Torna-se indispensável um exame crítico dos próprios meios de prova, o qual consiste na “indicação das razões que levaram a que determinada prova tenha convencido o tribunal” (Ac. STJ de 24.6.1999, proc. 457/99-3ª, SASTJ, n.º 32, 88). Indo mais longe, a tal alcançada fundamentação “não tem de ser uma espécie de ‘assentada’ em que o tribunal reproduza os depoimentos das testemunhas ouvidas, ainda que de forma sintética. II – O exame crítico das provas deve ser aferido com critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita avaliar cabalmente o porquê da decisão e o processo lógico-mental que serviu de suporte ao respectivo conteúdo.” (Ac. do STJ de 11.10.2000, proc. 2253/2000-3ª, SASTJ, n.º 44,70) – o que falhou no caso presente.
C - É preciso que o Tribunal a quo, na fundamentação da decisão de facto, explique clara e detalhadamente, as razões porque deu credibilidade a uma prova em detrimento de outra, devendo enunciar as razões de ciência extraídas destas, o porquê da opção de uma e não por outra das versões apresentadas, os motivos da credibilidade... Não procedendo deste modo, violou-se o art. 374 n.º 2 (com a consequência do 379-1, al. a)), do CPP e ainda o art.º 32-1 da CRP.
D - E não se diga que não se poderá apreciar agora a credibilidade das testemunhas por causa do princípio da livre apreciação de prova. É que, se por um lado, o Tribunal a quo se absteve de as analisar corretamente, havendo erro notório na sua apreciação, por outro a “livre apreciação da prova não é livre arbítrio ou valoração puramente subjectiva, mas apreciação que, liberta do jugo de um rígido sistema de prova legal, se realiza de acordo com critérios lógicos e objectivos e, dessa forma, determina uma convicção racional... objectivável e motivável.
E - Incorreto julgamento de matéria de facto por incorreta apreciação da prova produzida em audiência de discussão e julgamento.
F - Encontra-se errada e incorretamente julgada a matéria de facto considerada como não provada da sentença de que se recorre.
G - Da análise cuidada dos mesmos suportes probatórios de que se serviu à Mms. Juíz para fundamentar a sentença e sustentarem a absolvição, retira-se exatamente o inverso da conclusão a que os mesmos chegaram.
H - De todas as provas supra descriminadas, onde se constatam trechos da transcrição das provas, produzidas em audiência de discussão e julgamento flui que aquela matéria dada como não provada o deveria ter sido como tal, ou seja, provada.
I – Sublinhe-se que as mesmas analisadas criticamente, segundo as regras da experiência comum, que outro caminho não conduzissem, como terão necessariamente que conduzir, sempre levariam à consequente e sempre necessária condenação do arguido quanto aos crimes de que vinha acusado.
J – Ora baseia-se o presente recurso, pela discordância perante o sentido absolutório da sentença, no tocante ao crime de extorsão, na forma tentada, e crime de furto, e também na constatação de que, na sentença recorrida, foram dados como não provados factos que deveriam ter sido dado como provados.
L - Assim, concretos pontos de facto que o Recorrente considera incorretamente julgados, por terem sido dado como não provados, os factos descritos de 1 a 20 atrás enunciados, devem ser dados como provados.
M - Concretos pontos que impõem decisão diferente (art. 412/3 b)):
1) Declarações do assistente, com transcrições atrás;
2) Depoimento da Testemunha D…, com transcrições atrás;
3) Depoimento da Testemunha E…, com transcrições atrás;
4) Depoimento da Testemunha F…, com transcrições atrás;
5) Depoimento da Testemunha G…, com transcrições atrás;
N - Foi requerido pelo Ministério Público co, a leitura das declarações prestadas em sede de inquérito pela testemunha F…, atenta a total discrepância das declarações prestadas em sede de audiência de julgamento.
O - Confrontado com as declarações prestadas sem sede de inquérito, confirma que são essas que devem prevalecer pois na altura se lembrava melhor dos factos do que se lembra hoje.
P - Resulta assim que a declaração do assistente e das testemunhas D…, E… e F… são coincidentes e consubstanciadoras de provar que o arguido praticou os factos integradores do crime de extorsão na forma tentada e do crime de furto, aqui em apreço, assim o transmitindo, sem quaisquer dúvidas, em Tribunal, nos seus depoimentos gravados.
Q - Tendo em conta tais declarações/depoimentos, não se entende que fazendo apelo ao princípio in dúbio pro reo, o arguido tenha sido absolvido do crime de extorsão e crime de furto em análise.
R - O assistente relatou perturbado e verdadeiramente constrangido que naquele dia temeu pela sua vida e descreveu com clareza os factos, as declarações foram coincidentes com as testemunhas, D…, E… e F….
S - O arguido em sede de audiência de discussão e julgamento, ao abrigo do um direito que a lei lhe confere, remeteu-se ao silêncio (art. 61 n.º 1 d) CPP). Tal direito não o pode prejudicar mas também não pode beneficiar.
T - Dúvidas não restam que a sentença recorrida efetuou uma errada apreciação da prova e violou o disposto no art. 127.º do CPP.
U - Impõe-se, a alteração da matéria de facto constante na sentença recorrida, devendo constar factos provados os seguintes factos:
(…).
V - Da conjugação dos supra referidos elementos probatórios resulta a demonstração dos factos integradores da pratica dos crimes de extorsão, na forma tentada, p.p. pelos artigos 22, 23 e 223, n.ºs 1 e 3 al. a), do CP, e do crime de furto simples, p.p. pelo art. 203.º do CP.
X - Da fundamentação jurídica consta da douta sentença, decorre que o único factor que impediu e absolveu o arguido foi numa dúvida insanável.
Z - Da qual, salvo devido respeito por opinião contrária, discordamos totalmente.
Analisado a prova produzida facilmente se conclui que dúvidas não restam que o deveriam ter sido dados como provados os factos dados como não provados.
Do que resulta que, ficando provados os elementos do tipo impõe-se a condenação do Arguido no crime pela prática dos crimes de extorsão, na forma tentada, p.p. pelos artigos 22, 23 e 223, n.ºs 1 e 3 al. a), do CP, e do crime de furto simples, p.p. pelo art. 203.º do CP e subsequentemente ser julgado procedente por provado o pedido de indemnização cível.
Ao decidir como de forma se decidiu na sentença em apreço, a Meritíssima Juiz a quo violou o preceituado nos artigos 22, 23 e 223, n.ºs 1 e 3 al. a), 203.º do CP, do 127. º e art. 374 n.º 2 CPP.
Nestes termos e nos melhores que V.as Ex.as doutamente suprirão:
A) Deve o presente recurso proceder, revogando-se a douta sentença Recorrida ao julgar-se como provados os factos de 1 a 20 e, em consequência, deve o Arguido ser condenado pela prática dos crimes de extorsão, na forma tentada, p.p. pelos artigos 22, 23 e 223, n.ºs 1 e 3 al. a), do CP, e do crime de furto simples, p.p. pelo art. 203.º do CP, e
B) Deve o presente recurso julgar procedente por provado o pedido de Indemnização Cível, condenando-se o Réu (Arguido) a pagar a quantia que o douto Tribunal venha a fixar, quantia essa nunca inferior a 10.500,00 €, por todos os danos patrimoniais e não patrimoniais, bem como as custas do processo.

O arguido B… respondeu, pugnando pela improcedência do recurso e manutenção da decisão recorrida.
Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de ser dado total provimento ao recurso do MP e parcial provimento ao recurso do assistente na parte relativa a prática do crime de extorsão, improcedendo quanto à condenação pelo crime de furto.
Cumprido que foi o disposto no artº 417º nº2 do CPP o arguido apresentou resposta na qual e no essencial pugna pela manutenção da decisão recorrida.
*
Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.
*
A sentença recorrida deu como provados e não provados os seguintes factos, seguidos da respectiva motivação:
(…)
Factos provados

1 – O arguido era devedor, à data da prática dos factos, da quantia monetária de cerca de € 1.000,00 a E…, devido a transacções comerciais mantidas entre ambos.
2 – Desde há algum tempo que o arguido vinha sendo abordado pelo E… no sentido de proceder ao pagamento de tal quantia, pois este atravessava um momento difícil e necessitava urgentemente de dinheiro.
3 – No dia 6 de Outubro de 2011, cerca das 15 horas, o arguido encontrou-se com o ofendido C…, seu conhecido, nas instalações da sociedade comercial deste, sitas no Porto, e com quem mantinha relações comerciais, referentes ao exercício das suas actividades profissionais.
4 – Após este encontro, o arguido e o ofendido C… deslocaram-se a Gondomar para verem uns terrenos pertencentes a ambos, tendo-se deslocado na viatura automóvel do arguido.
5 – Seguidamente, deslocaram-se à Rua …, em Valongo, a uma habitação, pertencente ao arguido, que estava a ser remodelada.
6 – Depois de terem acedido ao interior da residência, surgiram na casa, E…, acompanhado de F…, sendo que, de imediato, o E… dirigiu-se ao arguido, num modo exaltado e furioso, perguntando porque motivo o mesmo não lhe atendia o telefone, tendo-se deslocado ao seu escritório, não o tendo encontrado. Ainda, de um modo exaltado, o F… pediu, por diversas vezes, ao arguido que lhe pagasse o dinheiro que lhe devia, sendo que o mesmo precisava urgentemente de tal quantia.
7 – Após, o arguido saiu de casa e regressou, logo após, munido de um computador portátil.
8 – O arguido dirigiu-se ao F… e disse-lhe que lhe pagava quando o ofendido também lhe pagasse a quantia que lhe devia.
9 – Decorrido algum tempo o F… continuava a exigir ao arguido a quantia que lhe devia.
10 – O ofendido pegou no seu telemóvel de marca HTC …, no valor de € 500,00, a fim de telefonar à sua mulher, tendo, o E… retirado o telemóvel e colocado em local que não possível apurar.
11 – O ofendido C… saiu do interior da casa acima referida e pediu a intervenção da autoridade policial.
12 – O arguido é casado e tem dois filhos com 2 e 8 anos de idade.
13 – É empresário, auferindo de vencimento € 1.000,00, mensais e a sua esposa é administrativa na sua empresa, tendo de rendimento € 1.000,00, mensais.
14 – Vivem em casa própria, pagando de empréstimo bancário € 400,00.
15 – Tem como habilitações literárias, o 12.º ano de escolaridade.
16 – Do certificado de registo criminal do arguido nada consta.

2.2. – Factos não provados

Para além destes, com relevo para a decisão, não se provaram quaisquer outros factos constantes da acusação, que estejam em contradição com a factualidade precedentemente elencada e designadamente não se provou que:
A) – O arguido urdiu um plano no sentido de conseguir que tal quantia fosse paga, mas não por si, antes por terceira pessoa, e assim ficar desobrigado da quantia monetária de que era devedor a E….
B) – Na execução no plano que previamente traçou, o arguido combinou, telefonicamente, encontrar-se com o E… no dia referido em 3, dos factos provados para lhe pagar tal montante.
C) – Tenha sido o arguido que convenceu o ofendido C… a fazer a deslocação referida em 4, dos factos provados.
D) – No trajeto o arguido, após ter recebido um telefonema, pediu ao ofendido que o acompanhasse a Valongo, a fim de proceder à entrega de uma chave a um serralheiro que iria proceder à realização de umas obras numa casa de sua propriedade.
E) – Desde que entraram na casa referida em 5 e a chegada das pessoas referidas em 6, ambos dos factos provados, tenham passados alguns instantes.
F) – Tendo em conta a postura exaltada do E…, o ofendido C…, afastou-se ligeiramente do arguido e do E… e do F….
G) – Os factos descritos em 7 tenham ocorrido alguns minutos depois.
H) – O arguido tenha colocado o computador portátil sobre uma mesa.
I) – O arguido dirigiu-se ao ofendido e disse-lhe, em modo sério, “O senhor tem dinheiro, tem quatrocentos mil euros na conta, deve-me setenta e cinco mil mais juros, pague-me”, ao mesmo tempo que acedeu, através do computador portátil, à página eletrónica do H…, instituição bancária onde a sociedade comercial pertencente ao ofendido C… tem domiciliada uma conta bancária.
J) – Perante o comportamento do arguido, o ofendido permaneceu imóvel, estupefacto com o que acabava de ouvir por parte do arguido, uma vez que não era devedor de qualquer quantia monetária ao arguido, o que lhe disse por diversas vezes.
L) – O arguido disse ao F… que lhe pagava quando o ofendido lhe pagasse a quantia que lhe devia.
M) – Na altura descrita em 8, o arguido tenha dito que o ofendido lhe ia pagar naquele momento e, voltando-se novamente para ofendido, disse-lhe, mais uma vez, de um modo sério e intimidador, para lhe pagar, fazendo uma transferência bancária por via eletrónica, pois caso contrário, não sairia daquele lugar com vida, expressão que repetiu por várias vezes.
N) – O ofendido temeu pela sua vida, considerando o modo sério como o arguido lhe falou, assim como a circunstância de se encontrarem naquele lugar dois indivíduos que não conhecia e que, de igual modo, perante o tom exaltado com que se dirigiam ao arguido, poderiam atentar contra a sua integridade física.
O) – O facto descrito em 10 tenha ocorrido numa altura em que o arguido conversava com os indivíduos.
P) – Apercebendo-se de tal facto, o arguido pegou no telemóvel do ofendido, guardou-o no bolso, fazendo-o seu, nunca o tendo devolvido ao ofendido.
Q) – O ofendido C…, aproveitou a distração do arguido e conseguiu fugir da habitação.
R) – Ao atuar da forma descrita, o arguido, na prossecução de um plano previamente gizado, agiu com o propósito de constranger o ofendido a entregar-lhe a quantia monetária de € 75.000,00, fazendo-lhe crer que iria atentar contra a sua vida, caso o mesmo não efetuasse, naquele momento, uma transferência bancária, pois a ele próprio estavam a exigirem-lhe o pagamento imediato de uma divida, de uma modo exaltado e furioso.
S) – O arguido sabia não ter direito a tal quantia monetária e que ao assim proceder causaria um prejuízo patrimonial ao ofendido no montante global de € 75.000,00, que apenas o ofendido não lhe entregou, porque conseguiu fugir da casa, sem o arguido se aperceber.
T) – Agiu o arguido com a respetiva vontade livremente determinada, tendo perfeita consciência de que ao intimidar e a constranger o ofendido com a intimidação de que iria atentar contra a sua vida e com a circunstância de ambos puderem vir a serem agredidos pelos outros indivíduos, atuava de forma a coartar a sua liberdade de autodeterminação, agindo com o propósito supra referido de a obrigar a entregar determinada quantia monetária, contra a sua vontade, o que apenas não conseguiu por razões alheias à sua vontade.
U) – O arguido agiu, ainda, com o propósito, concretizado, de se apropriar do telemóvel do ofendido que sabia não lhe pertencer e que atuava contra a vontade do seu dono.
V) – O arguido atuou de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram punidas e proibidas por lei.
Do pedido de indemnização civil
X) – O assistente ainda hoje sofre quando se recorda do sucedido.
Y) – O assistente tornou-se uma pessoa insegura e tem diariamente pela sua integridade física e pela da sua família.
Z) – Tem dificuldade em estabelecer novas relações comerciais, não mais conseguiu deslocar-se com colaboradores/parceiros sozinho e ainda hoje se sente humilhado com tal exposição.
AA) – O assistente sofreu forte abalo psíquico, causado pelo medo e perturbação, vexame e tristeza porque passou e tem passado.
AB) – O telemóvel do assistente era a sua mais elementar ferramenta de trabalho.
AC) – O arguido passou a ter acesso a emails do assistente, de elevadíssima importância e confidencialidade, que estão perdidos para sempre.
AD) – O arguido passou a ter acesso a parcerias que o assistente vinha a desenvolver em Angola, no sentido de expandir o seu negócio.
Motivação

Dos factos provados

A convicção do Tribunal quanto aos factos dados como provados em 1 a 11, resultou da conjugação das declarações do assistente C…, com o depoimento da testemunha E… que, nesta parte, foram coincidentes e que permitiram que, ainda que de modo superficial, se tivesse percebido parte dos factos que ocorreram.
Relativamente às condições pessoais e económicas do arguido, constantes em 12 a 15, o Tribunal fundou a sua convicção nas declarações prestadas pelo arguido.
No que respeita aos seus antecedentes criminais, referidos em 16, valorou-se o certificado de registo criminal recentemente aos autos.

Dos factos não provados

Resultou desde logo do facto do assistente C…, quando perguntado sobre se conhecia o arguido e porque razão o conhecia, se ter limitado a dizer que teve relações comerciais com ele, omitindo que foram sócios até 2010 e que tinham terrenos, que não se percebeu se eram comuns, porquanto titubeou, que foram adquiridos pela sociedade de que foram sócios e que foram, entretanto, partilhados.
Ou seja, pretendia o assistente fazer crer a ausência de qualquer elo entre ele e o arguido, apenas tendo relações comerciais, o que é bem diferente, apenas tendo contado a verdade porquanto o tribunal não entendia a razão de, tendo eles apenas relações comerciais, ter acedido ir com o arguido a Gondomar ver terrenos.
Não logrou o assistente explicar a razão de ter assim deposto.
Mais ainda, titubeou e não esclareceu o tribunal acerca de, eventuais, processos que pudessem pender em juízo em que o arguido o demandasse na qualidade de réu, ou da sociedade de que é sócio. Pretendeu, ao longo das suas declarações, esconder do tribunal as reais relações que mantém com o arguido, os efetivos negócios e, eventuais ações, donde pudesse aferir-se da legitimidade, ou não, da exigência ilegítima do pagamento imputada ao arguido.
Assim, atenta a postura do assistente de omissão de factos com extrema relevância para o tribunal, designadamente aferir das suas relações de interesse para com o arguido, nos termos do disposto nos art.ºs 138, n.º 2 e 145, n.º 2, do Código de Processo Penal ex vi do art.º 346, n.º 2, do mesmo diploma legal, não pode o tribunal ter como credível a versão dos factos que apenas ele relatou.
Ademais, as suas declarações em aspetos importantes foram contraditórias com os depoimentos das testemunhas E… e F… e bem assim os depoimentos destes entre si nos termos que se passarão a expor.
O arguido não prestou declarações.
Assim, no que respeita ao plano previamente delineado pelo arguido e o contacto prévio com a testemunha E…, tal matéria foi dada como não provada porquanto este negou de forma perentória que tivesse sido contactado pelo arguido tendo sido ele que ligou para o escritório deste, tendo-lhe sido dada a informação de que estaria numa casa em Valongo. Sucede que não se nos afigura minimente crível que tivesse sido dada tal informação à testemunha por uma pessoa pertencente à empresa do arguido, o qual não estava a tratar de assuntos com a mesma relacionada, tanto mais que não a logrou identificar.
Por outro lado, a testemunha F… quando confrontada com as declarações que prestou em sede de inquérito, que são contraditórias com as ora prestadas, acabou por dizer que foi ali que depôs com verdade e não em sede de audiência de julgamento.
Em suma, o depoimento da testemunha E… que esteve nas mesmas condições de tempo e de lugar com a testemunha F… quanto a aspetos importantes foram divergentes. A título exemplificativo na versão da testemunha E… “o assistente estava calmo”, já na da testemunha F… nas declarações que prestou em sede de inquérito, o assistente estava “nervoso e claramente amedrontado”.
Quanto ao facto de o arguido ter dito ao assistente que ou ele lhe pagava ou não saía dali com vida, apenas este o disse, tendo a testemunha E… dito que o arguido não o disse e a testemunha F… que não recorda quais as expressões, no seu entender, intimidatórias, que o arguido terá proferido.
Ademais, nenhuma das testemunhas disse ter ouvido o arguido ter proferido a expressão constante em I).
Finalmente, cumpre referir que muito embora o assistente não tenha querido esclarecer ao tribunal acerca de, eventuais créditos reclamados pela sociedade de que o arguido é sócio à sociedade do assistente, o certo é que foi pela testemunha G…, sua funcionária, confirmada a existência de processos cíveis em que a sociedade do arguido é autora e a do assistente ré.
Em face da prova produzida fica a dúvida quanto ao modo como ocorreram os factos pelos quais vinha acusado e que constituem crime.
Como escreve Cristina Líbano Monteiro, in Perigosidade de Inimputáveis e “In dubio pro reo”, STVDIA IVRIDICA, 24, Boletim da Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 1997, página 49 “Nos nossos dias, a dúvida insanável deve levar a dar como não provado o facto sobre o qual recai, se for desfavorável ao arguido. É uma solução claramente «pro reo», que tem a sua mais evidente manifestação no caso - que não é obviamente, o único – de o facto duvidoso ser de decisiva importância para a condenação. A sentença será, nessa hipótese, absolutória.”.
O in dubio pro reo, é um princípio básico do direito processual probatório, ou seja, existindo um laivo de dúvida, como sucede in casu, por mínimo que seja, sobre a veracidade de um facto em que se alicerça uma imputação, ninguém pode der condenado com base nesse facto. Logo, a punição só pode ter lugar quando o julgador, face às provas produzidas, adquire a convicção da certeza da imputação feita ao acusado.
As apontadas incertezas essenciais à descoberta da verdade material e à boa decisão da causa, acabaram por criar dúvidas insanáveis no nosso espírito a respeito da factualidade vertida em 2.2, impedindo que se lograsse obter a certeza dessa factualidade.
Fazendo-se funcionar o princípio in dubio pro reo, porquanto a persistência da dúvida razoável após a produção de prova tem de atuar, como é sabido, em sentido favorável ao arguido, fazendo com que a mesma acabasse por não poder ser subtraída à dúvida razoável e, por conseguinte, não pôde considerar-se como provada.
No que respeita à apropriação do telemóvel do assistente, apenas ficou demonstrado que a testemunha E… lho retirou da mão e o colocou em sítio que não foi possível apurar, não tendo sido feita qualquer prova, pois ninguém disse – nem o assistente – que foi o arguido que ficou com ele.
Em face do que se deixou exposto, não ficou demonstrado que, em virtude da conduta do arguido, – a qual não resultou provada – o assistente tenha sofrido danos.
(…)
Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.
No caso vertente e vistas as conclusões dos recursos, há que decidir as seguintes questões:
Recurso do Ministério Público:
● Impugnação da matéria de facto;
● Violação do artº 127º do CPP;
● Se o arguido deve ser condenado pela prática de um crime de extorsão na forma tentada, p.p. pelos artsº 22º, 23º, 223º, nº1 e 3 alínea a) por referênciia ao artº 204º nº2 alínea b) todos do Código Penal.
Recurso do Assistente:
● Saber se a sentença recorrida é nula nos termos do artº 379ºnº1 al.a) do CPP por violar o disposto no artº 374º nº2 do CPP e o artº 32º nº1 da CRP;
● Impugnação da matéria de facto provada;
● Violação do artº 127º do CPP;
● Se o arguido deve ser condenado pela prática de um crime extorsão na forma tentada p.p. pelos 22º, 23º e 223º nº1 e 3 al.a) do CP e de um crime furto simples p.p. pelo artº 203º do CP
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II - FUNDAMENTAÇÃO:
A Magistrada do Ministério Público impugna a matéria de facto provada, alegando terem sido incorrectamente julgados os factos dados como não provados sob as alíneas A) a O), Q) a T) e V) dos factos não provados.
Por sua vez o Assistente impugna também a matéria de facto alegando estarem incorrectamente julgados, todos os factos dados como não provados, alegando ainda a nulidade da sentença nos termos do artº 379ºnº1 al.a) do CPP por violar o disposto no artº 374º nº2 do CPP.
A fundamentação das decisões tem consagração Constitucional no artº 205º da CRP estando processualmente plasmada no artº 97º nº5 CPP.
Dispõe o artº 374º nº2 do CPP, que a sentença deve conter “uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.”
A sentença só cumpre o dever de fundamentação quando os sujeitos processuais seus destinatários são esclarecidos sobre a base jurídica e fáctica das reprovações contra eles dirigidas. Porém e como vem sendo entendido pela Jurisprudência, a lei não vai ao ponto de exigir que, numa fastidiosa explanação, transformando o processo oral em escrito, se descreva todo o caminho tomado pelo juiz para decidir, todo o raciocínio lógico seguido. O que a Lei diz é que não se pode abdicar de uma enunciação, ainda que sucinta mas suficiente, para persuadir os destinatários e garantir a transparência da decisão.[1]
Realça-se que a lei não obriga a que a fundamentação da decisão indique a concreta prova de cada um dos factos provados e não provados, nem á reprodução do teor de cada depoimento prestado. Como refere acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26-03-2008, com o apoio da jurisprudência do Tribunal Constitucional que cita:
“(…) XIII - Por outro lado, a fundamentação não tem de ser uma espécie de assentada em que o tribunal reproduza os depoimentos das testemunhas ouvidas, ainda que de forma sintética, não sendo necessária uma referência discriminada a cada facto provado e não provado e nem sequer a cada arguido, havendo vários. O que tem de deixar claro, de modo a que seja possível a sua reconstituição, é o porquê da decisão tomada relativamente a cada facto – cf. Ac. do STJ de 11-10-2000, Proc. n.º 2253/00 - 3.ª, e Acs. do TC n.ºs 102/99, DR, II, de 01-04-1999, e 59/2006, DR, II, de 13-04-2006 –, por forma a permitir ao tribunal superior uma avaliação segura e cabal do porquê da decisão e do processo lógico-mental que serviu de suporte ao respectivo conteúdo”.[2]
Em suma, aquilo que é necessário é que o tribunal explicite o percurso cognitivo que o levou a determinada decisão sobre a matéria de facto e designadamente justifique o convencimento a que chegou, de modo a que tal seja perceptível aos destinatários da decisão e, ao tribunal superior, o exame do processo lógico ou racional que lhe subjaz, pela via de recurso.
Aplicadas estas normas e princípios à sentença recorrida afigura-se que a mesma expõe o raciocínio lógico que levou a que o tribunal tivesse dado como provados e não provados os factos, de molde a permitir a apreensão do percurso cognitivo seguido pelo julgador na fixação da matéria de facto, que é questão diferente de o recorrente não concordar com a mesma. Improcede pois a invocada nulidade.
Não obstante, isso não significa que a sentença recorrida não enferme de outros vícios de que se impõe conhecer.
No que concerne à impugnação da matéria provada, não obstante os tribunais da Relação conhecerem de facto e de direito nos termos do disposto no artº 428º do CPP, como escreveu o Prof. Germano Marques da Silva “o recurso sobre a matéria de facto não significa um novo julgamento, mas antes um remédio para os vícios do julgamento em 1ª instância” Forum Justitiae, Maio 99.
Na verdade, fora dos casos de renovação da prova em 2ª instância, nos termos previstos no art. 430º - o que, manifestamente, não é o caso - o recurso relativo à matéria de facto visa apenas apreciar e, porventura, suprir eventuais vícios da sua apreciação em primeira instância; não se procura encontrar uma nova convicção, mas apenas verificar se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável na prova documentada nos autos e submetida à apreciação do tribunal de recurso. Ao tribunal de recurso cabe apenas “…aferir se os juízos de racionalidade, de lógica e de experiência confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar. Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significará que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração”.[3]
Lida a motivação da sentença recorrida, resulta da mesma que o tribunal recorrido formou o juízo sobre os factos não provados, por um lado porque não atribuiu credibilidade às declarações do assistente e por outro porque o tribunal ficou em dúvida quanto ao modo como ocorreram os factos.
Ora para fundamentar a falta de credibilidade atribuída ao depoimento do assistente escreveu-se que “Resultou desde logo do facto do assistente C…, quando perguntado sobre se conhecia o arguido e porque razão o conhecia, se ter limitado a dizer que teve relações comerciais com ele, omitindo que foram sócios até 2010 e que tinham terrenos, que não se percebeu se eram comuns, porquanto titubeou, que foram adquiridos pela sociedade de que foram sócios e que foram, entretanto, partilhados.
Ou seja, pretendia o assistente fazer crer a ausência de qualquer elo entre ele e o arguido, apenas tendo relações comerciais, o que é bem diferente, apenas tendo contado a verdade porquanto o tribunal não entendia a razão de, tendo eles apenas relações comerciais, ter acedido ir com o arguido a Gondomar ver terrenos.
Não logrou o assistente explicar a razão de ter assim deposto.
Mais ainda, titubeou e não esclareceu o tribunal acerca de, eventuais, processos que pudessem pender em juízo em que o arguido o demandasse na qualidade de réu, ou da sociedade de que é sócio. Pretendeu, ao longo das suas declarações, esconder do tribunal as reais relações que mantém com o arguido, os efetivos negócios e, eventuais ações, donde pudesse aferir-se da legitimidade, ou não, da exigência ilegítima do pagamento imputada ao arguido.
Assim, atenta a postura do assistente de omissão de factos com extrema relevância para o tribunal, designadamente aferir das suas relações de interesse para com o arguido, nos termos do disposto nos art.ºs 138, n.º 2 e 145, n.º 2, do Código de Processo Penal ex vi do art.º 346, n.º 2, do mesmo diploma legal, não pode o tribunal ter como credível a versão dos factos que apenas ele relatou.”
Com o devido respeito, afigura-se que face à afirmação do assistente de que o arguido tinha tido relações comerciais com ele, não pode dizer-se que tenha omitido que foram sócios. Na verdade a expressão “relações comerciais” com o devido respeito não pode ser interpretada de forma tão redutora nos termos em que o foi. Desde logo, e como bem assinala o assistente no seu recurso, face à definição de comerciantes constante do artº 13º do Código Comercial, em que expressamente se refere serem comerciantes “1º As pessoas, que tendo capacidade para praticar actos de comércio, fazem deste profissão, 2º As sociedades comerciais” e ao disposto no artº 1º nº2 do CSC no qual se estipulou que “ São sociedades comerciais aquelas que tenham por objecto a prática de actos de comércio e adoptem o tipo de sociedade em nome colectivo, de sociedade por quotas, de sociedade anónima, de sociedade em comandita simples ou de sociedade em comandita por acções.” (sublinhado nosso)
Ao considerar que o assistente ao usar tal expressão, omitiu que foram sócios, sem que o próprio tribunal tivesse como lhe competia caso tivesse duvidas sobre o alcance de tal expressão, procurado esclarecer aquilo que pretendia, ocorreu pois o tribunal num erro notório na apreciação da prova, nos termos do artº 410º nº2 al.c) do CPP, o qual é detectável por um homem médio com conhecimentos comuns.
Os vícios do artº 410º nº2 do CPP são de conhecimento oficioso conforme Jurisprudência fixada pelo STJ “é oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artº 410º nº2 do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.”[4] Sendo que a respectiva existência tem que forçosamente resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo permitido, para a demonstração de que existem, o recurso a quaisquer elementos que sejam externos à decisão recorrida.[5]
Como é sabido o erro notório na apreciação da prova verifica-se quando ocorre a evidência de um engano que não passe despercebido ao comum dos leitores da decisão recorrida e que se traduza em uma conclusão contrária àquela que os factos relevantes impõem. Ou seja, que perante os factos provados e a motivação explanada se torne evidente, para todos, que “ a conclusão da decisão recorrida é ilógica, arbitrária, contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum. Cfr. Ac. do STJ de 22/10/99 in BMJ 490, 200.”
Por outro lado, estando em causa nos autos um acto pessoal levado a cabo pelo arguido contra a pessoa do assistente, não se enxerga que relevo poderia ter para a credibilidade do assistente a questão dos terrenos que a sociedade de que ambos foram sócios terá adquirido.
Também considerou o tribunal para retirar credibilidade às declarações do assistente, que “não esclareceu o tribunal acerca de, eventuais, processos que pudessem pender em juízo em que o arguido o demandasse na qualidade de réu, ou da sociedade de que é sócio. Pretendeu ao longo das suas declarações, esconder do tribunal as reais relações que mantém com o arguido, os efectivos negócios e, eventuais ações, donde pudesse aferir-se da legitimidade, ou não, da exigência ilegítima do pagamento imputada ao arguido” e lida a totalidade da fundamentação, parece que o tribunal sedimentou tal conclusão porque “ muito embora o assistente não tenha querido esclarecer ao tribunal acerca de eventuais créditos reclamados pela sociedade de que o arguido é sócio à sociedade do assistente, o certo é que foi pela testemunha G… sua funcionária, confirmada a existência de processos cíveis em que a sociedade do arguido é autora e a do assistente ré.”
Ora, também aqui com o devido respeito, o tribunal incorreu num erro notório na apreciação da prova ao confundir os actos do arguido contra a pessoa do assistente objecto destes autos com as relações entre as sociedades de que estes sejam sócios, já que trata-se de pessoas jurídicas distintas.
Acresce que, também não se compreende como da consideração de que os depoimentos das testemunhas, E… e F… terem sido contraditórios entre si, se reforçou a falta de credibilidade das declarações do assistente.
Em suma, tendo a conclusão da falta de credibilidade que o tribunal assacou às declarações do assistente, estado na base do recurso do tribunal ao princípio in dubio pro reo para ter dado como não provada a matéria de facto não provada, há que concluir que o tribunal usou indevidamente tal princípio e incorreu também aqui no vício do erro notório na apreciação da prova, nos termos do artº 410ºnº2 al.c) do CPP.
Como escreve o Prof. Figueiredo Dias[6], «A absolvição por falta de prova, em todos os casos de persistência de dúvida no espírito do tribunal, não é consequência de qualquer ónus da prova, mas sim da intervenção do princípio in dubio pro reo.»
E prossegue o mesmo Professor: «À luz do princípio da investigação bem se compreende, efectivamente, que todos os factos relevantes para a decisão (quer respeitem ao facto criminoso, quer à pena) que, apesar da prova recolhida, não possam ser subtraídos à «dúvida razoável» do tribunal, também não possam ser considerados provados. E se, por outro lado, aquele mesmo princípio obriga em último termo o tribunal a reunir as provas necessárias à decisão, logo se compreende que a falta delas não possa de modo algum desfavorecer a posição do arguido: um non liquet na questão da prova – não permitindo nunca ao juiz, como se sabe, que omita a decisão (…)- tem de ser sempre valorado a favor do arguido. É com este sentido e conteúdo que se afirma o princípio in dubio pro reo.»
Isto é, o princípio in dubio pro reo não é um princípio que permita ao tribunal demitir-se de procurar, como deve, firmar a sua convicção sobre a ocorrência ou não dos factos, apreciando a credibilidade de cada um dos meios de prova produzidos. O que este princípio antes impõe, é que, após esse labor, se o tribunal, ainda assim, não conseguir concluir se determinado facto ocorreu ou não, por se lhe apresentarem dúvidas que, após a apreciação conjugada da prova, não logrou sanar, então terá que dar tal facto como não provado.
Ou, como se escreveu no ac. da Relação de Évora de 16/10/2007, o princípio in dubio pro reo “não constitui uma regra probatória em sentido próprio, i.e., uma regra relativa à produção ou valoração da prova, nomeadamente à dúvida sobre credibilidade de um dado meio de prova individualmente considerado, reportando-se, antes, às consequências da não realização de prova suficiente sobre a verdade ou falsidade de um facto, depois de concluído o processo de valoração da prova produzida”. [7]
Ou seja, para que o princípio in dubio pro reo possa funcionar, é necessário que as provas submetidas à apreciação do tribunal não permitam a tomada de decisão sobre a ocorrência ou não de determinado facto.
O vício de que enferma a decisão recorrida respeita aos factos estruturantes da matéria de facto e, por isso, não é possível decidir da causa, sob pena de proceder esta relação a novo julgamento sobre toda a matéria de facto, havendo que concluir que, face à existência do vício do artº 410º nº 2 al. c) do CPP, nos termos em que o mesmo foi assinalado, o mesmo acarreta o reenvio do processo para novo julgamento à totalidade do objecto do processo, com prejuízo das demais questões suscitadas nos recursos.
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III – DISPOSITIVO:
Nos termos apontados, acordam os juízes desta Relação em, nos termos dos artº 426º nº1 e 426º-A, ambos do CPP, determinar o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo.
Sem tributação
Elaborado e revisto pela relatora

Porto, 29-10-2014
Lígia Figueiredo
Neto de Moura
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[1] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29-01-2007 [Cons. Armindo Monteiro], processo 3193/06 – 3.ª Secção, in Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça
[2] [Conselheiro Raul Borges, processo 07P4833, in www.dgsi.pt-].
[3] Paulo Saragoça da Matta, “A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença”, texto incluído na colectânea “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, pág. 253.
[4] Ac. 19/10/95, DR- 1ª série de 28/12/95.
[5] Cfr. Ac.STJ de 24 de Março de 2004, proc.03P4043 (relator Henriques Gaspar)
[6] Jorge Figueiredo Dias, Direito Processual Penal primeiro volume, pág. 213, Coimbra Editora, Limitada, 1974.
[7] Ac. Rel Évora 16/10/2007, proc. 1238/07-1, (relator João Latas).