Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
156/14.5TAVFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ CARRETO
Descritores: TRÁFICO DE PESSOAS
Nº do Documento: RP20211028156/14.5TAVFR.P1
Data do Acordão: 10/28/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Comete este crime o arguido que aproveitou, para colocar ao seu serviço, fazendo trabalhos que contratava, os ofendidos, aproveitando a situação económica e social dos mesmos, a sua dependência alcoólica e a deterioração das suas capacidades psíquicas (nºs 1 a 3 e 6 dos factos) e a ausência de um projecto de vida consentâneo com uma vivência normal e ainda a ausência de suportes familiares dos mesmos (não se interessarem por eles ou não terem familiares- nºs 92 e 93 dos factos provados). Não há aqui nenhum intuito altruísta, de ajudar os ofendidos (que nunca sequer é alegado) mas de instrumentalização dos mesmos, no aproveitamento do trabalho não pago e apenas visando conservar a força de trabalho dos mesmos, alimentando-os, alojando-os e vestindo-os.
II -Essa instrumentalização vai mais além do que do mero trabalho, a chegar ao ponto de fiscalmente o ofendido revestir a qualidade de patrão, que não era, assim evitando o arguido ser perseguido criminal ou civilmente e imputando juridicamente os ilícitos ao ofendido António, em nome de quem passava a ser exercida a actividade, sem que este tenha noção das implicações do facto.
III - O querer dos ofendidos, por não terem outra melhor opção de vida da que lhe é dada pelo arguido, não invalida que ocorra a exploração do seu trabalho que praticavam para o arguido (e este contratava com terceiros e aqueles executavam), o que fizeram durante 14 e 20 anos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Rec nº 156/14.5TAVFR.P1
TRP 1ª Secção Criminal

Acordam em conferência os juízes no Tribunal da Relação do Porto

No Proc. C. C. 156/14.5TAVFR do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro
Juízo Central Criminal de Santa Maria da Feira - Juiz 3 em que é arguido
B…

O Mº Pº ao abrigo dos artigos 82.ºA CPP promoveu a condenação do arguido no pagamento de uma indemnização aos ofendidos, e
C… veio deduzir pedido de indemnização civil contra o arguido, pedindo a condenação deste a pagar-lhe a quantia de € 114.501,74 acrescida dos juros à taxa legal até efetivo e integral pagamento.

Por acórdão de 26/3/2021 foi decidido:
Face ao exposto, deliberam os juízes que compõem o Tribunal Coletivo julgar a acusação parcialmente procedente, por provada, e, consequentemente:
1. Absolve-se o arguido B… da prática dos dois crimes de burla qualificada, previstos e punidos pelos artigos 217.º, n.º 1, 218.º, n.º 2, alíneas a) e c) do Código Penal e dos dois crimes de maus-tratos, previstos e punidos pelo artigo 152.º-A, n.º 1, al. a), do Código Penal, de que vem acusado de ter praticado.
2. Julga-se improcedente a peticionada condenação do arguido a pagar ao Estado qualquer quantia, ao abrigo dos artigos 110.º n.º 1, al. b) e 4 do Código Penal, absolvendo-se o mesmo do peticionado a esse respeito.
3. Condena-se o arguido B… pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso real de infrações, de:
3.1. um crime de tráfico de pessoas, previsto e punido pelo artigo 160.º, n.º 1, alínea d) e n.º 8, do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 60/2013 de 23 de agosto, na pena de 3 [três] anos e 6 [seis] meses de prisão [relativamente ao ofendido D…];
3.2. um crime de tráfico de pessoas, previsto e punido pelo artigo 160.º, n.º 1, alínea d), do Código Penal, na redação dada pela Lei n.º 59/2007, de 04 de setembro, na pena de 3 [três] anos e 6 [seis] meses de prisão [relativamente ao ofendido C…].
4. Em cúmulo jurídico, condena-se o arguido na pena única de 4 [quatro] anos e 6 [seis] meses de prisão, cuja execução se suspende pelo mesmo período.
5. Julga-se procedente o pedido de reparação da vítima, e, em consequência, condena-se o arguido B… no pagamento ao ofendido D… da quantia global de €21.562,00 [vinte e um mil, quinhentos e sessenta e dois euros] a título de reparação pelos prejuízos que lhe foram causados em consequência do referido crime de tráfico de pessoas, nos termos do artigo 82.°- A, do Código de Processo Penal, acrescido de juros de mora vencidos e vincendos, contados desde a data da notificação do arguido/demandado para contestar o presente pedido de indemnização civil até efetivo e integral pagamento da quantia em dívida, à taxa legal que em cada momento vigorar para os juros civis [artigo 805.º, n.º 3 do Código Civil].
6. Julga-se parcialmente procedente, por provado, o pedido de indemnização civil deduzido pelo ofendido demandante C… e, em consequência, condena-se o arguido/demandado B… a pagar ao demandante a quantia global de €35.601,24 [trinta e cinco mil seiscentos e um euro e vinte e quatro cêntimos], a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais, àquele causados decorrentes do referido crime de tráfico de pessoas, acrescido de juros de mora vencidos e vincendos, contados desde a data da notificação do arguido/demandado para contestar o presente pedido de indemnização civil até efetivo e integral pagamento da quantia em dívida, à taxa legal que em cada momento vigorar para os juros civis [artigo 805.º, n.º 3 do Código Civil], e acrescido, ainda, do montante de €6.746,65 [seis mil e setecentos e quarenta e seis euros e sessenta e cinco cêntimos] (valor em dívida para com a SS) se e quando o mesmo vier a ser exigível ao demandante, absolvendo-se o demandado do demais peticionado.
7. Custas criminais: Mais vai o arguido condenado nas custas do processo, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça (artigo 344º, nº2, al. c) do Código de Processo Penal e artigo 8º, nº5 e tabela III anexos ao DL nº 34/2008 de 26 de Fevereiro), sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.23
8. Custas cíveis:Pelo demandante C… e arguido/demandado, na proporção dos respetivos decaimentos.(…)”

Recorre o arguido o qual no final da respectiva motivação apresenta as seguintes conclusões:
1. Na sentença recorrida cometeram-se graves erros na valoração da prova e, consequentemente na aplicação da matéria de Direito.
2. Do teor da, aliás douta, acusação e da motivação do douto Acórdão de que agora se recorre, resulta evidente que, quer antes na acusação, quer agora na decisão, existe um propósito manifesto, que resulta legítimo enquanto esforço de subsunção de um ato a um tipo legal de crime, de demonstrar que o arguido agiu com a intenção confessada e premeditada de explorar os ofendidos, aproveitando-se da sua especial venerabilidade de forma a obter para si enriquecimento ilegítimo.
3. No enquadramento jurídico-penal, respeitante ao crime de Tráfico de Pessoas, o Tribunal a quo concluiu que o arguido praticou atos de exploração, pelo facto de padeceram de limitações cognitivas, e de não saberem ler nem escrever, aproveitando-se da especial vulnerabilidade dos ofendidos.
4. Que o arguido, aproveitando-se das fragilidades decorrentes da dependência alcoólica e da sua especial vulnerabilidade, proveniente dos atrasos mentais de que padeciam, alojou os ofendidos em sua casa, e, ao longo de cerca de 14 anos, no que respeita ao ofendido C…, e de cerca de 20 anos, no que respeita ao ofendido D…, explorou-os laboralmente, aproveitando-se do trabalho físico que estes lhe prestavam, sem cuidar de lhes pagar qualquer ordenado.
5. Acontece que, em parte alguma da prova documental relevante ou das testemunhas inquiridas se extrai que a vítima tivesse sido manietada na sua liberdade de ação ou decisão.
6. Nem tão-pouco das declarações do arguido que colaborou com a justiça na descoberta da verdade material.
7. E, que, em momento algum se verificou a confissão dos factos, muito menos quanto à prática do crime, nos termos e para os efeitos do previsto no artigo 344.º do CPPenal.
8. Já quanto às declarações dos ofendidos, que são, como são o verdadeiro suporte fáctico da condenação pelos crimes de tráfico de pessoas, o tribunal a quo reconhece, inclusivamente, que o ofendido C… é incongruente nas suas declarações.
9. Assim como os depoimentos das testemunhas E…, F… e G…, respetivamente, irmãos e cunhado do ofendido C…, se revelaram tendenciosos e incoerentes.
10. Importa clarificar que no julgamento que o recorrente faz da valorização das declarações dos ofendidos e que foram o único suporte para a sua condenação pelos crimes de tráfico de pessoas, pois nenhuma prova documental corrobora a supressão da sua liberdade de ação ou decisão.
11. As declarações prestadas em audiência de julgamento pela não deixam de se mostrar contraditórias até com factos que o tribunal a quo vem a dar como provados.
12. Os ofendidos sempre tiveram apoio de retaguarda da família, mas antes escolheram livremente estar com o arguido.
13. Note-se que o ofendido C… apenas não continuou a viver com o arguido, porque foi expulso de casa.
14. E, o ofendido D… ainda permanece a viver com o arguido, e de lá não quer sair.
15. Salvo o devido respeito, não pode existir na Justiça, quando se condena um arguido pela prática de um crime de tráfico de pessoas e, ao mesmo tempo, continua a existir a convivência entre o alegado ofendido e o arguido!
16. A não ser que o arguido não tenha praticado o crime de que vem acusado! O que é o caso!
17. E, quanto ao ofendido C…, diga-se que a incongruência resiste quando se percebe e resulta evidente da audiência de discussão e julgamento que o mesmo não se mantém a residir com o arguido, uma vez que foi expulso pelo arguido. (cfr. Ponto 80. dos factos provados).
18. Ora, se o crime de tráfico de pessoas implica o acolhimento de pessoa para fins de exploração, in casu, do trabalho, não se compreende de que forma aquele que é acusado e condenado de o ter praticado, tenha tomado a opção de afastá-lo definitivamente da sua vida!
19. Se a verdadeira intenção do arguido fosse de exploração do ofendido C…, jamais trocaria as fechaduras de casa, para que o mesmo jamais lá entrasse.
20. Em face da prova analisada o Tribunal a quo não poderia dar como provado, como o fez no ponto
12: “(…) O arguido B…, sabendo das limitações dos ofendidos e proveitando-se da especial vulnerabilidade e da falta de capacidade mental dos mesmos para livremente decidir, decidiu levá-los para sua casa, para trabalharem para si, a fazer roços em obras de construção civil, explorando a sua força de trabalho, sem lhes pagar qualquer retribuição, além do que infra se indicará em 26. e 27 (…).
21. Tanto mais que, ao mesmo tempo, considerou como não provado que: “(…) No momento em que decidiu levar os ofendidos para sua casa, o arguido já tinha a intenção de os utilizar em tudo o que necessitasse, tendo, logo nessa altura, decidido que, em face dos atrasos mentais de que padeciam, a partir do momento em que os ofendidos passassem a viver consigo, deles se iria aproveitar, em seu benefício, em tudo o que conseguisse; (…)”
22. O Tribunal a quo sabe que foram os ofendidos quem decidiram de livre e espontânea vontade ir viver com o arguido/recorrente, e não este último quem “(…) decidiu levá-los para sua casa (…)”.
(v. Declarações do ofendido C… – 02.02.2021 - [Minuto 03:27 a 03:32]
23. De facto, a partir de determinado momento, por força das dívidas tributárias do arguido, foi decidido juntamente com os ofendidos que havia a necessidade de inscrever o ofendido C… como trabalhador independente na Segurança Social.
24. Ou seja, todos, em conjugação de esforços, definiram estratégias para que continuassem a usufruir de uma vida condigna. O Tribunal a quo confirma que tudo foi realizado com o conhecimento dos ofendidos.
25. Ademais a atuação de todos, arguido e ofendidos, permitiu que usufruíssem de uma vida com o mínimo de dignidade a todos os níveis.
26. Continuou a ser um trabalho, como existe em tantas outras famílias, em que todos laboram para o mesmo, ambicionando o bem-estar de todos, sem que tenha de existir o pagamento de um salário, alterando-se apenas os sujeitos passivos tributários. (v. Depoimento do Ofendido C… – 02.02.2021- [Minuto 21:29 a 23:18])
27. Diga-se, em “atalho de foice” que, curiosamente, esta situação espelha uma atuação completamente contrária à consumação do crime de tráfico de pessoas, que ocorre quando a prática de qualquer uma das condutas típicas atinge de forma radical e direta a vítima na sua dignidade como pessoa humana.
28. Os ofendidos foram viver com o arguido na mesma casa que este, porque assim o quiseram, e quando quiseram.
29. Durante os momentos em que estiveram e a viver com o arguido eram livres de se deslocar de e para onde quisessem
30. Não se pode concluir serenamente e sem qualquer dúvida razoável que no relacionamento entre o arguido e os ofendidos tivesse sido sujeita uma qualquer das ações que tipificam o crime de tráfico de pessoas.
31. Não se pode considerar que a conduta do arguido/recorrente no seu relacionamento com os ofendidos tenha atingido um nível e intensidade de gravidade que o coloque no tipo criminal de tráfico de pessoas.
32. Muito menos, como avalia o Tribunal a quo, a existência de debt bondage.
33. É notória a falta de submissão dos ofendidos ao arguido.
34. Os próprios ofendidos foram perentórios ao afirmar que respondiam ao arguido e que o enfrentavam quando era necessário.
35. A forma clara e evidente que os ofendidos demonstraram através dos seus depoimentos da falta de “temor” ao arguido permitem, desde logo, concluir pela inexistência de “servidão, sujeição, dependência”.
36. É por demais evidente que nunca os ofendidos estiveram numa situação em que não tivessem outra escolha real e aceitável.
37. Tanto mais que, de acordo com a douto Acórdão recorrido, o arguido não teve qualquer vantagem patrimonial, que efetivamente não ocorreu, designadamente, quando considera como matéria de facto não provada que: “(…) O arguido se tenha apoderado da remuneração que era devida aos ofendidos pelo trabalho que prestaram;(…)”.
38. Pelo que não deveria, salvo o devido respeito, julgar verificados os pressupostos objetivos que constituem o crime de tráfico de pessoas, nomeadamente que as vítimas estivessem em situação de especial venerabilidade ou o arguido tivesse intenção lucrativa.
39. Porquanto, como o próprio Tribunal a quo reconhece nos factos não provados: O arguido se tenha apoderado da remuneração que era devida aos ofendidos pelo trabalho que prestaram;
40. Ou até que: O arguido, com o seu comportamento, tenha feito sua a quantia de € 31.825,52 (trinta e um mil, oitocentos e vinte e cinco euros e cinquenta e dois cêntimos), referentes a salários/vencimentos que eram devidos ao ofendido C… e que fez sua a quantia de € 28.701,59 (vinte e oito mil, setecentos e um euros e cinquenta e nove cêntimos), referentes a salários/vencimentos que eram devidos ao ofendido D…, causando-lhes, respetivamente, prejuízo equivalente;
41. Pelo que existe uma evidente contradição na formação da convicção do tribunal a quo.
42. Assim, não estando preenchido o tipo objetivo dos ilícitos, não pode ser o arguido condenado pela prática de tais crimes.
43. Tanto mais que absolveu o arguido da prática dos crimes de burla e de maus-tratos de que vinha acusado.
44. Com efeito, as conclusões, que não são factos, vertidas nos pontos 3., 4., 8., 12., 21., 22., 26., 27., 31., 32., 34., 35., 49., 61., 89., 90., 91., 92., devem ser removidas dos factos dados como provados, porque salvo o devido respeito por opinião distinta, não está demonstrada qualquer especial vulnerabilidade dos ofendidos.
45. Ao condenar o arguido pela prática dos crimes de Tráfico de Pessoas, o tribunal a quo violou o disposto no artigo 160.º do Código Penal.
46. E, concomitantemente, do pedido de indemnização civil (parcialmente) procedente e da quantia arbitrada em sede de reparação à vítima nos termos do artigo 82.º-A do CPPenal.
Nestes termos, e nos melhores de Direito aplicáveis, deve o presente recurso ser considerado procedente e, por via disso,
a) absolver-se o arguido B… da prática dos dois crimes de Tráfico de Pessoas, previsto e punido pelo artigo 160.º, n.º 1, alínea d), e n.º 8 do Código Penal, na redação dada pela Lei n.º 59/2007, de 04 de setembro, tudo com as legais consequências;
b) ser julgado totalmente improcedente o pedido de reparação da vítima ao ofendido/ vítima D…;
c) ser julgado totalmente improcedente o pedido de indemnização civil formulado pelo ofendido/demandante C….

O Mº Pº respondeu defendendo a improcedência do recurso
Nesta Relação a ilustre PGA emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Foi cumprido o artº 417º2 CPP

Cumpridas as formalidades legais, procedeu-se à conferência.
Cumpre apreciar.
Consta o acórdão recorrido (transcrição):
2. FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
2.1. DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA:
Da audiência de julgamento resultaram provados os seguintes factos2:
1. O ofendido D… é alcoólico, nasceu em 26-12-1963 e padece de um atraso mental não especificado, caracterizado pela existência de um funcionamento intelectual global inferior à média, acompanhado por limitações no funcionamento adaptativo em diferentes domínios.
2. Apresenta um compromisso intelectual que conduz a limitações no funcionamento adaptativo nos domínios pessoal, profissional e social, como sejam a gestão do seu dia-a-dia, a gestão financeira ou a garantia de uma atividade profissional estruturada, sendo estas necessidades colmatadas com a ajuda de terceiros.
3. Tende a avaliar pobremente situações de risco, colocando-se em posições de grande vulnerabilidade.
4. Tais dificuldades mentais são percetíveis para qualquer pessoa que com ele conviva.
……………………
(2 Respeitantes quer à acusação quer ao pedido de indemnização civil)
……………………

5. Não sabe ler, nem escrever, sabendo, apenas, assinar o seu nome [fugia frequentemente da escola, que abandonou cedo].
6. O ofendido C… nasceu a 16-01-1959, é alcoólico e apresenta funcionamento cognitivo e intelectual deficitário, correspondente a provável quadro de atraso mental leve a moderado, deterioração cognitiva, o que o torna especialmente vulnerável.
7. Consegue ler e escrever, mas com muita dificuldade, e sabe assinar o seu nome [concluiu, apenas, o 3º ano de escolaridade].
8. Tais dificuldades mentais são percetíveis para qualquer pessoa que com ele conviva.
9. No decurso do ano de 1999, o arguido B… conheceu o ofendido D…, por frequentar uma tasca explorada por si.
10. E, posteriormente, em data não concretamente apurada, mas anterior ao início do ano de 2000, nas mesmas circunstâncias de lugar aludidas em 9., o arguido B… conheceu o ofendido C…, tendo, nesse mesmo ano, este começado a trabalhar para si, esporadicamente, a fazer roços em obras de construção civil.
11. À data, o ofendido C… vivia em ….
12. O arguido B…, sabendo das limitações dos ofendidos e aproveitando-se da especial vulnerabilidade e da falta de capacidade mental dos mesmos para livremente decidir, decidiu levá-los para sua casa, para trabalharem para si, a fazer roços em obras de construção civil, explorando a sua força de trabalho, sem lhes pagar qualquer retribuição, além do que infra se indicará em 26. e 27.
13. Assim, em data não apurada do ano de 1999, o arguido convidou o ofendido D… a ir viver para sua casa, alegando que, assim, passaria a trabalhar para si, a fazer roços em obras de construção civil, e não seria necessário efetuar deslocações entre …, onde vivia, e os locais onde o trabalho seria prestado, nem acordar tão cedo para ir trabalhar.
14. O ofendido D… anuiu a tal convite e passou a viver com o arguido em data não concretamente apurada desse ano de 1999.
15. Em data não concretamente apurada do início do ano de 2000, o arguido convidou o ofendido C… a ir viver para sua casa, alegando que, assim, passaria a trabalhar para si, a fazer roços em obras de construção civil, e não seria necessário efetuar deslocações entre …, onde vivia, e os locais onde o trabalho seria prestado.
16. O ofendido C… anuiu a tal convite e, em data não concretamente apurada do início do ano de 2000, passou a residir com o arguido e com o ofendido D….
17. Nos primeiros anos, os ofendidos viveram com o arguido em …, em Oliveira de Azeméis, pernoitando aqueles numa roulotte existente no local, e o arguido na casa principal.
18. Posteriormente, em data não concretamente apurada, mudaram-se os três para …, em Santa Maria da Feira, passando os ofendidos a pernoitar num anexo à casa onde o arguido vivia e, desde julho de 2014, o arguido e o ofendido D… passaram a residir na Rua …, n.º …, …, Oliveira de Azeméis.
19. O arguido manteve quase sempre na sua posse os documentos pessoais dos ofendidos, entre os quais, os seus cartões de identificação pessoal, embora os ofendidos a estes pudessem aceder caso precisassem.
20. Foi sempre o arguido quem administrou os locais onde os três residiam, fornecendo-lhes alimentação, alojamento, vestuário e calçado.
21. Era apenas o arguido quem abria a correspondência que era enviada para as mencionadas residências, independentemente de se destinarem a si ou aos ofendidos, pese embora fossem os ofendidos quem a ia buscar à caixa de correio e quem a entregava ao arguido.
22. Os ofendidos trabalhavam, por ordem e por conta do arguido, por norma, das 8h às 17h, de segunda-feira a sexta-feira e por vezes também ao sábado, em obras de construção civil sitas em Aveiro, Coimbra, Albergaria-a-Velha, Fátima, Feira, São João da Madeira, entre outros locais.
23. Foram sempre levados para as obras pelo arguido, em viaturas conduzidas por este.
24. Tal como os ofendidos, o arguido também trabalhava nas ditas obras, embora, por norma, o trabalho fosse maioritariamente executado por aqueles.
25. A título de exemplo, entre outras, o arguido e os ofendidos executaram trabalhos para H…, em Estarreja; para I…, Lda., em Santa Maria da Feira; para J…, Lda., em Sever do Vouga; para K…, Lda., em Ovar; para L…, Lda., em Águeda; para a M…, Lda, em Estarreja; para a N…, SA, na Feira; para O…, Unipessoal, Lda, na Feira; para a P…, SA, em Estarreja; para a Q…, Lda., na Feira; para a S…, Lda., na Feira; para a T…, SA, na Feira; para a U…, Lda., sita em Gaia; para a V…, Lda., sita em Gaia; para a W…, SA, sita em Gaia; para X…, SA, em Paredes; para Y…, na Feira; para Z…, Lda., em Águeda; para AB…, Lda., em Oliveira de Azeméis; para AC…, Lda., em Estarreja; para AD…, em Aveiro; para AE…, Lda., na Feira; para AF…, na Feira; para AG…, Lda., em Mira; para AH…, Lda., em Leiria e para AI…, Lda., em Gaia.
26. Como retribuição pelo trabalho prestado, o arguido dava a cada um dos ofendidos D… e C… apenas dois maços de tabaco diários e uma quantia semanal variável não superior a €25,00, para que gastassem no café e em bebidas alcoólicas.
27. E, durante um período de cerca de dois anos, entre datas não concretamente apuradas, mas seguramente anteriores ao verão de 2013, o arguido dava apenas a cada um dos ofendidos 10 cigarros por dia e €5,00 ao fim de semana.
28. Inicialmente, ambos os ofendidos foram coletados pelo arguido como sendo seus funcionários, sem, contudo, receberem qualquer remuneração pelo trabalho que desenvolviam para este, no âmbito da construção civil, que fosse além da mencionada em 26. e 27.
29. O ofendido C… esteve assim registado na Segurança Social como funcionário do arguido entre janeiro de 2000 e janeiro de 2009.
30. E o ofendido D… esteve registado na Segurança Social como funcionário do arguido de maio de 2001 a janeiro de 2009.
31. Nesses períodos, os ofendidos receberam, a título de remuneração pelo trabalho prestado, além do referido tabaco, apenas as quantias mencionadas em 26. e 27., retendo o arguido a restante quantia proveniente dos serviços prestados por aqueles, que utilizou, em montante que não foi possível apurar, designadamente para pagar as despesas inerentes ao alojamento, à alimentação, ao vestuário e ao calçado dos ofendidos.
32. Todavia, no início do ano de 2009, por apresentar dívidas à Segurança Social, querendo evitar cobranças coercivas de tais montantes e pretender obter rendimentos sem a devida tributação, na execução de plano então gizado de se servir dos ofendidos em seu benefício, e aproveitando-se da vulnerabilidade destes, deixou de efetuar descontos como trabalhador independente, passando o ofendido C… a fazê-lo.
33. Na verdade, em 2009 era o arguido devedor à S.S. de contribuições, a título de cotizações, como trabalhador independente desde o mês de fevereiro de 1998, e como entidade empregadora desde abril de 2000.
34. Decidiu, assim, proceder à inscrição do ofendido C… na S.S., na qualidade de trabalhador independente, deixando o arguido de declarar rendimentos nessa qualidade.
35. Dessa forma, passaria a ser o ofendido C… o trabalhador independente, mas na prática era o arguido quem continuava a ser o seu patrão e o ofendido seu funcionário.
36. Para tanto, o arguido deu conhecimento dessa sua intenção ao ofendido C…, dizendo-lhe que só dessa forma poderiam manter aquele modo de vida e tratou de toda a documentação necessária e solicitou-lhe que a assinasse, o que o ofendido C… fez.
37. O arguido deu ainda início de atividade na AT do ofendido C…, no serviço de finanças de Oliveira de Azeméis 2, com o CAE ….. – Instalação elétrica – na categoria B, rendimentos empresariais, enquadrado no regime simplificado e com enquadramento normal trimestral a título de IVA e até 31-12-2011.
38. Para o efeito, o arguido deu conhecimento dessa sua intenção ao ofendido C…, dizendo-lhe que só dessa forma poderiam manter aquele modo de vida, e providenciou para que um contabilista acompanhasse o ofendido C… à repartição de finanças para o efeito, tendo este ofendido assinando um requerimento que naquela repartição lhe foi apresentado, em 17-02-2009.
39. E deu início de atividade na AT do ofendido D… no serviço de finanças de São João da Madeira, com o CAE …. – Prestador de serviços – na categoria B, rendimentos profissionais, enquadrado no regime simplificado e isento de IVA e até à presente data.
40. Para o efeito, o arguido deu conhecimento dessa sua intenção ao ofendido D…, dizendo-lhe que só dessa forma poderiam manter aquele modo de vida, e providenciou para que um contabilista acompanhasse o ofendido D… à repartição de finanças para o efeito, tendo este ofendido assinando um requerimento que naquela repartição lhe foi apresentado, em 09-07-2018.
41. E, em meados do ano de 2019, na execução desse mesmo plano, decidiu inscrever o ofendido D… na Segurança Social na qualidade de trabalhador independente, aproveitando-se, mais uma vez, da incapacidade e vulnerabilidade deste ofendido.
42. A essa data, era o arguido também já devedor à Autoridade Tributária de €1.172,94 a título de portagens, coimas e custas, para além de dívidas à S.S. de contribuições, a título de cotizações, como entidade empregadora dos meses 4/2000, 5/2002, 11/2002 a 12/2003 e de contribuições como trabalhador independente dos meses de 2/1998 a 2/2000, 10/2000, 12/2001 a 12/2003, no valor total de €6.123,76.
43. A partir da referida data, passou o ofendido D… a ser trabalhador independente, mas na prática era o arguido que continuava a ser seu patrão e a vítima o subordinado.
44. Para tanto, o arguido deu conhecimento dessa sua intenção ao ofendido D…, dizendo-lhe que só dessa forma poderiam manter aquele modo de vida, e tratou de toda a documentação necessária e solicitou-lhe que a assinasse, o que o ofendido D… fez.
45. Em face das mencionadas inscrições junto da Segurança Social do ofendido C… como trabalhador independente, a partir de fevereiro de 2010 e até junho de 2011, declarou auferir o valor mensal de € 628,83, o que perfaz a quantia de €10.690,11 (dez mil, seiscentos e noventa euros e onze cêntimos).
46. Sendo que de janeiro de 2000 a janeiro de 2009, o ofendido C… esteve coletado como trabalhador por conta do arguido B…, declarando os seguintes rendimentos a título de salários:
data valor € 2009/01 176,96 € 2008/12 170,40 € 2008/11 117,97 € 2008/10 72,09 € 2008/9 190,06 € 2008/8 131,07 € 2008/7 190,06 € 2008/6 229,38 € 2008/5 229,38 € 2008/4 209,72 € 2008/3 127,85 € 2008/2 249,04 € 2008/1 229,38 € 2007/12 235,60 € 2007/11 217,00 € 2007/10 198,40 € 2007/9 235,60 € 2007/8 217,00 € 2007/7 272,80 € 2007/6 235,60 € 2007/5 235,60 € 2007/4 254,20 € 2007/3 198,40 € 2007/2 272,80 € 2007/1 181,31 € 2006/12 215,31 € 2006/11 181,31 € 2006/10 283,31 € 2006/9 164,31 € 2006/8 215,31 € 2006/7 198,31 € 2006/6 198,31 € 2006/5 215,31 € 2006/4 272,68 € 2006/3 215,31 € 2006/2 164,31 € 2006/1 283,31 € 2005/12 283,31 € 2005/11 283,31 € 2005/10 147,32 € 2005/9 164,31 € 2005/8 266,31 € 2005/7 249,31 € 2005/6 198,31 € 2005/5 249,31 € 2005/4 283,31 € 2005/3 198,31 € 2005/2 266,31 € 2005/1 113,32 € 2004/12 249,31 € 2004/11 300,30 € 2004/10 215,31 € 2004/9 249,31 € 2004/8 79,32 € 2004/7 232,31 € 2004/6 164,31 € 2004/5 198,31 € 2004/4 1,70 € 2004/4 230,61 € 2004/3 1,58 € 2004/3 213,73 € 2004/2 1,33 € 2004/2 179,98 € 2004/1 7,38 € 2004/1 224,93 € 2003/12 93,26 € 2003/11 192,01 € 2003/10 159,09 € 2003/9 159,09 € 2003/8 208,47 € 2003/7 192,01 € 2003/6 192,01 € 2003/5 241,39 € 2003/4 224,93 € 2003/3 192,01 € 2003/2 154,57 € 2003/1 192,01 € 2002/12 219,51 € 2002/11 255,22 € 2002/10 235,57 € 2002/9 187,38 € 2002/8 283,75 € 2002/7 171,32 € 2002/6 49,97 € 2002/5 42,85 € 2002/4 84,38 € 2002/2 25,72 € 2002/1 92,80 € 2001/12 -257,05 € 2001/12 231,43 € 2001/11 318,77 € 2001/11 -318,77 € 2001/11 318,77 € 2001/10 257,06 € 2001/9 257,06 € 2001/8 167,10 € 2001/7 169,70 € 2001/6 179,92 € 2001/5 179,92 € 2001/4 308,55 € 2001/3 200,56 € 2001/2 231,41 € 2001/1 235,05 € 2000/12 132,22 € 2000/11 156,64 € 2000/11 318,23 € 2000/11 -318,23 € 2000/10 318,23 € 2000/9 148,51 € 2000/9 -148,51 € 2000/9 212,15 € 2000/8 148,51 € 2000/7 148,50 € 2000/6 212,15 € 2000/5 106,08 € 2000/4 127,29 € 2000/3 95,47 € 2000/2 84,86 € 2000/1 127,29 € no valor global de €21.135,41 (vinte e um mil, cento e trinta e cinco euros e quarenta e um cêntimos).
47. Por seu turno, o ofendido D… esteve coletado como sendo funcionário do arguido B… de maio de 2001 a janeiro de 2009 e como sendo funcionário do ofendido C… de fevereiro de 2009 a janeiro de 2013, declarando as seguintes remunerações:
data valor € 2013/01 44,77 € 2012/12 22,39 € 2012/11 44,77 € 2012/10 22,39 € 2012/8 22,39 € 2012/7 5,60 € 2012/6 44,77 € 2012/5 22,39 € 2012/4 44,77 € 2012/3 22,39 € 2012/2 44,77 € 2012/1 22,39 € 2011/12 67,16 € 2011/11 134,31 € 2011/10 179,08 € 2011/9 193,99 € 2011/8 161,73 € 2011/7 145,56 € 2011/6 177,91 € 2011/5 145,56 € 2011/4 161,73 € 2011/3 201,47 € 2011/2 242,54 € 2011/1 220,49 € 2010/12 172,67 € 2010/11 219,23 € 2010/10 126,53 € 2010/9 253,24 € 2010/8 205,92 € 2010/7 126,72 € 2010/6 158,40 € 2010/5 142,56 € 2010/4 126,72 € 2010/3 95,04 € 2010/2 110,88 € 2010/1 142,56 € 2009/12 120,05 € 2009/11 164,78 € 2009/10 210,08 €
2009/9 179,76 € 2009/8 45,54 € 2009/7 249,24 € 2009/6 165,38 € 2009/5 145,39 € 2009/4 124,62 € 2009/3 135,05 € 2009/2 63,56 € 2009/01 137,63 € 2008/12 190,06 € 2008/11 117,97 € 2008/10 72,09 € 2008/9 150,73 € 2008/8 190,06 € 2008/7 209,72 € 2008/6 249,04 € 2008/5 249,04 € 2008/4 249,04 € 2008/3 113,65 € 2008/2 268,70 € 2008/1 268,70 € 2007/12 272,80 € 2007/11 179,80 € 2007/10 235,60 € 2007/9 272,80 € 2007/8 235,60 € 2007/7 263,50 € 2007/6 291,40 € 2007/5 272,80 € 2007/4 291,40 € 2007/3 235,60 € 2007/2 310,00 € 2007/1 215,31 € 2006/12 249,31 € 2006/11 215,31 € 2006/10 249,31 € 2006/9 215,31 € 2006/8 249,31 € 2006/7 283,31 € 2006/6 249,31 €
2006/5 283,31 € 2006/4 147,32 € 2006/3 164,31 € 2006/2 215,31 € 2006/1 232,31 € 2005/12 300,30 € 2005/11 266,31 € 2005/10 215,31 € 2005/9 198,31 € 2005/8 283,31 € 2005/7 283,31 € 2005/6 232,31 € 2005/5 266,31 € 2005/4 215,31 € 2005/3 249,31 € 2005/2 283,31 € 2005/1 164,31 € 2004/12 283,31 € 2004/11 317,30 € 2004/10 283,31 € 2004/9 283,31 € 2004/8 215,31 € 2004/7 266,31 € 2004/6 215,31 € 2004/5 215,31 € 2004/4 264,35 € 2004/4 1,96 € 2004/3 1,20 € 2004/3 163,11 € 2004/2 213,73 € 2004/2 1,58 € 2004/1 224,93 € 2004/1 7,38 € 2003/12 175,55 € 2003/11 224,93 € 2003/10 208,47 € 2003/9 224,93 € 2003/8 208,47 € 2003/7 192,01 € 2003/6 192,01 €
2003/5 208,47 € 2003/4 175,55 € 2003/3 241,39 € 2003/2 107,02 € 2003/1 142,64 € 2002/12 267,69 € 2002/11 278,41 € 2002/10 203,44 € 2002/9 155,26 € 2002/8 235,57 € 2002/7 203,44 € 2002/6 155,26 € 2002/5 192,80 € 2002/4 68,32 € 2002/2 74,98 € 2002/1 162,40 € 2001/12 277,70 € 2001/10 334,19 € 2001/9 334,19 € 2001/8 334,19 € 2001/7 200,56 € 2001/6 334,19 € 2001/5 133,64 €
no valor global de €26.339,10 (vinte e seis mil, trezentos e trinta e nove euros e dez cêntimos).
48. Desde julho de 2019 que o ofendido D…, enquadrado pelo arguido no regime de trabalhador independente na S.S., e apresentando o último registo de contribuições em abril de 2020, declarou os seguintes rendimentos, a título de remunerações:
data valor € 2019/07 341,25 € 2019/08 341,25 € 2019/09 341,25 € 2019/10 262,50 € 2019/11 262,50 €
2019/12 262,50 € 2020/01 175,00 € 2020/02 175,00 € 2020/03 175,00 € 2020/04 93,46 € 2 429,71 €
na quantia global de €2.429,71 (dois mil, quatrocentos e vinte e nove euros e setenta e um cêntimos).
49. Em nenhum desses períodos, como em nenhum dos outros, os ofendidos receberam qualquer contrapartida pelo seu trabalho, nem como trabalhadores independentes, nem como trabalhadores dependentes, que fosse além da mencionada em 26. e 27., mas sempre trabalhando para o arguido, sob as suas orientações e dependência total.
50. O ofendido C… não sabe conduzir, nunca teve carta de condução.
51. Não obstante, para evitar ter património registado em seu nome, e na execução do plano gizado naquele momento, no sentido de se servir dos ofendidos, com o conhecimento deste, o arguido registou em seu nome os seguintes veículos:
- de matrícula QC-..-.., em 1-04-2009, que vendeu a 05-08-2010;
- de matrícula XD-..-.., em 13-07-2010, que vendeu a 17-03-2011;
- de matrícula ..-..-JN, em 19-11-2010, que vendeu a 01-02-2012;
- de matrícula ..-..-MH, em 27-10-2010, que vendeu a 03-02-2012.
52. O ofendido D… não sabe conduzir, nunca teve carta de condução.
53. Ainda assim, o arguido, com o mesmo propósito e com o conhecimento deste, registou em nome do ofendido D… os veículos:
- de matrícula ..-..-RX em 13-02-2015, que ainda se encontra em seu nome;
- de matrícula ..-..-JN em 19-04-2012, que vendeu a 18-12-2012;
- de matrícula ..-..-CC em 22-03-2016, que vendeu a 19-04-2018;
- de matrícula ..-..-ZG, em 10-10-2017, que vendeu a 20-12-2018.
54. Os ofendidos nunca procederam ao pagamento de quantias a título de impostos, coimas, contribuições, nem relativamente ao que quer fosse, sendo que os que foram pagos, foram sempre efetuados pelo arguido.
55. Em virtude de tal comportamento do arguido, o ofendido C… ficou devedor à AT da quantia de € 20.663,24 (vinte mil, seiscentos e sessenta e três euros e vinte e quatro cêntimos), a título de IRS, coimas, taxas de portagens, IVA, IUC, custos administrativos, custas e juros, tendo já sido instaurado o respetivo processo executivo.
56. E ficou devedor à SS da quantia de € 6.746,65 (seis mil, setecentos e quarenta e seis euros e sessenta e cinco cêntimos).
57. O ofendido D… nada deve a título de contribuições ou impostos.
58. O arguido B… é pensionista de velhice desde 29-10-2013 e encontra-se enquadrado no regime de trabalhador independente desde 01-02-1998, isento do pagamento de contribuições por acumulação de enquadramentos (pensionistas).
59. De 01-02-1998 a 30-set-2013, o arguido esteve registado como trabalhador independente.
60. E desde fevereiro de 2009 a outubro de 2012 esteve inscrito como trabalhador por conta de outrem, nomeadamente, por conta do ofendido C…, o que fez por sua iniciativa e com o conhecimento deste.
61. De forma a evitar que fossem detetadas por entidades fiscalizadoras nas suas contas bancárias movimentos a crédito e débito sem suporte e para fazer coincidir essas atividades profissionais que levava a cabo através dos ofendidos, como trabalhadores independentes, com os movimentos bancários referentes aos recebimentos dos clientes e pagamentos a fornecedores e outros relativos à atividade profissional desenvolvida, ainda na execução do mencionado plano gizado no momento, decidiu ainda o arguido abrir contas bancárias em nome dos dois ofendidos, e que apenas seriam por ele utilizadas e movimentadas.
62. Assim, tendo previamente dado conhecimento dessa sua intenção ao ofendido C…, dizendo-lhe que só dessa forma poderiam manter aquele modo de vida, no início do mês de fevereiro de 2009, o arguido obteve a documentação necessária para a abertura da conta bancária em nome do ofendido C…, junto do banco AJ….
63. Ali, solicitou ao ofendido C… que a assinasse, o que este fez, procedendo, assim, em 12 de fevereiro de 2009, à abertura da conta bancária com o n.º .-…….-…-…, titulada exclusivamente por C….
64. E, tendo previamente dado conhecimento dessa sua intenção ao ofendido D…, dizendo-lhe que só dessa forma poderiam manter aquele modo de vida, no início do mês de fevereiro de 2012, o arguido obteve a documentação necessária para a abertura da conta bancária em nome do ofendido D…, junto do banco AJ….
65. Ali, solicitou ao ofendido D… que a assinasse, o que este fez, procedendo, assim, em 13 de fevereiro de 2012, à abertura da conta n.º .-…….-…-…, titulada exclusivamente por D….
66. Obteve, assim, acesso às contas bancárias que abriu em nome dos ofendidos, cuja existência estes conheciam, através dos cartões multibanco e códigos que lhe foram remetidos pelas entidades bancárias em questão.
67. E deixou de utilizar as contas bancárias de que era titular, inexistindo movimentos de relevo nas mesmas, evitando assim qualquer penhora.
68. Passou, assim, a utilizar as mencionadas contas tituladas pelos ofendidos, para o seu dia-a-dia, ali depositando quantias provenientes da atividade profissional que desenvolvia, que se destinava em parte ao pagamento das quantias vertidas em 26. e debitando quantias para pagamento de despesas dessa mesma atividade e outras.
69. Assim, desde 12-02-2009 e 07-01-2013, na conta titulada pelo ofendido C…, foram efetuados pelo arguido 137 movimentos a crédito e 247 débitos, sob a forma de pagamentos em ATM e de serviços e mediante emissão de cheques.
70. E, desde 13-02-2012 e 16-09-2014, na conta titulada pelo ofendido D…, foram efetuados pelo arguido 14 movimentos a crédito e 27 débitos, sob a forma de pagamentos em ATM e de serviços.
71. Pelo menos parte desses movimentos eram relativos à atividade profissional que desenvolvia e pelo menos parte dos movimentos a crédito são referentes aos pagamentos efetuados pelos seus clientes, pelos serviços prestados nos termos aludidos em 24., mas nunca o arguido entregou aos ofendidos qualquer quantia, além das mencionadas em 26.
72. A maior parte dos movimentos a débito são respeitantes a pagamentos de operadoras móveis, portagens, supermercado, postos de abastecimento e outras despesas diárias, sendo os cheques emitidos e assinados pelo ofendido C… nas acima mencionadas condições, destinados, pelo menos em parte, ao pagamento pela aquisição de ferramentas de trabalho.
73. Em ambas as contas encontrava-se associado o número de telemóvel do arguido e era apenas este que a elas tinha acesso, movimentando-as como queria.
74. A conta n.º .-…….-…-…, titulada exclusivamente pelo ofendido D…, foi encerrada em 10 de janeiro de 2015.
75. Por diversas vezes, no ano de 2010, o arguido solicitou ao ofendido C… que assinasse cheques, o que este fez.
76. A conta n.º .-…….-…-…, do banco AJ…, titulada exclusivamente pelo ofendido C…, foi encerrada em 9 de novembro de 2013.
77. As dívidas que o arguido tinha à S.S., foram alvo de processos executivos, mas, entretanto, declaradas prescritas pela secção de processo executivo da S.S. de Aveiro.
78. O arguido tem dívidas à AT, referentes a taxas (portagens), coimas e custos administrativos, relativas ao período de tributação de 01-10-2010 a 31-01-2011.
79. Em datas não concretamente apuradas do referido período temporal, quando os ofendidos, alcoolizados, se viravam ao arguido, este empurrava-os, com o intuito de os afastar.
80. O ofendido C… saiu da mencionada residência no verão de 2013, por ter sido dali expulso pelo arguido.
81. Em 09-08-2013, o ofendido C… procedeu à cessação de atividade junto da A.T.
82. O ofendido D… ainda reside com o arguido, na referida morada, sita na Rua …, n.º …, …, Oliveira de Azeméis, recusando-se a deixar a companhia daquele.
83. No dia 22-10-2019, o arguido tinha na sua posse, mais concretamente, no interior do seu quarto, na acima mencionada residência, documentos da Autoridade Tributária, concretamente, a senha de acesso à internet; da Segurança Social e do AK… em nome do ofendido D…, nomeadamente códigos de acesso para aceder através da internet às acima mencionadas contas bancárias, bem como, faturas emitidas com o nome deste por serviços prestados.
84. E na posse do arguido, mais concretamente, no interior da sua carteira pessoal, encontrava-se um cartão multibanco titulado pelo ofendido D….
85. Nesse mesmo dia, o ofendido D… tinha no interior do seu quarto uma pasta, na qual se encontrava um papel manuscrito com o número de telemóvel ……… e com a inscrição “B…” e outro com o numero ………, com a inscrição AL… [que chegou a ser companheira do arguido e também ali residente], bem como documentos pessoais, entre os quais o seu CC.
86. O ofendido D… guardava ainda um pedaço de papel com a inscrição Rua …, …, cave esquerda, …, Oliveira de Azeméis, sendo esta a morada onde reside.
87. O ofendido C…, desde 2013, passou a ser beneficiário do Rendimento Social de Inserção no valor de €180,98 mensais, que auferiu pelo menos até março de 2016.
88. O ofendido D…, por se encontrar coletado como trabalhador independente e a efetuar descontos a título de retribuições, não é beneficiário de qualquer prestação social.
89. E em virtude do comportamento do arguido, o ofendido C… ficou devedor à S.S. e à A.T, da quantia global de €27.409,89 (vinte e sete mil, quatrocentos e nove euros e oitenta e nove cêntimos).
90. Ao agir da forma descrita, o arguido agiu sempre livre, consciente e deliberadamente, com o propósito concretizado de alojar os ofendidos em sua casa para, aproveitando-se da situação de dependência económica e de trabalho daqueles e da sua especial vulnerabilidade proveniente dos atrasos mentais de que padeciam, os explorar laboralmente, através do seu trabalho físico, sem qualquer contrapartida, que fosse além da referida em 26. e 27. da factualidade provada, sabendo ser o seu comportamento proibido e punido por lei.
91. E ao atuar da forma descrita, o arguido agiu ainda sempre livre, voluntaria e conscientemente, na execução de um plano que traçou de se aproveitar da especial vulnerabilidade e dependência económica dos ofendidos e dos atrasos mentais de que padeciam, convencendo-os a assinar toda a documentação necessária para assim os inscrever na S.S. como trabalhadores independentes e iniciando a sua atividade na AT, tudo com o conhecimento dos ofendidos, e com o intuito de obter para si rendimentos sem o pagamento das cotizações devidas à S.S e de não pagar impostos ou outras quantias devidas à A.T. e convencendo-os a assinar toda a documentação necessária para proceder a aberturas de contas bancárias em seu nome, mas que apenas ele iria utilizar, tudo com o seu conhecimento e com o intuito de evitar a cobrança de dívidas fiscais e de que fossem detetadas por entidades fiscalizadoras nas suas contas bancárias movimentos a crédito e débito sem suporte, fazendo coincidir essas atividades profissionais que levava a cabo através dos ofendidos com os respetivos movimentos bancários.
92. Antes de ir viver com o arguido, o ofendido D… não dispunha de qualquer apoio familiar, como ainda não o tem hoje, e recusa-se a deixar a companhia do arguido.
93. Antes de ir viver com o arguido, o ofendido C… habitava numa casa sem condições de habitabilidade, tal como vive hoje, habitando numa casa sem água e sem luz elétrica.
Da situação pessoal do arguido:
94. B… desenvolveu o seu processo de crescimento em …, Oliveira de Azeméis, integrado no agregado composto pelos progenitores (pai sapateiro e mãe doméstica) e pelos 11 (onze) filhos nascidos ao casal.
95. Segundo o arguido, o ambiente familiar do seu agregado de origem foi marcado por dificuldades económicas, pelo consumo excessivo de bebidas alcoólicas por parte do progenitor e por situações de violência doméstica deste sobre a progenitora, que ocorreram durante o tempo em que estes viveram juntos.
96. Na sequência destes episódios, os pais do arguido separaram-se, tinha o arguido 20 anos de idade.
97. Em termos escolares, o arguido frequentou o sistema de ensino até ao 4º ano, em …, tendo, posteriormente, com 27 anos, concluído o 6º ano.
98. Com 13 anos de idade, iniciou atividade laboral como operário fabril numa empresa de borracha, situada em São João da Madeira, e, no seu percurso profissional, trabalhou em várias áreas, como distribuição de gás, restaurante e venda de eletrodomésticos, tendo estado emigrado, durante 10 anos e 9 meses, na Suíça.
99. No ano de 1968, o arguido casou pela primeira vez, relação da qual tem um filho, atualmente com 51 anos.
100. Em 1969, o arguido iniciou o cumprimento do serviço militar obrigatório, tendo estado em Angola durante 28 meses.
101. Quando regressou do serviço militar, não voltou a viver com a pessoa com quem se havia casado, tendo efetivado o divórcio, segundo o arguido, por questões de infidelidade por parte da esposa.
102. Em 1977 voltou a casar, não tendo desta relação nascido filhos, sendo que o arguido refere que este casamento terminou ao cabo de 20 anos, por motivos económicos e incompatibilidades com a esposa.
103. Em 2016, o arguido casou com a atual esposa, AL…, sendo a atual relação caracterizada pelo próprio como equilibrada e gratificante.
104. B… encontra-se a residir na morada dos autos, juntamente com a esposa, AL…, 48 anos, empregada de limpezas e com D…, ofendido no presente processo, 56 anos, desempregado.
105. O agregado familiar vive na morada dos autos, em casa arrendada, há cerca de 6 anos, tratando-se de uma moradia, com aparentes condições de habitabilidade, localizado em área semiurbana, não conotada com problemas sociais e com laços estreitos de vizinhança.
106. Como despesas fixas, o arguido sinaliza as respeitantes à renda da casa e serviços contratados (água, luz, gás, comunicações), que totalizam cerca de €350 mensais.
107. Em termos profissionais, o arguido refere efetuar trabalhos pontuais na área da construção civil, a título informal, sinalizando que recebe atualmente pensão de reforma no valor de €240 do estado português e €430 respeitante ao tempo que trabalhou na Suíça.
108. Presentemente, a rotina diária de B… direciona-se para o desempenho dos trabalhos pontuais que efetua na área da construção civil, para o convívio com familiares e amigos, vê televisão e dedica ainda parte do seu tempo a cuidar de uma pequena horta que tem na sua habitação.
109. No verão, B… refere dedicar-se à pesca desportiva a título recreativo.
110. Em termos familiares o arguido continua a beneficiar do apoio e solidariedade da esposa, com quem reside.
111. Demonstra receio quanto ao desfecho do presente processo.
112. O arguido não tem antecedentes criminais.
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2.2. DA MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA:
Com exclusão dos factos que também já resultam logicamente excluídos pela factualidade provada, não se provou que:
- No momento em que decidiu levar os ofendidos para sua casa, o arguido já tinha a intenção de os utilizar em tudo o que necessitasse, tendo, logo nessa altura, decidido que, em face dos atrasos mentais de que padeciam, a partir do momento em que os ofendidos passassem a viver consigo, deles se iria aproveitar, em seu benefício, em tudo o que conseguisse;
- O arguido se tenha apoderado da remuneração que era devida aos ofendidos pelo trabalho que prestaram;
- O ofendido C… apenas assinou a referida documentação por não ter capacidade de alcançar a que se destinava, por não saber ler nem escrever;
- O ofendido D… apenas assinou a referida documentação por se encontrar numa relação de dependência total daquele e não ter a capacidade de alcançar a que se destinava essa documentação;
- Os ofendidos desconhecessem a sua inscrição na AT e na SS;
- O ofendido C… tenha assinado os cheques sem saber que se destinavam a ser usados pelo arguido para fazer pagamentos;
- As referidas contas bancárias da titularidade dos ofendidos tenham sido encerradas pelo arguido e que este tenha obtido a documentação necessária para o encerramento das mesmas, que solicitou àqueles que assinassem e que estes o fizeram, desconhecendo do que se tratava e a que se destinava;
- O arguido, com o seu comportamento, tenha feito sua a quantia de € 31.825,52 (trinta e um mil, oitocentos e vinte e cinco euros e cinquenta e dois cêntimos), referentes a salários/vencimentos que eram devidos ao ofendido C… e que fez sua a quantia de € 28.701,59 (vinte e oito mil, setecentos e um euros e cinquenta e nove cêntimos), referentes a salários/vencimentos que eram devidos ao ofendido D…, causando-lhes, respetivamente, prejuízo equivalente;
- Alguma vez o arguido tenha desferido murros, pontapés e estalos aos ofendidos e que os tenha apelidado de “filhos da puta”;
- O traumatismo crânio-encefálico sofrido pelo ofendido C… em 14-07-2003, tenha decorrido de qualquer conduta do arguido;
- O arguido tenha agido livre, consciente e voluntariamente, com a intenção, lograda, de atingir física e psicologicamente os ofendidos.
Quanto ao pedido de indemnização civil:
Em virtude da descrita conduta do arguido/demandado o ofendido/demandante C…:
- tenha-se sentido intranquilo, perturbado, angustiado, revoltado e em profundo estado de tristeza;
- tenha sofrido dores;
- desde então, não mais se permitiu sequer falar com pessoas que não conhece ou que conhece de vista, pelo medo que sente de tudo se repetir;
- passou a ter perturbações do sono, assombrado, noite após noite, com a possibilidade de ver o seu parco rendimento penhorado, atentas as dívidas avultadas de que passou a ser titular junto da SS e AT;
- necessitou de receber tratamento médico, tendo sofrido dores fortes e intensas na região da cabeça (cefaleias) e um sofrimento tal que se impunha a toma de medicação, designadamente, analgésicos e anti-inflamatórios;
- vive um constante temor e incerteza de o arguido repetir novas agressões;
- viveu num profundo estado de medo, ansiedade e inquietação;
- por muitas vezes receou ser agredido pelo arguido e que este tenha insinuado fazê-lo;
- tenha-se sentido ferido na sua autoestima.
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2.3. MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
Na fixação da matéria de facto provada e não provada o tribunal coletivo baseou-se na apreciação crítica da globalidade da prova produzida em audiência de julgamento, segundo as regras da experiência e a livre convicção do tribunal, confrontando-se a prova documental e pericial com a prova oral e aferindo-se, quanto a esta última, do conhecimento de causa, da isenção dos depoimentos prestados, das suas certezas e hesitações, da razão de ciência e da relação com os sujeitos processuais.
A apreciação da prova produzida em audiência, suscetível de contribuir para a formação da convicção do tribunal, rege-se pelo princípio da livre apreciação da prova, acolhido expressamente no artigo 127.º do Código de Processo Penal. Este princípio significa, por um lado, a ausência de critérios legais predeterminantes do valor a atribuir à prova e, de forma positiva, que o tribunal aprecia a prova produzida e examinada em audiência com base exclusivamente na livre valoração e na sua convicção pessoal. O princípio da livre apreciação da prova situa-se na linha lógica dos princípios da imediação, oralidade e concentração; é porque há imediação, oralidade e concentração que ao julgador cabe, depois da prova produzida, tirar as suas conclusões, em conformidade com as impressões recém colhidas e com a convicção que, através delas, se foi gerando no seu espírito, de acordo com as máximas de experiência aplicáveis.
Uma tal convicção existirá quando, e só quando, o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável.
O princípio in dubio pro reo, enquanto expressão, ao nível da apreciação da prova do princípio político-jurídico da presunção de inocência, traduz-se, precisamente, na imposição de que um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido. Opera, exclusivamente, sobre o regime do ónus da prova – a dúvida resolve-se a favor do arguido.
Vejamos:
No caso, o Tribunal atendeu, desde logo, às declarações prestadas pelo arguido em audiência de julgamento que admitiu, praticamente, toda a matéria nos termos em que se deu como provada.
Relevantes foram, também, as declarações prestadas pelos ofendidos D… e C…, que fizeram um relato dos factos que, com algumas nuances, que infra se analisarão, foram ao encontro das declarações prestadas pelo arguido.
O tribunal atentou, ainda, ao depoimento das testemunhas AM…, AN…, AO…, AP…, AQ…, AF… e AT… (que contrataram com o arguido a execução da abertura de roços nas suas obras), e cujos depoimentos em nada colocaram em causa as declarações prestadas pelo arguido, antes as corroboraram, testemunhas essas que depuseram de forma clara, objetiva e serena, pelo que nos mereceram credibilidade.
As referidas declarações e depoimentos foram, ainda, concatenados com os seguintes elementos de prova, a que, igualmente, se atendeu:
- extratos de remunerações de fls. 6 a 9;
- documento comprovativo da cessação de atividade na AT de fls. 10 [respeitante ao ofendido C…];
- declaração contributiva da S.S. de fls. 11 a 14 [respeitante ao ofendido C…];
- documento de penhora de bens em execução fiscal de fls. 15 [respeitante ao ofendido C…];
- informação da AT de fls. 64 a 74 [respeitante ao ofendido C…];
- ficha de identificação civil de fls. 84 a 86 [respeitante ao arguido];
- print da carta de condução de fls. 87 [respeitante ao arguido];
- fichas de identificação civil de fls. 88 a 93 [respeitante a ambos os ofendidos];
- informação da S.S. de fls. 127, 215 a 225;
- registos clínicos e informações hospitalares de fls. 129 a 133 [respeitante a ambos os ofendidos];
- informações bancárias de fls. 179 a 180; 226 e 227, 258 a 261; 270 a 378; 387 a 442, 444 e 445; 531 a 568;
- informação da AT de fls. 382 e 383;
- prints do cartão de cidadão de fls. 587 a 589;
- informação dos veículos de fls. 591 a 597;
- cópias de faturas e cheques de fls. 602 e 603; 637 a 640 [respeitante ao ofendido C…];
- informação da S.S. de fls. 752 a 756; 767 a 772;
- informação bancária de fls. 775 a 793;
- auto de busca e apreensão de fls. 900 a 966;
- documentos apreendidos de fls. 967 a 1001;
- informação bancária de fls. 1095 a 1220;
- informação da S.S. de fls. 1354 a 1363;
- informação e documentação da AT de fls. 1372 a 1417 e 1430 a 1438;
- informação bancária de fls. 1466 [de onde decorre que as contas bancárias da titularidade dos ofendidos foram encerradas de forma automática pelo sistema do banco, atenta a situação das mesmas, e não pelo arguido];
- informação da S.S. de fls. 1477 e 1486;
- manuscrito elaborado pelo ofendido C…, na sessão de audiência de julgamento datada de 02-02-2021;
- perícia de fls. 174 a 176 [relatório de perícia médico legal de psiquiatria respeitante ao arguido];
- perícia de fls. 501 e 502 [relatório de perícia médico legal de psiquiatria respeitante ao ofendido C…];
- perícia de fls. 1350 a 1352 verso [relatório de perícia médico legal de psiquiatria respeitante ao ofendido D…].
Vejamos, então:
O arguido pronunciou-se quanto às circunstâncias de tempo e de lugar em que conheceu e abordou cada um dos ofendidos para irem trabalhar para si e viver em sua casa, data em que conhecia os seus hábitos alcoólicos e as suas debilidades mentais e de “abandono” social e familiar.
Conhecia as suas limitações na leitura e na escrita.
Pronunciou-se sobre o período temporal em que residiram em cada uma das casas e onde dormiam os ofendidos em cada uma delas, assumindo que era ele quem administrava os locais onde os três residiam, fornecendo-lhes alimentação e alojamento.
Quanto à contrapartida/ausência dela pelo trabalho prestado e intenção do arguido explorar o trabalho exercido pelos ofendidos, cumpre referir o seguinte:
O arguido referiu que quando os ofendidos começaram a trabalhar para si, pagava-lhes no final do dia de trabalho. Porém, começou a perceber que enquanto estes tivessem dinheiro não compareciam ao trabalho, pelo que decidiu, então, levá-los para sua casa.
Quanto à retribuição pelo trabalho prestado pelos ofendidos, referiu o arguido que, inicialmente, pagava-lhes entre €150,00 a €200,00 mensais, fornecendo-lhes, ainda,
a alimentação, roupa e calçado, além do alojamento, dando-lhes dinheiro quando estes lhe pediam (em regra dava-lhes €25,00 a €40,00) por semana e dois maços de tabaco por dia.
Tentou fazer crer ao tribunal que, apenas, nos anos de 2012-2014, devido à crise existente na altura, com pouco trabalho (havia semanas e meses sem trabalho) e falta de pagamento pelo trabalho já prestado, por não ter dinheiro nem sequer para pagar a renda de casa, é que, nessa altura, passou a dar apenas 10 cigarros a cada um e €5,00 aos fins de semana, para o café e o álcool.
Todavia, as referidas declarações, no sentido de que pagava um ordenado aos ofendidos, foram contrariadas por estes.
Com efeito, segundo o ofendido C… nunca recebeu qualquer ordenado pelo seu trabalho (o arguido dava-lhe comida, alojamento, roupa lavada, banhos, roupa e calçado e o ofendido dava-lhe o seu trabalho, nunca tendo recebido qualquer ordenado por isso), recebendo do arguido apenas dinheiro ao fim de semana (€10,00 ou €20,00) e em dada altura nem recebia nada.
Por sua vez, segundo o ofendido D…, trabalhavam para comer e viver. O arguido dava-lhes a alimentação, alojamento, comprava tabaco, roupa e calçado e aquilo que precisassem. Para o café, o arguido dava-lhes, ao fim de semana, entre €5 a €25,00 a cada um, dependia se existisse, ou não, trabalho.
Por fim, a este respeito relevou, ainda, o depoimento da testemunha AU…, que explorava o café frequentado pelos ofendidos quando residiam em …, tendo referido que os ofendidos D… e C… frequentavam, diariamente, o seu café. Cada um deles, consumia, diariamente, um café, 3 copos de vinho e um bagaço, gastando, todos os dias, €2,40, quantia que pagavam com o dinheiro deles (o que implica uma despesa semanal de €16,80).
Com segurança pode-se, assim, concluir que, pese embora o arguido fornecesse alojamento, comida, roupa e calçado aos ofendidos, o certo é que não lhes pagava qualquer ordenado pelo trabalho prestado por aqueles, dando-lhes, apenas, dois maços de tabaco diários e uma quantia semanal variável, mas não superior a €25,00, pois foi dessa forma que ambos os ofendidos, de forma segura e espontânea, o declararam e só dessa forma poderiam estes suportar as despesas no café que frequentavam diariamente, no valor de €16,80 semanais.
Quanto aos documentos dos ofendidos, o arguido referiu que os mantinha na sua posse, mas que aqueles tinham acesso aos mesmos e que o fazia apenas para que os ofendidos não os perdessem ou estragassem, pois, uma vez, chegou a ter de ir buscar o BI de um dos ofendidos a “uma casa da noite”, porque este ali o tinha deixado ficar.
E tal justificação não foi contrariada pelos depoimentos dos próprios ofendidos. Aliás, segundo estes, os seus documentos chegaram a estar na carrinha (local, portanto, acessível aos ofendidos e onde, aliás, as testemunhas G… e F…, familiares do ofendido C…, disseram que se encontrava quando ali foram buscar os documentos deste), e, além disso, também acrescentou o ofendido C… que se precisasse dos seus documentos bastava pedi-los ao arguido, facto que nunca necessitou fazer.
De qualquer forma, conforme, se verá adiante, o arguido nunca usou os referidos documentos sem disso dar a conhecer aos ofendidos e, aquando da busca efetuada à sua residência, data em que o ofendido C… já não vivia consigo, os documentos do ofendido D… estavam na posse deste.
Quanto à correspondência dos ofendidos, referiu o arguido que havia uma caixa do correio na sua residência e que eram os ofendidos que ali a iam buscar e lha entregavam, sendo ele quem, de facto, abria a correspondência dirigida ao ofendido C… (o ofendido D… não recebia correspondência), pois tratava-se de correspondência (como a bancária e das finanças) que, pese embora viesse em nome daquele, na realidade era sua, pois apenas tinha usado a identificação do referido ofendido para evitar que os seus bens/rendimentos fossem penhorados e, assim, poderem continuar a viver.
Quanto ao horário de trabalho que faziam, o arguido situou-o entre as 8 horas e as 17 horas.
É certo que o ofendido C… tentou fazer crer ao tribunal que trabalhavam de segunda a sábado e por vezes também ao Domingo, das 06 horas e 30 minutos até às 19horas/20 horas. Porém, este horário de trabalho foi frontalmente contrariado não só pelo depoimento do ofendido D… (trabalhavam de segunda a sexta feira e, por vezes, também ao sábado, das 08 horas às 17 horas e 30 minutos ou mais cedo), como também pelo depoimento da testemunha AQ… (para quem o arguido executou trabalhos e aludiu que “chegavam às 17 horas e iam-se embora”).
Assim sendo, o tribunal só poderia dar os respetivos factos como provados da forma como o fez.
Quanto ao facto alegado na acusação de que o arguido não trabalhava, ficando apenas a controlar a qualidade do serviço prestado pelos ofendidos nas ditas obras, o arguido negou-o, aludindo que na data trabalhava. E foi isso mesmo que foi corroborado por ambos os ofendidos e por algumas das testemunhas para quem executou trabalhos (sendo exemplo disso as testemunhas AM…, AO…, AQ…, AF…), resultando dos seus depoimentos que o arguido trabalhava nas obras juntamente com os ofendidos, embora o trabalho fosse maioritariamente executado por aqueles.
A forma como os ofendidos e o arguido estiveram coletados na SS, decorreu não só da confissão do arguido como também dos respetivos documentos enviados por esta entidade aos autos, já referidos supra. É certo que o arguido referiu que declarava o que pagava, porém, como vimos supra, tal não corresponde à realidade, pois este não lhes pagava qualquer ordenado.
Admitiu o arguido as dívidas que tinha para com a SS e a AT e que se serviu dos ofendidos para fugir à cobrança dessas dividas e evitar a assunção de outras, coletando-os como se fossem eles a entidade patronal, quando, na realidade, continuava ele a ser o patrão e aqueles os empregados, fazendo as respetivas inscrições e declarações junto da SS, abrindo contas bancárias em nome daqueles, quando na realidade essas contas eram apenas movimentadas por si e colocando em nome deles os seus bens (veículos) quando, na realidade, esses veículos continuavam a ser seus.
Porém, referiu o arguido, fê-lo com o conhecimento e acordo dos ofendidos. E, de facto, esse conhecimento decorreu do depoimento destes, em conjugação com os documentos juntos aos autos pela SS, pela AT, pelas entidades bancárias e dos registos de propriedade dos referidos veículos, que se indicaram supra.
É certo que, ao passo que o ofendido D… referiu, de forma perentória, ter conhecimento de tudo que se passava a esse respeito, já o ofendido C… foi dizendo ao tribunal que na altura “só desconfiava” do que se estava a passar e que apenas descobriu quando viu as cartas rasgadas no lixo, dando, assim, a entender que estaria à margem do que o arguido fazia. Porém, o seu próprio depoimento contraria essa “desconfiança”, para nos fazer concluir que o ofendido C… sabia o que se passava.
Com efeito, a este respeito, e a título de exemplo, basta atentar que foi o próprio ofendido C… que foi à repartição de Finanças juntamente com um contabilista e ao balcão do AJ… juntamente com o arguido, tendo assinado os documentos necessários para o efeito.
Sabia que o arguido o fazia para evitar cobranças de dívidas, pois isso mesmo o disse ao Tribunal: “ele tinha tudo embriagado (querendo dizer penhorado) e foi por isso que o negócio ficou em meu nome”, tendo, para o efeito, se deslocado à repartição de Finanças com o contabilista e dito ao seu cunhado G… que agora era o patrão, que assinava cheques e que não via problema nisso.
Referiu saber que tinha uma conta bancária em seu nome e que chegou a deslocar-se ao AJ… para assinar cheques e para levantar dinheiro para o arguido.
Referiu saber que tinha veículos em seu nome, porque o arguido não os podia ter em nome dele.
Concluindo o ofendido C…: “como ele não podia ter nada em nome dele passou tudo para o meu, para termos dinheiro para viver”.
Quanto ao facto imputado ao arguido de que este se apropriou da quantia correspondente às remunerações que eram devidas aos ofendidos, o tribunal só poderia ter dado o mesmo como não provado, da forma como o fez.
Com efeito, o arguido nega esse facto e não foi feita qualquer prova nesse sentido.
Analisada a prova testemunhal, decorre, apenas, do depoimento de algumas das testemunhas para quem o arguido executou trabalhos, que estes poderiam implicar entre um a três dias, numa determinada obra, pelos quais receberia entre 100 a 400 euros, tudo dependia do trabalho a executar, o que nos daria um ponto de referência do que poderia ganhar num mês.
Todavia, nem sempre o arguido tinha trabalhos em execução, referindo, mesmo, o ofendido D… que havia alturas em que não trabalhavam todos os dias, havendo semanas em que trabalhavam apenas dois ou três dias, o que é coerente com as regras da experiência que nos dizem que nestas áreas o trabalho não é uma constante, e, como vimos, o arguido não era um grande empresário, tendo, apenas, duas ou três pessoas a trabalhar para si (os ofendidos e, por vezes, também um irmão seu).
Acresce que era daquele valor que retirava o montante necessário para suportar as suas despesas, quer as do dia a dia quer as decorrentes da sua atividade profissional, bem como as que para si advinham com o alojamento, a alimentação, o vestuário e o calçado dos ofendidos, e o tribunal não dispõe de qualquer elemento de prova que permita quantificar as despesas suportadas com estes, as quais não se lograram apurar.
Por sua vez, analisada a prova documental constante dos autos, da mesma também não decorre esse facto, sendo, a este respeito, de referir que analisados os valores declarados à segurança social, constata-se que são muito variados e, a estes, sempre se teria de atentar nos gastos que o arguido teve para com cada um dos ofendidos, ao proporcionar-lhes os já referidos alojamento, alimentação, vestuário e calçado, sendo certo que existem meses em que essas despesas foram, seguramente, superiores aos vencimentos que foram declarados à SS (veja-se, a título de exemplo, que em dezembro de 2011 e em outubro de 2008, os valores declarados junto da SS, relativamente ao ofendido D…, foram, respetivamente, de €67,16 e €72,09 e em outubro de 2008 e em fevereiro de 2002, os valores declarados junto da SS, relativamente ao ofendido C…, foram, respetivamente, de €72,09 e €25,72).
Sabe-se, apenas, com segurança, que o arguido aproveitou-se da vulnerabilidade dos ofendidos para explorar o trabalho prestado por estes, do que, necessariamente, lhe adveio alguma recompensa, mas não tem o tribunal como a quantificar.
Uma coisa é certa, pelo menos os valores correspondentes ao subsídio de Natal e de Férias (por referência ao salário mínimo nacional) respeitantes a cada ano em que os ofendidos trabalharam para o arguido, sempre lhes seriam devidos, pois ficam além dos doze meses em que o arguido suportou despesas com estes e, como tal, como se verá, irão ser atendidos como referência para a fixação de indemnização/reparação que é devida aos lesados.
Quanto à inscrição dos ofendidos na segurança social como trabalhadores independentes, como patrões do arguido, quando na realidade este nunca deixou de ser o patrão deles; quanto à declaração de início de atividade dos mesmos junto da AT; quanto à abertura de contas bancárias em seu nome, mas que eram apenas movimentadas pelo arguido e quanto ao registo de bens do arguido em nome dos ofendidos, mas que, na realidade, nunca deixou de ser da propriedade daquele, bem como o intuito que pretendia alcançar com essa forma de atuação, o próprio arguido o admitiu, acrescentando, apenas, que o fez com o conhecimento dos ofendidos, o que, de facto, foi corroborado por estes.
Relativamente aos factos integradores do imputado crime de maus tratos, não resultaram os mesmos como provados.
Com efeito, o arguido nega que alguma vez tenha deferido murros, pontapés e estalos aos ofendidos ou que os tenha apelidado de filhos da puta, o máximo que poderia ter ocorrido era tê-los empurrado, para os afastar, quando, embriagados, se viravam a si.
E, a esse respeito, apenas o ofendido C… refere que o arguido chegou a bater-lhe muitas vezes, a si e ao ofendido D…, quer em casa, quer no trabalho, tendo, mesmo, chegado a andar com o olho preto.
Porém, o próprio ofendido é incongruente nas declarações que prestou a esse respeito. Desde logo, tanto referia que o arguido lhe batia muitas vezes, como logo dizia que o fez apenas duas ou três vezes. Tanto dizia que o arguido lhe batia, pois quando discutiam nunca se rebaixava, como dizia que o seu “vinho era calmo”, queria era dormir e tinha medo do corpanzil dele.
Além disso o ofendido D… nega-o e nenhuma das restantes testemunhas alguma vez presenciou qualquer ato de agressão do arguido para com qualquer um dos ofendidos, nem as testemunhas em cujas obras os ofendidos trabalharam (AM…, AN…, AO…, AP…, AQ…, AF… e AT…, cfr. infra se verá), nem mesmo as testemunhas AV… e AU…, respetivamente vizinho dos ofendidos e proprietário do café diariamente frequentado por estes, que nunca os viram a ser agredidos ou com marcas de agressão, nem nunca aqueles disso se queixaram (segundo a testemunha AV… nunca os viu com marcas de agressão, hematomas ou olho negro, mas apenas com feridas na cara, nos braços e nas mãos, o que poderia ser decorrente da profissão que exerciam).
É certo que, segundo a referida testemunha AU… (que explorava um café em … onde os ofendidos se deslocavam diariamente) a dada altura apercebeu-se que o ofendido C… estava a viver na casa da lenha e, perguntando-lhe o que se passava, este referiu-lhe que tinha sido colocado na rua pelo arguido e que ele nesse dia lhe tinha batido, no entanto trata-se de uma alusão vaga a uma agressão, não sustentada em qualquer elemento de prova, testemunhal ou documental.
No que respeita ao episódio descrito na acusação, na sequência do qual o ofendido teve necessidade de assistência hospitalar, o próprio ofendido refere que tal ocorreu em virtude de um acidente de que foi vítima.
O mesmo se diga quanto à expressão “filhos da puta”, que vem imputada ao arguido, à qual apenas a ela se referiu o ofendido C…, mas que foi contrariada pelo arguido, pelo ofendido D… e pelas testemunhas supra indicadas.
Assim sendo, e atento o principio in dubio pro reo, tais factos teriam de ser dados como não provados, da forma como o foram.
No que respeita ao facto de o ofendido C… ter saído da casa do arguido, o próprio arguido o admitiu, dizendo que a dada altura, do ano de 2013, o ofendido C… começou a ficar pelo café, onde lhe davam o vinho e não aparecia para trabalhar, só aparecendo em casa para dormir. Contactou, então, por três vezes, familiares deste, mas não quiseram saber. Foi, então, que decidiu mudar a fechadura da porta, deixando-o na rua, e, a partir dessa data, não mais o ofendido C… viveu consigo ou trabalhou para si.
O próprio ofendido C… referiu que também foi colocado na rua pelo arguido porque era “fraco” com ele, pois o D…, que ainda vive com o arguido, ouvia e calava mas ele não.
Por sua vez, o ofendido D… aludiu que quando estavam a trabalhar, às vezes, o ofendido C… abandonava as obras (o que não foi negado por este que referiu: “por vezes ele (referindo-se ao arguido) virava de costas e eu deitava as ferramentas ao chão e ia-me embora”), e quanto mais o arguido o avisava que não ia terminar bem, mais ele fugia, chegando, por vezes, a casa por volta da meia noite e uma da madrugada. Além disso, começou a ir para o café e não aparecia para trabalhar.
No que respeita à prova testemunhal, além do já analisado supra, cumpre dizer que o tribunal atendeu ao depoimento, espontâneo, claro, coerente e objetivo, prestado pelas testemunhas AM…, AN…, AO…, AP…, AQ…, AF… e AT….
Todas estas testemunhas contrataram a execução da abertura de roços nas suas obras com arguido, que sempre viram como sendo o patrão, e, tal como este o admitiu, mesmo quando das faturas emitidas constava como prestador desses trabalhos acordados o ofendido C…, na realidade sempre foi com o arguido que contrataram e era a este a quem procediam ao respetivo pagamento.
Os trabalhos contratados eram executados pelos ofendidos D… e C… (por vezes também por um irmão do arguido) e pelo próprio arguido, embora este nem sempre ficasse nas obras.
Os ofendidos não tinham capacidade para se orientarem sozinhos, ingerindo bebidas alcoólicas quando o arguido se ausentava (neste sentido se pronunciaram as testemunhas AO…: “o arguido dizia “nada de bebidas aqui” e os ofendidos iam busca-las às escondidas”; AQ…: “uma vez o arguido deixou-os na obra e eles foram ao café e exageraram no álcool”; AF… “Gostavam de álcool. Na obra vi-os num estado mais alterado com o álcool”).
Os trabalhos contratados com o arguido poderiam implicar 1, dois ou 3 dias, pelos quais recebia entre 100 a 400 euros, tudo dependia do trabalho a executar.
Todas estas testemunhas foram unânimes e perentórias ao afirmar que nunca viram os ofendidos a ser maltratados pelo arguido, nunca o viram a agredi-los física ou verbalmente. Note-se que mesmo as testemunhas AP… e AF…, na ótica de quem o arguido falaria com os ofendidos de forma arrogante, rude, nunca o viram a agredir os ofendidos, nem física nem verbalmente.
O depoimento da testemunha AV… foi valorado, nos termos supra analisados.
O mesmo se diga, quanto ao depoimento da testemunha AU… (que explorava o café frequentado diariamente pelos ofendidos, quando residiam em …).
Além do já exposto supra, esta testemunha referiu, ainda, que foi ele quem deu a conhecer aos irmãos do ofendido C… que este estava a viver na rua, pois este não tomou a iniciativa de procurar a família.
Já as testemunhas E…, F… e G… (respetivamente, irmãos e cunhado do ofendido C…) prestaram um depoimento tendencioso e incoerente.
Com efeito, todos eles tinham conhecimento que o ofendido C… tinha ido viver para casa do arguido e trabalhar para este e, desde então, poucos contactos mantiveram com o mesmo, tendo estas testemunhas feito alusão a duas ou três viagens que o seu irmão fez para a Suíça, onde estes últimos se encontram a viver, e das visitas que estes efetuavam quando se encontravam de férias em Portugal.
Durante esses contactos, nunca o ofendido C… se queixou de nada, nunca o viram magoado, e este dizia, sempre, que estava bem (tentaram estas testemunhas fazer crer ao tribunal que o ofendido C… nunca se queixava por ser uma pessoa muito reservada, mas o certo é que o próprio ofendido disse o contrário ao tribunal, ou seja, que nunca se calava perante o arguido).
Também aludiram as testemunhas G… e F… que uma vez uma vizinha do arguido abordou-os e disse-lhes que este era mau e batia no ofendido C…. Porém, nada fizeram, só o tendo ido buscar quando a testemunha AU… lhes disse que ele vivia na rua.
Sabiam, aliás, estas testemunhas que o ofendido C… tinha “uma empresa em nome dele” e veículos em seu nome, pois ele próprio lhes contou, e sabiam que o ofendido não tinha qualquer ordenado, no entanto nada fizeram, apesar de saberem que, como aludiu, a testemunha G…, o arguido se “aproveitou” dele.
Também referiram que o ofendido não tem capacidade de gestão ou de se orientar no seu dia a dia, se tiver dinheiro consigo gasta tudo no álcool, tendo de ser eles, familiares, a gerir o RSI e a tratar de tudo, mas o facto é que deixam-no a viver sozinho numa casa, que já foi pertença dos pais, sem água, nem luz, tendo este de ir tomar banho e as refeições a casa de uma vizinha.
A testemunha E… confirmou que, de facto, o arguido chegou a contacta-lo dizendo-lhe que o seu irmão não trabalhava, que estava sempre bêbado, no entanto, nada fez para se inteirar do estado do seu irmão.
Quanto aos alegados danos decorrentes para o ofendido da conduta do arguido disseram que este queixa-se que tem dificuldades em dormir, a pensar nisto, que se sente revoltado, injustiçado e triste. Porém, tais afirmações são contrariadas pelo próprio ofendido C…, quando afirma que tudo foi feito com o seu acordo e que também nem sequer sabe quanto deve às Finanças, pois as dívidas não lhe interessam nada.
É certo que o ofendido referiu, ainda, que saiu muito zangado com o arguido, mas dai não decorre que saiu zangado pela forma como foi tratado, sendo certo que quando foi colocado na rua não foi ter com os seus familiares, pese embora ter um irmão que morava perto de si.
Assim sendo, quanto aos alegados danos, tais factos só poderiam ter sido dados como não provados, da forma como o foram.
Todos os elementos de prova referidos que foram atendidos quanto aos factos constantes da acusação, relevarão, também, quanto ao pedido de indemnização, de reparação da vítima e relativamente ao requerido confisco das vantagens da atividade criminosa, atendendo a que não se podem autonomizar.
Quanto à ausência de antecedentes criminais do arguido, o tribunal teve em atenção o respetivo Certificado de Registo Criminal junto aos autos a fls. 1621.
Quanto à sua situação sócio profissional e económica o tribunal atendeu ao respetivo relatório social junto aos autos a fls. 1607 e ss.
No que respeita aos factos não provados o tribunal deu-os como tal por não ter sido feita qualquer prova segura nesse sentido, cfr. se apreciou supra.
+
São as seguintes as questões a apreciar:
- impugnação da matéria de facto (pontos: 3., 4., 8., 12., 21., 22., 26., 27., 31., 32., 34., 35., 49., 61., 89., 90., 91., 92., dos factos provados)
- qualificação jurídica.
- indemnização e reparação da vitima.
+
O recurso é delimitado pelas conclusões extraídas da motivação que constituem as questões suscitadas pelo recorrente e que o tribunal de recurso tem de apreciar (artºs 412º, nº1, e 424º, nº2 CPP, Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98 e Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335), mas há que ponderar também os vícios e nulidades de conhecimento oficioso ainda que não invocados pelos sujeitos processuais – artºs, 410º, 412º1 e 403º1 CPP e Jurisprudência dos Acs STJ 1/94 de 2/12 in DR I-A de 11/12/94 e 7/95 de 19/10 in DR. I-A de 28/12 - tal como, mesmo sendo o fundamento de recurso só de Direito: a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; ou o erro notório na apreciação da prova (Ac. Pleno STJ nº 7/95 de 19/10/95 do seguinte teor:“ é oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º, nº2 do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito”) mas que, terão de resultar “ do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum” – artº 410º2 CPP, “ não podendo o tribunal socorrer-se de quaisquer outros elementos constantes do processo” in G. Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III vol. pág. 367, e Simas Santos e Leal Henriques, “C.P.Penal Anotado”, II vol., pág. 742, sendo tais vícios apenas os intrínsecos da própria decisão, considerada como peça autónoma, não sendo de considerar e ter em conta o que do processo conste em outros locais - cfr. Ac. STJ 29/01/92 CJ XVII, I, 20, Ac. TC 5/5/93 BMJ 427, 100 - e constitui a chamada “ revista alargada” como forma de sindicar a matéria de facto.

Destes o arguido nenhum deles invoca e visto acórdão em causa também não os vislumbramos sem prejuízo de incidentalmente algum desses vícios poder ser ponderado.

Quanto às questões suscitadas.
Nos termos do n.º 1 do art.º 428º do CPP, as Relações conhecem de facto e de direito, e podem modificar a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto artº 431º CPP), pela via da “revista alargada” dos vícios do artº 410º2 CPP (supra) e através da impugnação ampla da matéria de facto regulada pelo artº 412º CPP.
Na revista alargada está em causa a apreciação dos vícios da decisão, cuja indagação tem de resultar do texto da decisão recorrida por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo admissível o recurso a elementos estranhos à decisão, como os dados existentes nos autos ou resultantes da audiência de julgamento (cf. Maia Gonçalves, CPP Anotado, 10 ª ed. pág. 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal Vol. III, verbo 2ª ed. pág. 339, e Simas Santos et alli, Recursos em Processo Penal, 6ª ed. pág. 77), nos termos explanados já;
No 2º caso - impugnação ampla - a apreciação da matéria de facto alarga-se à prova produzida em audiência (se documentada) mas com os limites assinalados pelo recorrente em face do ónus de especificação que lhes é imposto pelos nºs 3, 4 do artº 412º CPP, nos termos dos quais:
“3. Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas;
4. Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta nos termos do nº2 do artigo 364º devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação. (…)
6. No caso previsto no nº4 o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.”
Mas há que ter presente que tal recurso não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, com base na audição de gravações, mas constitui apenas um remédio para eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida (erros in judicando ou in procedendo) na forma como o tribunal recorrido apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente, pelo que não pressupõe a reapreciação total dos elementos de prova produzidos em audiência e que fundamentaram a decisão recorrida, mas apenas aqueles sindicados pelo recorrente e no concreto ponto questionado, constituindo uma reapreciação autónoma sobre a bondade e razoabilidade da apreciação e decisão do tribunal recorrido quanto aos “concretos pontos de facto” que o recorrente especifique como incorrectamente julgados.
Para essa reapreciação o tribunal verifica se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida e em caso afirmativo avalia-os e compara-os de molde a apurar se impõem ou não decisão diversa (cf. Ac. STJ 14.3.07, Proc. 07P21, e de 23.5.07, Proc. 07P1498, in www. dgsi.pt/jstj).
A especificação dos “concretos pontos de facto” constituem a indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados,
e as “concretas provas” consistem na identificação e indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas “provas” impõem decisão diversa da recorrida, e
havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na acta, e dentro destas tem o recorrente de indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação;
Mas o Tribunal pode sempre apreciar outras que ache relevantes (nº 4 e 6 do artº412º CPP)
Todavia o conhecimento da prova indicada pelo recorrente está limitado à sua concreta indicação (e/ou transcrição) na medida em que o recorrente delimita desse modo a impugnação e o conhecimento, delimitação que o STJ através do nº Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 3/2012 in DR 18/4/2012 legitima “Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações”
Mas mesmo essa reapreciação, como assinala o STJ ac. de 2/6/08, no proc. 07P4375, in www.dgsi.pt. sofre as limitações consistentes nas que decorrem
- da necessidade de observância pelo recorrente do ónus de especificação, restringindo como assinalado o conhecimento aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam, e
- da falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações, postergando-se assim a “sensibilidade” que decorre de tais princípios; e resultam
- de a análise e ponderação a efectuar pela Relação não constituir um novo julgamento, porque restrita à averiguação ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros indicados pelo recorrente; e de
- o tribunal só poder alterar a matéria de facto impugnada se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida (al. b) do nº 3 do citado art. 412º) (cf. também o Ac. RLx de 10.10.07, no proc. 8428/07, em www.dgsi.pt/jtrl), e não apenas a permitirem;
Acresce, em consonância com o descrito, que a reapreciação da prova na 2ª instância, limita-se a controlar o processo de formação da convicção decisória da 1ª instância e da aplicação do princípio da livre apreciação da prova, tomando sempre como ponto de referência a motivação/ fundamentação da decisão, e
neste recurso de impugnação da matéria de facto, o Tribunal da Relação não vai à procura de uma nova convicção - a sua - mas procura saber se a convicção expressa pelo Tribunal recorrido na fundamentação tem suporte adequado na prova produzida e constante da gravação da prova por si só ou conjugados com as regras da experiência e demais prova existente nos autos (documental, pericial etc..) e,
em face disso, obviamente o controlo da matéria de facto apurada tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, mas não pode subverter ou aniquilar a livre apreciação da prova do julgador, construída, dialecticamente, na base da imediação e da oralidade, tendo presente que como expressa o Prof. Figueiredo Dias, in Dto Proc. Penal, 1º Vol. Coimbra ed. 1974, pág. 233/234, só aqueles princípios da imediação e da oralidade “… permitem …avaliar o mais correctamente possível a credibilidade das declarações pelos participantes processuais”.
Tal significa que sem dispor da apreciação directa e imediata da prova, ao tribunal de recurso cabe apenas averiguar se existe o erro de julgamento na fixação da matéria de facto, por se evidenciar que as provas valoradas pelo tribunal recorrido eram provas proibidas ou o foram com violação das regras sobre a apreciação da prova, e nomeadamente o principio da livre apreciação, do princípio in dubio pro reo ou prova vinculada, ou as regras da experiência ou ainda se a convicção formada pelo tribunal de recurso não era possível, pois se for uma das possíveis não pode o tribunal de recurso interferir nessa apreciação.
Mesmo assim a apreciação que o tribunal pode fazer está condicionada à concreta passagem gravada indicada pelo recorrente na motivação e na transcrição que efectua, pois não pode reapreciar toda a prova como se de um 2º julgamento se tratasse;

O recorrente tem um modo singular e algo confuso de impugnar a matéria de facto, na medida em que questiona os factos não provados sem se saber se os pretende ver como provados ou não, ou fazendo apenas parte do seu raciocínio, tal como parece invocar nesse âmbito contradições entre os factos, tal como para alguns factos não indica a prova que imporia decisão diversa, e por isso só na medida em que é observado o ónus de impugnação quanto aos factos concretos é possível conhecer da impugnação.
Apreciando.
O recorrente nas suas conclusões questiona a matéria de facto quanto aos nºs - 3., 4., 8., 12., 21., 22., 26., 27., 31., 32., 34., 35., 49., 61., 89., 90., 91., 92., dos factos provados, e a tal nos devemos a ter pois traduzem as questões a conhecer.
Assim
Logo no inicio da sua impugnação, coloca em causa: “… salvo o devido respeito por melhor opinião, entende o recorrente que o Tribunal a quo andou mal em, por um lado, considerar não provado que:
- “(…) - O ofendido C… apenas assinou a referida documentação por não ter capacidade de alcançar a que se destinava, por não saber ler nem escrever; ou,
- O ofendido D… apenas assinou a referida documentação por se encontrar numa relação de dependência total daquele e não ter a capacidade de alcançar a que se destinava essa documentação;
ou,
- Os ofendidos desconhecessem a sua inscrição na AT e na SS; ou
- O ofendido C… tenha assinado os cheques sem saber que se destinavam a ser usados pelo arguido para fazer pagamentos;
- As referidas contas bancárias da titularidade dos ofendidos tenham sido encerradas pelo arguido e que este tenha obtido a documentação necessária para o encerramento das mesmas, que solicitou àqueles que assinassem e que estes o fizeram, desconhecendo do que se tratava e a que se destinava; (…)” todavia não observa o ónus de impugnação atrás descrito e explicitado, com indicação da prova que imporia decisão diversa, e quiçá até prejudicial para o arguido por constituir eventualmente acção criminalmente (a existir) mais gravosa, pelo que esta alegação é inócua em termos de impugnação da matéria de facto, a ser essa a intenção do recorrente.

Alega seguidamente que “No que respeita à factualidade descrita nos pontos 1) 2), 3), 4), 6) e 8) da matéria provada, entende o recorrente que da prova produzida em sede de audiência de julgamento e da prova documental constante do processo, resulta de forma inequívoca que ambos os ofendidos são pessoas perfeitamente capazes, afastando-se desde logo a sua “especial vulnerabilidade”.
E indica como prova que imporia decisão diversa os “depoimentos dos ofendidos, resulta de forma inequívoca que ambos são portadores de capacidade cognitiva suficiente para entenderem tudo aquilo que se passou” em relação aos quais não remete para a gravação da prova nem os transcreve, pelo que não podem ser ponderados como tal, e
- as declarações do arguido que transcreve, onde se afirma que os ofendidos bebiam muito, e gostavam de beber e em especial aos fins de semana quando lhe dava os 2º ou 30€ emborrachavam-se sempre, e para ele eram pessoas normais.
Manifestamente que assim não é, nem isso resulta das declarações do arguido, tendo em conta inclusive o modo como os mesmos vieram a trabalhar consigo, e todos os dados periciais dos Relatórios periciais dos ofendidos, e não colocados em causa sequer pelo recorrente, que apenas põe em causa a “especial vulnerabilidade” e nomeadamente o que consta da fundamentação: “Os ofendidos não tinham capacidade para se orientarem sozinhos, ingerindo bebidas alcoólicas quando o arguido se ausentava (neste sentido se pronunciaram as testemunhas AO…: “o arguido dizia “nada de bebidas aqui” e os ofendidos iam busca-las às escondidas”; AQ…: “uma vez o arguido deixou-os na obra e eles foram ao café e exageraram no álcool”; AF… “Gostavam de álcool. Na obra vi-os num estado mais alterado com o álcool”), e ainda ali consta: “Também referiram que o ofendido não tem capacidade de gestão ou de se orientar no seu dia a dia, se tiver dinheiro consigo gasta tudo no álcool, tendo de ser eles, familiares, a gerir o RSI e a tratar de tudo,(..).
A testemunha E… confirmou que, de facto, o arguido chegou a contacta-lo dizendo-lhe que o seu irmão não trabalhava, que estava sempre bêbado,…”.
Não ocorre razão para altera esta matéria de facto.

No que respeita ao nº 12 que impugna, não indica a prova que imporia decisão diversa, mas questiona-o (parece) em confronto com o facto não provado:
“No momento em que decidiu levar os ofendidos para sua casa, o arguido já tinha a intenção de os utilizar em tudo o que necessitasse, tendo, logo nessa altura, decidido que, em face dos atrasos mentais de que padeciam, a partir do momento em que os ofendidos passassem a viver consigo, deles se iria aproveitar, em seu benefício, em tudo o que conseguisse”, sendo que, alega, foram os ofendidos quem decidiram de livre e espontânea vontade ir viver com o arguido/recorrente, e não este último quem “(…) decidiu levá-los para sua casa (…)”, questionando assim este segmento.
O nº 12 tem a seguinte redação:
12. O arguido B…, sabendo das limitações dos ofendidos e aproveitando-se da especial vulnerabilidade e da falta de capacidade mental dos mesmos para livremente decidir, decidiu levá-los para sua casa, para trabalharem para si, a fazer roços em obras de construção civil, explorando a sua força de trabalho, sem lhes pagar qualquer retribuição, além do que infra se indicará em 26. e 27.”
Com esta abrangência indica como prova:
- declarações do ofendido C… que diz que a ideia de ficar em casa do arguido tanto foi do arguido como dele, e
Vista essa prova e tendo em conta também as declarações do arguido transcritas a fls 17 da motivação, resulta que em relação ao D… foi ele que lhe disse para trabalhar com ele, e em relação ao C… convidaram-no e ele foi, e ali o arguido nas suas declarações descreve todo o envolvimento posterior, pelo que não existe motivo para alterar esse facto, constando da fundamentação do acórdão que “O arguido referiu que quando os ofendidos começaram a trabalhar para si, pagava-lhes no final do dia de trabalho. Porém, começou a perceber que enquanto estes tivessem dinheiro não compareciam ao trabalho, pelo que decidiu, então, levá-los para sua casa”, o que não é questionado
E entre o facto provado e o não provado, em análise, não existe qualquer incompatibilidade pois se trata de momentos temporais distintos.

No que respeita ao nº21que tem a seguinte redação:
21. Era apenas o arguido quem abria a correspondência que era enviada para as mencionadas residências, independentemente de se destinarem a si ou aos ofendidos, pese embora fossem os ofendidos quem a ia buscar à caixa de correio e quem a entregava ao arguido.”
Indica como prova o depoimento do ofendido C…, que vendo cartas em seu nome, e se ao arguido não lhe cheiravam, rasgava-as e punha-as no lixo e um dia cismou e foi ver era das finanças, e foi aí que ele deu por ela, donde resulta que não era dado conhecimento das cartas ao ofendido, que apenas por ter ido ao lixo teve acesso
Ora consta da fundamentação no que respeita às declarações do arguido “Quanto à correspondência dos ofendidos, referiu o arguido que havia uma caixa do correio na sua residência e que eram os ofendidos que ali a iam buscar e lha entregavam, sendo ele quem, de facto, abria a correspondência dirigida ao ofendido C… (o ofendido D… não recebia correspondência), pois tratava-se de correspondência (como a bancária e das finanças) que, pese embora viesse em nome daquele, na realidade era sua, pois apenas tinha usado a identificação do referido ofendido para evitar que os seus bens/rendimentos fossem penhorados e, assim, poderem continuar a viver”, matéria não questionada, pelo que manifestamente a prova indicada não impõe decisão diversa
O nº22 tem a seguinte redação: “Os ofendidos trabalhavam, por ordem e por conta do arguido, por norma, das 8h às 17h, de segunda-feira a sexta-feira e por vezes também ao sábado, em obras de construção civil sitas em Aveiro, Coimbra, Albergaria-a-Velha, Fátima, Feira, São João da Madeira, entre outros locais.”
Indica como prova que imporia decisão diversa o depoimento do ofendido C…, que transcreve e ali se diz que o arguido “Às vezes, mas nem sempre, ia ver os serviços, falar com os patrões não sei quê, tinha horas que trabalhava e outras não, ia ver serviços não sei quê,” que nada tem a ver com a matéria provada, pelo que a prova não impõe decisão diversa, constando da fundamentação o seguinte em relação a toda essa matéria:
Quanto ao horário de trabalho que faziam, o arguido situou-o entre as 8 horas e as 17 horas.
É certo que o ofendido C… tentou fazer crer ao tribunal que trabalhavam de segunda a sábado e por vezes também ao Domingo, das 06 horas e 30 minutos até às 19horas/20 horas. Porém, este horário de trabalho foi frontalmente contrariado não só pelo depoimento do ofendido D… (trabalhavam de segunda a sexta feira e, por vezes, também ao sábado, das 08 horas às 17 horas e 30 minutos ou mais cedo), como também pelo depoimento da testemunha AQ… (para quem o arguido executou trabalhos e aludiu que “chegavam às 17 horas e iam-se embora”).
Assim sendo, o tribunal só poderia dar os respetivos factos como provados da forma como o fez.
Quanto ao facto alegado na acusação de que o arguido não trabalhava, ficando apenas a controlar a qualidade do serviço prestado pelos ofendidos nas ditas obras, o arguido negou-o, aludindo que na data trabalhava. E foi isso mesmo que foi corroborado por ambos os ofendidos e por algumas das testemunhas para quem executou trabalhos (sendo exemplo disso as testemunhas AM…, AO…, AQ…, AF…), resultando dos seus depoimentos que o arguido trabalhava nas obras juntamente com os ofendidos, embora o trabalho fosse maioritariamente executado por aqueles.
Não há razão para alterar a matéria de facto neste ponto.

Questiona o arguido os nºs 26, 27 e 31, invocando que “não se entende, porque motivo considerou o Tribunal a quo os factos provados 26., 27., 31., se, em momento alguma existia uma relação jurídico-laboral que obrigasse ao pagamento de retribuição pelo arguido aos ofendidos?! Ademais, considerou o Tribunal a quo que as quantias provenientes dos serviços prestados servia para o pagamento de despesas inerentes ao alojamento, à alimentação, ao vestuário e ao calçado dos ofendidos.
Não indica prova que imporia decisão diversa, pelo que não é possível conhecer dessa impugnação por não cumprimento do ónus de impugnação, sendo certo que a esta matéria consta da fundamentação, como declarações do arguido e dos ofendidos: “Quanto à retribuição pelo trabalho prestado pelos ofendidos, referiu o arguido que, inicialmente, pagava-lhes entre €150,00 a €200,00 mensais, fornecendo-lhes, ainda, a alimentação, roupa e calçado, além do alojamento, dando-lhes dinheiro quando estes lhe pediam (em regra dava-lhes €25,00 a €40,00) por semana e dois maços de tabaco por dia.
Tentou fazer crer ao tribunal que, apenas, nos anos de 2012-2014, devido à crise existente na altura, com pouco trabalho (havia semanas e meses sem trabalho) e falta de pagamento pelo trabalho já prestado, por não ter dinheiro nem sequer para pagar a renda de casa, é que, nessa altura, passou a dar apenas 10 cigarros a cada um e €5,00 aos fins de semana, para o café e o álcool.
Todavia, as referidas declarações, no sentido de que pagava um ordenado aos ofendidos, foram contrariadas por estes.
Com efeito, segundo o ofendido C… nunca recebeu qualquer ordenado pelo seu trabalho (o arguido dava-lhe comida, alojamento, roupa lavada, banhos, roupa e calçado e o ofendido dava-lhe o seu trabalho, nunca tendo recebido qualquer ordenado por isso), recebendo do arguido apenas dinheiro ao fim de semana (€10,00 ou €20,00) e em dada altura nem recebia nada.
Por sua vez, segundo o ofendido D…, trabalhavam para comer e viver. O arguido dava-lhes a alimentação, alojamento, comprava tabaco, roupa e calçado e aquilo que precisassem. Para o café, o arguido dava-lhes, ao fim de semana, entre €5 a €25,00 a cada um, dependia se existisse, ou não, trabalho”, pelo que não se entende o sentido desta impugnação, resultando ainda dos demais factos provados e da fundamentação da sentença que existia uma subordinação dos ofendidos ao arguido, que o levava a trabalhar para os locais contratados e era ele arguido que arranjava os trabalhos a fazer.
Em complemento questiona-os porque “Andou mal o Tribunal a quo ao considerar como não provado que:
- O arguido se tenha apoderado da remuneração que era devida aos ofendidos pelo trabalho que prestaram;
- O arguido, com o seu comportamento, tenha feito sua a quantia de € 31.825,52 (trinta e um mil, oitocentos e vinte e cinco euros e cinquenta e dois cêntimos), referentes a salários/vencimentos que eram devidos ao ofendido C… e que fez sua a quantia de € 28.701,59 (vinte e oito mil, setecentos e um euros e cinquenta e nove cêntimos), referentes a salários/vencimentos que eram devidos ao ofendido D…, causando-lhes, respetivamente, prejuízo equivalente;
E, ao mesmo tempo, considerar como factos provados o constante dos pontos 26) a 31)”
Não justifica tal alegação, sendo que entre elas não existe qualquer incompatibilidade, pois tendo-se apurado o dinheiro que lhes dava e o que lhes pagava ( alojamento, alimentação vestuário etc) não foi possível apurar o que lhe sobrava, e por isso não se pode dar como provada uma quantia que se desconhece, pois o arguido não fazia contas com os ofendidos.
Apesar dos factos que diz impugnar, o certo e que o arguido apenas indica na motivação os nºs 92 e 93, e para eles não indica qualquer prova que imponha decisão diversa que o tribunal deva analisar, pelo que por incumprimento do ónus de impugnação, não é possível conhecer dos factos que diz impugnar (nºs 34., 35., 49., 61., 89., 90., 91., 92)
Não ocorra assim motivo para alterar a matéria de facto impugnada, improcedendo esta questão.

Qualificação jurídica dos factos
Questiona o arguido o preenchimento do ilícito em causa, alegando inexistir beneficio exclusivo do arguido, nem existiu privação da liberdade, nem tinha uma posição superior, e que não existia uma situação de desamparo nem uma especial vulnerabilidade.
No acórdão recorrido a qualificação dos factos integradores do crime em apreço foi analisada do seguinte modo:
“Vem o arguido acusado da prática de dois crimes de tráfico de pessoas, previsto e punido pelo artigo 160.º, n.º 1, alíneas c) e d), e n.ºs 3, 7 e 8, do Código Penal.
Decorre do referido preceito legal vigente na data da prática do facto6, no que se refere ao ofendido C…, que comete o crime de tráfico de pessoas:
“1 - Quem oferecer, entregar, aliciar, aceitar, transportar, alojar ou acolher pessoa para fins de exploração sexual, exploração do trabalho ou extracção de órgãos:
a) Por meio de violência, rapto ou ameaça grave;
b) Através de ardil ou manobra fraudulenta;
c) Com abuso de autoridade resultante de uma relação de dependência hierárquica, económica, de trabalho ou familiar;
d) Aproveitando-se de incapacidade psíquica ou de situação de especial vulnerabilidade da vítima; ou
e) Mediante a obtenção do consentimento da pessoa que tem o controlo sobre a vítima;
é punido com pena de prisão de três a dez anos.
………………………
6 Redação dada pelo seguinte diploma: Lei n.º 59/2007, de 04 de setembro.
………………………
2 - A mesma pena é aplicada a quem, por qualquer meio, aliciar, transportar, proceder ao alojamento ou acolhimento de menor, ou o entregar, oferecer ou aceitar, para fins de exploração sexual, exploração do trabalho ou extracção de órgãos.
3 - No caso previsto no número anterior, se o agente utilizar qualquer dos meios previstos nas alíneas do n.º 1 ou actuar profissionalmente ou com intenção lucrativa, é punido com pena de prisão de três a doze anos.
4 - Quem, mediante pagamento ou outra contrapartida, oferecer, entregar, solicitar ou aceitar menor, ou obtiver ou prestar consentimento na sua adopção, é punido com pena de prisão de um a cinco anos.
5 - Quem, tendo conhecimento da prática de crime previsto nos n.ºs 1 e 2, utilizar os serviços ou órgãos da vítima é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
6 - Quem retiver, ocultar, danificar ou destruir documentos de identificação ou de viagem de pessoa vítima de crime previsto nos n.ºs 1 e 2 é punido com pena de prisão até três anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.”.
Já a redação vigente na data da prática do facto, no que respeita à vítima D…7, prevê o seguinte:
1 - Quem oferecer, entregar, recrutar, aliciar, aceitar, transportar, alojar ou acolher pessoa para fins de exploração, incluindo a exploração sexual, a exploração do trabalho, a mendicidade, a escravidão, a extração de órgãos ou a exploração de outras atividades criminosas:
a) Por meio de violência, rapto ou ameaça grave;
b) Através de ardil ou manobra fraudulenta;
c) Com abuso de autoridade resultante de uma relação de dependência hierárquica, económica, de trabalho ou familiar;
d) Aproveitando-se de incapacidade psíquica ou de situação de especial vulnerabilidade da vítima; ou
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7 Redação introduzida pela Lei n.º 60/2013 de 23 de agosto.
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Os n.ºs 4 e 8 são novos. Os n.ºs 5, 6 e 7 correspondem aos anteriores n.ºs 4, 5 e 6, respetivamente.
e) Mediante a obtenção do consentimento da pessoa que tem o controlo sobre a vítima;
é punido com pena de prisão de três a dez anos.
2 – A mesma pena é aplicada a quem, por qualquer meio, recrutar, aliciar, transportar, proceder ao alojamento ou acolhimento de menor, ou o entregar, oferecer ou aceitar, para fins de exploração, incluindo a exploração sexual, a exploração do trabalho, a mendicidade, a escravidão, a extração de órgãos, a adoção ou a exploração de outras atividades criminosas.
3 - No caso previsto no número anterior, se o agente utilizar qualquer dos meios previstos nas alíneas do n.º 1 ou actuar profissionalmente ou com intenção lucrativa, é punido com pena de prisão de três a doze anos.
(…)
7 - Quem retiver, ocultar, danificar ou destruir documentos de identificação ou de viagem de pessoa vítima de crime previsto nos n.ºs 1 e 2 é punido com pena de prisão até três anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
8 - O consentimento da vítima dos crimes previstos nos números anteriores não exclui em caso algum a ilicitude do facto.”
O combate de forma integrada ao flagelo do tráfico de seres humanos, enquanto forma de escravatura moderna, quer na referenciação/sinalização, proteção e assistência às vítimas - pessoas especialmente vulneráveis - quer no sancionamento dos traficantes deve ser prioridade de um Estado de Direito democrático, como o nosso. É nesse sentido que vai a nossa legislação mais recente, mormente a Lei n.º 60/2013, de 23 de agosto, que procedeu à 30.ª alteração ao Código Penal, transpondo para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 2011/36/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de abril, relativa à prevenção e luta contra o tráfico de seres humanos e à proteção das vítimas, e que substitui a Decisão Quadro 2002/629/JAI, do Conselho, e na qual se afasta do artigo 160.º do Código Penal a relevância do consentimento da vítima, e também o III Plano Nacional de Prevenção e Combate ao Tráfico de Seres Humanos 2014-2017 (III PNPCTSH), aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 101/2013, de 31 de dezembro, que, como se assinala no seu preâmbulo, "enquadra-se nos compromissos assumidos por Portugal nas várias instâncias internacionais, concretamente no âmbito da Organização das Nações Unidas, do Conselho da Europa, da União Europeia e da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. A este propósito, importa sublinhar que o III PNPCTSH pretende incorporar as recomendações dirigidas ao Estado português no âmbito do relatório sobre a implementação da Convenção do Conselho da Europa relativa à Luta contra o Tráfico de Seres Humanos, aprovadas em 2013 pelo Comité das Partes. O III PNPCTSH tem designadamente em vista o reforço dos mecanismos de referenciação e de proteção das vítimas, o aprofundamento da articulação e cooperação entre as entidades públicas e as organizações da sociedade civil envolvidas e a adaptação da resposta nacional aos novos desafios, concretamente às novas formas de tráfico e de recrutamento."
Com a Revisão Penal de 2007, o crime de tráfico de pessoas deixou de estar integrado no capítulo dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual e passou a constar do capítulo IV, «Dos crimes contra a liberdade pessoal», constituindo hoje, um crime de quase escravidão.
PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE sugere que o bem jurídico seja “a liberdade de decisão e ação de outra pessoa”8, uma vez que o tipo legal não engloba apenas a exploração sexual, mas sim todos os tipos de exploração.
Segundo TAIPA DE CARVALHO, o bem jurídico protegido no crime de tráfico de pessoas é não só a liberdade da pessoa humana, em razão da sua localização sistemática, mas dada a “instrumentalização ou reificação do corpo da vítima”9, o autor defende ser evidente a tutela da dignidade humana.
Com o mesmo entendimento, destacam-se MIGUEZ GARCIA e CASTELA RIO, sustentando que, não sendo a dignidade humana um bem jurídico per si, aproxima-se da proteção conferida pelo tipo legal, dada a necessidade de “aproximação às novas e
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8 ALBUQUERQUE, P.P., Comentário…, ob. cit., p. 629.
9 CARVALHO, A. T., Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2ª Edição, Coimbra Editora, 2012, p. 678.
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refinadas situações de escravidão ou servidão, e por essa via, aos crimes contra a liberdade pessoal, liberdade de ação e saúde e integridade corporal da vítima”10.
O próprio conceito de tráfico de pessoas evoca este sentido de mercantilização dessas pessoas, reduzidas a objeto, quando lhes é inerente uma dignidade.
Podemos dizer que é uma «qualificada» violação dessa liberdade pessoal que está em causa. E «qualificada» porque afecta de modo particular a dignidade de pessoa humana, reduzida a objecto ou instrumento»11
O bem jurídico protegido não se reduz à liberdade pessoal, de decisão e acção de outra pessoa, mas à dignidade, como pessoa humana, da vitima.
O crime de tráfico de pessoas apresenta-se como um “um crime de intenção baseado em exemplos-padrão e, designadamente, de tráfico para a exploração sexual, a exploração de trabalho, a mendicidade, a escravidão, a extração de órgãos ou a exploração de outras atividades criminosas”12, não estando a sua aplicação adstrita às formas descritas no tipo legal, servindo essas apenas como exemplos de aplicação.
Os fins de exploração, incluindo, a exploração sexual, a exploração do trabalho, a mendicidade, a escravidão, a extração de órgãos ou exploração de outras atividades criminosas devem ser alcançados através de um dos meios tipificados, nas diversas alíneas do nº 1, do artigo 160º, relevando para a decisão, a violência, o rapto ou ameaça grave; o meio ardil ou manobra fraudulenta e o aproveitamento de incapacidade psíquica ou de situação de especial vulnerabilidade da vítima.
A circunstância «especial vulnerabilidade da vítima» (artigo 160º, nº 1, al. d), do Código Penal) não pode deixar de ser interpretada no sentido de se estender a todas as situações em que a pessoa visada não tenha outra escolha real nem aceitável senão a de submeter-se ao abuso, conformando-se a ideia de aceitabilidade a um critério de razoabilidade, e ao humanamente aceitável, designadamente em casos de emigração
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10 RIO, J.M.C; GARCIA, M. M., Código Penal – Parte Geral e Especial – Com Notas e Comentários, Edições Almedina, Coimbra, 2014, p. 665.
11 Pedro Vaz Pato, O Crime de Tráfico de Pessoas no Código Penal Revisto. Análise de Algumas Questões, in Revista do CEJ, nº 8 – Especial, 1º semestre de 2008, pág. 182
12 ALBUQUERQUE, P.P., Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3ª Edição, Universidade Católica Editora, Lisboa, novembro de 2015, p. 628.
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ilegal, podendo a situação de vulnerabilidade verificar-se, menos na aceitação de determinado trabalho, antes durante a execução das tarefas consignadas, designadamente porque decorre da permanência precária ou ilegal num país estrangeiro e culturalmente estranho.
Trata-se de um crime de execução vinculada quanto aos meios utilizados.
«O conceito de “exploração” comum, na definição legal, às várias formas de tráfico para (…) “exploração de trabalho” tem este sentido de reificação da pessoa, da sua degradação a meio ou a instrumento para fins de satisfação (…) económica.»13
A exploração de trabalho de uma pessoa, (única que ao caso interessa), para efeitos de tráfico corresponde à coisificação de um ser humano por outro, que instrumentaliza o corpo e as faculdades intelectuais da vítima para a prestação de qualquer tipo de trabalho (físico ou intelectual), com o objetivo de obter proventos económicos.14
Quanto aos meios, diga-se que a violência a que alude a alínea a), tanto pode ser física (recurso à agressão e força física), como psíquica (recurso a meios que dominam a vontade da vitima, colocando-a por exemplo em situação de não poder reagir ao domínio do agressor).
A ameaça grave, sendo uma ameaça deverá conter a promessa de um mal futuro, e sendo grave deverá traduzir um mal importante.
O rapto tem o sentido dado pelo artigo 161º, do Código Penal: a transferência da vítima de um lugar para outro, mediante violência, ameaça ou astúcia.
«O “ardil ou manobra fraudulenta” é a acção pela qual o agente engana outrem sobre o significado, o propósito e as consequências da sua acção, não sendo suficiente o mero aproveitamento passivo de engano alheio, não provocado pelo agente».15
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13 Pedro Vaz Pato, O Crime de Tráfico de Pessoas no Código Penal Revisto. Análise de Algumas Questões, in Revista do CEJ, nº 8 – Especial, 1º semestre de 2008, pág. 182.
14 Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código Penal, pág. 431.
15 Cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, págs. 493 e 494 e Acórdão da Relação de Évora de 14 de maio de 2014, in www.dgsi.pt.
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O aproveitamento da especial vulnerabilidade da vitima é, no entender, de Taipa de Carvalho, «a desumanidade crassa das condições de exploração (…) laboral a que o agente pretende sujeitar a vítima, ou sabe às quais esta será sujeita por outrem.» 16
Pode considerar-se que estará nesta situação quem não tem uma alternativa real e aceitável senão submeter-se ao que lhe é proposto.17, conformando-se a ideia de aceitabilidade a um critério de razoabilidade, e ao humanamente aceitável, designadamente em casos de emigração ilegal, podendo a situação de vulnerabilidade verificar-se, menos na aceitação de determinado trabalho, antes durante a execução das tarefas consignadas, «designadamente porque decorre da permanência precária ou ilegal num país estrangeiro e culturalmente estranho.» 18
Estão nesta situação, pessoas fragilizadas por questões de exclusão social e de fragilidades económicas, alojadas pelo agente com o intuito de as ter a trabalhar para si, a quem não lhe é possível, razoavelmente, reagir, de outra forma, que não seja a de se submeter à vontade do agente.
No caso concreto, podemos dizer que estamos numa situação de debt bondage. Esta é, na verdade, uma situação característica do tráfico de pessoas. Nela, a prestação de trabalho, na sua totalidade, serve de forma de pagamento de uma dívida, como se a pessoa servisse de “garantia” desse pagamento, sendo que normalmente o valor dessa dívida é sobrevalorizado. A situação dos autos, equivale, na prática, ao investimento que o arguido fez nas vítimas, esperando um retorno que vai além das quantias que lhe pagava (entre €5,00 e €25,00 semanais).
Trata-se de uma situação que vai além do habitual numa normal relação de trabalho dependente. É nítida, aqui, a acentuada coisificação da pessoa: os ofendidos são objeto de um “investimento” rentável para o arguido. O valor que o arguido teria de suportar com o pagamento de uma retribuição a dois outros trabalhadores, seria
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16 Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte especial, tomo I, 2012, pág. 668.
17 Cf. Prof. Prof. Américo Taipa de Carvalho, obra citada, pág. 682.
18 Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 20 de janeiro de 2015.
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seguramente superior ao que suportou com estes dois ofendidos, a quem pagou, apenas, as referidas quantias semanais, entre €5,00 e €25,00.
A exploração do trabalho também decorre do facto de os ofendidos terem estado a trabalhar para o arguido sem qualquer ordenado durante vários anos (cerca de 14 anos no que respeita ao ofendido C… e cerca de 20 anos, no que respeita ao ofendido D…), com o que isso implica de dependência económica e mesmo psicológica.
Dizer que as vítimas deram o seu consentimento, que tal se deveu à necessidade de poder manter as condições de vida que o arguido lhes proporcionava (alojamento, alimentação, calçado e vestuário) ou dizer que não estavam privadas da liberdade de movimentos, é, neste contexto, pouco relevante. Com efeito, sem quaisquer recursos económicos e sem suporte familiar, nada mais restava aos ofendidos senão sujeitar-se à execução daquele trabalho, nos termos que lhes foi proposto (com cama, mesa e roupa lavada assegurada, mas sem qualquer ordenado).
Aliás, a expressão inglesa usada para designar esta prática por si só é significativa: bondage - servidão, sujeição, dependência.
É verdade que há situações mais graves de tráfico de pessoas, designadamente de sujeição das vítimas a viver em condições desumanas e degradantes, a serem sujeitas a violência física, a coação, ou, mesmo, a privação absoluta de movimentos, o que aqui não se verifica. Mas essas diferenças de gravidade são apenas de grau, a refletir-se na medida da pena, sem que se deva considerar que só os casos de mais extrema gravidade configuram a prática de crimes de tráfico de pessoas.19
Ora, resultou provado que o arguido, aproveitando-se das fragilidades decorrentes da dependência alcoólica e da sua especial vulnerabilidade, proveniente dos atrasos mentais de que padeciam, alojou os ofendidos em sua casa, e, ao longo de cerca de 14 anos, no que respeita ao ofendido C…, e de cerca de 20 anos, no que respeita ao
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19 Acórdão do TRP de 08-07-2015, Processo n.º 1480/07.9PCSNT.G1.P1, "Inoxarões" www.dgsi.pt
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ofendido D…, explorou-os laboralmente, aproveitando-se do trabalho físico que estes lhe prestavam, sem cuidar de lhes pagar qualquer ordenado.
Estamos perante situações concretas que contendem com o núcleo essencial da dignidade do sujeito trabalhador, o que nos remete para a figura de “exploração de trabalho”.
Estamos perante a forma mais radical de exploração de trabalho, retirando aos trabalhadores o resultado do seu trabalho.
A situação descrita e dada como provada nos presentes autos constitui um exemplo paradigmático do aliciamento e recrutamento de duas pessoas que integram o estrato social mais vulnerável da nossa sociedade, para quem a proposta de trabalho que lhe foi apresentada pelo arguido constituiu uma opção de vida, perante a qual os mesmos não tinham uma outra alternativa senão aceitar.
Aliás, não só a sua situação de desamparo social e familiar a isso os condicionava, como a proposta do arguido constituía para os ofendidos uma pressão irresistível que só poderia culminar com a aceitação da proposta oferecida.
As vítimas foram escolhidas numa das camadas mais frágeis da sociedade, porque totalmente abandonadas à sua sorte, sem proteção de ninguém, desemparadas, com problemas de adição (álcool) e alguma debilidade mental, sendo, por isso, especialmente vulneráveis.
Resultou, ainda, provado, que o arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente, sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei penal.
Conclui-se, assim, ante a factualidade provada, que a atuação do arguido configura, a prática de dois crimes de tráfico de pessoas, previstos e punidos, pelo artigo 160.º, n.º 1, alínea d) do Código Penal, e ainda, quanto ao ofendido D…, pelo seu n.º 8, pelo que terá de ser condenado pelos mesmos [e não, também, como vem acusado, pela alínea c) do n.º1 (pois nenhum facto resultou provado a esse respeito), nem pelo n.º 3 (pois este remete para o n.º 2, que se reporta a vítima menor, o que não é o caso) e não, também, pelo n.º 7 - anterior n.º 6 -, pois não se provou que o arguido tenha retido, ocultado, danificado ou destruído documentos de identificação ou de viagem das vítimas].”
Ora não podemos deixar de concordar com o exposto, pois o arguido aproveitou, para colocar ao seu serviço, fazendo trabalhos que contratava, os ofendidos, aproveitando a situação económica e social dos mesmos, a sua dependência alcoólica e a deterioraçºao das suas capacidades psíquicas (nºs 1 a 3 e 6 dos factos) e a ausência de um projecto de vida consentâneo com uma vivência normal e ainda a ausência de suportes familiares dos mesmos (não se interessarem por eles ou não terem familiares- nºs 92 e 93 dos factos provados). Não há aqui nenhum intuito altruísta, de ajudar os ofendidos (que nunca sequer é alegado) mas de instrumentalização dos mesmos, no aproveitamento do trabalho não pago e apenas visando conservar a força de trabalho dos mesmos, alimentando-os, alojando-os e vestindo-os. Aliás, essa instrumentalização vai mais além do que do mero trabalho, a chegar ao ponto de fiscalmente o ofendido revestir a qualidade de patrão, que não era, assim evitando o arguido ser perseguido criminal ou civilmente e imputando juridicamente os ilícitos ao ofendido C…, em nome de quem passava a ser exercida a actividade, sem que este tenha noção das implicações do facto. Assim o querer dos ofendidos, por não terem outra melhor opção de vida da que lhe é dada pelo arguido, não invalida que ocorra a exploração do seu trabalho que praticavam para o arguido (e este contratava com terceiros e aqueles executavam), o que fizeram durante 14 e 20 anos.
Expressa o acórdão recorrido embora em relação ao crime de burla “O conceito da especial vulnerabilidade contém no seu significado a ideia da indefensabilidade, da menor capacidade da vítima em se defender da ofensa aos seus direitos, seja pelas suas circunstâncias pessoais, seja pelas circunstâncias em que se encontra, que a exponham de forma acrescida à situação do perigo protegido na norma incriminadora.
É esse o significado de vulnerável; aquilo que por ser particularmente frágil se pode vulnerar com mais facilidade, a que se pode causar dano com menor esforço”, pelo que tal situação se verifica, e desse modo se mostram preenchidos os elementos típicos objectivos e subjectivos do ilícito em causa.

- indemnização e reparação da vitima
Questiona o arguido a indemnização arbitrada, com o fundamento de inexistir crime e não aceita o modo de calculo, e o mesmo ocorre quanto ao valor da reparação arbitrada ao ofendido D….
Escreve-se no acórdão recorrido:
Como princípio geral da responsabilidade civil por factos ilícitos, dispõe o artigo 483.º, n.º 1 do C.C. que "aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação".
Decorre desta disposição legal que a responsabilidade civil pressupõe:
- um facto voluntário; a ilicitude do mesmo; o nexo de imputação do facto ao agente; o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Os mencionados pressupostos legais encontram-se verificados no caso em apreço, não havendo necessidade de tecer quaisquer outras considerações, face ao já referido aquando da análise dos crimes em questão.
Quem estiver obrigado a indemnizar deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que o obriga à reparação [artigo 562.º do Código Civil], sendo que a obrigação só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão [artigo 563.º do Código Civil].
Trata-se de um princípio geral de reposição natural, que só será afastado quando a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor, caso em que tal indemnização será fixada em dinheiro [artigo 566.º, n.º 1 do Código Civil].
Em regra, a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a que teria nessa data se não existissem danos [teoria da diferença consagrada no artigo 566.º, n.º 2 do Código Civil].
Os danos podem ser patrimoniais ou não patrimoniais, compreendendo aqueles, não só o prejuízo causado como os benefícios que o lesado deixou de obter na sequência da lesão, ou seja, os danos emergentes e lucros cessantes.
Por fim, cumpre trazer à colação, atento o fundamento invocado pelo demandante para o ressarcimento de parte dos danos patrimoniais sofridos, que a remuneração mínima garantia em cada ano de trabalho situado no período temporal em que os ofendidos trabalharam para o arguido corresponde, respetivamente, aos montantes mensais de €334,19 (ano 2001), €348,00 (ano 2002), € 356,60 (ano 2003), € 365,60 (ano 2004), €374,70 (ano 2005), € 385,90 (ano 2006), € 403,00 (ano 2007), € 426,00 (ano 2008), € 450,00 (ano 2009), € 475,00 (ano 2010), € 485,00 (anos 2011 a 2013), €505 (ano 2014 a 2015); €530,00 (ano 2016); €557 (ano 2017); €580,00 (ano 2018); €600,00 (ano 2019) e €635 (ano 2020).21
Analisemos, então, a situação dos autos, à luz dos considerandos supra expostos:
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21 Decreto-Lei n.º 49/99 de 16 de fevereiro; Decreto-Lei n.º 313/2000 de 02 de dezembro; Decreto-Lei n.º 325/2001 de 17 de dezembro; Decreto-Lei n.º 320-C/2002 de 30 de dezembro; Decreto-Lei n.º19/2004 de 20 de janeiro; Decreto-Lei n.º 242/2004 de 31 de dezembro; Decreto-Lei n.º238/2005 de 30 de dezembro; Decreto-Lei n.º 2/2007 de 03 de janeiro; Decreto-Lei n.º 397/2007 de 31 de dezembro; Decreto-Lei n.º 246/2008 de 18 de dezembro; Decreto-Lei n.º 5/2010 de 15 de janeiro; Decreto-Lei n.º143/2010 de 31 de dezembro; 144/2014 de 30 de setembro; Decreto-Lei n.º254-A/2015 de 31 de dezembro; Decreto-Lei n.º86-B/2016 de 29 de dezembro; Decreto-Lei n.º156/2017 de 28 de dezembro; Decreto-Lei n.º 117/2018 de 27 de dezembro; 167/2019 de 21 de novembro; Decreto-Lei n.º 109-A/2020 de 31 de dezembro.
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Quanto aos danos patrimoniais:
A título de danos patrimoniais pretende o demandante C… ser indemnizado no valor global de €85.838,50, correspondente ao ordenado mínimo, subsídio de alimentação, subsídio de Natal e subsídio de férias que deixou de auferir durante os anos em que trabalhou para o arguido, por se tratar de vantagem que lhe foi suprimida, acrescido da quantia correspondente ao montante em que ficou em dívida à AT e à SS.
Ora, a este respeito, resulta da factualidade provada que o demandante C… trabalhou para o arguido/demandado de 2000 até ao verão de 2013, após ter, inicialmente, trabalhado para si de forma esporádica.
Foi coletado pelo arguido junto da SS, quer como trabalhador do arguido, quer como trabalhador independente, mas, na realidade, não auferiu qualquer ordenado pelo trabalho prestado, além das referidas quantias semanais, entre €5,00 e €25,00.
Além disso, o arguido forneceu-lhe alojamento e suportou todas as suas despesas, com alimentação, roupa e calçado.
O valor respeitante ao subsídio de alimentação nunca seria devido, pois era o próprio arguido que suportava os custos com a alimentação dos ofendidos.
Por outro lado, o tribunal desconhece o valor das referidas despesas, não tendo, consequentemente, resultado provado que o prejuízo decorrente da conduta do arguido para o ofendido C… tenha sido o correspondente ao peticionado.
Porém, tal não impede o tribunal de fixar uma indemnização a pagar, a esse título, pelo arguido ao lesado, atento o princípio da equidade. Com efeito, faltando pontos de sustentação fáctica que permitam uma fixação exata, em sede indemnizatória, do volume de empobrecimento patrimonial do lesado, deve o tribunal julgar equitativamente dentro dos limites que tiver por provados (artigo 566.º, n.º 3, do Código Civil).
Assim sendo, atenta a referida factualidade provada e tendo-se como base de trabalho o supra referido ordenado mínimo nacional e o disposto nos artigos 263.º e 264.º do Código de Trabalho, de onde decorre que, além da retribuição mensal, os subsídios de férias e de Natal constituem direitos do trabalhador, pelo menos o valor correspondente a esses dois subsídios (de férias e de Natal e por referência ao referido salário mínimo nacional, durante o período de tempo em que o ofendido C… trabalhou para o arguido), sempre iriam além dos doze meses de cada ano de trabalho, em que o arguido suportou todas as despesas do ofendido, pelo que pelo menos esse valor constitui um prejuízo para aquele.
Assim sendo, atentos todos os considerandos supra expostos, e atendendo às regras da equidade, com vista à reparação dos danos patrimoniais, entende-se ser adequado fixar, quanto ao demandante C…, uma indemnizado no valor de €11.438,00 (por referência ao valor devido a título de subsídios de férias e de natal durante o período em que o ofendido trabalhou para o arguido), acrescido do valor correspondente às dívidas que da sua atuação decorreu para o ofendido, para com a Autoridade Tributária no valor de €20.663,24 (já em execução fiscal) e para com a SS no valor de €6.746,65, sendo que quanto a este último valor, o montante só será devido pelo arguido se e quando o mesmo vier a ser exigível ao demandante, ao abrigo do artigo 610.º, n.º1, do Código de Processo Civil, ex vi, artigo 4.º do Código de Processo Penal.
Quanto aos danos não patrimoniais:
Quanto aos danos não patrimoniais rege o artigo 496.º, n.º 1 do Código Civil, de onde resulta que são indemnizáveis os que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito.
A gravidade do dano deve medir-se por um padrão objetivo (devendo, porém, considerar-se as circunstâncias de cada caso) e não à luz de fatores subjetivos.
Esta indemnização, além de sancionar o lesante pelos factos que praticou e que causaram danos a terceiro, visa permitir atenuar, minorar e de algum modo compensar o lesado pelos danos que sofreu, permitindo-lhe a satisfação de várias necessidades de teor monetário.
E, porque neste tipo de danos é evidente a impossibilidade de reparação natural dos mesmos, no cálculo da respetiva indemnização deve recorrer-se à equidade, tendo em conta os danos causados, o grau de culpa, a situação económica do lesante e do lesado e as circunstâncias do caso, conforme decorre do artigo 496.º, n.º 3, do Código Civil.
Importa ainda atender, por razões de justiça relativa, aos padrões geralmente adotados na jurisprudência, importando ter sempre em atenção as circunstâncias de cada caso.
Quanto à fixação da indemnização por danos morais não existem, portanto, critérios rígidos, pelo que nos teremos de socorrer das regras da equidade, uma vez que é impossível proceder a uma reparação natural do dano, que não tem qualquer expressão monetária por se estar em planos valorativos diferentes.
Ora, é verdade que não resultaram provados os concretos danos invocados pelo demandante a esse título, mas não é menos verdade que a conduta do arguido por si só viola a dignidade de qualquer pessoa.
Com efeito, a conduta do arguido, ao alojar as vítimas com o propósito, concretizado, de aproveitando-se da sua dependência económica e da sua especial vulnerabilidade proveniente dos atrasos mentais de que padecem, as explorar laboralmente, através do seu trabalho físico, sem a correspondente contrapartida/salário, o que fez ao longo de cerca de 14 anos, no que respeita ao ofendido C… e de cerca de 20 anos, no que respeita ao ofendido D…, não pode deixar de se considerar atentatória da dignidade das vítimas que lhes é devida, enquanto seres humanos e trabalhadores.
Assim sendo, e atendendo, ainda, ao contexto em causa e às condições socioeconómicas das vítimas e do arguido, considera-se ajustado fixar a este título, uma indemnização a pagar a cada uma das vítimas na quantia de €3.500,00 [três mil e quinhentos euros]. É certo que o período em que o ofendido D… esteve a ser explorado laboralmente pelo arguido é superior ao que o ofendido C… esteve sujeito, o que, à priori, demandaria uma indemnização superior, mas não se pode esquecer que o ofendido C… foi expulso da casa do arguido e o ofendido D… recusasse a abandonar a vivência que tem junto dele, pelo que se entende ser de fixar em igual montante a indemnização devida a cada um dos ofendidos a título de danos não patrimoniais.
Relativamente ao pedido de reparação da vítima D… na sua vertente patrimonial, e atentos os considerandos supra expostos a respeito do demandante C…, que aqui mantêm pertinência, bem como a factualidade provada quanto ao ofendido D… (trabalhou para o arguido pelo menos desde maio de 2001 até abril de 2020; foi coletado pelo arguido junto da SS, quer como trabalhador do arguido, quer como trabalhador do ofendido C… quer como trabalhador independente, mas, na realidade, não auferiu qualquer ordenado pelo trabalho prestado, além das referidas quantias semanais, entre €5,00 e €25,00; tendo, além disso, o arguido lhe fornecido alojamento e suportou todas as suas despesas, com alimentação, roupa e calçado), entende-se ser adequado fixar a reparação devida ao ofendido D… na quantia de €18.062,00 (por referência ao valor devido a título de subsídios de férias e de natal durante o período em que o ofendido trabalhou para o arguido).
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Com exceção da referida quantia de €6.746,55 (dívida do ofendido C… à SS), as restantes quantias serão acrescidas dos juros de mora, vencidos e vincendos, contados desde a data da notificação do arguido para contestar o pedido de indemnização civil (uma vez que se teve em atenção aquele momento para fixar a indemnização e, como tal, encontra-se atualizada à data da notificação a que alude o artigo 78.º do Código de Processo Penal), até integral pagamento da quantia em dívida, à taxa legal que em cada momento vigorar para os juros civis [artigo 805.º, n.º 3, do Código Civil”
E do exposto resulta que se algo há a criticar à decisão recorrida, não é a excessividade do valor indemnizatório dos danos, quer de natureza patrimonial quer não patrimonial sendo que em ambos os casos foram observadas as regras legais na sua fixação, com recurso, e bem, in casu, à equidade, mas apenas o facto de só ter considerado o valor dos subsídios de férias e Natal, durante todo o tempo em que trabalharam, não contabilizando nenhum outro valor (nomeadamente a poupança que o trabalhador faria do seu salário para suprir outras necessidades, normalmente cifradas no valor máximo de 1/3 do seu salário), considerando que tudo o gasto pelo arguido com alojamento, alimentação e vestuário e o dinheiro que ao fim de semana lhes entregava, equivalia a todo o valor patrimonial que angariavam com o seu trabalho. E sendo assim (não entrando com qualquer valor de poupança) não pode ser criticado o montante indemnizatório atribuído.
E obviamente ele é devido, pois está demonstrado o ilícito de que foi acusado.
Improcede assim o recurso.
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Pelo exposto, o Tribunal da Relação do Porto, decide:
Julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido e em consequência mantém o acórdão recorrido.
Condena o arguido no pagamento da taxa de justiça de 4 Uc e nas demais custas.
Notifique.
Dn
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Porto, 28/10/2021
José Carreto
Paula Guerreiro