Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3744/06.0TBVCD-D.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FILIPE CAROÇO
Descritores: PARTILHA DE BENS COMUNS
INVENTÁRIO
REMESSA PARA OS MEIOS COMUNS
Nº do Documento: RP202009083744/06.0TBVCD-D.P1
Data do Acordão: 09/08/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A prossecução da regra de que a partilha de bens comuns deve ser efetuada de forma justa e equitativa passa também pela observação da regra de que a resolução de todas as questões tenha lugar no processo de inventário devendo a partilha realizar-se de uma só vez.
II - Dali decorre que os interessados só devem ser remetidos para os meios comuns quando a questão em causa exija larga e complexa indagação factual, de tal modo que a sua solução se mostre inadequada ou dificilmente apreciável no processo de inventário, especialmente por os interessados não poderem aí exercer cabalmente a defesa dos seus direitos.
III - Estando reconhecido que a Requerida, desde que lhe foi entregue a casa de morada da família (em data determinada), tem vindo a pagar, sem a participação do Requerente, as prestações de cinco empréstimos que o casal contraiu na pendência do casamento, não se justifica remeter os ex-cônjuges (interessados no inventário) para os meios comuns para determinar o valor das atualizações daqueles pagamentos, por serem desde logo elementos que, em regra, são facilmente obtidos, com rigor e credibilidade, junto da entidade financeira.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n° 3744/06.0TBVCD-D.P1 – 3ª Secção (apelação)
Comarca do Porto – Juízo de Família e Menores de Vila do Conde – J 1

Relator: Filipe Caroço
Adj. Desemb. Judite Pires
Adj. Desemb. Aristides Rodrigues de Almeida

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
No inventário para partilha de bens em casos especiais, requerido na sequência de divórcio decretado entre os aqui interessados B… e C…, ali melhor identificados, onde este último exerce as funções de cabeça de casal, decorreu a sua tramitação com várias vicissitudes, de que destacamos o que releva para a decisão do recurso.
Na sequência de reclamação da relação de bens apresentada pelo cabeça de casal, no dia 23.10.2013 ficou decidido no incidente, além do mais:
«1. Os interessados C… e B… casaram, entre si, no dia 15 de Junho de 1996, sem convenção antenupcial.
2. Por sentença proferida, em 25 de Janeiro de 2008, nos autos de divórcio litigioso a que o presente inventário para partilha de bens se mostra apenso, foi decretado o divórcio entre os ora interessados, sentença essa que veio a ser confirmada pelo acórdão do TRP de 18.09.2008, já transitado.
3. Por decisão proferida nos autos de divórcio, a fls. 83, a casa de morada de família, sita na …, frente à igreja …, foi atribuída provisoriamente à ora interessada B….
4. Transitada em julgado essa decisão, por decisão proferida nos autos de divórcio, a fls. 119-120, de 28.03.2007, foi ordenado ao aí Réu ora interessado C… foi-lhe ordenado que abandonasse a casa de morada de família, como lhe havia sido já imposto por decisão de fls. 77, no prazo de 10 dias.
5. Nos presentes autos de inventário foi nomeado cabeça de casal o interessado C…, o qual apresentou a relação de bens de fls. 31 a 39 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido.
6. Para além dos bens já relacionados fazem parte do património do extinto casal referente aos ora interessados os seguintes bens, que se encontram na posse do cabeça-de-casal:
a) uma torradeira eléctrica, de cozinha;
b) uma máquina de fazer café, de cozinha;
c) uma máquina de fazer sumos, de cozinha;
d) uma salva de prata, oferecida pelos padrinhos da Reclamante;
e) 2 jarros de adorno; e
f) comando do colchão da cama.
7. Os ora interessados, na vigência do casamento, contraíram 5 empréstimos junto da D…, identificados a fls. 52, cuja identificação aqui se dá por reproduzida.
8. Desde Abril de 2007, as prestações dos empréstimos bancários referidos em 7. têm sido suportados apenas pela Requerida:
9. A qual tem suportado ainda as prestações do seguro de vida dos ex-cônjuges e as prestações do seguro da casa;
10. E o IMI da benfeitoria relacionada sob a verba n.º 70.
11. A Requerida mandou reparar o portão da entrada da casa relacionada sob a verba n.º 70, uma vez que este tinha as rodas partidas;
12. Mandou fazer 4 chaminés em ferro e grelhas galvanizado, uma vez que as existentes estavam podres e permitiam infiltração no prédio;
13. Mandou afinar a caixilharia das janelas da cozinha e sala, que permitiam a entrada de água na casa;
14. Mandou colocar um motor eléctrico no portão da entrada da casa, uma vez que não conseguia abrir sozinha tal portão;
15. Bem como mandou fazer a despensa na cozinha, pois aí apenas existia um buraco aberto para a sua construção, e aquela não tinha onde arrumar e guardar os géneros alimentícios.
16. Tais obras ascenderam ao montante global de 4.220,34€.
Vejamos agora em concreto cada um dos pontos da reclamação apresentada pela interessada B….
(…)

Já no que concerne ao passivo do património a partilhar, a sua aprovação ou rejeição far-se-á, em regra, em conferência de interessados, conforme o estipula expressamente o n.º 2 do art.º 1331.º do CPC, nos termos dos artigos 1354.º a 1356.º do CPC.
*
Assim,
(…)
D) No que concerne ao passivo bancário, embora como já se referiu a sede própria para a sua apreciação, e concretização, seja apenas na conferência de interessados, considerando que o cabeça de casal, na resposta à reclamação admite os 5 empréstimos junto da D…, deverá, em conformidade, fazê-los constar da relação de bens.
O passivo deverá ser todo ele, relacionado em separado do passivo, com todas as indicações constantes do art. 1345º, n.º 2 do CPC, sendo que, no que respeita ao respectivo concreto montante será o mesmo apurado na conferência de interessados.
E) Relativamente às prestações dos empréstimos bancários que têm sido suportados desde Abril de 2007, apenas pela Requerida, assim como tem suportado as prestações do seguro de vida dos ex-cônjuges e as prestações do seguro da casa, num total de € 37.781,94; e o IMI da benfeitoria relacionada sob a verba n.º 70, no montante de € 174,09.
O cabeça de casal na sua resposta á reclamação não impugna que tem sido a Requerida a suportar todos estes encargos, sendo que as testemunhas inquiridas confirmaram que é esta quem tem liquidado todos essas dívidas do casal, socorrendo-se, muitas vezes, do auxílio dos seus pais.
Ora, tratando-se todos estes encargos de dívidas de ambos os cônjuges, afigura-se-nos que os mesmos hão-de ser relacionados como um crédito da Requerida sobre o acervo patrimonial a partilhar (e não sobre o próprio cabeça de casal).
Estamos, portanto, perante um passivo do património comum dos cônjuges, o que significa que a sua aprovação e quantificação deverá ser realizada na conferência de interessados. De resto, atenta a natureza da dívida e da periodicidade das prestações, faz todo o sentido que o seu valor seja apenas fixado na conferência de interessados, num período temporal mais próximo da data da efectiva partilha.
Não obstante, considerando que nos presentes autos há apenas 2 interessados, o cabeça de casal e a Reclamante, nada impede que se dê, desde já como verificado esse passivo do acervo patrimonial a partilhar, atenta desde logo a posição daquele (ao não impugnar que os pagamentos tenham vindo a ser feitos pela Requerida).
De todo o modo a concreta determinação desse passivo será apenas efectuada, como se disse, na conferência de interessados, relegando-se, portanto, para essa fase processual a sua fixação.
Entretanto, com vista a essa determinação ordeno que se solicite à D… que, em 10 dias, informe os presentes autos, quais os valores pagos desde Abril de 2007, para liquidação das prestações dos empréstimos bancários identificados a fls. 52, e respectivos prémios de seguro associados.[1]
F) Quanto à falta de relacionação da indemnização pelo valor das benfeitorias realizadas pela cabeça de casal na casa que constituía a morada de família e que está relacionada como verba n.º 70, no montante global de € 4.220,34.
Independentemente do que ficou expresso quanto à sede própria para a determinação do passivo, a verdade é que dos depoimentos conjugados das testemunhas E…, F…, e em especial de G…, resultou patente não só a realização das obras pela Requerida como também a urgência e a necessidade desses trabalhos.
(…)
Tais obras ascenderam, pelo que revelam os documentos juntos, no montante global de 4.220,34€.
(…)
Tratando-se de direito a indemnização deve o respectivo valor ser relacionado como passivo da herança, como dívida da herança ao possuidor benfeitorizante.
Isto posto, afigura-se-nos transparente que as obras realizadas pela Requerida se devem qualificar como necessárias, com excepção da respeitante à colocação de um motor eléctrico no portão da entrada da casa. Em relação a esta concreta obra, considerando que a mesma sempre acrescentará valor à casa, tem a mesma de se considerar útil.
(…)
H) Quanto à forma de relacionamento da benfeitoria da verba n.º 70, pugna a Requerida que a mesma deve ser relacionada como um simples crédito, de harmonia com o disposto no art. 1345º, n.º 5 do CPC.
Assiste, neste ponto, inteira razão à Reclamante, pelo que deverá o cabeça de casal corrigir a relação de bens em conformidade, relacionando a benfeitoria da verba n.º 70 como um crédito, devendo ainda fazer referência à identificação do prédio onde a mesma se mostra edificada.
I) Quanto ao imóvel bem próprio da Requerida, manifestamente, o mesmo não pode ser objecto de partilha, logo deverá ser suprimido da relação de bens, ficando-se apenas a menção referida na al. H) com vista à identificação do prédio onde foi realizada a benfeitoria relacionada.

Pelo exposto, e ao abrigo do art. 1349°, n.º 3, do Código de Processo Civil,
(…)
4º Ordeno que o cabeça de casal relacione, sob o passivo, os 5 empréstimos junto da D…, que o mesmo admite na sua resposta, devendo, organizá-lo em separado e com todas as indicações constantes do art. 1345º, n.º 2 do CPC, sendo que, no que respeita ao respectivo concreto montante será o mesmo apreciado na conferência de interessados;
5º Ordeno que o cabeça de casal relacione, sob o passivo, a indemnização do património comum do casal à Requerida pelo valor total das benfeitorias por esta realizadas na verba n.º 70, no valor de 4.220,34€;
6º Relego para a conferência de interessados a concretização do demais passivo, nomeadamente, o correspondente às prestações dos empréstimos e aos demais encargos do casal que vêm sendo assumidos apenas pela Requerida, conforme provados nos pontos 8 a 10 dos factos provados.
(…)
8º Ordeno que o cabeça de casal corrija a relação de bens, relacionando a benfeitoria da verba n.º 70 como um crédito, devendo ainda fazer referência à identificação do prédio onde a mesma se mostra edificada.
9º Ordeno a exclusão da relação de bens do imóvel bem próprio da Requerida, ficando-se apenas a menção referida na al. anterior, com vista à identificação do prédio onde foi realizada a benfeitoria relacionada.»
Em função do decidido, em 11.2.2013 o cabeça de casal juntou nova relação de bens como se segue, aqui apenas quanto ao passivo:
«(…)
VERBA PRIMEIRA
- empréstimo n.º ……….. (Empréstimo para Construção) Valor inicia Valor Actual Data Inicio Data Venc Tx Juro Obs. €77.313,67 € 54.725,05 25-05-2000 25-05-2030 1,32 S/Onus

VERBA SEGUNDA
- empréstimo n.º ……….. (Empréstimo para Construção) Valor inicia Valor Actual Data Inicio Data Venc Tx Juro Obs. €15.000,00 € 3.251,03 25-01-2005 25-01-2015 0,11 S/Onus

VERBA TERCEIRA
- empréstimo n.º ……….. (Crédito Habitação Funcionário) Valor inicia Valor Actual Data Inicio Data Venc Tx Juro Obs €61.405,67 € 27.619,02 25-07-1998 25-10-2022 0,48 C/Hipotec

VERBA QUARTA
- empréstimo n.º ……….. (Crédito Habitação Funcionário) Valor inicia Valor Actual Data Inicio Data Venc Tx Juro Obs. €36.686,00 € 25.203,36 25-03-2002 25-03-2032 0,48 C/Hipotec

VERBA QUINTA
- empréstimo n.º ……….. (Crédito Habitação Regime Geral) Valor inicia Valor Actual Data Inicio Data Venc Tx Juro Obs. €14.963,94 € 7.164,28 25-07-1998 25-07-2023 0,48 C/Hipotec
Todos os empréstimos supra descritos foram contraídos junto da D…

VERBA SEXTA
Indemnização do património comum do casal à requerida pelo valor das benfeitorias por esta realizada na verba n.º 70 no valor de € 4.220,34».

A uma peritagem singular seguiu-se outra peritagem, colegial, para a avaliação das benfeitorias, cujo laudo foi apresentado no dia 27.5.2015, tendo os Sr.s peritos prestado esclarecimentos em sessão de prova no dia 13.1.2016.
Sobre a manifestada discordância da Requerida relativamente à avaliação recaiu o despacho de 2.2.2016: «Conforme resulta da consulta dos autos, o relatório da perícia colegial para avaliação do imóvel, perícia essa realizada por três peritos, não foi unânime, tendo dois peritos apresentado um relatório e o terceiro perito apresentado relatório separado.
Após os esclarecimentos, prestados por escrito e em tribunal na alteração se verificou quanto aos valores acima referidos.
Assim e uma vez que a questão do valor a atribuir aos bens para partilha cabem à conferência de interessados, será na mesma o momento oportuno para tal decisão, caso os interessados não cheguem a acordo relativamente ao referido valor.»
Na conferência de interessados que teve lugar no dia 13.12.2016, Requerente e Requerida aprovaram o passivo reclamado pelo credor D…, com as atualizações devidas, o que foi reconhecido pelo tribunal, que também determinou a venda do imóvel que constitui a verba nº 67.
Quanto ao crédito reclamado pela interessada B…, cuja decisão consta da al. E) do despacho de fls. 272, o tribunal relegou para momento posterior a sua atualização.
Na mesma data, a Requerida atualizou o passivo do património comum conforme requerimento onde concluiu o seguinte:
«1. ao abrigo da douta decisão, transitada, de fls. 272 ao fundo e nº 6 de fls. 278 e ao abrigo do artº 1697-1, CC, vem atualizar o valor da dívida, correspondente à soma dos valores referidos no item 1º, 2º e 3º supra, no total de 114.859,87€ a que se refere o pedido nº 1 de fls 608, reproduzindo aqui o demais pedido no nº 1, o pedido no nº 2 e no nº 3, de fls. 608/609.
2. vem declarar o entendimento de que a falta de decisão sobre esta atualização não impede de momento as licitações dos interessados sobre os bens partíveis, nem a futura atualização das prestações dos empréstimos e dos seguros até à data da elaboração do Mapa de Partilha.»
A referida atualização baseou-se em documentação bancária.
Por requerimento de 27.5.2019, a Requerida apresentou pedido de compensação dos créditos entre os ex-cônjuges, no qual concluiu que pagou a quantia de € 143.649,39 da responsabilidade de ambos os interessados, pelo que, há um “crédito de compensação” da interessada B… sobre o interessado, C…, correspondente a metade daquele valor, ou seja, de 71.824,70€, que deverá ser pago pelo valor líquido da meação do interessado, C…, no património comum e, no caso de insuficiência, pelo património próprio deste.
O Requerido manifestou-se no sentido de que a “atualização do passivo por parte da requerida seja efectuada apenas 50% do valor total das prestações pagas por ela à instituição bancária, dentro do espirito subjacente à acta de 13/12/2016 porquanto o requerente teve que suportar até este momento o arrendamento de imóvel para residir.
Acrescentou: “Assim, o requerente abdicava dos valores do arrendamento e a requerida abdicava de 50% do valor pago nas prestações mensais à instituição bancária.
Assim, o requerente impugna os valores das prestações e documentos que servem de base aos valores apresentados; caso a requerida não cumpra com o espirito da acta em causa”.
No dia 19.6.2019, o tribunal proferiu a seguinte decisão, ipsis verbis:
«(…)
Nos presentes autos de inventário para separação de meações que C… intentou contra B…, aquele enquanto a cabeça-de-casal veio apresentar a relação de bens que consta de fls. 31 e ss. cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
Foi apresentada reclamação a qual foi decidida em 23/10/2012 aí se fazendo constar a fls. 272 e 278 que a concreta determinação do passivo referente a prestações pagas pela ex-cônjuge seriam decididas em sede de conferência de interessados.
Chegados à conferência realizada em 13/12/2016 foi determinada a realização da venda do imóvel e quanto ao crédito reclamado pela interessada B… cuja decisão consta da alínea E) da decisão de fls. 272 (cuja decisão foi relegada para a conferência de interessados) foi aprovado o crédito e relegada a actualização para momento posterior (cfr. fls. 990 dos autos).
Veio agora a interessada B… através do requerimento em apreço actualizar em definitivo o valor do passivo mencionado a fls. 272 e 278 constante da alínea E) de fls. 272.
Juntou documentos.
Notificado o interessado veio a fls. 1283 e 1284 (ref. 32553687) opor-se propondo a actualização em apenas 50%, proposta essa rejeitada desde logo pela interessada.
Cumpre apreciar e decidir: -
Estabelece o artigo 1345.º, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Civil (na redacção anterior à entrada em vigor da Lei nº 41/2013, de 26.06. por ser a versão aplicável) que os bens que integram a herança são especificados na relação por meio de verbas, sujeitas a uma só numeração, sendo a menção dos bens acompanhada dos elementos necessários à sua identificação e ao apuramento da sua situação jurídica.
A relação de bens a apresentar no inventário apenas deve conter, na parte do activo, os direitos patrimoniais do autor da herança e, na verba do passivo, as obrigações do mesmo que não forem meramente pessoais ou exceptuadas por lei.
Também quem alega a falta de bens tem o ónus de prova dessa falta (cfr. Nesse sentido Ac. Da RP de 19/11/75, BMJ, 254, 243, e o Despacho de 12/06/80 proferido pelo 15º Juízo Cível de Lisboa, CJ, V, 3º, p. 321). Daqui resulta, pois, que a contraposição e afirmações entre requerente e cabeça de casal, têm eles o ónus de indicarem as respectivas provas. Mas devem fazê-lo com o requerimento e resposta (cfr. Acs. STJ de 9/2/98, CJSTJ, VI, 1º, p. 54, da RP de 22/572000, Rec. Nº 558 e de 2/11/2000, Recº nº 1282/2000 e da RC de 16/5/2000, Rec. Nº 3413/2000).
Continua a aplicar-se ao inventário o regime processual civil regulado no Código de Processo Civil, tendo em conta que a Lei n.º 29/2009, de 29 de Junho, ainda não produziu os seus efeitos por não ter ainda sido publicada a portaria que a que se refere o seu art.º 2.º n.º 3.
Decorre do disposto o art.º 1350 do CPC que, quando a complexidade da matéria de facto subjacente às questões suscitadas tornar inconveniente, nos termos do n.º 2 do art.º 1336, a decisão incidental das reclamações da relação de bens, o juiz abstém-se de decidir e remete as partes para os meios comuns. Pode fazê-lo mesmo depois de ter aceite e produzido as provas oferecidas pelos interessados. Cf. neste sentido, Lopes Cardoso, “Partilhas Judiciais”, 3.ª edição, Vol. I, pag. 530. Em sede de inventário, a regra é a de que o tribunal da causa tem competência para dirimir todas as questões que importem à exacta definição do acervo hereditário a partilhar, podendo, excepcionalmente, em caso de particular complexidade – e para evitar redução das garantias das partes – usar da possibilidade prevista no preceito legal em referência. (cf. art.º 1336.º n.º 1. Lopes do Rego, Comentários ao CPC, 2.ª edição, 2004, p.268, em anotação ao artigo 1350.º do CPC.
Os interessados só devem ser remetidos para os meios comuns, nos casos em que se conclui que a complexidade da matéria de facto subjacente à questão a dirimir torna inconveniente a decisão incidental no inventário, designadamente por implicar redução da garantia das partes (art.º 1336.º n.º 2). Ou seja, devem ser remetidas para os meios comuns, as questões incidentais que não possam ser decididas em sede de inventário de “forma sumária”, “não no sentido técnico processual”, mas no sentido gramatical, querendo com isso significar-se “…a simplicidade da prova a produzir, a facilidade da decisão a proferir, a singeleza da questão a apreciar, contrapondo-se assim à da questão de larga indagação a que poria termo decisão fundamentada em provas minuciosas, complicadas e exaustivas.” Lopes Cardoso, ob. citada, pag. 525.
No caso concreto, resulta apurado que há muito por decisão transitada em julgado foi aprovado o crédito da interessada a que se reporta a alínea E) de fls. 272 (cuja decisão foi relegada para a conferência de interessados) e após foi relegada a actualização para momento posterior (cfr. fls. 990 dos autos).
Está em causa a análise de toda a prova documental junta respeitante a tal actualização e o apuramento do valor a pagar pelo interessado. A considerar-se que tal prova pode fazer-se por qualquer meio, temos como certo que a mesma não será fácil. Importará larga indagação, designadamente para se apurar os valores em causa e os valores a pagar pelo ex-conjuge.
Tal indagação afigura-se incompatível com o regime processual do inventário, podendo até pôr em causa as garantias das partes, por não terem a possibilidade de carrear meios de prova cuja produção pode ser mais demorada como defendido no Ac. da Relação de Guimarães de 15/03/2012, in www.dgsi.pt que aqui seguimos de perto, sendo certo que em causa está um processo iniciado no longínquo ano de 2012!.
Assim, por não se conseguir apurar com segurança tal matéria e considerando que tal prova é, por si só, absolutamente inconcludente, não se afigura possível conhecer nesta a parte relegada para este momento sendo certo que os autos de inventário atingiram o seu principal objecto - cfr. artigos 1336º e 1350º do Código de Processo Civil.
Pelo exposto, o tribunal e quanto à parte relegada para final – apuramento dos valores devidos a título de actualização respeitantes ao capital principal (este já reconhecido em sede de conferência de interessados) abstém-se de decidir e remete os interessados para os meios comuns.»

Por despacho de 26.9.2019, foi dada forma à partilha.
Em 20.11.2019, foi elaborado o mapa da partilha que, na sequência daquele despacho de 19 de junho, não levou em consideração os invocados créditos de compensação.
Foi depois, a 9.1.2020, proferida a sentença homologatória da partilha de que recorreu a Requerida B…, visando a impugnação da decisão acima transcrita, de 19 de junho de 2019. Para tal apresentou as seguintes CONCLUSÕES recursivas:
«
………………………………
………………………………
………………………………
» (sic)
*
O recorrido ofereceu contra-alegações que sintetizou assim:
«- Houve fundamentação para o tribunal a quo remeter para os meiors comuns o apuramento dos pagamentos com as prestações dos empréstimos do imóvel e outras despesas relacionados com o imóvel a efetuar pelo recorrido
- A prova documental não é suficiente (e até difícil) para apurar os valores totais dos pagamentos a suportar pelo recorrido, havendo outros meios prova
- Não é obrigatório que a haja produção de prova antes do envio para os meios comuns a indagação dos valores
- Não existe qualquer confissão implícita já que o recorrido impugnou quer os valores e os documentos, sendo relevante a interpretação da vontade explicita na acta de 13/12/202016 ou se houve um erro sobre os motivos (circunstâncias), sendo possível nesta matéria produzir prova para além da prova documental
- A recorrente residiu exclusivamente o imóvel mais de 12 anos pelo que existe um valor a considerar quanto à “renda” a fixar pelo nos presentes autos seria impossível produzir tal prova» (sic)
Considera assim, que deverá ser julgado improcedente o recurso apresentado pela recorrente, mantendo-se despacho proferido pelo tribunal a quo. (sic)
*
*
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II.
Questões a apreciar
O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões da apelação da Requerida, acima transcritas, sendo que se apreciam apenas as questões invocadas e relacionadas com o conteúdo do ato recorrido e não sobre matéria nova, exceção feita para o que for do conhecimento oficioso (cf. art.ºs 608º, nº 2, 635º e 639º do Código de Processo Civil).
Assim, somos chamados a decidir se, considerando as circunstâncias do caso, a questão do acerto de contas entre os ex-cônjuges deve ser decidida no inventário ou relegada para os meios comuns.
*
III.
Os factos relevantes constam do relatório que antecede.
*
IV.
Cessadas as relações patrimoniais entre os cônjuges, a cada um deles pertencem os bens próprios de cada um, devendo proceder-se à partilha dos bens comuns se os houver por força do regime de bens do casamento (comunhão geral de bens ou comunhão de adquiridos).
O inventário é o meio processual para a realização da patilha. É caracterizado pelo princípio da universalidade e o seu objetivo é a partilha de todos os bens e direitos que integram a comunhão de uma só vez, seja hereditária ou conjugal, visando-se, desse modo, uma partilha igualitária, já que tal processo especial tem por finalidade distribuir fiel e equitativamente todo o património do referido acervo e nele interessa sobretudo apurar toda a verdade para que a partilha seja efetuada com igualdade e justiça.
Esta regra admite desvios, nomeadamente com a realização de partilhas adicionais ou a remessa dos interessados para os meios comuns, verificados que sejam determinados pressupostos.
Expressa este nº 3 do art.º 1326º do Código de Processo Civil que o inventário se destina também, nos termos dos art.ºs 1404º e seg.s, “à extinção da comunhão de bens entre os cônjuges”.
É na partilha que os ex-cônjuges recebem a sua meação nos bens comuns, que cada um deles confere o que deve ao património comum (art.º 1689°, n° 1, do Código Civil), e é também no momento da partilha que o crédito de um deles sobre o outro, ou do património comum sobre um deles, e ainda o dos credores do património comum, se tornam exigíveis (art.ºs 1697° e 1695°, n° l, daquele código). É esta a regra. Por tudo isso, desde logo a relação de bens deve discriminar o património comum dos ex-cônjuges, assim como as suas responsabilidades e créditos, pois que é estruturante das licitações e da partilha (art.º 1345º do Código de Processo Civil).
Na conferência de interessados já devem estar resolvidas todas as questões que, tendo sido suscitadas, são suscetíveis de influir na partilha (art.º 1352º, nº 1, do Código de Processo Civil). Se não estiverem, devem ser resolvidas na própria conferência (nº 4, al. b) do subsequente art.º 1353º). Como escreve João A. Lopes Cardoso[2], “a necessidade de resolver as questões, a sua influência na determinação da partilha e a ausência de problemas de direito, são os princípios que hão-de servir de critério orientador nesta matéria”.
É no processo de inventário que, em princípio, devem ser dirimidas todas as questões de que depende a partilha justa e equitativa, prevenindo o prolongamento do litígio e pacificando os interessados. Mesmo no que concerne aos incidentes, só é admissível a sua resolução provisória, ou a remessa dos interessados para os meios comuns quando a complexidade da matéria de facto subjacente à questão a dirimir torne inconveniente a decisão incidental no inventário, por implicar redução das garantias das partes (art.º 1336º, nº 2, do Código de Processo Civil). Relativamente à relação de bens (do ativo e do passivo), resulta do art.º 1350º, nº 1, que o juiz só se abstém de decidir e remete os interessados para os meios comuns “quando a complexidade da matéria de facto subjacente às questões suscitadas tornar inconveniente, nos termos do nº 2 do artigo 1336º, a decisão incidental das reclamações…”.
Mesmo no despacho determinativo do modo como deve ser organizada a partilha, o juiz deve resolver todas as questões que ainda o não tenham sido e que seja necessário decidir para a organização do mapa da partilha, podendo mandar proceder à produção de prova que se julgue necessária. Só se houver questões de facto que exijam larga instrução é que os interessados devem ser remetidos, nessa parte, para os meios comuns (art.º 1373º, nº 2, do Código de Processo Civil).
J. Lopes Cardoso[3] (autor também citado na decisão recorrida) citando jurisprudência, refere a propósito: «Só naqueles casos em que o juiz conclui que, para decidir a questão da falta de relacionação de bens com segurança e consciência, há necessidade de uma larga, aturada e complexa indagação, que não se compadece com uma indagação sumária, é que deve remeter as partes para os meios comuns sempre mais gravosos, mais caros e mais demorados. E isso, portanto, até pelo princípio da economia processual».
No acórdão (sumário) da Relação de Coimbra de 28.10.2003[4] deixou-se exposto:
I- A complexidade da matéria de facto a que se reportam os art. s 1335°, n° 1 e 1336°, n° 2, do CPC, só obriga à remessa dos interessados para os meios comuns processuais quando haja necessidade de ter lugar a produção de provas que o processo de inventário não comporte.
II - Devem resolver-se no processo de inventário todas as questões de facto que dependam de prova documental e aquelas cuja indagação se possa fazer com provas que, embora de outra espécie, se coadunem com a índole sumária da prova a produzir no processo de inventário, não sendo lícito remeter os interessados para os meios comuns senão nas questões cuja complexidade é evidente e que só através desses meios possam ser decididas.
Compreende-se, pois, que no despacho de 23.10.2013 se tenha entendido que o passivo do património a partilhar é, em regra, aprovado na conferência de interessados e que, não tendo o cabeça de casal impugnado o facto de ter sido a interessada Requerida a suportar todos os encargos com os cinco empréstimos bancários contraídos pelo casal desde que lhe foi atribuída a casa de morada da família, os mesmos sejam relacionados como um crédito daquela interessada sobre o acervo patrimonial a partilhar, devendo proceder-se à sua quantificação no momento mais próximo da data da partilha.
O tribunal ordenou que fossem relacionados, e foram-no efetivamente, como passivo, os cinco empréstimos contraídos junto da D… e as benfeitorias realizadas pela Requerida.
Nessa sequência, na conferência de interessados que teve lugar no dia 13.12.2016, Requerente e Requerida aprovaram o passivo reclamado pelo credor D…, com as atualizações devidas. Quanto ao crédito da Requerida, o tribunal relegou para momento posterior a sua atualização, não obstante a mesma ter indicado valores atuais àquela data com base em documentação oferecida.
Por despacho de 19.6.2019, antes de dar a forma à partilha, o tribunal decidiu remeter os interessados para os meios comuns quanto ao apuramento dos valores devidos a título de atualização do crédito da interessada Requerida, não obstante o capital principal devido já ter ficado reconhecido na conferência de interessados. Entendeu o tribunal, para o efeito, mas algo conclusivamente, que a quantificação não será fácil de efetuar por a sua prova se poder realizar por qualquer meio, e que deverá haver larga indagação para se conseguir apurar os valores em causa e a pagar ao ex-cônjuge.
Não nos parece que assim seja.
Quanto ao valor das benfeitorias realizadas na verba nº 70 pela Requerida, relacionadas pelo valor de € 4.220,34, houve já larga indagação probatória, com recurso a meios de prova fortes, ainda que de livre apreciação, como sejam as perícias singular e colegial. Ainda que se admita a possibilidade de as partes indicarem novos meios de prova para fixação definitiva do respetivo montante, não havia à data da decisão recorrida nem era previsível que viesse a haver (tal como ainda não é) necessidade de grande indagação probatória. Estão perfeitamente identificadas as benfeitorias; pela sua natureza e características, pela prova já produzida, tudo indica que será fácil encontrar e fixar o seu valor.
No que respeita ao valor atualizado dos cinco empréstimos bancários contraídos pelo casal junto da D…, o mesmo, tem vindo a ser identificado com base na documentação emitida por aquela entidade financiadora, como resulta dos autos, sendo de prever que essa mesma entidade os forneça sempre que lhe forem solicitados por valores actualizados, interessando atender a atualização tanto quanto possível próxima da partilha. Esses meios documentais de prova correspondem normalmente à realidade que visam demonstrar e são fidedignos. Nada havendo nos autos que permita suspeitar da sua credibilidade, mal se compreende, à luz dos normativos acima citados e das considerações que efetuámos, que o tribunal tenha remetido os interessados para os meios comuns para a simples e fácil obtenção dos valores atualizados do conjunto das prestações suportadas pela Requerida desde que lhe foi atribuída a casa de morada da família.
Defende o recorrido que, então, também deve ser apurado o valor das rendas que tem vindo a suportar só por si com a sua habitação desde que teve de se afastar da casa de morada da família.
Saber se o interessado passou a habitar em certo local sob um contrato de arrendamento e qual seja o valor da renda que passou a pagar, é matéria de facto que, à partida, não justifica complexidade na indagação, podendo e devendo o seu apuramento realizar-se no processo de inventário. Saber se o Requerido tem direito a ser compensado por essas despesas é matéria de direito a decidir neste processo.
A remessa dos interessados para os meios comuns supõe naturalmente uma necessária amplitude de garantias processuais, traduzidas na livre possibilidade de apresentação dos meios probatórios e da sua efetiva contradição, bem como na realização, judiciosa e pormenorizada, de audiência julgamento, tudo nos moldes genericamente previstos para as acções declarativas comuns[5], que, no caso que aqui se discute não tem justificação.
Decididas que estejam, no inventário, aquelas questões, como é possível e desejável, estará encontrado o melhor caminho para a partilha mais célere e mais justa, porque também realizada de uma só vez e com cabal aproveitamento da prova já produzida, sendo de lamentar os cerca de 11 anos decorridos desde o início do processo.
Impõe-se, assim, a revogação do despacho interlocutório de 19.6.2019 que relegou para os meios comuns o apuramento dos valores devidos a título de actualização do crédito da Requerida, que deve ser quantificado neste inventário, assim como qualquer outro crédito dos interessados e compensações que haja a efectuar entre os eles. Para tal, será concedida às partes a possibilidade de produzirem prova.
Em consequência, fica sem efeito o despacho determinativo da patilha, o mapa subsequente e a respetiva sentença homologatória na parte incompatível com as questões atrás expostas e a decidir, alterando-se depois as referidas peças processuais em conformidade.
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SUMÁRIO (art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil):
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IV.
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação:
A. Revogar o despacho interlocutório de 19.6.2019 que relegou para os meios comuns o apuramento dos valores devidos a título de atualização do crédito da Requerida, que deverá ser quantificado neste inventário, assim como qualquer outro crédito dos interessados e compensações que haja a efetuar entre os mesmos, concedendo-se aos interessados a possibilidade de produzirem prova.
B. Dar sem efeito o despacho determinativo da partilha, o mapa e a subsequente sentença homologatória na parte incompatível com as questões atrás expostas e a decidir, repondo depois tais peças processuais em conformidade com o que for decidido.
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Custas pelo apelado, por ter decaído no recurso (art.º 527º, nº 1, do Código de Processo Civil).
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Porto, 8 de setembro de 2020
Filipe Caroço
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
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[1] Negrito nosso.
[2] Partilhas Judiciais, vol. II, Almedina, 4ª edição, pág. 198.
[3] Partilhas Judicias, Almedina, 4ª edição, 1990, vol. I, pág. 545, nota 1579.
[4] Proc. 3104/03, in www.dgsi.pt.
[5] Acórdão da Relação de Lisboa de 2.5.2017, proc. 848/15.1T8VFX.L1-7, in www.dgsi.pt.