Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3578/18.9T8VFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDA SOARES
Descritores: ASSOCIAÇÃO SEM FINS LUCRATIVOS
ASSEMBLEIA GERAL
CONVOCAÇÃO DA ASSEMBLEIA
Nº do Documento: RP201905223578/18.9T8VFR.P1
Data do Acordão: 05/22/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 696, FLS 320-329)
Área Temática: .
Sumário: I - Em conformidade com o disposto no art. 173.º CC, a competência para a convocação da Assembleia-Geral de uma associação cabe, em regra, ao presidente da Mesa da Assembleia-Geral, embora lhe não caiba o direito de a convocar por sua iniciativa, a menos que os Estatutos lhe confiram tal prorrogativa.
II - Da proteção constitucional da liberdade associativa e da liberdade de finalidades a exercer pelo ente associativo (art. 46.º Const) resulta a conclusão pela natureza residual do estabelecido no art. 173.º CC: não se contém aí uma norma de exclusão da legitimidade de outros titulares de cargos associativos para a decisão sobre convocação da assembleia-geral.
III - Não existe, pois, qualquer justificação válida para afastar dessa legitimidade o presidente da Mesa da assembleia, sendo mesmo inconstitucional a norma do art. 173.º CC, por violação do citado art. 46.º, se interpretada com esse sentido.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 3578/18.9T8VFR.P1

Sumário do acórdão elaborado pela sua relatora nos termos do disposto no artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil:
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Acordam os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:

I-RELATÓRIO
REQUERENTE: B……, residente na Av. …, … – ..º Dto., ….-… ….
REQUERIDA: C…, com sede na …, Zona Industrial …, ….-… …, Santa Maria da Feira.

Por via da presente providência cautelar, pretende o requerente sejam anuladas as deliberações sociais da Requerida, tomadas a 13.10.2018, ou, subsidiariamente, sejam as mesmas suspensas até à sua anulação em ação a intentar.
Mais requereu a inversão do contraditório, nos termos do art. 269.º CPC.
Para tanto alegou exercer as funções de Presidente da Direção da associação requerida, tendo recebido comunicação de deliberações tomadas em assembleia geral havida a 13.10.2018, assembleia que foi convocada pela anterior Presidente da Assembleia Geral, membro que se demitira a 5.9.2018; ademais, deve ter-se por não escrito, porque nulo, por força do art. 173.º CC, o artigo 19.º dos Estatutos da Requerida que permitem a convocação de assembleias pelo seu Presidente.
A convocatória para tal assembleia não foi enviada a todos os sócios; foram adicionados pontos à ordem de trabalhos (destituição do conselho fiscal e pedido de demissão e auditoria às contas da Requerida), em violação do disposto no art. 174.º, n.º 3 CC, dado que não compareceram todos os associados; a demissão dos membros da Direção aí decidida não observa a regra do art. 14.º, n.º 5 dos Estatutos; não foi solicitado parecer ao Conselho Fiscal, nos termos do art. 29.º a), b) e h) dos Estatutos; não foi emitida nota de culpa e não foi dado contraditório ao Requerente; trinta e sete dos cinquenta e oito votos contabilizados ocorreram por procuração, em violação do disposto nos arts. 175.º, n.º 2, e 180.º CC; duas das pessoas presentes não são associadas; uma das pessoas presentes apenas se tornou associada depois da assembleia.

A Requerida deduziu oposição afirmando ter a assembleia sido convocada pela Presidente da Mesa da Assembleia Geral, a quem cabiam tais poderes, nos termos dos arts. 170.º, n.º1 CC e 19.º dos Estatutos, sendo que, não obstante o pedido de demissão apresentado, se mantinha em funções a Presidente D… até que a Assembleia Geral elegesse novo Presidente, não tendo o despacho do Conselho Fiscal, datado de 19.9.2018, sido conforme com o art. 14.º, n.º 5 dos Estatutos.
Quanto à convocação da Assembleia, nenhum associado manifestou falta de conhecimento da convocatória que foi comunicada por todos os meios disponibilizados. Depois, a competência para destituir com justa causa titulares dos órgãos sociais cabe à Assembleia Geral, sem necessidade de qualquer procedimento disciplinar preparatório; mesmo considerando não ser permitido o voto por procuração, ocorreu quórum deliberativo, pela presença de vinte e um sócios, tendo todos eles quotas em dia.
Ademais, considera não verificado o dano apreciável a que alude o art. 380.º, n.º1 CPC, para que possa decretar-se a providência.

Realizado julgamento, veio a ser proferida sentença, datada de 10.1.2019, a qual julgou procedente o procedimento cautelar, anulando as deliberações tomadas na Assembleia Geral Extraordinária de 13 de Outubro de 2018 relativas ao ponto dois da Ordem de Trabalhos constante da respectiva Ata, atinentes à Destituição do Conselho Fiscal, bem como à demissão da Vice-Presidente da Direção, secretária e primeira vogal e à votação da auditoria interna a todas as contas e atividades da Requerida (al. a).
Mais considerou validamente convocada e válidas as demais deliberações tomadas na Assembleia Geral Extraordinária do dia 13 de Outubro de 2018 sobre os Pontos 1 e 3 da respetiva acta (al. b) da sentença.
Foram dados aí como provados os factos seguintes:
01. O Requerente cumpre funções como Presidente da Direcção da Requerida, uma associação sem fins lucrativos, após ato eleitoral de 29/07/2017 que elegeu a lista única (Lista A) para funções no biénio 2017/2018.
02. Após alguns desentendimentos, no ano corrente, entre membros dessa mesma Direcção, a Presidente da Mesa da Assembleia Geral, a Sra. D…, abandonou as funções que lhe foram confiadas, apresentando a sua demissão por carta datada de 5-09-2018.
03. Veio o Conselho Fiscal da Requerida, em despacho datado de 19-09-2018, após reunião realizada no dia anterior, “aceitar a demissão da mesma, não com efeitos retroactivos porque isso não é possível perante a lei, mas com efeitos imediatos”.
04. Por decisão proferida no âmbito do procedimento cautelar com o número de processo 3042/18.6T8VFR-A, que correu termos neste mesmo Juízo Local Cível, foi decidido, por sentença datada de 28-09-2018, “Declarar anulável a decisão que nomeou como Presidente da Mesa da Assembleia Geral a Dra. E…, e consequentemente declarar anulável a convocatória para a realização da assembleia geral do dia 29 de Setembro de 2018, determinando a sua não realização”.
05. O requerente encontrou-se confrontado perante tentativa datada de 3-10- 2018, por parte da Presidente da Mesa da Assembleia Geral, a Sra. D…, que se demitira a 05-09-2018, de convocar uma Assembleia Geral Extraordinária, para 13-10-2018 com os seguintes pontos de ordem de trabalhos:
“Ponto 1: Destituição COM JUSTA CAUSA do Presidente da Direcção, após conhecimento, de forma concreta e pormenorizada, das irregularidades por este cometidas na gestão da C….
Ponto 2: Eleição de uma comissão provisória, sem poderes estatutários, para organização do acto eleitoral que se imporá e gestão indispensável de assuntos correntes até tomada de possa da lista vencedora de eleições.”.
06. O Requerente, considerando que a anterior Presidente da Mesa da Assembleia Geral carece de poderes para convocar a assembleia descrita no número anterior, remeteu por e-mail uma nota informativa aos sócios da Requerida, indicando que a mesma convocatória seria falsa.
07. No dia 11-10-2018, o Conselho Fiscal da Requerida emitiu uma missiva na qual refere, em suma, que: “encontrando-se a Sra D… demitida desde 18/09/2018 das funções de Presidente da Mesa da Assembleia Geral, compreendemos que esta não possuiu competências estatuárias que lhe permitam convocar a Assembleia Geral, pelo que determinamos como não sendo válida a convocatória para o próximo dia 13/09/2018…”.
08. O Requerente recebeu no dia 15-10-2018 uma Comunicação de deliberações tomadas na assembleia geral extraordinária realizada no dia 13-10-2018 assinada pela intitulada Presidente da Assembleia Geral, D…, contendo extracto da ata desse mesmo dia.
09. Nesta ata, foi solicitada a inclusão de mais um ponto na ordem de trabalhos, o da “Destituição do Conselho Fiscal por incapacidade manifesta dos deveres de fiscalização a que estão obrigado estatutariamente, tal qual, pelo claro desinteresse manifestado pela ausência a esta Assembleia Geral e ainda, atenta a posição manifestada relativamente à convocatória do presente acto deliberativo por via do esclarecimento endereçado ao universo associativo da C… pelo email datado do dia onze de outubro último, o qual é destituído de qualquer fundamento mostrando-se ilegal e contrário aos estatutos não só à sua letra mas como ao seu espirito”, a qual, submetida a votação, foi aprovada por unanimidade.
10. Do mesmo modo, foi solicitado pela Vice-Presidente da Direcção, pela secretária e pela primeira vogal a sua demissão, e que também fosse realizada “uma auditoria interna a todas as contas e actividades da C…”, tendo a presidente da mesa de imediato aceite os pedidos de demissão formulados e submetida a votação a dita auditoria foi aprovada por unanimidade.
11. Foi também aprovada a demissão do Requerente, com cinquenta e oito votos a favor e uma abstenção.
12. Foi igualmente aprovada a nomeação da aludida comissão provisória, por unanimidade.
13. Dos cinquenta e oito votos contabilizados na Assembleia Geral Extraordinária estiveram presentes 21 (vinte e um associados) e 37 (trinta e sete) dos votos contabilizados foram-no por procuração.
14. Na lista de presenças é perceptível a presença de 2 (duas) pessoas que não possuem qualidade de associado na Requerida, nomeadamente o Sr. F… e o Sr. G….
15. Na lista de presenças é perceptível a presença da Sra. H… que, embora presente na assembleia, apenas procedeu ao pagamento da quota, como associada, no dia 15-10-2018.
Os factos considerados não provados:
A convocatória não foi enviada a todos os sócios.

Desta decisão recorre o Requerente da providência, visando a revogação do decidido no ponto b).
Fundamentando tal pretensão, alinhou os seguintes argumentos conclusivos:
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O recurso foi recebido nos termos legais e, já nesta Relação, os autos correram Vistos.
Cumpre conhecer do mérito da apelação.

Questões a decidir tendo em conta o objeto do recurso delimitado pela recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4 e 639.º, n.ºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil, na redação aplicável a estes autos):
1. Da alteração da matéria de facto.
2. Da validade da convocatória e da legitimidade para a respetiva convocação.
3. Da validade do art. 19.º dos Estatutos e da interpretação do disposto nos arts. 173.º e 174.º CC e, bem assim, do art. 374.º do CSC.

II – FUNDAMENTAÇÃO
I. Fundamentação de facto
Se deve dar-se como provado não ter a convocatória sido remetida a todos os sócios.
Iniciando a exposição pelo desenlace conclusivo, diremos que o recorrente não efetuou prova do facto que pretende ver demostrado.
Quanto aos testemunhos produzidos, observa-se que nenhuma das testemunhas que ao caso importa, I…, J…, K… e L…, confirmam não ter a convocatória sido remetida. O primeiro não esteve na assembleia geral, tendo recebido a convocatória por e-mail; a segunda confirmou apenas ter também recebido a convocatória, o que também foi dito pela terceira que aludiu, de igual modo, à afixação na porta das instalações da Ré de edital nesse sentido; o último não era associado na data da reunião e não aludiu a qualquer convocatória.
Nenhuma testemunha foi inquirida que, sendo associada, dissesse não ter recebido a convocatória em causa.
Por outra parte, dos documentos 11 (fls. 53) e 12 (fls. 53 v.º e 54 a 56) juntos com o requerimento inicial não resulta a conclusão pela não convocação integral dos associados. Da circunstância de o A. não ter fornecido a lista de associados e respetivos endereços não se extrai que os que foram convocados não foram todos os que constam da lista em causa. Dito de outro modo: do facto de a lista não ter estado à disposição de quem convocou a assembleia não se extrai o facto desconhecido que pretende o recorrente (não foram convocados todos os sócios), pois é bem possível que, mesmo não dispondo desse elemento, tenham sido contatados todos quantos neles constam.
O que se alega no recurso como motivo para demonstrar o facto não provado é, na verdade, um outro facto não provado: que sem a listagem dos associados seria impossível remeter convocatórias a todos.
A sentença em lado algum decide ou indicia de forma distinta.
Por outra parte é infundado pretender que o princípio da cooperação processual, ou do inquisitório, ou as normas dos arts. 6.º e 7.º do CPC, signifiquem recair sobre o tribunal o dever funcional de substituir às partes na atividade probatória.
Com efeito, quanto ao dever de colaboração probatória, não deixam de assistir ao tribunal poderes oficiosos em matéria instrutória que se fundam na relação que, num modelo social do processo civil (por oposição a um modelo liberal e individualista), se pretende exista entre o processo e a verdade. Mas esses poderes não se desvinculam do princípio do dispositivo e nem do da auto-responsabilidade das partes.
De modo que, a intervenção do tribunal numa atitude que vai para lá da de mero árbitro só ocorre quando se verifica não dispor a parte de meios possíveis e válidos para demonstrar o que alegou.
Não sucede assim quando a parte pode convocar meios de prova, nomeadamente testemunhais, para tal efeito. E isso, in casu, seria tarefa simples, bastando ao requerente verificar quais as pessoas presentes na assembleia (mesmo que representadas) e quais as que aí não estavam e constavam na sua lista, procurando indagar junto destas últimas se haviam ou não recebido a convocatória. Não resulta que tenha procurado atuar deste jeito e se haja confrontado com quaisquer obstáculos que coubesse ao tribunal remover.
Finalmente, como já referido, não se vê como pode afirmar-se não ter sido cumprido o disposto no art. 174.º CC pela ausência da lista de associados, pois que, podendo pressupor-se que a falta desse elementos impedia a presidente da mesa da assembleia de saber quem eram todos os associados e quais os respetivos domicílios, de modo a convocá-los, será um salto no vazio pensar que, por isso, algum dos associados não foi convocado, quando na verdade se verifica que muitos foram os presentes (ainda que alguns deles por procuração).
Tanto basta para fazer improceder o recurso no que tange à alteração dos factos.
Os factos provados e que interessam à decisão final são os que constam da sentença recorrida e que acima ficaram consignados aos quais acrescem os seguintes, de acordo com os documentos juntos autos:
- Sob a epígrafe Reuniões, o art. 18.º, n.º 3 dos Estatutos da Requerida prevêem o seguinte:
3 - A Assembleia Geral reunirá extraordinariamente sob convocatória do Presidente da Mesa da Assembleia Geral, por sua iniciativa ou a requerimento da Direcção, do Conselho Fiscal ou, ainda, a pedido da maioria dos associados no pleno gozo dos seus direitos.
- Sob a epígrafe Convocação da Assembleia Geral, o art. 19.º dos Estatutos da Requerida tem a seguinte redação:
1 - As Assembleias Gerais são convocadas pelo seu Presidente, por meio de aviso postal enviado aos associados com a antecedência mínima de oito dias, devendo nelas consignar-se o dia, hora e local da reunião e respectiva ordem de trabalhos.
2 - Por impedimento ou ausência do Presidente, a convocação pode ser feita pelo vice-presidente ou, sucessivamente, pelo primeiro secretário ou segundo secretário.
3 – As Assembleias Gerais funcionam em primeira convocação, com a presença de pelo menos metade e mais um dos associados com direito a voto, e com a presença de qualquer número, em segunda convocação, marcada para meia hora depois da primeira.
- O art. 20.º, n.º1, al. a), com a epígrafe Competência da Assembleia Geral, dos mesmos Estatutos contém:
1- Compete à Assembleia Geral:
a) Proceder à eleição ou destituição da respectiva mesa e dos titulares dos demais corpos sociais;
- O art. 22.º dos mesmos Estatutos, com a epígrafe Mesa da Assembleia Geral, prevê:
1 - Os trabalhos da Assembleia Geral são dirigidos por uma mesa, composta por um presidente, um vice-presidente, primeiro secretário e segundo secretário, eleitos pela Assembleia Geral de entre os associados no pleno gozo dos seus direitos.
2 – À Mesa compete proceder à verificação da validade das representações e dos poderes da Assembleia Geral.

2. Fundamentação de Direito
A primeira questão colocada respeita à falta de remessa a todos os associados da convocatória para a assembleia geral de 13 de outubro.
Como acima ficou dito, não está demonstrado que tal diligência não tenha tido lugar relativamente à totalidade do universo de associados da Requerida.
Sendo assim, pelas razões expostas na sentença recorrida, às quais se adere, considera-se regularmente convocada a assembleia quanto à regularidade da convocação de todos os destinatários e informação a estes da data e ordem de trabalhos, não tendo ocorrido qualquer desrespeito pelo disposto no art. 174.º CC.
Relativamente à legitimidade do presidente da mesa da assembleia geral para convocar a assembleia geral, pretende o recorrente se considere nula a norma estatutária que oferece tal possibilidade, dizendo-a em contravenção com o disposto no art. 173.º CC.
Com esta questão prende-se a segunda equação recursiva, a relativa à circunstância de D… não deter já na época a qualidade de presidente por se ter demitido dessas funções, demissão essa confirmada logo após pelo presidente do Conselho Fiscal, como prevê o art. 374.º, nºs 3 e 4 CSC.
O art. 19.º dos Estatutos da Requerida prevê a convocação de assembleias gerais pelo respetivo presidente da mesa.
O art. 173.º CC, relativo à convocação da assembleia, dispõe:
1. A assembleia geral deve ser convocada pela administração nas circunstâncias fixadas pelos estatutos e, em qualquer caso, uma vez em cada ano para aprovação do balanço.
2. A assembleia será ainda convocada sempre que a convocação seja requerida, com um fim legítimo, por um conjunto de associados não inferior à quinta parte da sua totalidade, se outro número não for estabelecido nos estatutos.
3. Se a administração não convocar a assembleia nos casos em que deve fazê-lo, a qualquer associado é lícito efectuar a convocação.

Este preceito veda ao presidente da mesa da assembleia geral a possibilidade de convocação da assembleia geral?
A resposta é negativa. Esta solução, que se nos afigura evidente, parece ser hoje indisputável pelas razões que se consignaram na sentença recorrida.
A assembleia-geral é o órgão deliberativo por excelência de qualquer associação.
Este órgão é composto pelos associados (embora possam verificar-se restrições quanto à universalidade) e tem como funções a eleição dos titulares dos órgãos do ente coletivo; a destituição dos titulares dos órgãos da associação; a aprovação do balanço; a alteração dos estatutos; a extinção da associação e a autorização para esta demandar os administradores por factos praticados no exercício do cargo; a destinação dos bens, no caso de extinção; deliberar sobre todas as matérias não atribuídas por lei ou estatuto a outros órgãos.
Ora, a competência para a convocação cabe, em regra, ao presidente da Mesa da Assembleia-Geral, embora lhe não caiba o direito de a convocar por sua iniciativa, a menos que os estatutos lhe confiram tal prorrogativa.
O art. 173.º CC impede aos Estatutos tal previsão?
Resposta afirmativa a esta questão poderia defender-se, talvez, antes da entrada em vigor da Constituição de 1976. Nesse domínio temporal é que poderia, eventualmente, sustentar-se a subalternização da posição de quem presidia ao órgão que, na associação, representava a totalidade dos associados, sob a alegação de que “não se compreende porque há-de o legislador intrometer-se nesta matéria, quando lhe bastaria determinar que a assembleia fosse convocada ao menos uma vez em cada ano para aprovação do balanço, deixando o resto aos estatutos”.
Era essa a tese de Marcelo Caetano, em 1967[1].
Todavia, o art. 46.º CRPort. consagrou um amplo princípio de liberdade associativa por via do qual:
Os cidadãos têm o direito de, livremente e sem dependência de qualquer autorização, constituir associações, desde que estas não se destinem a promover a violência e os respectivos fins não sejam contrários à lei penal (n.º 1).
As associações prosseguem livremente os seus fins sem interferência das autoridades públicas e não podem ser dissolvidas pelo Estado ou suspensas as suas actividades senão nos casos previstos na lei e mediante decisão judicial (n.º 2).
Da liberdade associativa e da liberdade de finalidades a exercer sem interferência de autoridades públicas resulta a liminar conclusão pela natureza residual do estabelecido no art. 173.º CC: não se contém aí uma norma de exclusão da legitimidade de outros titulares de cargos associativos para a decisão sobre convocação da assembleia-geral, mas sim a previsão dessa obrigatoriedade pela administração, não apenas nos casos em que os estatutos o indiquem, mas também e obrigatoriamente, uma vez em cada ano para aprovação do balanço.
Não existe, pois, qualquer justificação válida para afastar dessa legitimidade o presidente da mesa da assembleia, sendo mesmo inconstitucional a norma do art. 173.º CC, por violação do citado art. 46.º, se interpretada com o sentido pretendido pelo recorrente.
Com efeito, a respeito da liberdade associativa e da interpretação das normas do CC em conformidade com a Constituição é determinante o ensinamento do Ac. TC 61/05, de 6.1.2006:
«A liberdade de associação, enquanto expressão de uma dimensão societária e centrípeta da pessoa, ilustradora da dialéctica entre um “eu-pessoal” e um
“eu-social”, encontra a sua raiz no reconhecimento da dignidade humana. Na verdade, sendo implicada pelo status collectivus da pessoa (cf. Ángel J. Gómes Montoro, Asociación, Constitución, Ley – Sobre el contenido constitucional del derecho de asociación, Madrid, 2004, pp. 61-62), a liberdade de associação prefigura-se como pressuposto, manifestação e consequência de uma autonomia pessoal que comunitariamente se realiza, entroncando, por isso, na inviolável esfera do “ser[-Pessoa] com os outros”.

Por isso, é, comummente, reconhecido que a liberdade de associação constitui “um dos elementos estruturais básicos do Estado Social e Democrático de Direito” (v. Sentencia n.º 173/1998 do Tribunal Constitucional espanhol, comentada por Sofía de Salas Murillo, «Comentario a la STC 173/1998, de 23 de julio, sobre la Ley vasca de Asociaciones», in Anuario de Derecho Civil, n.º 3, Jul-Set., 1999, pp. 1253 e ss.) e a “(...) expressão mais qualificada da liberdade de organização colectiva privada, ínsita no princípio do Estado de direito democrático” (Gomes Canotilho/ Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, Coimbra, 1993, p. 256), encontrando-se o seu sentido axiológico nuclear reflectido em diversos “lugares do direito” (cf., inter alia, o artigo 20.º, n.º 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem, o artigo 22.º, n.º 1, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, o artigo 11.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, o artigo 12.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, o artigo 22.º da Constituição Espanhola, o artigo 9.º da Lei Fundamental Alemã e o artigo 18.º da Constituição Italiana).
Tratando-se de um direito complexo – hoc sensu, integrado por um conteúdo pluridimensional –, cujo sentido vai muito para além da liberdade de criação de entes associativos, importa destacar, no caso sub judicio, entre as dimensões que lhe são “classicamente” reconhecidas ou imputadas, a liberdade de associação enquanto “direito da própria associação a organizar-se e a prosseguir livremente a sua actividade” (cf. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, op. cit., p. 257, e Maria Leonor Beleza/Miguel Teixeira de Sousa, «Direito de associação e associações», in Estudos sobre a Constituição, vol. III, Lisboa, 1979, pp. 127-128), aí se entrecruzando a “livre determinação da sua organização” (cf. Murillo De La Cueva, El derecho de asociación, Madrid, 1996, p. 148) e a “autonomia da associação para a formação da sua vontade” (cf. Ángel J. Gómes Montoro, Asociación, Constitución, Ley ..., op. cit., p. 79).
Perspectivada a liberdade de associação sobre este prisma, logo se alcança que está, essencialmente, em causa, na dimensão aqui salientada, o reconhecimento de um autonomos organizativo-funcional que garanta uma liberdade constitutiva ao nível da actuação de um ente associativo, concretizada num poder de autoconformação e autodeterminação subjectiva, que se assume como conditio sine qua non da existência das associações enquanto entes não heteronomamente determinados. Integram, por isso, o âmbito constitucionalmente tutelado pelo artigo 46.º da Constituição (principaliter no seu n.º 2) as manifestações dessa autonomia de organização e normação associativa – consubstanciada, segundo Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, op. cit., p. 258, “na autonomia estatutária (não podendo os estatutos das associações estar dependentes de qualquer aprovação ou sanção administrativa e muito menos ser impostos pelas autoridades), [n]a liberdade de organização (não podendo a designação dos órgãos directivos da associação estar dependente de qualquer aprovação ou controlo administrativo, e muito menos de imposição administrativa) e [n]a liberdade de gestão (não podendo os seus actos ficar dependentes de aprovação ou referenda administrativa)” –, na medida em que importem da “autodeterminação sobre a sua própria organização”, do “processo de formação da sua vontade” ou da “direcção dos seus assuntos” (cf. BverfGE, 50, 290, 354, mencionado em Ángel J. Gómes Montoro, Asociación, Constitución, Ley ..., op. cit., p. 192, nota 347), implicando, nesses termos, uma “liberdade de organização e de funcionamento sem ingerências públicas” (cf. a já referida Sentencia 173/1998 do Tribunal Constitucional espanhol), assumindo-se a liberdade de “organização [como] um elemento fundamental de toda a associação já que sem ela não é possível o desenvolvimento coerente e continuado da actividade associativa” (cf. Murillo De La Cueva, El derecho de asociación, op. cit., p. 200). Note-se, porém, que esta autodeterminação conformadora da vida da associação não corresponde apenas a uma dimensão “institucional” da liberdade de associação que possa prefigurar-se a se e a latere da participação “individual” associativa. Estando aí envolvida uma vertente endoprocedimental reguladora da actuação associativa – maxime quanto à teia com que são traçadas as “relações internas”–, encontramo-nos perante uma dimensão coetânea – e, simultaneamente, quanto ao modus, determinante – do exercício do direito de participação dos associados, pelo que, também nessa medida, o auto-nomos organizativo encontra-se sob a tutela jusfundamental reservada à liberdade de associação.»[3]
No sentido que defendemos se pronuncia a doutrina actual[4].
A solução é, aliás, também válida para o caso do presidente da mesa da assembleia de outras pessoas coletivas, como sucede, por exemplo, para as sociedades anónimas relativamente às quais o art. 375.º, n.º s 1 e 2 do CSC prevê apenas a situação em que existe um dever de convocar, mas não se refere ao poder de o presidente da mesa o fazer por livre iniciativa. Porém, a maioria da doutrina considera que essa possibilidade “é coerente com o facto de ser um órgão independente da administração e da fiscalização o responsável pela convocação da assembleia, não se justificando ficar quase limitado aos pedidos [dos outros órgãos]”[5].
Entramos, agora, na questão de saber se a pessoa concreta que, como presidente da assembleia-geral da Requerida, convocou a assembleia aqui em causa poderia fazê-lo.
Com efeito, no mês anterior, a então presidente apresentara a sua demissão, pedido que foi decidido, na associação, pelo respetivo Conselho Fiscal.
Entende o recorrente assistir competência àquele órgão para decidir sobre esse pedido, uma vez que será aplicável o disposto no art. 374.º, n.ºs 3 e 4 do CSC.
Dispondo sobre a mesa da assembleia geral das sociedades anónimas, preceitua aquele normativo:
1 - A mesa da assembleia geral é constituída, pelo menos, por um presidente e um secretário.
2 - O contrato de sociedade pode determinar que o presidente, o vice-presidente e os secretários da mesa da assembleia geral sejam eleitos por esta, por período não superior a quatro anos, de entre accionistas ou outras pessoas.
3 - No silêncio do contrato, na falta de pessoas eleitas nos termos do número anterior ou no caso de não comparência destas, serve de presidente da mesa da assembleia geral o presidente do conselho fiscal, da comissão de auditoria ou do conselho geral e de supervisão e de secretário um accionista presente, escolhido por aquele.
4 - Na falta ou não comparência do presidente do conselho fiscal, da comissão de auditoria ou do conselho geral e de supervisão, preside à assembleia geral um accionista, por ordem do número de acções de que sejam titulares caso se verifique igualdade de número de acções, deve atender-se, sucessivamente, à maior antiguidade como accionista e à idade.
Está em causa saber se operou validamente a demissão da presidente em exercício em setembro de 2018 a fim de verificar se a mesma poderia, por si, determinar a convocação da assembleia de 13.10.
A sentença recorrida entendeu de forma positiva, por considerar que, prevendo os Estatutos da Requerida caber à Assembleia-Geral poderes para eleger e destituir a respectiva Mesa e demais órgãos, não tendo aquela Assembleia deliberado no sentido de aceitar a demissão, a presidente demissionário se manteve em funções até tal deliberação.
Concordamos com o decidido.
A regulamentação do CSC seria convocável em caso de lacunas[6].
Mas, antes disso, as associações regem-se pelos respetivos estatutos e pelas disposições que resultam dos arts. 167.º e ss. do C.C.

Ora no que tange à eleição e destituição do presidente da Mesa da Assembleia-Geral, os Estatutos da Requerida deferem a respectiva competência à Assembleia-Geral e não ao Conselho Fiscal (cfr. supra factos provados).
A situação não está, pois, omissa, e, deste modo, a pessoa que convocou a Assembleia Extraordinária de 13.10.2018 detinha, ainda então, a qualidade de Presidente da Associação Requerida.
Tanto basta para a improcedência do recurso.

DISPOSITIVO
Pelo exposto, decidem os Juízes deste Tribunal da Relação julgar a apelação improcedente e confirmar a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente.

Porto, 22.5.2019
Fernanda Almeida
António Eleutério
Isabel São Pedro Soeiro
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[1] O Direito, ano XCIX, citado pelo ac. RP, de 27.3.2006 (JTRP00039008), acórdão que menciona doutrina atual (Carvalho Fernandes), já produzida no domínio da nova Constituição, mas que, não obstante, conclui, sem justificar, pela nulidade do estatuto associativo que atribui competência para a convocação da assembleia-geral ao presidente da mesa ou ao presidente da direção.
[2] Isso mesmo decidiu esta relação, em acórdão de 28.6.05, Proc. 0522433: I - O alcance do artigo 173 do C.Civil é apenas o de não permitir a exclusão estatutária de qualquer dos direitos de convocação nele previstos e não o de estabelecer uma enumeração taxativa, impedindo que dos estatutos constem disposições que prevejam outros casos de convocação. II - É válida a cláusula estatutária que permite também ao Presidente da Mesa, por si só, por sua iniciativa, convocar a Assembleia. Antes deste, também o ac. de 25.11.04, Proc. 0436032. Discordamos, por isso, por ex., do ac. RC, de 15.12.2016, Proc. 314/15.5T8FND.C1, onde se não justifica em termos substanciais a opção pela restrição da competência do presidente da mesa para convocar a assembleia por sua iniciativa.
[3] A negrito destacámos as ideias básicas que consideramos endereçadas à situação e justificam plenamente a solução pela qual optamos neste acórdão.
[4] Paulo Olavo Cunha, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica, 214, p.374, que admite que os estatutos prevejam a competência do presidente da mesa para a convocação por sua iniciativa. Também Mariana Freitas Morna, Associações e Fundações: Um tertium genus?, dissertação de mestrado da FDUC, 2011, p. 57.
[5] Raquel Cardoso Nunes, A Responsabilidade Civil do Presidente da Mesa da Assembleia Geral das Sociedades Anónimas, dissertação de mestrado para a Universidade Católica, 2013, p. 21, onde se citam (nota51) os autores em que se ancora: Paulo Olavo Cunha, Menezes Cordeiro, Pedro Maia, Pereira de Almeida, M. Roque Laia, Luís Cunha Gonçalves.
[6] Cfr. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, 2004, p.566 – 567: Para completar a matéria dos arts. 157.º e seguintes, particularmente havendo lacunas, pode-se recorrer ao Direito das sociedades comerciais? (…) não há obstáculos de princípio à aplicação analógica, no campo civil, das regras relativas a sociedades comerciais. O recurso ao Direito Comercial implica todavia a presença dos diversos requisitos de que depende a analogia: o caso omisso; o facto de esse caso dever ter, à luz do sistema, uma solução jurídico normativa; a analogia de situações; a presença de uma norma comercial aplicável ao caso análogo. Verificadas as condições, as pessoas colectivas civis podem recorrer ao inesgotável manancial representado pelo Direito das sociedades comerciais. E como estas, a título subsidiário, também podem recorrer às sociedades civis e ao Direito das pessoas colectivas, fecha-se o círculo: mais uma vez, reforçada fica a unidade do Direito privado português.