Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
29/13.9PTVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ÉLIA SÃO PEDRO
Descritores: CRIME DE CONDUÇÃO EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ
CRIME DE CONDUÇÃO PERIGOSA DE VEÍCULO RODOVIÁRIO
CONCURSO APARENTE DE CRIMES
Nº do Documento: RP2017121429/13.9PTVNG.P1
Data do Acordão: 12/14/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIMENTO PARCIAL
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º61/2017, FLS.157-162)
Área Temática: .
Sumário: Estando em causa uma única acção naturalística – condução de veiculo em estado de embriaguez que crie perigo para a avida, integridade física de outrem ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado – ocorre entre o crime de condução de veiculo em estado de embriaguez (artº 292º CP) e o crime de condução perigosa de veiculo rodoviário (artº 291º CP) uma relação de concurso aparente, sendo a conduta punida pela pena prevista por este último (artº 291º CP) porque mais grave.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso Penal 29/13.9PTVNG.P1
Acordam na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto
1. Relatório
1.1. Na Comarca do Porto, V.N. Gaia, Instância Local, Secção Criminal J1, a Digna Magistrada do Ministério público requereu o julgamento em processo comum e perante Tribunal Singular de B…, devidamente identificado mos autos acima referenciados, imputando-lhe a prática de factos que, em seu entender, integram, em autoria material e concurso aparente, um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292°, n.º1 do Código Penal e um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo artigo 291°, nº1, als a) e b) do Código Penal, punível também com a sanção acessória de inibição de condução prevista no art.? 69º, nº 1, alínea a), do Código Penal.
1.2. Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença com a seguinte decisão (transcrição):
“ (…)
a) Julgo a acusação procedente, por provada, pelo que condeno o arguido B… pela prática, em autoria material e concurso real, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo art. 292°, n.º1, do Código Penal, na pena de 90 dias de multa diária de €5 o que perfaz a multa total de €450,00; e, pela prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo art° 291°, n.º, als a) e b) do C.P, na pena de 210 dias de multa, à taxa diária de €5 o que perfaz a muita total de € I.050,00.
Efectuado o cúmulo jurídico, vai o arguido condenado na pena única de 250 dias de multa, à taxa diária de €5, o que perfaz a multa total de €1.250,00 (mil duzentos e cinquenta euros).
b) Condeno ainda o arguido na sanção acessória de proibição de conduzir quaisquer veículos motorizados pelo período de 13 (treze) meses, nos termos do disposto no art° 69°, n.1 do Código Penal.
c) Mais vai o arguido condenado nas custas do processo, fixando-se em 2 UC a taxa de justiça e demais custos processuais.
(…) ”
1.3. Inconformado com tal decisão, o MP junto do Tribunal “a quo” recorreu para este Tribunal da Relação, terminando a motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
“ (…)
1°- Na acusação foi imputado ao arguido B… a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de Condução Perigosa de Veículo Rodoviário, previsto e punido pelo artigo 291°, n.º 1, alíneas a) e b), do Código Penal, em concurso aparente com um crime de Condução de Veículo em Estado de Embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292°, nº1, do Código Penal, Crimes puníveis também com a sanção acessória de proibição de conduzir veículos com motor, prevista no artigo 69°, n.º1, alínea a), do Código Penal.
2°- Realizada audiência de julgamento, foi proferida douta sentença que julgou procedente por provada a acusação, pelo que condenou o arguido B… pela prática, em autoria material e concurso real, de um crime de Condução de Veículo em Estado de Embriaguez, previsto e punido pelo art, 292°, nº1, do Código Penal, na pena de 90 dias de muita, à taxa diária de 5 euros, o que perfaz a multa total de 450 euros; e pela prática de um crime de Condução Perigosa de Veículo Rodoviário, previsto e punido pelo artigo 291°, nº1, als, a) e b), do Código Penal, na pena de 210 dias de multa, à taxa diária de 5 euros, o que perfaz a pena de multa de 1.050 euros. Efectuado cúmulo jurídico, condenou o arguido na pena única de 250 dias de multa, à taxa diária de 5 euros, o que perfaz a multa total de 1.250 euros. Condenou ainda o arguido na sanção acessória de proibição de conduzir quaisquer veículos motorizados pelo período de 13 meses, nos termos do disposto no artigo 69°, nº1, do Código Penal.
3° -Os factos constantes da acusação foram doutamente considerados como provados, concordando-se na íntegra com a factualidade considerada como provada e respectiva fundamentação.
4° - Todavia foi seguida uma qualificação jurídica diferente da constante da acusação, pelo que deveria ter sido dado cumprimento ao disposto no artigo 358°, nº3, do Código de Processo Penal.
5°- O artigo 291°, do Código Penal, apresenta duas categorias de comportamentos capazes de preencher o tipo de crime de Condução Perigosa de Veículo Rodoviário: uma primeira, relativa à ausência de condições para a condução e a segunda relativa à violação grosseira das regras de circulação automóvel.
6° - O crime de Condução Perigosa de Veículo Rodoviário previsto no artigo 291°, nº1, al. a), do Código Penal, quando a conduta consiste na falta de condições para exercer a condução por o agente se encontrar em estado de embriaguez, consome e abrange o crime de Condução de Veículo em Estado de Embriaguez, previsto no artigo 292°, n.º1, do Código Penal, existindo assim uma situação de concurso meramente aparente.
7° - Já o crime de Condução Perigosa de Veículo Rodoviário previsto no artigo 291°, n.º1 al. b), do Código Penal, relativo à violação grosseira das regras de circulação automóvel, poderá estar em concurso efectivo e real com o crime de Condução de Veiculo em Estado de Embriaguez, porquanto as condutas aí previstas são diversas.
8° - Afigura-se que a conduta do arguido, descrita nos factos provados da douta sentença, configura a prática do crime de Condução Perigosa, previsto e punido pelo artigo 291°, nº1, als. a) e b), do Código Penal (consumindo o crime previsto no artigo 292°, do Código Penal), tal como imputado na acusação; e que o arguido deverá assim ser punido pela prática do referido crime de Condução Perigosa, previsto e punido no nº1 do artigo 291°, do Código Penal, nas alíneas a) e b).
9° -O grau de ilicitude com que o arguido actuou é muito elevado, bem como a culpa. Na verdade, a taxa concreta de álcool no sangue que o arguido apresentava é muito elevada (1,92 gramas/litro de sangue) e inibidora do exercício de uma condução minimamente segura, O arguido, após sair de um estabelecimento de café onde esteve a consumir bebidas alcoólicas, resolveu exercer a condução do veículo que se encontrava estacionado junto ao referido estabelecimento. Logo ao iniciar a condução, embateu no veículo que se encontrava estacionado à frente, Não obstante tal embate, continuou a exercer a condução, tendo vindo a embater, escassos metros à frente, num quadriciclo que se encontrava estacionado na via pública, provocando a sua destruição. Apesar de tal segundo embate, o arguido continuou a exercer a condução, bem sabendo que não se encontrava em condições mínimas de o fazer com segurança, Para além disso, imprimiu ao veículo que conduzia velocidade excessiva e superior à permitida, tendo ainda invadido a faixa de rodagem contrária ao sentido de trânsito, violando assim a regra de obrigatoriedade de circulação na faixa de rodagem da direita, vindo a embater na frente de um veículo automóvel que circulava na referida faixa, em sentido inverso ao seu, Os danos provocados no segundo e no terceiro veículos embatidos ascendem, respectivamente, a pelo menos 4.000,00 euros 11.700,00 euros.
10° -Ponderando-se a moldura legal do crime de Condução Perigosa de Veículo Rodoviário, ao facto de a conduta do arguido preencher as duas alíneas do artigo 291°, n.1, do Código Penal (seguindo a qualificação jurídica que supra explanamos), afigura-se que a pena de multa se deveria situar mais próxima do limite máximo, ou seja, entre os 250 e os 290 dias de multa.
1.4. O arguido respondeu à motivação do recurso, formulando, por seu turno, as conclusões seguintes:
“ (…)
A. O Arguido concorda inteiramente com tudo o vertido no douto Recurso da Ilustre Procuradora-Adjunta no que ao primeiro ponto de um tal Recurso se refere, considerando a Sentença recorrida ferida de Nulidade, nos termos do preceituado no art. 379º, n.º 1, al. b) do C. P. Penal.
B. Impunha-se, nos termos da lei, fosse dado conhecimento ao Arguido da efectivada “transformação” da imputação em concurso aparente de crimes (de condução perigosa de veículo e de condução em estado de embriaguez) para concurso real.
C. Ao que parece, e com todo o devido e merecido respeito, a devida e legal comunicação não terá tido lugar, como preceituado no art. 358º do C. P. Penal, em razão de manifesto lapso do Tribunal “a quo”, patente no «Relatório» daquela sua douta Sentença, quando refere que o Ministério Público imputou ao arguido «em autoria material e concurso real» os aludidos crimes.
D. Independentemente do porque, a verdade é que, tendo a Acusação sido deduzida nos termos em que o foi, e sido recebida nesses precisos termos por douto Despacho com a Ref.ª 349423263, proferido nos termos do art. 311º do C. P. Penal, nunca a Sentença recorrida poderia haver condenado o Arguido pela prática em concurso real dos crimes em apreço sem que tivesse observado o dever de comunicar a ocorrida alteração da qualificação jurídica.
E. Tendo a Sentença recorrida condenado o Arguido por factos diversos dos descritos na Acusação, sem que haja cuidado de “observar” o disposto no art. 358º do C. P. Penal, conclui-se pela Nulidade da mesma, nos termos do disposto no art. 379º, n.º 1, al. b) do C. P. Penal.
F. O recurso interposto deverá, desde logo, no que a esta primeira questão se refere, ser julgado procedente e, nessa sequência, deverá ser revogada a Sentença recorrida, porque Nula, e ordenar-se a efectivação da comunicação devida nos termos do art. 358º, nºs 1 e 3 do C. P. Penal.
G. Sendo de reconhecer e decretar uma tal Nulidade, da Sentença recorrida, sempre se mostram como prejudicadas todas as demais questões “enunciadas” pela Ilustre Procuradora-Adjunta naquele seu douto Recurso,
H. Ainda assim, desde já se manifesta concordância com o que ali surge relativamente à segunda das questões enunciadas, relativamente à qualificação jurídica, entendendo-se o crime de condução em estado de embriaguez como “consumido” pelo crime de condução perigosa de veículo, logo, pela correcção da imputação a título de concurso aparente de crimes,
I. Mas, já o mesmo não se poderá dizer quanto à última das questões “levantadas”, não se concedendo num qualquer agravar da pena aplicada.
J. A douta Sentença recorrida violou o art. 358º, nºs 1 e 3 do C. P. Penal, e incorreu na Nulidade preceituada no art. 379º, n.º 1, al. b) do C. P. Penal, pugnando-se, por isso, pela procedência do Recurso apresentado logo nessa parte e pela revogação de uma tal Sentença.
1.6. Nesta Relação, Ex.º Procurador-geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso, “condenando-se o arguido como autor material de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo art.292º,n.º 1, al. a) e b) do CP em concurso aparente com um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292º, n.º 1, revogando-se e alterando-se, nessa parte, a sentença recorrida.”
1.7. Deu-se cumprimento ao disposto no art. 417º, 2 do CPP.
1.8. Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência.
2. Fundamentação
2.1. Matéria de Facto
A sentença recorrida deu como assente a seguinte matéria de facto:
A) Factos provados:
Dos relevantes para a decisão da causa, estão provados os seguintes factos:
1) No dia 22 de Outubro de 2013, em hora não concretamente apurada mas antes das 23 horas, o arguido B… consumiu bebidas alcoólicas, num estabelecimento de café localizado em …, Vila Nova de Gaia.
2) Após ingerir as bebidas alcoólicas, o arguido iniciou a condução do seu veículo automóvel, ligeiro de passageiros, com a matrícula .. - .. - IN, que se encontrava estacionado na Rua … e, de imediato, embateu contra o veículo que se encontrava estacionado à sua frente, propriedade de C….
3) Não obstante esta colisão, o arguido ausentou-se do local, prosseguindo a marcha, ao volante do seu veículo automóvel, pela mesma via, no sentido Oeste-Este.
3) Escassos metros adiante, o arguido embateu no quadriciclo com a matrícula … - DZ - .., que se encontrava estacionado na via pública, na mesma artéria, junto ao n° de polícia …., propriedade de D…, provocando a sua destruição.
4) A artéria pela qual o arguido circulou, possui duas faixas de rodagem, uma em cada sentido de trânsito.
5) A velocidade máxima permitida no local é de 50 Km/hora.
6) Não obstante ter colidido com dois veículos automóveis, o arguido continuou a circular com o veículo pela mesma artéria e no mesmo sentido de trânsito, a uma velocidade não concretamente apurada mas superior à velocidade permitida no local.
7) Em momento não concretamente apurado mas pelo menos ao chegar próximo do número de polícia …. da referida artéria, o arguido invadiu a faixa de rodagem destinada à circulação do trânsito em sentido contrário ao seu sentido de trânsito e foi embater, violentamente, na frente no veículo com a matrícula .. – FM - .., conduzido por E…, que circulava pela mesma artéria, pela faixa de rodagem que lhe estava destinada, no sentido Este/Oeste.
8) Em consequência das colisões resultaram danos nos veículos com a matrícula .. – DZ - .. e .. – FM - ...
9) Foi realizada colheita de sangue ao arguido no Centro Hospitalar F… e a análise ao sangue realizada pelo INMLCF, revelou uma TAS de 1,92 g/l,.
10) Ao actuar da forma descrita, o arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que por ter ingerido bebidas alcoólicas não estava em condições de exercer a condução e que violava grosseiramente as regras de segurança rodoviária relativas ao limite de velocidade e à obrigação de circular na faixa de rodagem da direita e, dessa forma, colocava em perigo a vida, a integridade física dos restantes utentes da via que aí circulavam e bens de valor elevado, como aliás aconteceu e, não obstante conduziu nas referidas circunstâncias.
11) O arguido conhecia as características do veículo e do local onde conduzia e sabia que tinha uma taxa de álcool no sangue elevada, em virtude de ter ingerido bebidas alcoólicas e, não obstante isso, quis conduzir nas referidas circunstâncias.
12) Mais sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.
Mais se provou:
13) Os danos referidos em 8) verificados nos veículos de matrículas .. – DZ - .. e .. – FM - .., ascenderam respectivamente a pelo menos €4.000,00 e €11.700,00.
14) O arguido não tem antecedentes criminais.
15) Nada consta averbado no seu RIC.
B)FACTOSNÃOPROVADOS
Não há.
(…) ”
2.2. Matéria de Direito
O MP insurge-se contra a sentença recorrida - que, além do mais, condenou o arguido pela prática, em autoria material e concurso real, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292°, n.º1, do C.P e pela prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo art° 291°, n.º, als a) e b) do C.P - por entender que a mesma alterou a qualificação jurídica dos factos da acusação, sem ter cumprido o disposto no art. 358º, n.º 3 do CPP, o que implica a sua nulidade. Com efeito, alega que tinha sido imputada ao arguido a prática dos referidos crimes, em concurso aparente, sendo que o mesmo acabou por se condenado pela prática, em concurso real, dos crimes de condução de veículo em estado de embriaguez (art. 292º,1 do CP) e condução perigosa de veículo rodoviário (art. 291º, 1, a) e b) do C.P), sem previamente ter sido cumprido o disposto no art. 358º,3 do CPP.
Nesta Relação, o Ex.º Procurador-geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso, por entender que os crimes imputados ao arguido estão, efectivamente, numa relação de concurso aparente, pelo que o mesmo deverá ser condenado apenas pela prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. art. 291º, 1, als. a) e b) do C.P, uma vez que a protecção visada por esta norma incriminadora consome a conduta enquadrável no art. 292º, 1 do CP (crime de condução em estado de embriaguez). “Neste entendimento (refere) e alterada que seja, nesta instância, a sentença recorrida, no que respeita à qualificação jurídica dos factos, como se propugna, ficará afastada a alteração da qualificação jurídica susceptível de justificar o cumprimento do art. 358º, n.º 3 do CPP”.
Vejamos.
Relativamente à questão colocada pelo MP/recorrente, ou seja, a nulidade da sentença, nos termos do art. 379º, 1, b) CPP, por ter condenado o arguido pela prática, em concurso real, dos crimes de condução de veículo em estado de embriaguez (art. 292º,1 do CP) e condução perigosa de veículo rodoviário (art. 291º, 1, a) e b) do C.P), quando lhe tinha sido imputada a prática dos referidos crimes, em concurso aparente (o que traduziria uma condenação resultante de uma alteração da qualificação jurídica dos factos da acusação, sem cumprimento do disposto no art. 358º, 3 do CPP), pensamos que o Ex.º Procurador Geral-adjunto nesta Relação tem toda a razão.
Com efeito, se se entender que os factos imputados ao arguido devem ser qualificados juridicamente como integrando apenas um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo art. 292º, 1, als a) e b) do C.P, em concurso aparente com um crime de condução de veículo em estado de embriaguez (art. 292º, 1do C.P) tal entendimento afastará a alteração da qualificação jurídica dos factos da acusação, a impor o cumprimento do disposto no art. 358º,3 do CPP. Na verdade, o MP tinha imputado ao arguido, na acusação, a prática dos referidos crimes, numa relação de concurso aparente, pelo que, a acolher-se essa qualificação, não ocorrerá qualquer alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, susceptível de obrigar ao cumprimento do art. 358º, 3 do CPP.
Deste modo e em primeiro lugar, deve apreciar-se a questão de saber se os aludidos crimes estão entre si numa relação de concurso real ou aparente, pois só no primeiro caso se colocará a questão da alteração da qualificação jurídica dos factos da acusação.
Nos termos do art. 30º,1 do C. Penal, o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
Nos presentes autos está em causa a interpretação do primeiro segmento da referida norma, ou seja, da expressão “número de tipos de crime efectivamente cometidos”, a qual não se identifica mecanicamente com o número de tipos de crime que prevêem uma concreta acção.
Em rigor, há que distinguir as situações em que a mesma acção concreta está prevista em mais do que um tipo de ilícito. Com efeito, o art. 29º, n.º 5 da Constituição proíbe qua alguém seja julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime, pelo que importa saber quando é que a mesma acção naturalística preenche só um ou mais do que um tipo de ilícito.
Haverá concurso aparente, legal ou impuro, quando o agente preenche vários tipos de crime, isto é, quando “o conteúdo ou a substância criminosa do comportamento é aqui tão esgotantemente abarcado pela aplicação ao caso de um só dos tipos violados que os restantes devem recuar, subordinando-se ou hierarquizando-se perante tal aplicação - FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal, Coimbra 1976, 102/103.
Importa assim averiguar se os valores jurídicos protegidos por um dos tipos preenchidos esgota totalmente os valores que os demais tipos violados também protegem. Quando tal acontecer, deve considerar-se que o agente comete apenas o crime cujo tipo garanta a maior protecção, ou seja e dito de outro modo, o tipo que é punido mais gravemente.
No presente caso, estão em causa os crimes de condução de veículo em estado de embriaguez e de condução perigosa de veículo rodoviário. O crime de condução em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292º, 1 do C.P, protege a circulação rodoviária, quer o agente ponha ou não em perigo a vida e segurança de bens pessoais e patrimoniais; o crime de condução perigosa de veículo rodoviário também protege a circulação rodoviária, mas exige uma acção mais gravosa e mais perigosa, pois só existe este tipo de crime quando o agente, com a sua acção, criar perigo para a vida ou para integridade física de outrem ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado - art. 291º, 1, a) e b) do C. Penal.
Ora, como resulta da comparação entre os dois tipos de ilícito, uma só acção de condução de veículo em estado de embriaguez que crie perigo para a vida ou integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, preenche os dois tipos de ilícito. Contudo, também resulta da mera leitura do art. 291º, 1, a) e b) do CP que este tipo de ilícito visa proteger os mesmos bens jurídicos que o crime de condução de veículo em estado de embriaguez, sendo que a reacção penal é mais intensa, pois no caso do art. 291º, 1, a) e b) do C.P o agente cria ainda um perigo concreto para vida, integridade física ou bens patrimoniais.
De resto, do próprio texto do artigo 292º, 1 do C. Penal resulta claramente que o legislador admite que este crime seja consumido por outros, quando expressa e literalmente refere que o crime é punível com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias “… se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”. A última parte do preceito tem precisamente o sentido de o crime em causa poder ser consumido por outro que integre a mesma acção (conduta) no seu tipo e a puna mais gravosamente.
É assim claro que o crime de condução em estado de embriaguez, p. p. pelo art. 292º, 1 do C.P é consumido pelo crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo art. 291º, 1, als a) e b) do C.P, ou seja, os aludidos crimes estão entre si numa relação de concurso aparente, devendo o arguido ser condenado apenas pela prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. art. 291º, 1, als. a) e b) do C. Penal.
Impõe-se, assim, revogar a sentença, no que se refere à qualificação jurídica dos factos e, nessa medida, condenar-se o arguido apenas pela prática do crime previsto e punido pelo art. 291º, 1, als a) e b) do CP.
O referido crime é punido, em abstracto, com pena de prisão até 3 anos ou pena de multa - art 292º, 1, a) e b) do C.P. Tendo a sentença recorrida optado pela pena de multa e não estando em causa a referida opção, a mesma deve manter-se e fixar-se a pena a aplicar ao arguido perante uma moldura de 10 a 360 dias – art. 47º, 1 do CP.
Tendo em conta o grau de ilicitude do comportamento evidenciado pela taxa de álcool no sangue - o arguido conduzia com uma TAS de 1,92 g/l -, o número de embates ocorridos - 3 - e os danos causados nos veículos, a modalidade do dolo - directo - a ausência de antecedentes criminais e as fortes exigências de prevenção geral e especial, a sentença entendeu condenar o arguido na pena de 210 dias de multa, à taxa diária de 5,00 euros.
O MP pugna, em recurso, pela condenação numa pena superior, mais próxima do limite máximo, “ou seja, entre 250 e os 290 dias de multa” (conclusão 10).
A nosso ver, a pena escolhida mostra-se adequada e justa, principalmente por se tratar de um condutor primário. É verdade que a ilicitude é elevada e o dolo foi directo, mas também é verdade que a pena aplicada se mostra superior ao termo médio da respectiva moldura, pelo que deve manter-se a condenação na pena de 210 dias de multa, à taxa diária de €5, o que perfaz a muita total de €1.050,00.
Assim, deve conceder-se provimento ao recurso e, consequentemente, revogar-se a sentença recorrida, na parte relativa à qualificação jurídica dos factos, isto é, na parte em que condenou o arguido, pela prática, em autoria material e concurso real, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292°, n.º1, do C. Penal e de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo art° 291°, n.º 1 als a) e b) do C. Penal, na pena única de 250 dias de multa, à taxa diária de €5, no total de €1.250,00, e condenar-se o arguido apenas pela prática do crime previsto e punido pelo art. 291º, 1, als. a) e b) do CP, nos termos acima expostos.
3. Decisão
Face ao exposto, os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do proto acordam:
a) Conceder parcial provimento ao recurso e consequentemente revogar a sentença recorrida, na parte relativa à qualificação jurídica dos factos, isto é, na parte em que condenou o arguido pela prática, em autoria material e concurso real, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292°,1, do C.P e de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo art° 291°, n.º 1 als a) e b) do C.P, na pena única, resultante do cúmulo jurídico, de 250 dias de multa, à taxa diária de €5,00 no total de €1.250,00.
b) Condenar o arguido B… como autor material de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo art° 291°, n.º 1 als a) e b) do C. Penal, em concurso parente com crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292°,1 do C.P, na pena de 210 (duzentos e dez) dias de multa, à taxa diária de €5,00, perfazendo a multa global de €1.050,00 (mil e cinquenta euros) e na pena acessória de proibição de conduzir veículos automóveis motorizados pelo período de 13 (treze) meses.
C) Manter, no mais, a decisão recorrida

Sem custas.
Porto, 14/12/2017
Élia São Pedro
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