Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | MANUEL SOARES | ||
Descritores: | CRIME DE DIFAMAÇÃO JUÍZO DE VALOR ACÇÃO JUDICIAL TUTELA JURÍDICA DOLO | ||
Nº do Documento: | RP201803216668/15.6T9PRT.P1 | ||
Data do Acordão: | 03/21/2018 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REC PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO | ||
Indicações Eventuais: | 4ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º754, FLS.61-67) | ||
Área Temática: | . | ||
Sumário: | I – Instaurada uma acção judicial em que o fundamento jurídico da pretensão se baseia na alegação e prova da negligencia medica não é possível expor tal pretensão sem invocar o que se considera ter sido uma actuação incompetente do médico. II – Constitui um juízo de valor opinativo qualificar o trabalho de um médico como incompetente, incapaz ou destituído de conhecimentos técnicos. III- Aquela acção insere-se no exercício dos direitos de acesso à tutela jurisdicional e de expressão de opinião sobre a actuação profissional da assistente executada no âmbito de um contrato de prestação de serviços, e como tal o direito foi exercido de forma legítima e sem violação dos princípios de adequação e proporcionalidade. IV – Actuando no exercício de um direito, o uso, na petição inicial, de expressões que visam demonstrar que parte contrária actuou violando a lei, para que se possa dar como indiciado o dolo do arguido é necessário que da prova resultem evidencias seguras de que o seu propósito não era fazer valer o seu direito em tribunal mas sim ofender a honra e consideração do assistente com conhecimento da falsidade das imputações feitas. | ||
Reclamações: | |||
Decisão Texto Integral: | Processo nº 6668/15.9T9PRT.P1 Comarca do Porto 1ª Secção do Juízo de Instrução Criminal de Matosinhos Acórdão deliberado em Conferência Por decisão instrutória de 11 de Outubro de 2017 o tribunal de instrução criminal decidiu não pronunciar os arguidos B… e C… pelo crime de difamação, previsto no artigo 180º do Código Penal (CP), que lhes foi imputado na acusação particular dos assistentes Clínica D…, S.A. e E….1. Relatório 1.1 Decisão recorrida 1.2 Recurso Recorreram da decisão instrutória os assistentes, pedindo que os arguidos sejam pronunciados pelo crime que lhes imputou. Invocaram, sinteticamente, os seguintes fundamentos:- As expressões proferidas pelos arguidos, na acção que interpuseram contra os assistentes, são mentirosas e difamatórias, pois não se limitaram a narrar os factos, antes emitiram juízos de valor vexatórios e desonrosos. - Os arguidos distorceram e inventaram factos para justificar a sua pretensão, o que não era necessário para a defesa dos seus interesses e violou os princípios da adequação e proporcionalidade. - As expressões constantes da petição inicial têm dignidade penal porque ofendem a honra e consideração das assistentes. - Os arguidos actuaram com consciência da ilicitude e não há qualquer prova da qual resulte que estavam em erro sobre um estado coisas que, a existir, excluiria a ilicitude ou a culpa. - A actuação dos arguidos visou apenas o objectivo de enriquecerem indevidamente à custa dos assistentes. O Ministério Público respondeu ao recurso manifestando-se pela sua improcedência, dado entender, em resumo, que as expressões em causa foram proferidas para realizar um interesse legítimo da arguida e resultam do exercício da liberdade de expressão dos mandatários judiciais e não colocam e causa as qualidades morais dos assistentes, pois as críticas foram efectuadas à sua actuação profissional; acrescendo ainda que os factos não seriam susceptíveis de preencher o crime de difamação tendo como ofendida a assistente sociedade e que a acusação não imputa ao arguido factos para integrar o elemento subjectivo do crime. Na Relação o Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, acompanhando a resposta a que acabámos de aludir. 2. Questões a decidir no recurso A única questão a decidir é a de saber se o tribunal de instrução criminal deveria ter proferido decisão instrutória de pronúncia por terem sido recolhidos indícios suficientes de que os arguidos praticaram o crime que lhes imputam os assistentes.3. Fundamentação Importa começar por transcrever a parte relevante da decisão instrutória sob recurso, respeitante à avaliação e qualificação jurídica dos indícios:3.1. Súmula da decisão recorrida «Dos autos resulta suficientemente indiciado que a intenção da arguida era a do exercício do seu direito a uma tutela jurisdicional efectiva, direito esse adequado a excluir a ilicitude daquelas alegações. Por outro lado, analisadas as expressões constantes da petição inicial que é objecto da acusação, subscrita pelo arguido na qualidade de mandatário da arguida, consideramos que as mesmas não se revelam de dignidade penal, que justifique uma censura através de uma condenação penal. Dos autos resulta suficientemente indiciado que a intenção da arguida era a do exercício do seu direito a uma tutela jurisdicional efectiva, direito esse adequado a excluir a ilicitude daquelas alegações. Por outro lado, analisadas as expressões constantes da petição inicial que é objecto da acusação, subscrita pelo arguido na qualidade de mandatário da arguida, consideramos que as mesmas não se revelam de dignidade penal, que justifique uma censura através de uma condenação penal. Principalmente no contexto em que foram produzidas, e pelo destinatário do referido articulado. O escrito contendo as imputações e juízos alegadamente ofensivos tinha por principal destinatário o Juiz de Direito da Comarca do Porto, a quem foi distribuída a referida acção cível. Seguramente, o juiz titular do processo não formulou qualquer juízo sobre a personalidade ou idoneidade do assistente apenas com base nas alegações dos arguidos. Os factos alegados só podiam produzir algum efeito na formação da convicção do juiz se fossem adequadamente provados. Sem essa prova, o juiz permaneceu na situação de dúvida ou desconhecimento preexistente à alegação daqueles factos e conclusões. Logo, dos factos alegados e das razões invocadas pelos arguidos na referida acção não poderia resultar um dano relevante à honra e consideração social dos assistentes. Na expressão de Cezar Roberto Bittencourt, "a tipicidade penal exige uma ofensa de alguma gravidade aos bens jurídicos protegidos pois nem sempre qualquer ofensa a esses bens ou interesses é suficiente para configurar o injusto típico.(...) É imperativa uma efectiva proporcionalidade entre a gravidade da conduta que se pretende punir e a drasticidade da intervenção estatal. Amiúde, condutas que se amoldam a determinado tipo penal, sob o ponto de vista formal, não apresentam nenhuma relevância material. (...) A irrelevância ou insignificância de determinada conduta deve ser aferida não apenas em relação à importância do bem juridicamente atingido, mas especialmente em relação ao grau da sua intensidade, isto é, pela extensão da lesão produzida, como por exemplo, nas palavras de Roxin, "mau-trato não é qualquer tipo de lesão à integridade corporal, mas somente uma lesão relevante; uma forma delitiva de injúria é só a lesão grave a pretensão social de respeito" ("Teoria Geral do Delito", p. 187 a 189). Não cremos que essa lesão grave se mostre suficientemente indiciada, pelo que se nos afigura improvável a responsabilidade penal dos arguidos. Mesmo que o contrário se admitisse, apenas por mera hipótese de raciocínio, afigura- se-nos que os arguidos deveriam ser absolvidos em julgamento, por não ser possível excluir a forte possibilidade de os mesmos terem actuado em erro sobre os elementos relativos a uma causa de exclusão da ilicitude ou em "erro sobre um estado de coisas que, a existir, excluiria a ilicitude do facto ou a culpa do agente", adequados a excluir o dolo, na expressão do n.° 2, com referência ao n.° 1, do artigo 16.° do Código Penal.» 3.2. O critério legal: “indícios suficientes” Resulta do disposto no artigo 286º nº 1 do Código de Processo Penal (CPP), no que é aplicável ao caso, que a instrução visa a comprovação judicial da decisão de arquivar o inquérito. Segundo dispõe o artigo 308º nº 1 do CPP, essa comprovação exige que até ao encerramento da instrução tenham sido recolhidos indícios suficientes de que se verificam os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança. Indícios suficientes serão aqueles dos quais resulte uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança (artigo 283º nº 2, aplicável ex vi artigo 308º nº 2 do CPP). Como acontece com muitas outros preceitos que contêm conceitos abertos, o significado normativo do vocábulo “indícios suficientes” não é objecto de leitura uniforme na doutrina nem tão pouco tem sido interpretado e aplicado da mesma maneira pelos nossos tribunais. Tivemos oportunidade de analisar mais em detalhe este conceito no acórdão TRP, de 7DEZ2016 (processo 866/14.7PDVNG.P1, consultável em www.dgsi.pt), para o qual remetemos. Aí concluímos que “o juiz de instrução deverá proferir despacho de pronúncia quando considerar que os indícios disponíveis, avaliados em função do seu valor probatório no momento e de uma previsão prudente sobre a sua evolução dinâmica em julgamento, conduzem a uma conclusão racionalmente fundada em elementos objectiváveis de que é mais provável que o arguido venha a ser condenado do que absolvido e de que se justifica, no plano da proporcionalidade, comprimir o direito à presunção de inocência em nome da protecção do direito à realização da justiça e da protecção dos valores com tutela penal”. Definida a nossa interpretação de que existem indícios suficientes quando predomina a probabilidade de condenação, estamos em condições agora de avançar para a aplicação do nosso critério ao caso em apreço. 3.4. Verificação da suficiência dos indícios O que está em causa nesta instrução tem a ver com as expressões utilizadas na petição inicial de uma acção de responsabilidade civil por danos alegadamente causados por actos médicos, interposta pela arguida, na qualidade de lesada, e subscrita pelo arguido, seu mandatário judicial, contra o assistente médico e a assistente sociedade (dona da clínica onde tais actos foram praticados).Do que acaba de se afirmar resulta já claro que não há qualquer dúvida sobre o conteúdo objectivo das expressões em causa, pois elas estão documentadas no processo. O que é controverso é se as mesmas preenchem ou não o tipo de crime de difamação ou, dito de outra maneira, se constituem imputação de factos, ainda que sob a forma de suspeita, ou formulação de juízos, ofensivos da honra ou consideração dos assistentes. Como vimos, são no essencial três os argumentos em que o tribunal baseou a decisão de não pronúncia. Por um lado, porque se verifica a causa de exclusão de ilicitude prevista no artigo 31º nº 1 e nº 2 al. b) do CP, visto a acção ter sido praticada no exercício dos direitos de livre expressão do pensamento e de acesso à tutela jurisdicional. Em segundo lugar, porque as expressões, no contexto em que foram proferidas e em face do seu destinatário, não têm dignidade suficiente que justifique a tutela penal. Por fim, porque, ainda que assim não se entendesse, a hipótese de absolvição seria mais provável do que a de condenação, dada a possibilidade de os arguidos terem actuado na situação de erro sobre um estado de coisas que, a existir, excluiria a ilicitude ou a culpa, previsto no artigo 16º nºs 1 e 2 do CP. A argumentação dos assistentes, repetitivamente desenvolvida ao longo de 45 conclusões, é, em suma, que as expressões são falsas e caluniosas e foram proferidas de forma desadequada e desproporcional, não podendo beneficiar da exclusão da ilicitude; que a sua dignidade penal resulta do artigo 26º nº 1 da Constituição, que protege o direito à honra e consideração, e que nada se provou que permita levantar a hipótese de os arguidos terem actuado em erro. É pacífico que a ofensa à honra no crime de difamação pode ser perpetrada através da imputação de factos ou da formulação de juízos. Quando se trate da imputação de factos, ainda que sob a forma de suspeita, a conduta não é crime caso se verifiquem os pressupostos de exclusão de punibilidade do artigo 180º nº 2 do CP. Já quando se trate da formulação de juízos, a exclusão da ilicitude não está regulada nesse preceito mas sim na norma geral do artigo 31º do CP. Importa, assim, começar por verificar se no caso em análise a acção configurada pelos assistentes como criminosa, se traduziu na imputação de factos ou na formulação de juízos, pois isso condiciona a análise do recurso em que se discute precisamente a exclusão da ilicitude. As expressões alegadamente difamatórias da petição inicial subscrita pelo arguido em representação da arguida, imputadas na acusação dos assistentes, são as seguintes: - “manifesta incapacidade e incompetência do médico”, “resultados foram ainda mais catastróficos para o rosto da A.” (artigo 12º da PI); - “o 2º Réu nem sequer se encontra inscrito como médico - cirurgião plástico”, “mas sim como mero Cirurgião - Geral” (artigo 13º da PI); - “o 2º Réu era cientificamente incompetente para realizar a intervenção que se propôs, dolosamente enganando a Autora pois omitiu deliberadamente tal facto” (artigo 14º da PI); - “revela uma total incapacidade e falta de conhecimentos técnicos de cirurgia plástica” (artigo 15º da PI); - “A A. foi objectivamente enganada pelo 2º Réu omitiu a esta que não tinha capacidades técnicas, conhecimento e domínio da legis artis médica, para efectuar operações cirúrgicas ao rosto (…) e que não era, nem nunca foi, cirurgião plástico” (artigo 18º da PI); - “A A. foi esbulhada do rosto que sempre teve, graças à incapacidade do 2º Réu” (artigo 21º da PI); - “A A. deixou de ter a expressão no seu olhar que sempre teve” (artigo 22º da PI); - “acção grosseiramente negligente e incompetente do Réu (artigo 31º da PI); - “falta de formação e conhecimento do 2º Réu, que efectuou procedimentos cirúrgicos para os quais não estava devidamente habilitado, e que hábil mas capciosamente ocultou, pois não tinha capacidades técnicas nem conhecia a legis artis adequada enganando a A. e levando-a a acreditar que estava preparado para realizar cirurgias plásticas no seu rosto” (artigo 33º da PI); - “graças à incompetência grosseira do 2º Réu” (artigo 48º da PI). Há ali expressões que correspondem apenas à opinião subjectiva da arguida sobre os efeitos dos actos médicos na sua imagem física: “resultados foram ainda mais catastróficos para o rosto da A.” (artigo 12º da PI), “foi esbulhada do rosto que sempre teve” (artigo 21º da PI) e “deixou de ter a expressão no seu olhar que sempre teve” (artigo 22º da PI). Noutras, trata-se da formulação de juízos opinativos sobre a competência profissional e qualificações técnicas do arguido médico: “manifesta incapacidade e incompetência” (artigo 12º da PI), “revela uma total incapacidade e falta de conhecimentos técnicos de cirurgia plástica” (artigo 15º da PI), “acção grosseiramente negligente e incompetente” (artigo 31º da PI), “falta de formação e conhecimento” (artigo 33º da PI) e “incompetência grosseira” (artigo 48º da PI). As expressões acabadas de reproduzir correspondem a juízos de valor sobre a competência do arguido médico para realizar as cirurgias e tratamentos médicos, que a arguida considera violadores dos seus direitos de personalidade e geradores de responsabilidade civil. No despacho sob recurso afirmou-se que tais expressões não são ilícitas porque correspondem ao exercício legítimo dos direitos de expressão da opinião e de recurso à tutela jurisdicional. Concordamos. A arguida, através do seu advogado, no exercício legítimo de um direito, pretende ser ressarcida de danos que considera terem sido causados pela actuação culposa do assistente e sujeitou a sua pretensão à apreciação jurisdicional. Uma vez que o fundamento jurídico da pretensão se baseia na alegação e prova da negligência, não se vê como poderia a arguida expor a sua pretensão sem invocar o que considera ter sido uma actuação incompetente do médico. Não se trata de um juízo ofensivo da honra ou consideração, dirigido à pessoa do assistente médico, mas sim de um juízo opinativo sobre a forma como actuou no exercício da sua profissão. Como tal, do nosso ponto de vista, nem seria necessário sequer convocar a norma do artigo 31º do CP para enquadrar os factos numa causa de exclusão de ilicitude, pois isso pressupõe que o acto preenche o tipo de ilícito do crime de difamação, o que não nos parece correcto. De todo o modo, ainda que se entendesse que emitir um juízo de valor opinativo sobre o trabalho de um médico, qualificando-o como incompetente, incapaz e destituído de conhecimentos técnicos, constitui ofensa à honra e consideração, parece-nos claro que, no contexto em que as expressões foram usadas, a sua ilicitude se encontraria excluída. A Constituição protege como direitos fundamentais a integridade moral das pessoas (25º nº 1) e o bom nome e reputação (26º nº 1). Mas também protege, com igual dignidade, os direitos de expressão livre do pensamento pela palavra (37º nº 1) e de acesso ao direito e a tutela jurisdicional efectiva (20º). Do mesmo modo a Declaração Universal dos Direitos Humanos elege como direitos fundamentais, colocando-os no mesmo plano de protecção, a personalidade jurídica (6º), a honra e reputação (12º), a liberdade de pensamento (18º), de opinião e expressão (19º) e de acesso ao tribunal (10º). Na Convenção Europeia dos Direitos Humanos estão também protegidos as liberdades de pensamento e consciência (9º nº 1) e de expressão, compreendendo esta a liberdade de opinião e de transmissão de ideias, que pode no entanto ser objecto das restrições necessárias para a protecção da honra alheia (10º) e o direito ao processo judicial (6º). Por fim, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia protege a inviolabilidade da dignidade ser humano (1º), as liberdades de pensamento e consciência (10º) e de expressão, opinião e transmissão das ideias (11º) e de acesso à acção judicial (47º). Como facilmente se vê nas normas referidas, os direitos fundamentais à dignidade, honra, reputação e bom nome pessoais, por um lado, e à liberdade de opinião e expressão e ao direito de acesso à justiça, por outro, têm força jurídica equivalente, o que significa que em muitas situações concretas existirão zonas de conflito ou colisão. E por isso torna-se crucial encontrar os critérios legais que nos permitam encontrar a solução para essa colisão. A Constituição não estabelece uma hierarquia de direitos fundamentais nem contém qualquer norma que directamente resolva as situações de conflito entre eles. Contudo, ao admitir apenas as restrições estritamente necessárias para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (18º nº 2), adopta o critério da necessidade, do qual resulta que a limitação ao exercício do direito fundamental só é admissível se tiver em vista a protecção de outro direito fundamental e apenas na medida do estritamente necessário para atingir essa finalidade. O Código Civil contém também duas normas de aplicação geral que que nos permitem encontrar critérios de delimitação de direitos nos casos de conflitos. Por um lado, o artigo 334º estabelece limitações ao exercício de qualquer direito inerentes aos princípios da boa fé, dos bons costumes e do seu fim social ou económico. Isso significa que quer o exercício da liberdade de opinião e expressão quer a defesa do direito à honra e bom nome se têm de conter dentro daquelas limitações e que estas são relevantes para a harmonização dos direitos em caso de colisão. Por outro lado, o artigo 335º acolhe os princípios da cedência recíproca e da necessidade e proporcionalidade como métodos de harmonização e concordância de direitos conflituantes. A Convenção Europeia dos Direitos Humanos, que é direito interno de aplicação directa, porém, contém no seu artigo 10º uma regra que nos dá um critério substancialmente distinto de harmonização dos direitos em causa. De acordo com o que resulta da norma, a liberdade de expressão é um princípio fundamental da sociedade democrática e as restrições legalmente consentidas – como as necessárias para a protecção da honra – constituem excepções que carecem de ser interpretadas de forma estrita. Ou seja, a Convenção dá clara prevalência à liberdade de opinião e expressão, na medida em que considera excepcionais as restrições consentidas. A jurisprudência nacional e internacional sobre a matéria é muito vasta e não seria aqui o lugar para a analisar detalhadamente. Até porque a harmonização prática dos direitos em conflito é muito casuística e dificilmente se enquadra em categorizações que podem levar a perder de vista o contexto e particularidades do caso concreto. A actuação dos arguidos inseriu-se no exercício dos direitos de acesso à tutela jurisdicional e de expressão de opinião sobre a actuação profissional do assistente, executada no âmbito de um contrato de prestação de serviços. As expressões em causa foram usadas na petição inicial de uma acção civil para fundamentar a alegação da negligência que pode fundamentar o direito à indemnização. O direito foi exercido de forma legítima, sem violação dos princípios de adequação e proporcionalidade. Dificilmente se pode configurar outra forma de a arguida expor a sua pretensão sem qualificar o trabalho do assistente como negligente e incompetente. Aliás, a demonstração de que o texto da petição inicial não ultrapassa, de modo algum, os limites da licitude no uso da liberdade de expressão numa peça processual, está no próprio texto da acusação particular que agora apreciamos. Veja-se as expressões que os assistentes usaram para qualificar a acção dos arguidos: “extorquir dinheiro” (11º e 14º), “graves mentiras” (15º), “a arguida não se inibe de mentir desta forma inexplicável!!!” (17º), “agindo de má-fé e com segundas intenções” (35º) e “tem apenas como finalidades, a obtenção de injustificados ganhos financeiros” (37º). Perguntamos nós se, utilizando o critério demasiado apertado de licitude que nos é proposto pelos assistentes, não teríamos de concluir que também eles difamaram a arguida? O fim prosseguido pelos arguidos é legítimo e tem protecção legal. O modo de exercício da liberdade de expressão não foi desproporcionado em relação ao fim prosseguido nem ofendeu de maneira irrazoável a esfera de dignidade pessoal dos assistentes. Trata-se de juízos de valor, que são por natureza subjectivos, e que, mesmo que sejam exagerados, não têm de ser verdadeiros ou merecer a concordância de todos. Entendemos, em conclusão, que a forma correcta e justa de harmonizar neste caso os dois direitos em conflito, fazendo-os ceder reciprocamente até ao limite de um equilíbrio que dê a máxima protecção possível a cada um, é admitir como lícitas as expressões da petição inicial analisadas até este momento. Concordamos, portanto, com a apreciação que o tribunal fez para concluir que o uso destas expressões opinativas tem a ilicitude excluída por corresponder ao exercício legítimo de direitos fundamentais, contido nos estritos limites de adequação e proporcionalidade. Mas a análise da questão não se esgota aqui. A petição inicial não contém apenas afirmações subsumíveis no conceito de juízos de valor. Há lá também imputação de factos. Vejamos então a que expressões nos estamos a referir: - “o 2º Réu nem sequer se encontra inscrito como médico-cirurgião plástico”, “mas sim como mero Cirurgião-Geral” (artigo 13º da PI); - “o 2º Réu era cientificamente incompetente para realizar a intervenção que se propôs, dolosamente enganando a Autora pois omitiu deliberadamente tal facto” (artigo 14º da PI); - “A A. foi objectivamente enganada pelo 2º Réu omitiu a esta que não tinha capacidades técnicas, conhecimento e domínio da legis artis médica, para efectuar operações cirúrgicas ao rosto (…) e que não era, nem nunca foi, cirurgião plástico” (artigo 18º da PI); - “efectuou procedimentos cirúrgicos para os quais não estava devidamente habilitado, e que hábil mas capciosamente ocultou, pois não tinha capacidades técnicas nem conhecia a legis artis adequada enganando a A. e levando-a a acreditar que estava preparado para realizar cirurgias plásticas no seu rosto” (artigo 33º da PI). O significado objectivo destas afirmações é inequívoco. O que se diz na petição inicial é que o assistente médico mentiu sobre as suas habilitações profissionais antes de realizar os actos médicos para os quais foi contratado, omitindo que não era cirurgião plástico. Aqui estamos claramente no domínio da imputação de factos e não já na formulação de juízos de valor. Trata-se de afirmações que podem ser consideradas ofensivas da honra e consideração do assistente, na medida em que, numa certa leitura, correspondem à acusação de que ele foi mentiroso e que enganou a arguida para obter ganhos ilegítimos. Desse modo, os factos imputados têm valor negativo sobre o carácter do assistente e também sobre a sua reputação profissional e pessoal. No entanto, para que se dê como suficientemente indiciado o crime de difamação, não basta o preenchimento dos elementos objectivos do tipo legal. É necessário que os indícios nos digam, com um grau de probabilidade preponderante, que os arguidos actuaram com uma vontade livremente determinada de praticar o acto com a consciência de que as expressões são ofensivas da honra e consideração alheias, ou pelo menos que são aptas a causar ofensa e que, nessa actuação, tivessem consciência da ilicitude. Na acusação imputa-se aos arguidos o objectivo de ofenderem a honra e reputação profissional do assistente médico, com a imputação de factos falsos (41º), a actuação com o propósito de ofender a sua honra (50º) e que a arguida sabia que a sua conduta era proibida (51º). Parece-nos que uma análise cuidada da prova não permite extrair essa conclusão de que os arguidos actuaram representando a ofensa da honra ou consideração do assistente por qualquer das formas previstas no artigo 14º do CP. Não podemos pôr de parte o facto de as afirmações terem sido feitas na petição inicial de uma acção em que se invocam factos pretensamente constitutivos do direito indemnizatório. Neste contexto, em que se exerce um direito e se usam expressões que visam demonstrar que a parte contrária actuou violando a lei, para que se pudesse dar como indiciado o dolo dos arguidos, era necessário que da prova resultassem evidências seguras de que o seu propósito não era fazer valer o direito em tribunal mas sim ofender a honra e consideração do assistente, com conhecimento da falsidade das imputações feitas. Nada disso resulta da prova. É certo que neste momento nada nos permite supor ser verdadeira a afirmação de que o assistente omitiu a sua falta de habilitações formais para realizar os actos médicos na arguida. No documento da clínica ele aparece identificado como médico de cirurgia geral, o que de resto corresponde ao seu certificado de licenciatura – ao contrário de outro médico que aparece referido como cirurgião plástico (documentos de fls. 69 e 264, frente e verso). Mas a probabilidade de a arguida ter recorrido aos serviços do assistente convencida que ele era cirurgião estético ou plástico (aqui no sentido comum do termo) e de não lhe ter sido dito ou não se ter apercebido que isso não correspondia à verdade, não está de todo afastada. Veja-se até que o assistente médico juntou um conjunto de documentos que atestam a sua participação em acções de formação sobre medicina plástica (67, 100), estética (70, 75, 76, 85, 89, 90, 91, 99, 104, 105, 106), cosmética (72, 79, 102, 103, 104) e dermo cosmética (73, 74, 79). É assim nosso entendimento que não estão suficientemente indiciados os factos necessários para o preenchimento do elemento subjectivo do crime de difamação imputado aos dois arguidos. Além disso, no que respeita à assistente sociedade, não se encontra nada na acusação que permita dizer que as imputações visaram a assistente sociedade e não apenas o assistente médico. Os factos desonrosos são imputados ao assistente médico. Não há factos que permitissem minimamente ter como preenchidos os pressupostos do crime de ofensa a pessoa colectiva. Sendo assim, não está verificado o critério da probabilidade dominante de condenação dos arguidos para se dar como suficientemente indiciada a prática do crime. Improcede portanto o recurso. São devidas custas pelos recorrentes, nos termos conjugados dos artigos 515º nºs 1 al. b) do CPP e 8º nº 9 do Regulamento das Custas Judiciais, entre 3 e 6 UCs, como fixado na sua Tabela III. 4. Decisão Pelo exposto, acordamos em julgar o recurso improcedente e em consequência decidimos confirmar o despacho de não pronúncia.Fixa-se em 4 UC a taxa de justiça devida pelo recurso a cargo dos assistentes. Porto, 21 de Março de 2018 Manuel Soares João Pedro Nunes Maldonado |