Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1289/13.0T3AVR.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA BACELAR
Descritores: DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
PROSSEGUIMENTO DO PROCESSO
PROSSEGUIMENTO DOS AUTOS
Nº do Documento: RP201701111289/13.0T3AVR.P2
Data do Acordão: 01/11/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º2/2017, FLS.108-112)
Área Temática: .
Sumário: Uma vez proferido despacho de não pronúncia deve ser indeferido o prosseguimento dos autos para conhecimento do pedido de indemnização civil.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1289/13.0T3AVR.P2

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. RELATÓRIO
No processo comum n.º 1289/13.0T3AVR, da Comarca de Aveiro – Aveiro – Instância Central – 1.ª Secção Criminal – J1, foi indeferido o prosseguimento dos autos para conhecimento do pedido de indemnização civil neles formulado.

Inconformado com tal decisão, o Assistente B… dela interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões [transcrição]:
«
Nos autos supra referenciados o assistente veio requerer, antes do transito em julgado da decisão relativa à matéria penal, o prosseguimento dos autos para apuramento das responsabilidades civis do arguido. O sr. juiz titular do processo indeferiu tal requerimento proferindo despacho que considerou que os presentes autos estavam findos, por decisão transitada em julgado, entendendo não existir fundamento legal para o requerido.

No encerramento do inquérito foi o assistente, ora recorrente, notificado para deduzir acusação particular nos termos do artigo 285º, nº 1 do CPP, por entender que os ilícitos imputados ao arguido/demandado tinha uma natureza particular. Uma vez que os fatos imputados ao arguido eram causadores de danos de natureza civil, por serem adequados a ofender o crédito, o bom- nome e a dignidade profissional do assistente, foi formulado pedido de indemnização civil, à luz do princípio da adesão obrigatória consagrado no artigo 71º do CPP.

O artigo 129º do Código Penal estipula que a indemnização por perdas e danos é regulada pela lei civil. O pedido cível nos crimes particulares é independente do processo crime. E a decisão de arquivamento no inquérito não constitui caso julgado relativamente ao pedido cível formulado nos autos. Por conseguinte, embora o legislador tenha consagrado o princípio da adesão, estipulando que o pedido de indemnização cível pela prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado nos casos previstos na lei (artigo 71º do CPP), a verdade é que o processo para apuramento de responsabilidades civis tem uma vida autónoma e não fica na dependência do que vier a acontecer ao apuramento das responsabilidades criminais.

Nos autos existem um pedido cível devidamente formulado, acompanhado dos elementos definidos na lei processual civil e foram produzidas provas que podem ser consideradas relevantes à descoberta da verdade material dos factos no processo civil que os autos prosseguissem para apuramento de responsabilidades civis, uma vez que tal foi requerido pelo demandante.

Todavia, apesar dos fatos imputados ao arguido não preencherem um tipo legal de crime, nada impede que constituam um ilícito cível e que estejam preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, nos termos do artigo 483º, nº 1 e 484º do Código Civil. O processo penal não se pronunciou sobre o pedido cível formulado pelo demandante, pois o processo não chegou a julgamento.

Portanto, ao assistente/demandante assiste o direito de exigir do sistema judicial se pronuncie sobre o pedido cível formulado nos termos do artigo 20º, nº 1 da Constituição de 1976. Nos termos do artigo 71º, nº 1 b), conjugado com o artigo 20º, nº 1 da Constituição, ao assistente assiste o direito de recorrer aos tribunais civis para reparar a ofensa ao bom nome e dignidade profissional pelos fatos que lhe foram imputados pelo demandado.

Para isso teria que elaborar uma petição inicial e instruí-la com todos elementos referido na lei processual civil e remete-la à instância cível competente. Acontece porém, que este trabalho do demandante já se encontra feito no âmbito dos presentes autos, onde existe uma petição com descrição da matéria de fato e de direito, um pedido cível formulado e elementos de prova. Acresce ainda, que os referidos autos têm elementos de prova que foram sujeitos ao princípio do contraditório, que são relevantes para a descoberta da verdade material dos fatos relativos à responsabilidade civil, evitando-se a sua repetição na instância cível. Assim, por razões de economia processual, devem o requerimento do demandante ser deferido e, consequentemente, os autos prosseguir para apuramento das responsabilidades civis do demandado.

O despacho recorrido padece de nulidade por manifesta falta de fundamentação.
Pedido
Em face do supra alegado vem requerer-se que o despacho proferido pelo tribunal recorrido, que indeferiu o requerimento apresentado pelo demandante para que os autos prosseguissem para apuramento das responsabilidades civis do demandado e a negou a possibilidade dos autos serem remetidos à instância competente para apuramento das responsabilidades civis do demandado, seja revogado e consequente, seja substituído por outro que determine que os autos prossigam para o apuramento das responsabilidades civis do demandado.
V. Exªs farão a costumada justiça.»

O recurso foi admitido.
Na resposta que, sem conclusões, foi apresentada pelo Arguido C…, junto do Tribunal recorrido, conclui-se pela improcedência do recurso.

Respondeu, também, o Ministério Público, junto do Tribunal recorrido, formulando as seguintes conclusões [transcrição]:
«1. A decisão de não pronúncia do arguido pela prática do crime de difamação imputado transitou em julgado.
2. A factualidade subjacente já não poderá ser reapreciada, a nível penal, sem que se ponha em causa os valores fundamentais do direito processual: o da segurança e estabilidade das decisões judiciais.
3. Com o trânsito em julgado da decisão de não pronúncia, os autos não poderão ser remetidos para a fase de julgamento em instância criminal apenas para apreciação de um pedido de indemnização cível, cujo fundamento era a prática de um crime, mas que não foi judicialmente comprovada na sua indiciação, por a isso obstarem as regras da competência material e funcional dos tribunais em matéria penal, regulada pelas disposições do Código de Processo Penal - cfr. art. 11º a 18º do C.P.P. - e, subsidiariamente, pelas leis de organização judiciária - cfr. art. 40º 1) da Lei nº 62/2013 de 26.08 - Lei de Organização do Sistema Judiciário (LOSJ).
4. A remessa pelo M. mº JIC dos autos para julgamento apenas do pedido de indemnização civil, seja para a instância criminal seja para a instância cível, carece de fundamento legal.
5. O despacho recorrido proferido pelo M. mº JIC encontra-se, ainda que de forma sintética e concisa, fundamentado.
6. Em suma, deve ser negado provimento ao recurso, por não ter sido violada nenhuma norma legal e, consequentemente, deve ser mantido nos seus precisos termos o despacho sob recurso.

Decidindo,
V.ªs EXCELÊNCIAS
FARÃO, COMO SEMPRE, JUSTIÇA.»
*
Enviados os autos a este Tribunal da Relação, o Senhor Procurador Geral Adjunto, sufragando o entendimento e as considerações desenvolvidas pelo Ministério Público, na resposta apresentada na 1.ª Instância, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

Na resposta que apresentou, o Assistente convoca, em reforço das razões do recurso que interpôs, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 3/2002 [uniformizador de jurisprudência] e o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido no processo n.º 631/09.3TBPMS.C1.
E aponta a ilegitimidade do Ministério Público para intervir nos presentes autos, por neles apenas se discutir responsabilidade civil. Entende, por isso, que os pareceres do Ministério Público devem ser desentranhados dos autos e devolvidos aos seus signatários.

Efetuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
De acordo com o disposto no artigo 412.º do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995[1], o objeto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

Posto isto e vistas as conclusões do recurso, a esta Instância são colocadas as questões:
- da ilegitimidade do Ministério Público para intervir nesta fase do processo;
- da nulidade da decisão, por falta de fundamentação;
- da possibilidade de os presentes autos prosseguirem para conhecimento do pedido de indemnização civil neles formulado.
*
Com interesse para a decisão a proferir, o processo fornece os seguintes elementos:
i) O Assistente B… formulou acusação contra o Arguido C…, pela prática de um crime de difamação, previsto e punível pelo artigo 180.º, n.º 1, do Código Penal.
Na mesma ocasião, o Assistente deduziu pedido de indemnização civil contra o Arguido.
ii) A acusação particular não foi acompanhada pelo Ministério Público, que entendeu que nos autos não foram recolhidos indícios suficientes da prática do crime nela imputado ao Arguido.
iii) Requereu o Arguido a abertura da instrução.
Realizadas as diligências probatórias entendidas adequadas e o debate instrutório, foi proferida decisão de não pronúncia do Arguido pela prática do crime de difamação, previsto e punível pelo artigo 180.º, n.º 1, do Código Penal.
iv) Decisão que foi confirmada pelo Tribunal da Relação do Porto, na sequência de recurso interposto pelo Assistente.
v) Após o que o Assistente dirigiu ao processo requerimento com o seguinte teor [transcrição]:
«(…) o demandante formulou pedido cível devidamente fundamentado na existência de ilícito de natureza civil.
O tribunal não se pronunciou quanto ao pedido civil formulado em fase alguma do processo.
A justiça penal portuguesa entendeu não dar seguimento ao processo por razões que o assistente considera ilegais, inconstitucionais e habituais.
Na decisão de arquivamento da parte crime não ficou provado que os factos imputados ao arguido/demandado não ocorreram para que haja caso julgado.
Os factos imputados ao arguido constituem ilícito de natureza civil e que se encontram descritos no pedido cível formulado.
Face ao supra exposto, razões de economia processual, vem o demandante requerer que os autos prossigam para apuramento da responsabilidade civil do demandado.
Pelo que vem o demandante requer que os autos sejam remetidos à instância judicial competente, para prosseguir e apurar a responsabilidade civil do demandado e pronunciar-se quanto ao pedido cível formulado nos autos.
P.D.»
vi) Este requerimento deu origem à decisão judicial agora em recurso, que tem o seguinte teor [transcrição]:
«Os presentes autos mostram-se findos por decisão transitada inexistindo fundamento legal, que sequer é invocado, para os remeter a outra “instância judicial”, razão pela qual se indefere o requerido.
Custas do incidente pelo assistente, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC.
(…)»
*
Conhecendo.

i) Da ilegitimidade do Ministério Público para intervir nesta fase do processo
O Recorrente, considerando que o processo, nesta fase, visa apenas a responsabilidade civil, entende que o Ministério Público carece de legitimidade para nele intervir e que devem ser desentranhadas as peças da sua autoria.

Não partilhamos semelhante opinião.
Estamos no âmbito de um processo-crime e que não perdeu essa natureza em virtude das questões que nele se tratam.
Em processo-crime, Ministério Público é parte nele obrigatoriamente interveniente, por ser o titular da ação penal – cfr. artigos 48.º e 285.º, ambos do Código de Processo Penal.
Ao que acresce que a legitimidade do Ministério Público para intervir nos presentes autos, e na fase concreta em que os mesmos se encontram, resulta, ainda e genericamente, das funções que por lei lhe estão atribuídas - representante do Estado e garante da legalidade democrática, nos termos da Constituição, do respetivo estatuto e da lei.[2]

Pelo que, sem necessidade de outras considerações, improcede a pretensão do Recorrente de desentranhamento das peças processuais subscritas pelo Ministério Público após a interposição do recurso.

ii) Da nulidade da decisão recorrida, por falta de fundamentação
A finalidade da fundamentação dos atos decisórios - consagrada no artigo 97.º, n.º 5, do Código de Processo Penal - encontra-se, nas palavras de Germano Marques da Silva[3], em «lograr obter uma maior confiança do cidadão na Justiça, no autocontrolo das autoridades judiciárias e no direito de defesa a exercer através dos recursos.»
Tal preceito corporiza exigência consagrada no artigo 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa – dever de fundamentação das decisões dos Tribunais que não sejam de mero expediente.

Não havendo norma que, genericamente, determine a nulidade dos atos decisórios não fundamentados – cfr. os artigos 119.º e 120.º do Código de Processo Penal –, estes só serão nulos nos casos em que a lei o diga expressamente.
É o que sucede em relação à sentença – artigos 374.º e 379.º, n.º 1 do Código de Processo Penal – ou ao despacho que aplicar medida de coação, se não observar os requisitos enumerados no artigo 194.º, n.º 4, do Código de Processo Penal.
Por assim ser, nos demais casos, a falta de fundamentação cons­titui irregularidade, submetida ao regime do artigo 123.º do Código de Processo Penal.
Ou seja, perante um despacho não fundamentado, deverá o sujeito processual por ele afetado, arguir a irregularidade perante o juiz que o proferiu, só depois podendo recorrer do que for decidido.
Por não ter sido esse o caminho trilhado pelo Recorrente nos presentes autos, a invalidade em causa, a ocorrer, encontra-se sanada.

Pelo que o recurso, neste segmento, não procede.

iii) Da possibilidade do prosseguimento dos autos para conhecimento do pedido de indemnização civil neles formulado.
No domínio em que nos encontramos, as normas jurídicas relevantes são as que constam dos artigos 71.º, 73.º, n.º 1, 74.º, n.º1, e 377.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, do artigo 129.º do Código Penal e do artigo 483.º do Código Civil.

As regras vigentes impõem um regime de adesão obrigatória da ação cível ao processo penal.
É que resulta do disposto no artigo 71.º do Código de Processo Penal - «O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respetivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei
Este princípio de adesão obrigatória, visando economizar meios e evitar a contradição de julgados, encontra a sua justificação na identidade dos factos que o Tribunal há-de apreciar – o pedido de indemnização civil a conhecer no processo penal tem como causa de pedir, necessariamente, os factos que constituem o pressuposto da responsabilidade criminal.
Por assim ser, o pedido de indemnização civil deduzido em processo penal pressupõe que neste tenha sido deduzida e recebida acusação – narrativa de factos que permite a imputação de um crime a alguém. E só assim não será quando em contrário exista disposição excecional.

Nos presentes autos foi proferida decisão instrutória de não pronúncia.
Desta decisão decorre que não ocorre a imputação de qualquer crime a quem quer que seja.
E não havendo crime, não há factos que permitam exercitar o princípio consagrado no artigo 71.º do Código de Processo Penal, legitimando, agora, o conhecimento do pedido de indemnização civil formulado pelo Assistente.
Não ocorre, pois, a situação que permite a intervenção do juiz penal no julgamento da causa civil.

Daí que os presentes autos não possam prosseguir, como pretende o Recorrente, para conhecimento exclusivo do pedido de indemnização que deduziu.
Improcedendo o recurso, também neste segmento.

III. DECISÃO
Em face do exposto e concluindo, decide-se negar provimento ao recurso e, em consequência, manter, na íntegra, a decisão recorrida.

Custas a cargo do Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC’s

Porto, 2017 janeiro 11
(certificando-se que o acórdão foi elaborado pela relatora e revisto, integralmente, pelas suas signatárias)
Ana Bacelar
Maria Luísa Arantes
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[1] Publicado no Diário da República de 28 de dezembro de 1995, na 1ª Série A.
[2] Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto – Lei da Organização do Sistema Judiciário
[3] In “Curso de Processo Penal”, Editorial Verbo 2008, 4ª Edição Revista e atualizada, II Volume, páginas 153 e 154.