Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
440/07.4TVPRT-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CORREIA PINTO
Descritores: NULIDADE PROCESSUAL
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
PENDÊNCIA DE PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
Nº do Documento: RP20150511440/07.4TVPRT-A.P1
Data do Acordão: 05/11/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A violação do princípio do contraditório, não constando de norma explícita que afirme a sua nulidade, só é geradora de nulidade processual quando possa influir no exame ou na decisão da causa ou da questão que é objecto da mesma.
II - Na previsão do artigo 17.º-E, n.º 1, do CIRE e em conformidade com os pressupostos do processo especial de revitalização incluem-se, quer as acções executivas para pagamento de quantia certa, quer as declarativas onde se reclame o pagamento de obrigações pecuniárias.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 440/07.4TVPRT-B.P1.
5.ª Secção (3.ª Secção Cível) do Tribunal da Relação do Porto

Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil):
I- A violação do princípio do contraditório, não constando de norma explícita que afirme a sua nulidade, só é geradora de nulidade processual quando possa influir no exame ou na decisão da causa ou da questão que é objecto da mesma.
II- Na previsão do artigo 17.º-E, n.º 1, do CIRE e em conformidade com os pressupostos do processo especial de revitalização incluem-se, quer as acções executivas para pagamento de quantia certa, quer as declarativas onde se reclame o pagamento de obrigações pecuniárias.


Acordam, na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto:
I)
Relatório
1. B…, C… e D…, por apenso à acção declarativa de condenação n.º 440/07.4TVPRT, vieram deduzir incidente de liquidação, prévio a execução, contra e…, Lda., todos melhor identificados nos autos.
1.1 A ré, na aludida acção declarativa, foi condenada a pagar aos autores indemnização por danos que lhes foram causados, consubstanciando danos emergentes e lucros cessantes, em montante a liquidar.
Os autores, no presente processo, relativamente a danos emergentes e lucros cessantes, pretendem que os danos sofridos sejam liquidados, até à data em que deduziram o incidente, no montante global de € 298.255,74, acrescido do montante mensal de € 1.500,00 até que lhes seja proporcionado alojamento em condições equivalentes às que detinham.
No requerimento inicial manifestam a vontade de executar judicialmente a sentença que venha a ser proferida e procedem à indicação de agente de execução e à nomeação de bens à penhora.
A ré veio contestar, impugnando parte dos factos e defendendo a improcedência do incidente de liquidação em apreço.
No desenvolvimento do processo, realizou-se perícia, cujo relatório faz fls. 194 e seguintes, com esclarecimentos complementares a fls. 214.
Realizada a audiência de julgamento e findas as alegações, foi determinado que os autos fossem conclusos, para prolação de decisão, nos termos documentados na respectiva acta, a fls. 250.
Conclusos os autos, foi então proferido despacho que, assinalando a insuficiência e inconcludência do relatório pericial antes referido e fazendo apelo ao disposto nos artigos 487.º, n.º 2, e 607.º, n.º 1, 2.ª parte, do Código de Processo Civil, na sua redacção actual, resultante da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, entendeu oportuno determinar a reabertura da audiência a fim de ser realizada segunda perícia, tendo por objeto a averiguação dos mesmos factos sobre que incidiu a primeira, destinando-se a corrigir as apontadas inexatidões dos resultados desta. Os novos relatórios periciais fazem fls. 287 e seguintes, 296 e seguintes e 367 e seguintes, também aqui com esclarecimentos complementares a fls. 360.
Reiniciada a audiência de julgamento, em 27 de Junho de 2014, nos termos da acta de fls. 375, foram inquiridos os peritos; foi depois designada a data de 11 de Setembro de 2014 para prosseguimento da mesma.
O mandatário da requerida veio entretanto apresentar requerimento, em 10 de Setembro de 2014 (conforme teor de fls. 384 e seguintes), onde dá conta de que se encontra pendente processo especial de recuperação em que é requerente a respectiva mandante, E…, Lda., encontrando-se tal processo a correr termos no 1.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Marco de Canavezes, entretanto extinto, sob o número 700/14.8TBMCN – conforme cópia dos editais que junta. Entende que a presente instância deverá suspender-se até conclusão das negociações que estarão em curso, com referência ao artigo 17.º-E do C.I.R.E.; entende ainda que, face à caducidade do mandato forense sub judice, deverá ser notificado o administrador judicial provisório para, se assim o entender, constituir novo mandatário.
Junta documentos, referentes ao processo especial de revitalização 700/14.8TBMCN (anúncio da prolação, em 9 de Julho de 2014, no âmbito do aludido processo especial de revitalização, de despacho de nomeação de administrador judicial provisório da devedora, aqui ré, B…, Lda.).
Termina requerendo que, perante as razões expostas e os documentos, se ordene a imediata suspensão da presente instância, bem como, face à caducidade do mandato judicial, seja notificado o administrador judicial provisório para os efeitos tidos por convenientes.
Junta ainda cópia da notificação deste requerimento ao mandatário dos autores, enviada em 8 de Setembro de 2014, nos termos documentados a fls. 390.
Conclusos os autos na mesma data de apresentação do requerimento, foi proferido, em 11 de Setembro de 2014, o despacho que é objecto do presente recurso, nos seguintes termos:
«Considerando que no âmbito do processo n.º 700/14.8TBMCN, que corre termos pelo extinto 1.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Marco de Canavezes, foi prolatada a decisão a que alude a al. a) do n.º 3 do art.º 17.º-C do CIRE, em consonância com o que se dispõe no art.º 17.º-E do citado diploma legal suspendem-se, pois, os termos da presente demanda.
(…)».
Face a este despacho, deu-se sem efeito a diligência agendada para essa mesma data, de 11 de Setembro de 2014.
1.2 Os autores, não se conformando com a decisão proferida, vieram interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:
«1 – O douto despacho de fls…, foi proferido, sem que se tenha verificado o contraditório, por parte dos A.A.
2 – Violou, assim, o douto despacho abertamente o disposto no artigo 4.º do Código de Processo Civil.
3 – Pelo que, se encontra ferido de nulidade nos termos do número 1 do artigo 195.º do C.P.C., que se requer seja declarada.
4 – O douto despacho recorrido, fundamenta-se, exclusivamente, no disposto no artigo 17.º-E do C.I.R.E..
5 – A presente acção, salvo o devido respeito, não se enquadra no disposto em tal dispositivo legal.
6 – Aliás como resulta do despacho de fls…, proferido, em 02 de Outubro de 2013, nos presentes autos, resulta que: “O presente processo tem como escopo primordial proceder à liquidação dos danos (seja na vertente de danos emergentes seja de lucros cessantes) que os autores sofreram em resultado de atuação da ré, a qual foi alvo de apreciação no âmbito do processo principal por decisão já transitada em julgado.”
7 – O despacho recorrido contraria, assim, abertamente, tal despacho.
8 – Fez, pois, o meritíssimo Juiz “a quo”, errada interpretação e aplicação do disposto no artigo 17.º-E do C.I.R.E..
9 – Face ao disposto no final do número 1 do artigo 17.º-E do C.I.R.E. e a entender-se que a presente acção se enquadra no disposto em tal artigo, será a mesma extinta logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação, sem que os aqui A.A. vejam liquidados os danos sofridos.
10 – Assim, a não prossecução dos presentes autos e a consequente falta de liquidação dos danos que os A.A. sofreram, coartará o seu direito de reclamarem os seus créditos, quer no Processo Especial de Revitalização 700/14.8TBMCN, que corre termos pelo extinto 1.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca do Marco de Canavezes, quer em eventual processo de insolvência, uma vez que tais danos não se encontram liquidados.
11 – Face ao disposto no número 6 do artigo 17.º-F do C.I.R.E., que expressamente determina que, “A decisão do juiz vincula os credores mesmo que não hajam participado nas negociações”, ver-se-ão os A.A. na total impossibilidade de reclamarem os seus créditos em tais processos.
12 – O douto despacho recorrido constitui, assim, manifesta denegação da justiça, e violação do disposto nos artigos 2.º e 3.º do Código de Processo Civil,
13 – E viola os princípios constitucionais plasmados no número 2 do artigo 202.º e do número 1 do artigo 205.º, da Constituição da República Portuguesa, pelo que, para os devidos e legais efeitos, se invoca a violação das referidas normas constitucionais, pelo presente despacho.
14 – De todo o exposto resulta a manifesta falta de fundamentação do despacho recorrido.»
Terminam afirmando que deverá ser concedido provimento ao presente recurso, e, em consequência, ser anulado o despacho recorrido e proferido acórdão que ordene a prossecução dos presentes autos.
1.3 A recorrida não apresentou contra-alegações.
1.4 Em primeira instância, relativamente à arguição de nulidade por violação do contraditório, o tribunal pronunciou-se no sentido da inexistência do apontado vício, considerando para o efeito que, de acordo com a interpretação que vem sendo feita do n.º 1 do artigo 17.º-E do CIRE, não se explicitando nele o que se deve entender, para efeitos legais, por acções para cobrança de dívidas, a expressão abrange todas as ações judiciais destinadas a exigir o cumprimento de um direito de crédito e, portanto, suscetíveis de contender com o património do devedor, sendo este o entendimento que se mostra consonante com a razão de ser do processo especial de revitalização. Daí que, sendo a suspensão da instância um efeito que resulta da lei, a operar necessariamente na sequência da prolação do despacho a que se alude na segunda parte da alínea a) do n.º 3 do artigo 17.º-C do CIRE, não há o apontado vício formal por inobservância da contraditoriedade, já que esta, no caso vertente, se revelaria desnecessária.
2. Colhidos os vistos e na ausência de fundamento que obste ao conhecimento do recurso, cumpre apreciar e decidir.
As conclusões formuladas pelos apelantes definem a matéria que é objecto de recurso e que cabe aqui precisar, em face do que se impõe decidir as seguintes questões:
● A arguição de nulidade.
● Determinar se há fundamento para suspender a presente acção.
II)
Fundamentação
1. Factos relevantes.
Para a apreciação da matéria que é objecto do recurso, importa considerar os factos que se deixaram sumariamente enunciados no relatório que antecede.
2. A arguição de nulidade.
Os autores/recorrentes sustentam a este propósito que o Tribunal “a quo” proferiu o despacho recorrido sem que se tenha observado o princípio do contraditório, por parte deles próprios, autores, em violação do disposto no artigo 4.º do Código de Processo Civil, pelo que o despacho proferido é nulo e de nenhum efeito, nos termos do artigo 195.º, n.º 1, do mesmo diploma.
O artigo 4.º do Código de Processo Civil, na redacção actual, resultante da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, e vigente na data em que foi proferido o despacho que é objecto de recurso, estabelece o princípio da igualdade das partes, nos termos do qual o tribunal deve assegurar, ao longo de todo o processo, um estatuto de igualdade substancial das partes, designadamente no exercício de faculdades, no uso de meios de defesa e na aplicação de cominações ou de sanções processuais.
O artigo 3.º do mesmo diploma estabelece o princípio do contraditório, determinando que só nos casos excepcionais previstos na lei se podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida (n.º 2), devendo o juiz observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem (n.º 3).
Estas normas mantêm o que já constava na anterior redacção do código, respectivamente nos seus artigos 3.º-A e 3.º.
Pretende-se evitar a prolação de decisões surpresa, na certeza de que o «escopo principal do princípio do contraditório deixou de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à actuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de influir activamente no desenvolvimento e no êxito do processo» – Lebre de Freitas, “Código de Processo Civil Anotado”, volume 1.º, 1999, página 8.
«O princípio do contraditório – que a jurisprudência constitucional tem considerado ínsito no direito fundamental de acesso aos tribunais – envolve, desde logo, como vertente essencial, “a proibição da «indefesa» que consiste na privação ou limitação do direito de defesa do particular perante os órgãos judiciais, junto dos quais se discutem questões que lhe dizem respeito” (Constituição da República Portuguesa Anotada, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, 1993, pág. 164).
A efectividade do direito de defesa pressupõe: o conhecimento pelo demandado do processo contra ele instaurado; o conhecimento, por ambas as partes, das decisões nele proferidas e da conduta processual da parte contrária, com vista a permitir uma eventual impugnação daquelas e o exercício de um direito de resposta à contraparte; a concessão de um prazo razoável para o exercício dos direitos de oposição e de resposta; e a eliminação ou atenuação de gravosas preclusões ou cominações, decorrentes de uma situação de revelia ou ausência de resposta à conduta processual da parte contrária, que se revelem manifestamente desproporcionadas» – Lopes do Rego, “Comentários ao Código de Processo Civil”, 1999, página 16.
A violação do princípio do contraditório, não constando de norma explícita que afirme a sua nulidade, só é geradora de nulidade processual quando possa influir no exame ou na decisão da causa ou da questão que é objecto da mesma, nos termos enunciados no artigo 195.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, na certeza de que, quando um acto tenha de ser anulado, anulam-se também os termos subsequentes que dele dependam absolutamente.
Em princípio, das nulidades cabe reclamação e não a interposição directa de recurso. Mas este princípio admite excepções. No ensinamento ainda actual do Prof. Alberto dos Reis, a “reclamação por nulidade tem cabimento quando as partes ou os funcionários judiciais praticam ou omitem actos que a lei não admite ou prescreve; mas se a nulidade é consequência de decisão do tribunal, se é o tribunal que profere despacho ou acórdão com infracção de disposição de lei, a parte prejudicada não deve reagir mediante reclamação por nulidade, mas mediante interposição de recurso. É que, na hipótese, a nulidade está coberta por uma decisão judicial e o que importa é impugnar a decisão contrária à lei; ora as decisões impugnam-se por meio de recursos (…) e não por meio de arguição de nulidade de processo” – “Código de Processo Civil Anotado”, volume V, 1984, página 424.
Em sentido concordante, Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “Manual de Processo Civil”, 1985, página 393 (“se, entretanto, o acto afectado de nulidade for coberto por qualquer decisão judicial, o meio próprio de o impugnar deixará de ser a reclamação (para o próprio juiz) e passará a ser o recurso da decisão”).
Importa então verificar se, perante os factos e o quadro legal que acima se deixaram sumariamente enunciados, houve violação do princípio do contraditório e se, na afirmativa, tal violação é geradora da nulidade do processo, na medida em que influiu no exame ou na decisão da questão, no caso, que determinou a suspensão dos termos da presente demanda.
Como resulta dos factos que se deixaram mencionados, o despacho recorrido foi determinado pelo requerimento apresentado pelo mandatário da ré, dando conta de se encontrar pendente processo especial de recuperação em que esta é requerente e onde fora já proferido despacho de nomeação de administrador judicial provisório da devedora, nos termos determinados pelo artigo 7.º-C, n.º 3, alínea a), do CIRE, pretendendo a suspensão da presente instância até conclusão das negociações que estarão em curso, com referência ao artigo 17.º-E, n.º 1, do mesmo diploma legal.
Este requerimento foi notificado aos autores, na pessoa do respectivo mandatário, presumindo-se feita a notificação no dia 11 de Setembro de 2014 (artigo 255.º do Código de Processo Civil). No entanto, nesta mesma data e apesar de estar a decorrer prazo para os autores se pronunciarem (artigo 149.º do Código de Processo Civil), foi proferido o despacho que determinou a suspensão do processo e que é objecto do recurso.
É manifesto, perante estes factos, que não foi dada aos recorrentes a oportunidade de se pronunciarem sobre a questão suscitada e, nessa medida, não lhes foi dada a possibilidade de exercerem o contraditório – o que era exigido pelo cumprimento das boas regras.
Daqui resulta que houve violação do princípio do contraditório, enunciado no artigo 3.º do Código de Processo Civil.
No entanto, tendo em consideração as concretas circunstâncias do caso, afigura-se que não há fundamento consistente para afirmar a nulidade processual e extrair as respectivas consequências.
É manifesta a discordância de entendimentos entre as partes, quanto à questão substancial que aqui se discute, relativamente aos pressupostos que legitimam a suspensão do processo.
Mas, perante o entendimento que resulta do despacho de sustentação proferido em primeira instância, verifica-se que a omissão em causa em nada condicionou os termos da decisão recorrida, na medida em que se entende que a prolação do despacho a que se alude na segunda parte da alínea a) do n.º 3 do artigo 17.º-C do CIRE abrange incondicionalmente todas as ações judiciais destinadas a exigir o cumprimento de um direito de crédito e, portanto, suscetíveis de contender com o património do devedor.
Neste pressuposto, a anulação do processado traduzir-se-ia no mesmo resultado, o que evidencia a irrelevância da irregularidade cometida nos termos da decisão proferida.
Conclui-se por isso que o recurso improcede nesta parte.
3. Determinar se há fundamento para suspender a presente acção.
3.1 Importa aqui saber se o artigo 17.º-E, n.º 1, do CIRE se aplica aos presentes autos, isto é, se por força deste normativo se deveria ter determinado a suspensão da instância, como se determinou na decisão recorrida, ou se, pelo contrário, como defendem os autores/recorrentes, a acção devia ter prosseguido os seus termos.
A Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril, procedeu à sexta alteração ao Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), visando a simplificação de formalidades e procedimentos e, com especial relevo para a questão que aqui se discute, a instituição do processo especial de revitalização, que se materializou em normas aditadas. A este propósito e sob a epígrafe “finalidade do processo de insolvência”, estabelece o n.º 2 do artigo 1.º do CIRE, na redacção resultante deste diploma, que, estando o devedor em situação económica difícil (entendendo-se como tal aquele que, designadamente por ter falta de liquidez ou por não conseguir obter crédito, enfrentar dificuldade séria para cumprir pontualmente as suas obrigações – artigo 17.º-B), ou em situação de insolvência meramente iminente, pode o mesmo requerer ao tribunal a instauração de processo especial de revitalização, de acordo com o previsto nos artigos 17.º-A a 17.º-I.
O processo especial de revitalização inicia-se pela manifestação de vontade do devedor e de, pelo menos, um dos seus credores, por meio de declaração escrita, de encetarem negociações conducentes à revitalização daquele por meio da aprovação de um plano de recuperação; munido dessa declaração, o devedor deve, de imediato, comunicar que pretende dar início às negociações conducentes à sua recuperação ao juiz do tribunal competente para declarar a sua insolvência, devendo este nomear, de imediato, por despacho, administrador judicial provisório, aplicando-se em relação a este o que dispõem os artigos 32.º a 34.º, com as necessárias adaptações (artigo 17.º-C).
Logo que notificado deste despacho, o devedor comunica de imediato a todos os seus credores que não hajam subscrito a declaração inicial e convida-os a participar nas negociações (artigo 17.º-D); por outro lado, essa decisão – a que se refere a alínea a) do n.º 3 do artigo 17.º-C – obsta à instauração de quaisquer acções para cobrança de dívidas contra o devedor e, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, suspende, quanto ao devedor, as acções em curso com idêntica finalidade, extinguindo-se aquelas logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação, salvo quando este preveja a sua continuação – artigo 17.º-E, n.º 1, do CIRE.
Está em causa a interpretação desta norma, especificamente, a determinação do seu alcance na parte em que se refere às acções para cobrança de dívidas, quais as concretas acções que aí se incluem e que, por isso, devem ser suspensas.
Regista-se a existência de entendimentos divergentes.
Apreciando esta matéria, Nuno Salazar Casanova e David Sequeira Dinis entendem que a «expressão acções para cobrança de dívidas a que se refere o artigo 17.º-E, n.º 1, abrange apenas as acções executivas para pagamento de quantia certa (e as demais execuções sempre e quando se verifique a conversão das mesmas nos termos previstos no artigo 867.º ou 869.º do Código de Processo Civil) e os procedimentos cautelares antecipatórios das acções que deveriam ser suspensas ao abrigo do citado normativo legal. Encontram-se excluídas, pois, do âmbito de aplicação do n.º 1 do artigo 17.º-E, as acções declarativas, as acções executivas para entrega de coisa certa, as acções executivas para prestação de facto e a generalidade dos procedimentos cautelares». Estes autores consideram que a diferente terminologia utilizada nos artigos 17.º-E e 88.º, ambos do CIRE, impõe que se conclua que a primeira das referidas normas pretendeu restringir a sua aplicação às acções executivas para cobrança de dívida, pelo que, para os efeitos dessa norma, as acções declarativas não devem ser consideradas como acções para cobrança de dívida, na certeza de que se está numa fase prévia, em que se discute e se reconhece judicialmente a existência de um devedor e de uma dívida – “PER, o Processo Especial de Revitalização”, Coimbra Editora, 2014, páginas 97 e seguintes.
Este entendimento não é acompanhado por outros autores.
Assim, apreciando o confronto das aludidas normas, afirma Catarina Serra: «Contrastando com a cuidadosa redacção actual do artigo 88.º, o texto do n.º 1 do artigo 17.º-E vem permitir, na parte final, que estas acções de cobrança de dívidas (entenda-se: declarativas e executivas) que estão suspensas se extingam quase irrestritamente: logo que seja aprovado e homologado o plano de recuperação, salvo quando este preveja a sua continuação» – “Revitalização – A designação e o misterioso objecto designado. O processo homónimo (PER) e as suas ligações com a insolvência (situação e processo) e com o SIREVE”, I Congresso de Direito da Insolvência, Almedina, 2013, página 99.
«O despacho em questão obsta à instauração de quaisquer novas ações dirigidas à cobrança de dívidas pelas quais responde o devedor; além disso, importa a suspensão das que estiverem em curso com idêntica finalidade, incluindo os processos em que tenha já sido proferida sentença declaratória.
Apesar das similitudes com as soluções do artigo 88.º, n.º 1, são manifestas, várias e significativas as diferenças. (...) diferentemente do que ocorre em sede de processo de insolvência, a paralisação aqui determinada deve abranger todas as ações para cobrança de dívidas e não apenas as executivas, incluindo-se, assim, as ações declarativas condenatórias. Mas comunga com ele o facto de se abrangerem também ações com processo especial e procedimentos cautelares» – Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, Lisboa, 2013, página 164.
A divergência quanto à interpretação da lei também se regista em sede de jurisprudência.
Assim, no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido em 11 de Julho de 2013, no processo 1190/12.5TTLSB.L1-4, disponível nas bases jurídico-documentais do IGFEJ (www.dgsi.pt), considera-se que, para efeitos do disposto no n.º 1º do artigo 17.º-E do CIRE na redacção que lhe foi conferida pela Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril, não se deve considerar que as acções declarativas consubstanciam acções para cobrança de dívidas contra o devedor.
No entanto, é preponderante a jurisprudência em sentido contrário, entendendo que na previsão do artigo 17.º-E, n.º 1, do CIRE e em conformidade com os pressupostos do processo especial de revitalização se incluem, quer as acções executivas para pagamento de quantia certa, quer as declarativas onde se reclame o pagamento de obrigações pecuniárias, mencionando-se, a título exemplificativo, os acórdãos proferidos nos processos 7613/12.6YYPRT.P1 (Relação do Porto), 1112/13.6TTCBR.C1 e 1075/13.8TBVIS.C1 (Relação de Coimbra) e 171805/12.0YIPRT.L1-2 (Relação de Lisboa), todos disponíveis na aludida base de dados.
Transcreve-se com particular relevância o entendimento expresso no acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no âmbito do processo 1290/13.4TBCLD.L1-2:
«Nos termos da norma legal que prevê a suspensão das acções em curso, por efeito da comunicação da pretensão do início das negociações do devedor com os credores, para a recuperação económica daquele, não se surpreende qualquer distinção entre acções declarativas e executivas instauradas contra o devedor, não devendo também o intérprete distinguir onde o legislador não distinguiu.
Para além do legislador não poder ignorar a existência das espécies de ações, consoante o seu fim, também, por outro lado, não pode o intérprete desprezar o efeito na vida do devedor, nomeadamente de uma sociedade comercial, provocado pela negação da suspensão da ação, depois de iniciado o processo especial de revitalização. Destinando-se este processo a concluir um acordo do devedor com os credores, de modo a possibilitar a recuperação económica do primeiro, esta finalidade ficaria seriamente comprometida, se qualquer credor pudesse continuar a exigir judicialmente os seus créditos. Com efeito, não será prudente olvidar a intenção declarada do legislador, ao instituir o processo especial de revitalização, de permitir ao devedor, com o acordo total ou maioritário dos credores, a sua recuperação da situação económica difícil, caracterizada pela dificuldade séria em cumprir pontualmente as suas obrigações.
Por outro lado, tal acordo, depois de homologado judicialmente, vincula todos os credores, mesmo que não hajam participado nas negociações com o devedor (art. 17.º-F, n.º 6, do CIRE). Ora, se qualquer ação contra o devedor não fosse suspensa, estar-se-ia privilegiar, sem razão justificativa, um credor, sendo certo que o objetivo do legislador consistiu em proporcionar condições para a recuperação económica da empresa, com um tratamento igualitário dos credores.
Se a pretensão da recuperação económica do devedor, encontrado numa situação económica difícil ou de insolvência meramente iminente, é iniciativa daquele, já a viabilização da recuperação cabe aos credores, sendo certo que, pelas relações económicas estabelecidas com o devedor, estão em condições privilegiadas para o fazerem e, por essa via, poderem salvaguardar, porventura de forma mais eficaz, a solvabilidade dos seus créditos, para além de outras vantagens sociais relevantes.
Nestes termos, e levando em consideração as regras de interpretação da lei, consagradas no art. 9.º do Código Civil, a suspensão das ações prevista no n.º 1 do art. 17.º-E do CIRE prevê qualquer ação judicial destinada a exigir o cumprimento de um direito de crédito, resultante do exercício da atividade económica do devedor».
3.2 Importa agora confrontar a leitura que se deixou enunciada com os factos relevantes, de modo a determinar se, no caso dos autos, há fundamento legal para a suspensão do processo.
Como se mencionou antes, o presente procedimento decorre de acção declarativa, na qual a ré já foi condenada a pagar aos autores indemnização por danos que lhes foram causados, consubstanciando danos emergentes e lucros cessantes, em montante a liquidar.
Neste procedimento, prévio à execução, visa-se a quantificação dos danos efectivamente sofridos, posto o que, na ausência da satisfação do valor liquidado, se desencadeará a execução.
O procedimento prévio à execução, no decurso do qual foi proferido o despacho que é objecto do recurso, tendo embora natureza declarativa, consubstancia acção para cobrança de dívida contra o devedor, nos termos que antes se deixaram caracterizados.
Não descaracteriza esta qualificação o facto de a suspensão ter sido determinada já depois da audiência de julgamento e de concluída a produção de prova, quando se aguardava a prolação da decisão de facto e de direito.
A circunstância de não estar ainda liquidado o montante do crédito dos autores não obsta à sua intervenção no processo especial de revitalização, enquanto credores da ré/devedora.
Pretendem os recorrentes que há violação dos artigos 202.º, n.º 2, e 205, n.º 1, da Constituição.
Nos termos das aludidas normas, na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados (202.º, n.º 2) e as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei (205.º, n.º 1).
Perante o enquadramento que se deixou mencionado, não se vê que ocorra a pretendida violação das normas constitucionais.
Conclui-se por isso que improcede o recurso.
III)
Decisão:
Pelas razões expostas, decide-se negar provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Custas a cargo dos recorrentes.
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Porto, 11 de Maio de 2015.
Correia Pinto
Ana Paula Amorim
Rita Romeira