Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1397/16.6T9PVZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO VAZ PATO
Descritores: ACUSAÇÃO PARTICULAR
ELEMENTO SUBJECTIVO
ACOMPANHAMENTO DO M.ºPº
ADITAMENTO DE FACTOS PELO Mº Pº
Nº do Documento: RP201711151397/16.6T9PVZ.P1
Data do Acordão: 11/15/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º57/2017, FLS.233-237)
Área Temática: .
Sumário: Não pode ser suprida pelo MºPº, ao acompanhar a acusação particular, a ausência nesta do elemento subjectivo do tipo de crime acusado, por traduzir uma alteração substancial de factos inadmissível.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. N.º 1397/16.6T9PVZ.P1

Acordam os juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto

I – B…, assistente nestes autos, veio interpor recurso do douto despacho do Juiz 2 do Juízo Local Criminal de Vila do Conde do Tribunal Judicial da Comarca do Porto que rejeitou, por manifestamente infundada, a acusação por ele deduzida contra C… pela prática de crimes de difamação, p. e p. pelo artigo 180.º, n.º 1, do Código Penal; injúrias, p. e p. pelo artigo 181.º, n.º 1, do mesmo Código; ofensa à memória de pessoa falecida, p. e p. pelo artigo 185,º, n.º 1, do mesmo Código; e ameaças, p. e p. pelo artigo 153.º, n.º 1, do mesmo Código.
São as seguintes as conclusões da motivação do recurso:
«1- Por decisão proferida a fis Sua Excelência a Meritíssima Juiz de Direito do Tribunal a quo julgou findo o presente processo.
2- Considerou que: “… relativamente aos crimes de injúria e difamação não é feita qualquer menção ao elemento subjetivo de cada um desses crimes… na acusação particular não consta que a arguida quisesse ao proferir as expressões que lhes vêm imputadas ofender a honra consideração e bom nome dos assistentes nem mesmo consta que tenha actuado de forma livre, voluntária e consciente… a sua falta equivale à não verificação do elemento subjetivo dos tipos legais de crime…”
3- Salvo o devido respeito e melhor opinião não foi correta a decisão ora tomada pela Meritíssima Juiz a quo, pois não apreendeu no seu todo queixa, acusação particular dos ofendidos/assistentes;
4- Não chega a apreender e entender na acusação os elementos subjetivos de cada um dos crimes praticados pela arguida;
5- Falhou ao considerar que o MP não podia colmatar uma qualquer lacuna dos assistentes, bem como ao tentar determinar o entendimento na Jurisprudência nesta matéria ora em causa;
6- Foi apenas feita uma análise restritiva, meramente dogmática sem atenção aos factos, que põe em causa a verdade dos factos, impede a aplicação de justiça sobre quem realmente e comprovadamente incorreu em prática de crimes;
7- Está provado sem margem de dúvida que nas datas constantes das queixas apresentadas, a arguida praticou os crimes que lhe são imputados (disso não tendo tido qualquer dúvida o MP por força do inquérito e diligências do mesmo);
8- A conclusão de que longo das acusações não é evidente nem patente, qualquer menção ao elemento subjetivo de cada um dos crimes que estavam em causa,
9- Ou que não “consta que a arguida quisesse proferir as expressões que lhe vêm imputadas ou quisesse ofender a honra” dos assistentes é errada, simplista e extremamente formalista;
10- A participação e acusação deu conta que a arguida, em dias e locais indicados, dirigiu-se aos assistentes (e não ao contrário) e visando-os injuriou-os, com palavras e gestos com requintes de malvadez extrema sobre matérias muito íntimas de alguns dos ofendidos (trazendo à baila uma possível violação ocorrida na família);
11- Houve intenção e consciência da arguida em atingir a honra e consideração dos assistentes (que não tendo duvidas foi reforçada pelo MP);
12- São patentes ao logo da acusação particular todo um conjunto de indicações, expressões, imputações e precisões que se patenteiam e concretizam - de forma detalhada -supra em sede de alegações,
13- Onde fica claro o elemento intelectual do dolo ou a consciência que a arguida teve de actuar com conhecimento da factualidade típica (não foi erro, houve muita vontade e malvadez na sua actuação bem como bastante convicção - a arguida quis atingir e atingiu a honra e consideração dos assistentes);
14- O elemento volitivo traduzido na vontade da arguida em realizar o tipo legal de crime (a arguida quis injuriar e ofender os assistentes, praticou unia conduta típica e executou-a conscientemente visando de forma direta e contemporânea atingir naqueles momentos como atingiu os assistentes);
15- E, o elemento emocional traduzido na consciência que a arguida teve no momento da ilicitude da sua conduta (é claro. obvio e patente que as expressões e gestos dirigidos ostensivamente pela arguida aos assistentes revelando uma posição de contrariedade ou indiferença perante o dever ser jurídico-penal);
16- A arguida agiu livremente pois pode determinar a sua acção quis os facto criminoso conhecia a ilegalidade da sua conduta não estando aqui em causa nenhuma presunção de uma qualquer culpa pois a mesma é clara e reportada como tal;
17- São vários os Acórdãos corroborando e sustentando o entendimento defendido pelo recorrente;
18- Pese embora não se tendo os assistentes socorrido da frase tipo/chavão “que a arguida agiu voluntariamente livre e conscientemente bem sabendo que a sua conduta era punida por lei”,
19- Consta da acusação essa imputação. valoração e elemento subjetivo factos mais do que consubstanciadores do dolo da arguida;
20- A posição e atitude do MP é clara, pois considerou esta situação, como com mais do que indícios para acusar a arguida pela prática de 8 crimes de injúria;
21- Porque bem apreendeu a situação que considerando clara a intencionalidade, a consciência e a vontade da arguida em praticar e ao praticar os crimes,
22- Aditou no uso de faculdade legitima e sempre no estrito cumprimento de uma actuação que obedeceu a critérios de legalidade, objetividade e imparcialidade,
23- A seguinte menção: “...que a arguida agiu voluntaria, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta ara proibida e punida por lei....” que de todo constituiu ou importou uma alteração substancial ao objeto do processo no caso concreto;
24- O entendimento da Meret. Juiz a quo é um entendimento próprio sobre uma questão que o próprio Tribunal considera não ser pacífica;
25- Não existiu qualquer “lacuna” pois foram preenchidos os pressupostos dos art.s 283° e 285° do CPP quanto à acusação particular deduzida;
26- A actuação do MP não implicou uma alteração substancial dos factos nos termos da noção do art. 1°, 1 al. f) do CPP, não apontando um crime diferente ao apontado na acusação particular e não agravando os limites máximos da sanção aplicável;
27- Não ocorreu qualquer violação do princípio do acusatório nem qualquer direito da arguida foi coartado ou posto em causa;
28- Não se pode sacrificar a realização de justiça, por mero formalismo sem estar em causa um qualquer direito da arguida;
29- Não estarmos perante uma situação de alteração substancial dos factos pois já estão presentes na acusação particular todos os factos integradores da prática pela arguida dos crimes de injúrias;
30- O Tribunal a quo erradamente lenta equiparar - como expressamente refere quando diz: “…Embora a al. f) do art. 1….. e com a introdução dos factos articulados pelo M° P° não esteja propriamente em causa a imputação de um crime diverso do que consta a acusação a situação não pode deixar de se equiparar - duas situações distintas e entra em contradição,
31- Pois se num momento diz expressamente que a acusação particular não integra factos do crime de injúria, diverge depois dizendo que a acusação e o MP estão a imputar um e mesmo tipo de crime;
32- Existem acórdãos com apreciações e conclusões diversas nesta matéria ora em crise;
33- É em cada caso concreto que se deve ater para concluir ou não estarmos na presença da sustentada - e não aceite - alteração substancial dos factos;
34- Como supra se tentou demonstrar (em b)) no caso em causa nestes autos a acusação particular não foi nem parca, nem lacunosa ou omissa quanto ao comportamento, compreensão ou intenção pela arguida do que - gravemente - fez, disse e gesticulou;
35- Não se pode considerar como sendo a acusação particular omissa quanto ao referido elemento subjetivo;
36- Porque assim é, por tudo o supra exposto, não pode proceder o presente despacho/sentença rejeitando integral e liminarmente as acusações particulares deduzidas nos autos (e por consequência e inerência os pedidos cíveis deduzidos).
37- Devendo pelo contrário ser aquela revogada substituindo-se por outra que ordene admissão das acusações (e pedidos cíveis) prosseguindo o processo com designação de data para julgamento;
38- Não ocorreu pois qualquer violação do disposto no art. 311°, n.° 3 al. d) do CPP na conjugação como faz o Tribunal a quo com os art. 311°, 2 al. b), 284° e 285°, 4 e interpretação do art. 1°, al. 1) todos do CPP;
39- Havendo pelo contrário violação pelo Tribunal a quo dos art.s 1°, f), 284° e 285°, 4, e errada interpretação dos arts 311º. 2 al. b), e 311.°, n.° 3 al. d) todos do CPP»

O Ministério Público junto do Tribunal de primeira instância apresentou resposta a tal motivação, pugnando pelo não provimento do recurso.

O Ministério Público junto desta instância apôs o seu visto (por estar em causa crime de natureza particular).

Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora decidir.

II – A questão que importa decidir é, de acordo com as conclusões da motivação do recurso, a de saber se deve, ou não, ser rejeitada, por manifestamente infundada, a acusação deduzida pelo ora recorrente no que se refere aos crimes de difamação e injúrias que imputou à arguida C….

III – É o seguinte o teor do douto despacho recorrido:

«Autue corno processo comum com intervenção do Tribunal Singular.
O Tribunal é competente.
O processo é o próprio.
*
Notificados nos termos e para os efeitos do art. 285. do CPP, os assistentes B… e D… e E… e F…, deduziram, respectivamente, a fis. 82-83 e 86-88, contra a arguida C…, imputando-lhes a prática de:
- crimes de injúria (sem quantificar quantos), p. e p. pelo art. 181°, n.º 1 do CP;
- crimes de difamação (sem quantificar também quantos), p. e p. pelo art. 2º, n.2 4 e 2O7, nº 1, al. a) do CP; e de
- crimes de ameaça (sem quantificar também quantos), p. p. no art. 153., nº 1 do CP.
A) Quanto ao crime de ameaça imputado à arguida
Corno decorre do n.° 2 do art. 153.º, do CP, o crime de ameaça simples, tem natureza semi-pública, pelo que nos termos, conjugados, dos arts. 48.º, 49.º, n.º 1, e 283.° a 285.º do CPP, a legitimidade para a dedução de acusação pela sua prática pertence exclusivamente ao Ministério Público, podendo a assistente, quando muito, acompanhar a acusação assim deduzida nos termos do art. 284º do CPP.
Há, pois e sem mais que concluir que os assistentes não tem legitimidade processual para deduzir a acusação pelo crime em apreço, pelo que, nos termos dos preceitos citados e ao abrigo do disposto no art. 1.°, n.º 1 do CPP, se rejeitam, nesta parte a acusação particular.

A) Quanto aos crimes de injúria e difamação imputados aos arguidos:
Como decorre do art. 311.º, n.° 2 al. a) do CPP, ‘se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução” - como sucedeu in casu - “ o presidente despacha no sentido de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada” - cfr. al. a) e “De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos nos ternos do n.º 1 do art. 284.° e do n.º 4 do art. 285.º respectivamente.
E as als. b) e cl) do n.º 3 do mesmo normativo esclarece que a acusação se considera manifestamente infundada se, nomeadamente, “não contenha a narração dos factos” e se “os factos não constituírem crime
Importa destacar que tanto o crime de injúria como o de difamação, revestem a natureza de crime particular, uma vez que o respectivo procedimento criminal depende de acusação particular (cfr. artigos 180.º e 188.º., n.º 1,e 212.º, n.° 4 e 207.º, n.º 1, a), do CP, ambos do C.P.).
Nos crimes de natureza particular é necessário que o titular do respectivo “direito se queixe, se constitua assistente e deduza acusação particular” (artigo 50° do C.P.P.) - cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. I pp. 43 e 44, e Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1.º volume, 1981, p.p. 120 e 121.
Deste modo, nos crimes particulares, para que o Ministério Público tenha legitimidade para a promoção do processo penal é preciso que, como se disse, o ofendido se queixe, se constitua assistente e deduza acusação particular.
Logo, “não poderá haver inquérito sem prévia queixa e constituição de assistente, nem acusação do Ml’ sem acusação do particular que se queixou e se constituiu assistente. A queixa, constituição de assistente e acusação particular são, assim, condições de procedibilidade, pois que, sem elas, o M.P. não tem legitimidade” -cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal/Anotado, 9ª Ed., p. 171.
Daqui resulta que, nos crimes particulares, a competência/ónus para dedução de acusação cabe ao assistente (cfr. art. 285., n.º 1 do C.P.P.), podendo o M.P. acusar pelos mesmos factos da acusação particular, por parte deles ou por outros que não importem uma alteração substancial daqueles (n.º 3 do referido artigo).
Assim, a acusação particular é, nos casos em que desta depende o prosseguimento do processo, a acusação deduzida pelo queixoso, findo o inquérito c disso notificado aquele o qual, entretanto, deverá ter-se constituído como assistente, independentemente do M.P. e da posição que ele venha a tomar na matéria.
Como é sabido, tanto o crime de injúria como o crime de difamação constituem crimes dolosos, o que quer significar que estão arredadas do seu âmbito subjectivo as condutas negligentes.
Por outro lado, importa ter em conta que o preenchimento de um tipo legal de crime pressupõe a verificação dc dois tipos de elementos: os elementos objectivos e os elementos subjectivos, também designados por tipo objectivo de ilícito e tipo subjectivo de ilícito.
Os elementos objectivos do tipo incriminador são, nomeadamente, o agente do comportamento, a conduta (ou comportamento humano voluntário) e o bem jurídico, este último “ sinónimo do valor objectivado que o tipo traz consigo, sinónimo do substracto concreto, do suporte objectivo imediato de um valor” - cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal, Sumários das Lições à turma do 2º ano da Faculdade de Direito, Coimbra, 1975, p.p. 139 e 144.
Por seu turno, a parte subjectiva do tipo constitui a representação da situação objectiva na mente do agente. Para se afirmar a verificação do tipo legal de crime, exige-se, pois, que o agente saiba e tenha consciência e conhecimento da situação objectiva, tal como ele se verificava.
Assim, “todos os elementos essenciais do facto típico da parte objectiva do tipo de crime, têm de ser conhecidos pelo agente para se poder dizer que ele actuou dolosamente e, portanto, que preencheu, nesse aspecto subjectivo, o tipo legal de crime”.
Com efeito, nos crimes dolosos, a verificação do tipo subjectivo de ilícito pressupõe o conhecimento e vontade de realização de um tipo legal de crime por parte do agente, ou seja, pressupõe que estejam presentes o elemento intelectual e o elemento volitivo.
Mas, além disso, o dolo exige o chamado elemento emocional.
Na verdade, o dolo não se esgota no conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo.
É necessário, ainda, que àquele conhecimento e vontade, acresça um elemento emocional na caracterização da atitude pessoal do agente, exigida pelo tipo-de-culpa doloso.
Por outras palavras: à afirmação do dolo não basta o conhecimento e vontade de realização do tipo, sendo preciso, igualmente, que esteja presente o conhecimento e a consciência, por parte do agente, do carácter ilícito da sua conduta.
Assim, o elemento intelectual do dolo “só poderá ser afirmado quando o agente actue com todo o conhecimento indispensável para que a sua consciência ética se ponha e resolva correctamente o problema da ilicitude do seu comportamento”, isto é, quando o agente actue com conhecimento da factualidade típica
Já o elemento volitivo traduz a “vontade do agente dirigida à realização do tipo legal de crime”.
Finalmente, o elemento emocional representa o “conhecimento ou consciência do carácter ilícito” da conduta, estando ligado, pois, ao chamado tipo de culpa doloso.
Com efeito, este elemento emocional é dado “através da consciência da ilicitude” e “é um elemento integrante da forma de aparecimento mais perfeita do delito doloso”.
Daí que só possa afirmar-se que o agente actuou dolosamente quando, nomeadamente, esteja assente que o mesmo actuou com conhecimento ou consciência do carácter ilícito e criminalmente punível da sua conduta.
Em suma: o dolo só existirá quando o agente actue com conhecimento e vontade de realização do tipo-de-ilícito e com conhecimento ou consciência da ilicitude da sua actuação, ou seja, “sempre que o ilícito típico seja fundamentado por uma censurável posição da consciência-ética do agente perante o desvalor do facto, pressuposto que aquela se encontrava correcta e suficientemente orientada para esta” - cfr. Figueiredo Dias, ob. cit., pp. 199 a 204, e Pressupostos da Punição e Causas que Excluem a Ilicitude e a Culpa in “Jornadas de Direito Criminal”, Ed. do Centro de Estudos Judiciários, pp. 72 e 73.
*
Ora, revertendo para as acusações particulares deduzidas, as quais são exactamente iguais em termos narrativos, cumpre desde logo assinalar que cumpre desde já assinalar que relativamente aos imputados crimes de injúria e difamação não é feita qualquer menção ao elemento subjectivo de cada um desses crimes.
Ou seja, na acusação particular não consta que a arguidas quisesse ao proferir as expressões que lhes vêm imputadas ofender a honra, consideração e bom nome dos assistentes, nem mesmo consta que tenha actuado de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
E como esse elemento seria essencial e decisivo para que se pudesse afirmar o carácter doloso da actuação da arguida, a sua falta equivale à não verificação do elemento subjectivo dos tipos legais de crime de injúria e difamação.
É certo que o Ministério Público, por referência aos crimes de injúria imputados à arguida, única parte da acusação particular que o MP acompanhou, veio colmatar a lacuna dos assistentes, imputando os factos subjacentes ao dolo.
E podia fazê-lo? Entendemos que não.
Há jurisprudência que entende que tal colmatação por parte do Ministério Público da lacuna da acusação particular é suficiente para o prosseguimento dos autos (cfr. os Acordãos do Tribunal da Relação do Porto de 24-03-2004 e 13-12-2006, todos in www.dgs.pt/trp), há, também jurisprudência que vai no sentido oposto; veja-se a tal propósito, no mesmo sítio, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28-10-2009, em cujo sumário se pode ler: “O Ministério Público não pode colmatar as deficiências da acusação particular do assistente atinentes a qualquer facto, seja reportado aos elementos objectivos, seja ao elemento subjectivo do tipo legal imputado; a falta de alegação do dolo, mormente num crime essencialmente doloso, não é um pormenor que possa ser tido como implícito, na descrição dos elementos objectivos do tipo’, podendo ler-se mais adiante, no corpo do texto do mencionado Acórdão: “A consequência prática e imediata da apontada omissão da acusação particular será a consideração da acusação como deficiente (…) a fundamentar a sua rejeição (...); os factos ali descritas não constituem, com efeito, crime, pois que à descrita acção, típica e ilícita falta a necessária descrição da voluntariedade e da imputação a título doloso, no caso concreto, todos eles elementos que «constituem os pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena», na noção contida no art.° 1º, al. a), do Código de Processo Penal’.
Trata-se de urna questão que não é pacífica, havendo decisões dos tribunais superiores e nomeadamente das Relações quer num sentido, quer noutro, como nos dá conta Vinício Ribeiro, no Código de Processo Penal, notas e comentários, 1ª edição, pág. 645 646, no qual faz a citação de vários arestos sobre ambas as correntes.
Quanto a nós entendemos que na acusação (ou no requerimento de abertura de instrução, quando for o caso) devem constar os factos consubstanciadores do dolo. Para além do mais porque não existem presunções de dolo, não sendo possível afirmar-se a sua existência simplesmente a partir dos factos materiais.
Isto porque dispõe o n.° 4 do artigo 285.° do C. P. Penal que o Ministério Público pode, nos cinco dias posteriores à apresentação da acusação particular, acusar pelos mesmos factos, por parte deles ou por outros que não importem uma alteração substancial daqueles. (sublinhado nosso).
Nos termos da al. f) do artigo 1.º do C. P. Penal, constitui alteração substancial dos factos aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
Ora, os factos articulados pelo M.° P.° no seu despacho em que declara acompanhar a acusação particular constituem uma alteração substancial dos factos. Na verdade, os factos constantes da acusação particular, por si sós, quanto ao crime de injúria, não integram a prática deste crime ou de qualquer outro. Só passam a constituí-lo com os factos articulados pelo M° Pº. Assim sendo, mesmo que o arguido fosse submetido a julgamento apenas com os factos que lhe foram imputados na acusação particular, quer por força do recebimento da acusação, quer por força de uma decisão instrutória, no caso de ter sido formulado requerimento de abertura de instrução, sempre o resultado seria a sua absolvição. Com a introdução na decisão dos factos articulados pelo Ministério Público já assim não aconteceria: no caso de virem a ser provados em sede de julgamento, juntamente com os articulados na acusação, a consequência seria a condenação do arguido.
Embora a al. f) do art. 1.º. do C. P. Penal classifique como alteração substancial dos factos aquela que tem por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis e com a introdução dos factos articulados pelo M.° P.º não esteja propriamente cm causa a imputação de um crime diverso do que consta da acusação ou a gravação das sanções aplicáveis, situação não pode deixar de se equiparar à da previsão da al. f) e, consequentemente, de se enquadrar na previsão desta disposição legal. É que, tal como constam da acusação, os factos imputados ao arguido não integram a prática de qualquer crime, designadamente do crime de injúria. Trata-se de factos inócuos para efeitos da pretendida condenação do arguido. Com o acrescento feito pelo M.º P.º, já assim não acontece, uma vez que passam a integrar a prática de um crime. Neste sentido, Ac. RP de 18/12/2002, CJ, XXVII, tomo V, pág. 215, de cujo sumário consta que: “Há alteração substancial dos factos constantes da acusação particular se os aí descritos, só por si, não integram qualquer crime, passando a integra-lo com os factos acrescentados pelo MP.”
Por conseguinte, e corno nas acusações não existe urna completa referência quanto ao preenchimento, por parte da arguida, do elemento subjetivos dos tipos legais de crime cuja prática lhe é imputada e se a colmatação dessa falha pelo Ministério Público, no que se refere apenas aos imputados crimes de injúria, consubstancia uma alteração substancial dos factos, e a verificação desse elemento é indispensável para que se afirme o cometimentos desses crimes, então, não pode deixar dc concluir que os factos constantes dessas acusações, tal como aí se mostram descritos e imputados à arguida são insusceptíveis de constituir a prática dos crimes de injúria e difamação.
Razão por que, segundo o estatuído no artigo 311.º, n.º 3, al. d), as acusações particulares no que tange aos crimes de injúrias e difamação tem de ser considerada manifestamente infundada e nula, o que ora se declara.
Termos em que, com os fundamentos supra expostos, e ao abrigo do disposto no art. 311.º, n.º 1, do CPP, rejeito integral e liminarmente as acusações particulares deduzidas nos autos.
Custas pelos assistentes, fixando-se, para cada um deles, a taxa de justiça em 2 UCs (cfr art. 515.º, n.º 1, f), do CPP).
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Dos pedidos de indemnização cível deduzidos a fls. 83 e 87:
Face à rejeição das acusações particulares decidida supra, e considerando que os factos que constituem o fundamento dos pedidos de indemnização cível deduzido são os mesmos que constam daquelas acusações, é óbvio, atento o disposto nos art. 71.º, e 74.°, n.° 1 do CPP que o conhecimento desses pedidos fica prejudicado, não podendo ser objecto de julgamento e decisão nos presentes autos.
Assim sendo, indefiro liminarmente os pedidos de indemnização cível deduzidos.
Sem custas cíveis, atento o valor dos pedidos e o disposto no art. 4º, n° 1, al. n) do Regulamento das Custas Processuais.
Notifique.»
IV – Cumpre decidir.
Alega o assistente e recorrente, por um lado, que da acusação que deduziu consta a referência aos factos que consubstanciam o elemento subjetivo dos crimes de difamação e injúria que nela imputa à arguida, embora dela não consta a frase tipo/chavão: «a arguida agiu voluntaria, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era punida por lei».
Vejamos.
Não se trata de usar, ou de deixar de usar, alguma habitual forma tabelar, como a indicada ou outra semelhante. A verdade é que na descrição dos factos imputados à arguida na acusação particular deduzida pelo assistente ora recorrente (tal como na outra acusação particular também deduzida nestes autos) não se descreve qualquer facto que possa consubstanciar o dolo no que se refere à prática dos crimes nela imputados à arguida e, designadamente os crimes de difamação e injúria ora em apreço. O que se escreve é, tão só, a factualidade objetiva, as expressões proferidas, nada do que se reporte à consciência e intenção do agente ao proferir tais expressões. A descrição desses factos poderia ser feita com recurso a alguma das fórmulas habituais, ou de qualquer outra forma. Mas não se vislumbra, nessas acusações, qualquer referência a esses factos, ainda que de forma imperfeita ou incompleta. Só agora, na motivação do recurso, é que o assistente afirma que a arguida agiu com intenção de o atingir na sua honra e consideração e com a consciência da ilicitude da sua conduta. Agora, fá-lo de modo claro e até insistente, mas na acusação particular não o fez, nem sequer de forma velada.
Assim, e porque estamos perante crimes que supõem a atuação dolosa (ver artigos 13.º, 180.º e 181.º do Código Penal), os factos descritos nas acusações particulares em apreço, sem menção dos factos internos que possam consubstanciar tal forma de atuação dolosa, não podem configurar a prática desses crimes, pelo que se impõe a rejeição dessas acusações, por manifestamente infundadas, nos termos do artigo 311.º, n.º 2, a), e n.º 3, d), do Código de Processo Penal.
Alega o assistente e recorrente que a omissão em causa poderia ser suprida pelo Ministério Público e que tal se verificou neste caso, pois este, ao acompanhar as acusações particulares nestes autos deduzidas, fê-lo acrescentando a seguinte menção: «a arguida agiu voluntária, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei». Invoca jurisprudência que se pronunciou nesse sentido (a qual não deixou de ser mencionada no despacho recorrido).
Afigura-se-nos que o despacho recorrido também não é merecedor de reparo quanto a este aspeto.
Nos termos do artigo 285.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, o Ministério Público pode acompanhar a acusação particular, acusando pelos mesmos factos que desta constam, por parte deles ou por outros que não representem uma alteração substancial em relação a eles.
Ora, se, como se verifica neste caso, o aditamento do Ministério Público faz com que os factos que sem esse aditamento não configuravam a prática de crime passem a configurar essa prática, impõe-se considerar que estamos perante uma alteração substancial de factos, nos termos artigo 1.º, f), do Código de Processo Penal. Se essa alteração se dá quando dela resulta a imputação de um crime diverso, por maioria de razão se dará se dela resultar a imputação de um crime que sem ela não seria possível.
É este entendimento que subjaz ao acórdão de fixação de jurisprudência n,º 1/2015, que reza assim: «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do CPP».
Ora, é precisamente porque a integração dessa lacuna representaria uma alteração substancial de factos, pois só com essa integração os factos descritos na acusação configurariam a prática de crime, que ela não pode ser efetuada com recurso ao procedimento previsto no artigo 358.º, o qual está previsto para alterações não substanciais de factos.
Se se considera tal integração, em fase de julgamento, uma alteração substancial de factos, por identidade de razão, deverá ser considerada alteração substancial de factos essa integração no âmbito do acompanhamento da acusação particular pelo Ministério Público, nos termos do artigo 285.º, n.º 4, do Código de Processo Penal.
Assim, e embora o acórdão de fixação de jurisprudência n.º 1/2015 não tenha aplicação direta no caso em apreço, o entendimento que lhe está subjacente tem aqui plena aplicação., desde logo por uma exigência de unidade e coerência do sistema processual penal.
Deve, pois, ser negado provimento ao recurso.

O assistente e recorrente deverá ser condenado em taxa de justiça (artigo 515.º, n.º 1, b), do Código de Processo Penal e Tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais).

V – Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso, mantendo o douto despacho recorrido.

Condeno o assistente e recorrente em três (3) U.C.s de taxa de justiça.

Notifique

Porto, 15/11/2017
(processado em computador e revisto pelo signatário)
Pedro Vaz Pato
Eduarda Lobo