Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
12/09.9TAVGS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: NETO DE MOURA
Descritores: DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA
FUNDAMENTAÇÃO
NULIDADE SANÁVEL
Nº do Documento: RP2015091612/09.9TAVGS.P1
Data do Acordão: 09/16/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIMENTO PARCIAL
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O despacho de não pronúncia tem de especificar os factos em relação aos quais existe prova indiciária suficiente e aqueles em relação aos quais não existem indícios suficientes.
II - No referido despacho o juiz profere uma decisão de mérito com força vinculativa dentro e fora do processo, constituindo caso julgado res judicata.
III - A falta de fundamentação do despacho de não pronúncia constitui nulidade sanável e dependente de arguição.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 12/09.9 TAVGS.P1
Comarca de Aveiro, Instância Central, 1.ª Secção de Instrução Criminal (J2)
Relator: Neto de Moura

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto

IRelatório
No âmbito do processo comum que, sob o n.º 12/09.9 TAVLG, correu termos pelo Juízo de Instrução Criminal da (entretanto extinta) Comarca do Baixo Vouga (agora, pela Instância Central da Comarca de Aveiro), B…, devidamente identificado nos autos, que requereu e foi admitido a intervir como assistente, não se conformando com o despacho de arquivamento (excepto no que tange ao arguido C…, contra o qual foi deduzida acusação relativamente a parte dos factos denunciados) com que o Ministério Público encerrou a fase de inquérito, requereu a abertura de instrução (RAI a fls. 3031 e segs.), no termo da qual foi proferida decisão instrutória de não pronúncia (fls. 3242 e segs.).
Ainda irresignado, o assistente recorreu dessa decisão para este Tribunal da Relação, com os fundamentos explanados na respectiva motivação, que condensou nas seguintes conclusões (em transcrição integral):
1. “A pronúncia dos arguidos não exige uma certeza da existência da infracção, mas, apenas, factos que, logicamente relacionados e conjugados, formem um todo persuasivo de indiciação dos arguidos, impondo um juízo de probabilidade do que lhes é imputado.
2. No caso dos autos não só existem os tais indícios, como a certeza de que os arguidos praticaram os actos que lhe são imputados na participação, na acusação do MP e no requerimento de abertura da instrução.
3. Os autos revelam que entre o dia 10 de Março de 1997 – logo a seguir à destituição do ora recorrente da gerência da D…, Lda – e até 27 de Setembro de 2001, os então sócios-gerentes, B… e o falecido E…, procederam à venda de 77 lotes de terreno para construção, declarando um preço nas escrituras inferior ao efectivo pago pelos adquirentes, de 1.040.200.000$00, com o intuito de se apoderaram das quantias resultantes de tais diferenças, as quais pertencem à empresa e aos demais sócios.
4. E que entre 1997 e 2001, os arguidos retiraram, de forma faseada das contas bancárias da D…, Lda, quantia monetárias resultantes das vendas daqueles lotes e ainda de mais 36 lotes, estes pelo preço de 185.0000.000$00, e transferiram-nas para contas da sua esfera social, segundo plano criminoso, gizado pelos sócios-gerentes C… e E…, falecido em Setembro de 2002.
5. Nunca aqueles gerentes, nem os ora arguidos F…, desde 2003, e G…, desde 2005, apresentaram as contas e relatórios de gestão dos exercícios dos anos de 1996 e seguintes, cujas vendas ascenderam a 1.225.200.000$00, sendo que decurso de uma perícia realizado no âmbito do inquérito judicial à sociedade, foi constado, em Julho de 2007, que a escrita da D…, Lda, só estava elaborada até a 2000, pelo foi dado prazo ao TOC, o arguido H…, para regularizar a situação, o que fez, apresentado o balanço e demonstração de resultados de 1996 a 2005.
6. Tal “balanço” revela, no que concerne às “vendas de mercadorias-subconta-..”, que o volume de negócios nos exercícios de 1997 a 2001, dos 113 lotes, foi de 608.344.276$00, o que revela uma diferença de 616.855.724$00, em desconformidade com a realidade.
7. Por seu turno, a subconta 255- dívidas da sociedade aos sócios” revela que foram feitos registos de empréstimos fictícios, pois inexistem comprovativos das entradas de fluxos financeiros nas contas da D…, Lda, sejam fotocópia de cheques ou de ordens de transferência sobre cintas pessoas do arguido C…, nem extractos bancários da sociedade que reflictam tais créditos.
8. No que respeita à subconta 88-resultado líquido de exercício, revela prejuízos em 8 dos 9 anos, quando é certo que a sociedade, à data da exclusão o assistente da gerência da D…, Lda, tinha os custos com, alvarás de loteamento, realização de infra-estruturas, praticamente pagas, faltando pagar cerca de 107.500 contos e realizou mais de 1,225 milhão do contos.
9. Os autos revelam que, em 02 de Março de 2007, os arguidos F… e G…, na qualidade de gerentes da sociedade D…, Lda, procederam à venda de um lote [prédio urbano, destinado a construção], pelo preço de €275.000,oo, tendo recebido, em pagamento, um cheque de igual montante, que endossaram ao arguido C… e que este depositou em 05 de Março de 2007, numa conta da sua esfera pessoal, como revelam a escritura do contrato de compra e venda, de fls 574 a 577 e a imagem do cheque, fls 3193.
10. Em manobra de “dissimulação” a escritura da venda do lote foi celebrada, numa 6ª feira e em Santa Maria da Feira, a dezenas de quilómetros dos Cartórios onde foram realizadas as outras 42 escrituras de vendas dos 77 lotes, realizadas em Aveiro ou em Vagos, incluindo aquelas, em número de 4, adquiridas pelos mesmos compradores, em nome próprio ou da sua representada, e depois de horas antes, terem colhido, em Vagos, a certidão da situação registral do lote de terreno.
11. Resulta, inequivocamente, que o cheque recebido pelos arguidos se destinou a pagar à D…, Lda o preço do lote de terreno, mas que acabou depositado na conta de esfera pessoal do arguido C….
12. Diz-nos a experiência comum que quem procede assim está a desviar dinheiros que pertença da sociedade D…, Lda, pelo que a actuação dos arguidos F… e G… constitui a adesão e a continuação do “plano engendrado pelo arguido C… - e por que também o MP o acusou - e o falecido E….
13. A escrituração da D…, Lda, como se disse, foi “regularizada” pelo arguido H…, nos termos referidos nas conclusões 5ª a 8ª, ou seja com a selecção dos documentos a inserir, sejam os valores das vendas realizadas, sejam os valores dos preços recebidos, o que começou a ser feito nos anos de 1997 a 2001, pelo arguido C… e E…, mas que os arguidos F… e G… sancionaram, em 2007, bem sabendo que tais registos eram desconformes à realidade.
14. Ao fazê-lo, os arguidos F… e G… aderiram ao plano de forjar documentos e pondo em crise a segurança e a confiança do tráfico jurídico, a verdade intrínseca do documento enquanto tal.
15. A acta nº 13, da Assembleia-geral extraordinária da D…, Lda, realizada em 29 de Setembro de 2003, relata que a arguida F… declarou “que o seu pai, ainda em vida, a pôs ao corrente da situação por que a firma passa desde a destituição da gerência do sócio B…” situação essa que é a referida nas conclusões 3ª a 5ª e que explica a razão de ser da aprovação da escrituração da D…, Lda, referida nas conclusões 6ª a 9ª.
16. Os autos revelam que o gerente E…, cerca de 2 meses antes de falecer, procedeu ao levantamento de um depósito a prazo de €280.500,00, que certamente não gastou e de que as herdeiras, a mulher e a filha, respectivamente, as arguidas I… e F…, receberam e que teriam de se questionar, a sua origem, pois os gerentes da D…, Lda, o falecido E… e o arguido C… nunca apresentaram contas e por isso, também nunca distribuíram lucros.
17. Do mesmo modo, as arguidas I… e F… constatariam os depósitos sucessivos naquela conta, os quais, em menos de 8 meses, somam mais de 60 mil contos, e que num só dia, em 2000, atinja os 17 mil contos, valores que só poderiam provir do plano a que se alude na conclusão 3ª, ou seja pela apropriação das quantias monetárias resultantes das vendas dos lotes da D…, Lda.
18. A contabilidade da D…, Lda, elaborada nos termos acima referidos, revela que o arguido H…, TOC da empresa, omitiu registos dos valores reais dos 42 negócios relativos à venda dos 77 lotes.
19. O TOC da D…, Lda ao fazer os registos nos termos referidos, e na data em que o fez, foi de acordo com os arguidos C…, F… e I…, e com o “plano engendrado” pelo arguido C… e E…, e para dissimular as saídas ilegítimas dos dinheiros da D…, Lda, a partilhados e a partilhar entre os arguidos.
20. Inexistem quaisquer outras razões legais ou técnicas para explicar o comportamento dos arguidos.
21. A execução do plano implicava uma “escrita” minuciosa e permanente e prolongada no tempo, com plúrimos lançamentos “deve” e “haver” para partilha das quantias desviadas da D…, Lda, o que tornava obrigatório o seu conhecimento e controlo.
22. No plano engendrado, o arguido C… não ficava de mãos livres, antes tinha de prestar contas às herdeiras do falecido E…, passando aqueles sócios, a partir de 1987, a “partilhar” entre si a “absorção” da quota do assistente, de 33%.
23. O arguido G…, interveniente na vida da sociedade D…, Lda, desde a Assembleia Geral de sócios, de 07-03-1997, foi indicado pelo arguido C… para o substituir na gerência, quando ele foi afastado definitivamente, pelo Ac. do STJ, nunca cumpriu as suas obrigações de apresentar as contas, apenas serviu os interesses dos sócios C… e E… e seus sucessores, o que só é inteligível pela sua participação nos proventos.
24. O arguido H…, deveria, enquanto TOC da D…, Lda, ter interpelado os gerentes F… e G… pelo preço do lote de terreno, os € 275.000,00, pois a Administração Tributária notificou a D…, Lda do documento de cobrança do IMI e dele já não podia constar o artigo urbano 2541.
25. A actuação omissiva do TOC e a adulteração da contabilidade da D…, Lda, nos termos que se referem nas conclusões anteriores, só é compreensível, de acordo com as regras da experiência, por via dela, retirar vantagens económicas.
26. Os arguidos F… e G…, ao entregarem o cheque dos €275.000,00 ao arguido C… e ao não apresentarem as contas e o relatório de gestão, como era seu dever – artº 65º do CSC – logo que foram designados gerentes e ao terem sancionado “escrituração” que consta a fls. 23 e sgs. agiram de acordo com o plano engendrado.
27. Impõem decisão diversa da recorrida, os documentos discriminados em V.1.1.1 a V.1.6.1.1, e a evidente contradição entre o que é atestado nestes documentos e o que consta do despacho de não pronúncia.
28. A decisão instrutória recorrida violou o disposto nos artºs 283º nº 2 e 127º do CPP, as quais deveriam se interpretadas no sentido de que consta nos pontos 50 e 52”.
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Admitido o recurso e notificados os sujeitos processuais por ele afectados, quer o Ministério Público, quer os arguidos apresentaram resposta à respectiva motivação.
Os arguidos remataram a sua resposta com as seguintes conclusões (transcrição integral):
1. Conforme decorre dos presentes autos, a existir algum lesado pela eventual prática de crimes seria a sociedade, pelo que a mais elementar doutrina e jurisprudência ensinam que, in casu, não assiste ao recorrente a legitimidade necessária para se constituir assistente e beneficiar da correspondente posição processual;
2. O sócio, ora recorrente, para intervir directamente teria de interpelar primeiramente a sociedade nos termos do disposto nos artigos 72º e seguintes do CSC, o que nunca fez;
3. Ao despacho de não pronúncia proferido nos autos, que confirma a inexistência de indícios da prática dos crimes descritos na queixa e no requerimento de abertura de instrução apresentados pelo recorrente, não pode ser assacada qualquer violação, nem da decisão da matéria de facto, nem da decisão sob o ponto de vista da matéria de direito;
4. No caso sub iudice não existem indícios, suspeitas fundadas ou elementos probatórios indiciários bastantes que permitam levar à submissão dos arguidos a julgamento;
5. A circunstância de se ter dado como provada a venda por determinado valor na Acção Cível n.º 528/03.0TBVGS, não obsta a tal conclusão, pois a mesma é, nesta parte, e com todas as consequências que daí advêm, uma sentença de simples apreciação, não tendo nela ocorrido apreciação do mérito;
6. Na própria sentença referida no ponto anterior se acha demonstrado e provado que os gerentes não embolsaram proveitos não declarados;
7. Mais não resulta dos autos que os sócios C… e E… se tenham apoderado de quantias monetárias da firma D…, Lda, de forma ilegítima;
8. Pelo que a matéria constante do despacho de acusação será alvo de defesa em sede própria;
9. As contas dos exercícios de 1997 a 2012 foram já apresentadas e aprovadas em sede própria e perante o órgão competente: a assembleia geral de sócios ocorrida em 16-11-2013, para a qual o recorrente foi regularmente convocado, e à qual compareceu remetendo-se ao silêncio, tendo sido objecto de acção de anulação de deliberação social;
10. Assim, e em abono da verdade, tem sido o próprio recorrente a protelar a situação e a colocar obstáculos ao cumprimento dessa obrigação legal;
11. Conforme resulta do supra exposto e bem assim das decisões de arquivamento e de não pronúncia, não há indícios suficientes da prática dos crimes descritos na queixa e requerimento de abertura de instrução apresentados pelo recorrente, pelo que outra não poderia ter sido a decisão que não a de não pronúncia;
12. Nem decorrem dos autos documentos e elementos probatórios, designadamente depoimentos, susceptíveis de levar a uma decisão diferente;
13. Cabia ao recorrente, em sede de instrução, carrear para os autos prova que infirmasse a tese e a interpretação vertidas no despacho de arquivamento, o que claramente não fez!
14. Assim sendo, não ocorre qualquer violação ao disposto nos artigos 283º, n.º 2 e 127º do CPP”.

O Ministério Público, por seu turno, concluiu pela improcedência do recurso.
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Ordenada a subida dos autos ao tribunal de recurso, e já nesta instância, na intervenção a que alude o n.º 1 do art.º 416.º do Cód. Proc. Penal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer em que, secundando a posição do Ministério Público na 1.ª instância, entende não merecer provimento o recurso e por isso deve ser confirmado o despacho impugnado.
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Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, com resposta do recorrente a reafirmar os seus pontos de vista e a continuar a pugnar pela pronúncia de todos os arguidos pela prática dos crimes que lhe imputou na denúncia e no RAI.
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Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo apreciar e decidir.

II - Fundamentação
O assistente pretende que os arguidos C…, I…, F…, G… e H… sejam pronunciados para serem submetidos a julgamento pelos factos que enuncia no requerimento de abertura de instrução (RAI) e que, na sua perspectiva, preenchem a previsão das normas incriminadoras dos artigos 299.°, 256.°, n.os 1, alíneas a), b) e d), e 3 e 205.º, n.os 1 e 4, al. b), com referência ao artigo 202.º, al. b), todos do Código Penal, configurando-se, assim, os crimes de associação criminosa, falsificação de documento agravado e abuso de confiança qualificado.
São as conclusões pelo recorrente extraídas da motivação do recurso que, sintetizando as razões do pedido, recortam o thema decidendum (cfr. artigo 412.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal e, entre outros, o acórdão do STJ de 27.05.2010, disponível em www.dgsi.pt/jstj) e, portanto, delimitam o objecto do recurso, assim se fixando os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso.
Tal como acontece com o encerramento do inquérito[1], normalmente, a questão central do despacho que encerra a fase de instrução é a de saber se foram recolhidos indícios suficientes (pressuposto fundamental, quer da dedução de acusação, quer da prolação de despacho de pronúncia, pois, de contrário, terá de ser arquivado o inquérito e proferido despacho de não pronúncia) da existência de crime e, na afirmativa, quem foi o seu agente e se este é punível.
Ponderar se os indícios probatórios recolhidos nas fases preliminares do processo (inquérito e instrução) são de molde a justificar que se leve os arguidos a julgamento pelos factos descritos no RAI e com o enquadramento jurídico-penal que o assistente lhes deu deveria ser a questão essencial a apreciar e decidir neste recurso.
No entanto, como, mais adiante, veremos, há questões de natureza formal que não podem deixar de ser conhecidas, mesmo que não suscitadas pelo recorrente.
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O requerimento de abertura de instrução é a peça processual que consubstancia materialmente uma acusação, que define o objecto do processo e limita os poderes de cognição do juiz[2].
Sem que tenha de obedecer a esta ordem, o requerimento instrutório apresentado pelo assistente deve conter:
● uma exposição que, em síntese, contenha as razões, de facto e de direito, da discordância em relação à decisão de arquivamento (assim possibilitando o controlo da actividade do Ministério Público no inquérito)[3];
● a narração dos factos e a sua subsunção jurídico-penal, ou seja, a indicação das normas que os prevêem e punem como crime(s);
● a indicação dos actos de instrução que pretende que o juiz leve a cabo e os meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito.
O ponto fundamental é a narração dos factos imputados ao(s) arguido(s) e a indicação das respectivas normas incriminadoras.
Com efeito, essa narração no requerimento instrutório “não sendo uma acusação em sentido processual-formal, deve constituir processualmente uma verdadeira acusação em sentido material, que delimite o objecto do processo, e que fundamente a aplicação aos arguidos de uma pena” (Acórdão do STJ, de 25.10.006, www.dgsi.pt; Cons. Oliveira Mendes).
É o conteúdo do requerimento de abertura de instrução que vai definir as bases de facto (e de direito) da questão a submeter ao juiz e, portanto, que vai estabelecer os limites da vinculação temática, ou seja, tal como uma verdadeira acusação, vai condicionar e limitar a actividade do juiz e a decisão instrutória[4].
Assim sendo, como é, o requerimento instrutório deve conter uma descrição factual que permita considerar preenchidos, quer o tipo objectivo, quer o tipo subjectivo do(s) ilícito(s) criminal(is) imputado(s) ao(s) arguido(s), constituindo motivo bastante de indeferimento do requerimento a omissão de factos que materializem, quer os elementos objectivos, quer os subjectivos das infracções imputadas[5].
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Comete o crime de associação criminosa tipificado no artigo 299.º, n.º 1, do Código Penal “quem promover ou fundar grupo, organização ou associação cuja finalidade ou actividade seja dirigida à prática de um ou mais crimes”.
Trata-se de um crime de perigo abstracto em que o específico bem jurídico protegido é a paz pública.
A mera existência de uma associação destinada à prática de crimes cria um perigo de perturbação que, só por si, viola a paz pública e assim se justifica uma dispensa antecipada de tutela[6].
Na doutrina, como na jurisprudência, reconhece-se, sem discrepâncias, que para a existência de uma associação é essencial que a convergência de vontades de uma pluralidade de pessoas[7] dê origem a uma realidade autónoma, referenciável e que transcenda a vontade e os interesses dos seus membros.
Nas palavras do Professor Figueiredo Dias[8], é necessário que “a associação surja, na objectividade das representações dos seus membros, nas suas experiências individuais ou de interacção, como um centro autónomo de imputação e motivação, como entidade englobante, com metas ou objectivos próprios”.
Também consensual é a ideia de que o acordo para a comissão de crimes não deve ter um limite temporal.
Exige-se a continuidade e permanência do acordo que dá base à associação destinada à prática de crimes[9].
É essa duradoura actuação em comum, a par do fim abstracto de cometimento de crimes, que distingue a associação criminosa da mera comparticipação.
É, geralmente, reconhecido que a prova da existência de uma associação criminosa, de quem a promoveu, fundou ou dirigiu ou, simplesmente, a apoiou ou dela fez parte, é uma prova muito difícil de alcançar (hiperbolizando, poderíamos falar aqui em probatio diabolica), já que, não havendo confissões, raramente existe prova directa.
Mas os autos não fornecem elementos factuais, indícios probatórios que permitam chegar à existência dessa associação através de prova indirecta.
O próprio requerimento de abertura de instrução, na descrição factual que apresenta, não permite concluir pela existência dessa tal realidade autónoma que transcende a vontade e os interesses dos seus membros.
O que aí se afirma (n.os 81 e segs.) é que o arguido C… e o (entretanto falecido) E… acordaram entre si (e aliciaram o T.O.C. H… para o plano que congeminaram) associar-se para se apropriarem do património da sociedade “D…, L.da” e que, em execução do plano delineado, começaram por afastar o assistente da gerência da sociedade (o que concretizaram em 07.03.1997) e depois, em 42 contratos de compra e venda de lotes de terreno (resultantes do loteamento da J…) pertencentes à “D…, L.da, formalizados por escritura pública em que intervieram na qualidade de gerentes, declararam valores de venda muito inferiores ao valores reais para se apoderarem, como realmente aconteceu, da diferença entre o preço real e o preço declarado.
Deste modo, parte significativa do património da sociedade “esfumou-se”, ou melhor, foi enriquecer o património de cada um daqueles C… e E….
Por isso é que, enquanto foram gerentes da sociedade, esta apresentou sempre grandes prejuízos, quando devia apresentar lucros.
Por aqui se verifica que o arguido C… e o E…, que na tese do assistente foram os fundadores da associação criminosa e como tal agiram, actuaram, sim, no âmbito da gerência da sociedade e acordaram servir-se do cargo de gerentes para satisfazer interesses pessoais (o seu enriquecimento ilegítimo à custa do património da sociedade) e não como membros de uma putativa organização autónoma criada para a prática de crimes.
Como alerta o Professor Figueiredo Dias[10], há que distinguir cuidadosamente aquilo que já é associação criminosa do que não passa de mera comparticipação criminosa, para o que é indispensável que o aplicador faça uma cuidadosa aferição da verificação, in casu, dos elementos típicos que conformam a existência de uma organização desta natureza, sendo fundamental que se interrogue “se, na hipótese, logo da mera associação de vontades dos agentes resultava sem mais um perigo para bens jurídicos protegidos notoriamente maior e diferente daquele que existiria se no caso se verificasse simplesmente uma qualquer forma de comparticipação criminosa”.
É, exactamente, o que se verifica no caso: uma situação de comparticipação criminosa em que o acordo de vontades foi dirigido à apropriação ilegítima do património da “D…, L.da”, não se vislumbrando aqui qualquer especial perigo para a paz pública que pudesse resultar dessa associação de vontades.
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Uma das formas que pode assumir o acto de falsificação de documento é a chamada falsificação intelectual ou ideológica[11], modalidade em que se incluem:
- a declaração escrita, integrada no documento, que é diversa da declaração prestada e
- a falsidade em documento, que ocorre quando se faz uma declaração de facto que não é verdadeira.
Nesta última, a declaração de facto falso só relevará para a tipicidade se for de facto juridicamente relevante.
Se o vendedor de um prédio urbano declarou (perante o notário que lavrou a escritura pública que formaliza o contrato de compra e venda) que vende por determinado preço quando, na realidade, o preço de venda foi muito superior ao declarado, comete uma falsidade em documento.
Essa declaração de facto falso é relevante, desde logo, ao nível fiscal, pois o Estado/Administração Tributária foi defraudado.
Ora, se não se descortina fundamento algum para imputar qualquer crime de falsificação de documento aos arguidos F…, I… e G… e se, relativamente ao arguido H… (que, segundo o assistente/recorrente, terá falsificado a escrita da sociedade), cremos ser de admitir uma dúvida razoável sobre a suficiência da indiciação da autoria do mesmo crime, já não se entende por que não foi acusado nem pronunciado o arguido C… pela prática de, pelo menos, um crime de falsificação de documento agravado.
Não há uma explicação, minimamente, aceitável para essa abstenção.
No despacho com que o Ministério Público encerrou a fase de inquérito, apenas, podemos ler que “das diligências de inquérito levadas a cabo (…) diremos que não foram recolhidos indícios suficientes, entendidos estes à luz dos pressupostos enunciados no art.º 283.º, n.º 2 do CPP que os denunciados tenham cometido os crimes de associação criminosa, falsificação de documento” e na decisão instrutória a Sra. Juiz de instrução limitou-se a aderir aos fundamentos da decisão de abstenção de acusar por parte do Ministério Público.
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Os autos fornecem indícios claros e muito consistentes de que, também, os arguidos F… e G… praticaram factos que consubstanciam o crime de abuso de confiança qualificado.
Por outro lado, está absolutamente claro que o arguido C… e E…, na execução do plano que engendraram para se apropriarem do património da “D…, L.da”, tiveram a indispensável colaboração activa do contabilista da sociedade, o arguido H…, em relação ao qual existem indícios inequívocos de que cometeu, como cúmplice, o mesmo crime de abuso de confiança qualificado.
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Não obstante o exposto, há vícios que afectam a validade da decisão recorrida.
I - Os arguidos, na resposta à motivação do recurso que apresentaram, suscitam a questão da legitimidade do recorrente para intervir nos autos como assistente, sustentando que ele carece de legitimidade para tanto.
No seu parecer, o Ex.mo PGA, além de fazer notar que a resposta ao recurso não é o meio processual adequado para suscitar essa questão, salienta que tem sido consensual o entendimento de que a decisão de admissão como assistente tomada no decurso do inquérito faz caso julgado rebus sic stantibus até ao momento da fixação do objecto do processo.
Neste caso, o recorrente, ainda na fase de inquérito, foi admitido a intervir nos autos como assistente por despacho de 13.05.2009 (a fls. 204), despacho este não impugnado.
Apreciando.
Realmente, os arguidos não impugnaram aquela decisão, mas também dela não foram notificados. Aliás, nem foram notificados para se pronunciarem sobre a pretensão formulada pelo então denunciante. Nem tinham que o ser, pois não tinham sido, ainda, constituídos arguidos (artigo 68.º, n.º 4, do Cód. Proc. Penal). Foram-no (constituídos arguidos) bem mais tarde (os arguidos F…, G… e H…, a fls. 711, 708 e 650) e a denunciada I… só com a apresentação do requerimento de abertura de instrução passou a ter esse estatuto processual (artigo 57.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal).
Mas, logo após terem sido notificados do despacho que admitiu o RAI e declarou aberta a instrução, os arguidos apresentaram o requerimento que constitui fls. 3099 e segs., no qual começam, precisamente, por invocar a falta de legitimidade do denunciante para se constituir assistente e a consequente impossibilidade de requerer a abertura de instrução.
No entanto, a Sra. Juiz de instrução decidiu não apreciar esse requerimento, considerando que o despacho que admitiu o RAI e declarou aberta a instrução só podia ser posto em crise através de recurso (despacho a fls. 3131).
Nesse momento, ainda não estava fixado o objecto do processo, pelo que a decisão que admitiu o denunciante como assistente continuava sujeita à cláusula rebus sic stantibus, ainda não constituía caso julgado formal.
Por isso que a Sra. Juiz de instrução podia e devia conhecer dessa questão que foi colocada à sua apreciação pelos arguidos. Se não antes, pelo menos, na decisão instrutória.
Não o tendo feito, omitiu pronúncia sobre questão que devia ter apreciado.
Essa omissão de pronúncia configura uma irregularidade e, sendo patente que pode afectar a validade da decisão instrutória (já que, na hipótese de vir a ser julgado que o denunciante carece de legitimidade para intervir como assistente, não poderia requerer instrução), é de conhecimento oficioso (artigo 123.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal).
II – Discutia-se, ainda na vigência da versão primitiva do Código de Processo Penal, se, em caso de co-arguição, a instrução requerida por um só ou por alguns dos co-arguidos estendia-se aos demais.
Através do (ainda, então, assim chamado) Assento n.º 1/97 (DR, I, de 18.10.1997), o STJ fixou a seguinte jurisprudência:
Requerida a instrução por um só ou por alguns dos arguidos abrangidos por uma acusação, os efeitos daquela estendem-se aos restantes que por ela possam ser afectados, mesmo que a não tenham requerido.
A final, a decisão instrutória que vier a ser proferida deve abranger todos os arguidos constantes da referida acusação, por não haver lugar, neste caso, à aplicação posterior do n.º 2 do artigo 311.º do CPP”.
A solução do “assento” acabou por ser consagrada na lei, pois na revisão operada pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, foi acrescentado o actual n.º 4 do artigo 307.º que estabelece:
“A circunstância de ter sido requerida apenas por um dos arguidos não prejudica o dever de o juiz retirar da instrução as consequências legalmente impostas a todos os arguidos”.
Daqui decorre que, sendo requerida instrução por um dos arguidos ou pelo assistente, a decisão instrutória, seja de pronúncia ou de não pronúncia, deve abranger os factos na sua globalidade, quer os que constem da acusação pública, quer os que constem do requerimento de abertura de instrução[12].
No caso, o assistente requereu a abertura de instrução, não só contra os arguidos F…, I…, G…, H…, que não foram acusados, mas também contra o arguido C…, acusado pela prática de um crime de abuso de confiança qualificado. E a discordância do assistente face à acusação pública não se cingiu aos factos em relação aos quais o Ministério Público se absteve de acusar e que, na sua perspectiva, se indiciam e configuram os crimes de associação criminosa e de falsificação de documentos. Também quanto ao crime de abuso de confiança, o assistente dissentiu do Ministério Público, narrando outros factos e imputando ao arguido C… a prática, não de um, mas sim de 44 crimes de abuso de confiança qualificados, em concurso real e efectivo.
Porém, a Sra. Juiz de instrução decidiu “não pronunciar os arguidos C…, I…, F…, G… e H… pelos crimes que lhes imputa o assistente no seu requerimento de abertura de instrução”.
Cingindo-nos à parte dispositiva do despacho, dir-se-á que, não tendo sido pronunciado nenhum dos arguidos, ninguém poderá ser submetido a julgamento.
Analisando todo o texto da decisão instrutória, impõe-se a conclusão de que a Sra. Juiz de instrução não teve em consideração os factos da acusação pública[13].
Assim sendo, como nos parece que é, a decisão instrutória contraria a doutrina do citado “assento” e, então, temos aqui mais uma omissão de pronúncia. Omissão que constitui uma irregularidade, também esta, de conhecimento oficioso.
III - A lei estabelece os parâmetros a que devem obedecer os actos processuais, designadamente as exigências de fundamentação dos actos decisórios.
Mas as exigências do cumprimento desse dever e as consequências da sua inobservância não são as mesmas para todos os actos decisórios: existe um regime geral (definido nos artigos 97.º e 118.º a 123.º do Cód. Proc. Penal) e regimes específicos para as sentenças (artigos 374.º e 379.º) e para os despachos que aplicam medidas de coacção (artigo 194.º do mesmo compêndio normativo).
Da decisão instrutória hão-de constar os factos considerados suficientemente indiciados e aqueles em relação aos quais se considera não existirem indícios suficientes?
Eis a questão que agora importa apreciar.
Como, facilmente, se alcança da sua leitura, a decisão instrutória em causa omite completamente a narração dos factos considerados suficientemente indiciados e aqueles para os quais não haveria essa indiciação.
Ora, reúne amplo consenso o entendimento de que a decisão instrutória, seja de pronúncia ou de não pronúncia, tem de enunciar os factos considerados suficientemente indiciados e aqueles em relação aos quais não se recolheu prova indiciária bastante.
A decisão instrutória, de pronúncia ou de não pronúncia, tem de ser fundamentada, exigência que decorre, não do art.º 374.º (directamente aplicável, apenas, às sentenças), mas do dever genérico de fundamentação dos actos decisórios previsto no art.º 97.º, n.º 5, do Cód. Proc. Penal. E se é certo que com a exigência de especificação no acto decisório dos “motivos de facto e de direito da decisão” não se pretende aludir à enunciação de factos, no que tange à decisão instrutória, aquela disposição normativa tem de ser conjugada com o artigo 308.º, cujo n.º 2 manda correspondentemente aplicar ao despacho referido no número anterior (que estabelece o critério orientador para o juiz proferir despacho de pronúncia ou de não pronúncia) o disposto nos números 2, 3 e 4 do artigo 283.º do CPP. Ora, o n.º 3 deste preceito comina a nulidade para o despacho de acusação que não contenha “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança”.
Essa exigência de narração dos factos considerados suficientemente indiciados e os não indiciados não se satisfaz com a mera remissão para uma peça do processo[14] ou com a utilização de fórmulas genéricas (cfr. acórdãos do STJ de 16.01.1997, CJ/Acs. STJ, V, T. I, 202, e de 26.05.1999, Proc. n.º 98P1488). Tal como não cumpre a determinação legal de enumeração dos factos a sentença em que se diz, por exemplo, que se provaram (ou não se provaram) os factos da acusação (ou da pronúncia), também assim é quando no despacho de não pronúncia se afirma, p. ex., “toda a prova decorrente da instrução mostra-se-nos incipiente para abalar a interpretação que dos indícios fez o Ministério Público, isto é, que são insuficientes para afirmar a existência de uma associação criminosa constituída pelos arguidos ou a intervenção dos arguidos I…, F…, G… e H… nos factos imputados ao arguido C…”, ou que “um non liquet sobre os factos deve ser valorado em favor do arguido, em decorrência do qual se nos impõe concluir que não se demonstra com suficiente probabilidade a existência de uma associação criminosa e falsificação de quantias da sociedade da D…, nem outrossim, a intervenção nos factos descritos na acusação de fls. 2950 e seg. por banda de I…, F…, G… e H…”.
Mas não é pacífico na jurisprudência este entendimento sobre o conteúdo do despacho de não pronúncia.
Divergem da orientação que tem prevalecido na jurisprudência (e recolhe os favores da doutrina), entre outros, os seguintes arestos (todos acessíveis em www.dgsi.pt):
- acórdão da Relação de Guimarães, de 17/12/2013 17/12/2013 (processo n.º 74/12TAVLN.G1), relatado pela Desembargadora Ana Teixeira da Silva;
- acórdão da Relação de Coimbra de 3/07/2013 (processo n.º 1450/11.2TACBR.C1), relatado pelo Desembargador Abílio Ramalho;
- acórdãos[15] de 29/05/2013 (processo 15847/09.4TDPRT.P1), de 05/01/2011 (processo 599/07.0TAOAZ.P1) e de 29/05/2013 (processo 15847/09.4TDPRT.P1) da Relação do Porto, todos relatados pelo Desembargador Joaquim Gomes.
No primeiro, apesar de se reconhecer que “proceder a semelhante elenco factual seria seguramente a melhor técnica de elaboração de um despacho de não pronúncia – até sob a égide do rigor, objectividade e transparência”, acaba por concluir-se que “nada na lei exige que contenha semelhante descrição de factos «indiciados» e «não indiciados»”, conclusão que é assim justificada: “Afigura-se que a remissão feita no nº2 do artº 308º do CPP para o nº 3 do artº 283º do CPP (o qual estabelece os requisitos da acusação, “sob pena de nulidade”) só pode respeitar ao despacho de pronúncia (e não ao despacho de não pronúncia, como bem se compreende face ao teor de várias das alíneas, por exemplo, a) a f), do nº3 do artº 283.º, que não fariam qualquer sentido num despacho de não pronúncia.)”.
No segundo, considerou-se que satisfaz o dever de fundamentação previsto no n.º 5 do art.º 97.º do Cód. Proc. Penal o despacho de não pronúncia que “deixar revelar, pelo respetivo teor, de modo objetivo e comummente percetível, a respeitante linha de raciocínio lógico-argumentativo e a própria razoabilidade jurídica”, não se impondo a indicação dos factos indiciados e os não indiciados.
Nos referidos acórdãos desta Relação (do Porto), defende-se que “o despacho de não pronúncia exige apenas a fundamentação prevista no nº 4 do art. 97º do Código de Processo Penal, não tendo, designadamente, que conter a descrição de quaisquer factos”, asserção que é assim fundamentada:
“…apenas se quis revestir a decisão instrutória de nulidade quando esta for de pronúncia, como já referimos, e apenas em duas situações tipo expressamente tabeladas: a) quando represente uma alteração substancial dos factos descritos na acusação pública ou no requerimento para abertura da instrução conducente à pronúncia – excluiu-se a alteração não substancial (309.º) e aqui diverge-se da regulamentação específica da nulidade das sentenças; b) quando não se respeite o registo legal descritivo da acusação (283.º, n.º 3, mediante remissão do art. 308.º, n.º 2).
A ser assim, não podemos estender o rigor descritivo da (in)validade da decisão de pronúncia ao despacho de não pronúncia, porquanto o segmento normativo do artigo 283.º, n.º 3 é privativo da regulação daquele libelo, já que o seu proémio apenas menciona que “A acusação contém, sob pena de nulidade:”, não estando o despacho de arquivamento do inquérito, como se pode constatar da previsão do artigo 277.º, sujeito à mesma rigidez narrativa”.
Argumentar que a remissão feita no n.º 2 do art.º 308.º do CPP para o n.º 3 do art.º 283.º da mesma Codificação é, apenas, para o despacho de pronúncia porque as várias alíneas daquele n.º 3 não fariam qualquer sentido num despacho de não pronúncia só pode resultar de uma leitura menos atenta dos preceitos legais pertinentes.
O n.º 2 do artigo 308.º não manda aplicar, taxativamente e em globo, ao despacho de pronúncia ou de não pronúncia o disposto no n.º 3 do artigo 283.º, pois o advérbio “correspondentemente” ali empregue há-de ter algum sentido útil.
Quando não há acusação, a decisão instrutória há-de ter por referência o requerimento de abertura de instrução (a peça processual que consubstancia materialmente uma acusação e define o âmbito da vinculação temática) e, como determina o n.º 2 do artigo 287.º do CPP, sendo a instrução requerida pelo assistente, àquele requerimento são aplicáveis, apenas, as alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º e é óbvio que um despacho de não pronúncia não tem que indicar a prova a produzir.
Por outro lado, não se pode equiparar o despacho de arquivamento do inquérito ao despacho de não pronúncia (como se faz nos citados acórdãos desta Relação para se justificar a não exigência da enunciação no despacho de não pronúncia dos factos indiciados e não indiciados), pois têm natureza diversa.
Como anota o Sr. Conselheiro Maia Costa (“Código de Processo Penal Comentado”, Almedina, 1024), tais decisões têm um tratamento legal diferente porque «o despacho de arquivamento constitui uma decisão “unilateral” do Ministério Público, que põe termo a uma fase processual caracterizada pela falta de contraditório. Pelo contrário, a decisão instrutória de não pronúncia é proferida após um debate público, contraditório e tematicamente vinculado. Por isso, a tomada de posição sobre aqueles factos pelo juiz de instrução terá de beneficiar do princípio do caso julgado, como decisão jurisdicional que é».
O traço comum que se surpreende nos arestos a que vimos aludindo é a interpretação restritiva que advogam para o n.º 2 do artigo 308.º do CPP que, ao mandar aplicar o disposto nos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 283.º “ao despacho referido no número anterior” estaria a reportar-se, apenas, ao despacho de pronúncia.
Isto apesar de o n.º 1 do artigo 308.º se referir, clara e expressamente, ao despacho de pronúncia e ao despacho de não pronúncia.
Nada permitindo afirmar que o legislador não soube exprimir adequadamente o seu pensamento e não se lobrigando qualquer razão válida para tal restrição, não pode aceitar-se uma interpretação que não tem na letra da lei qualquer correspondência verbal.
Aliás, afigura-se-nos óbvio que, se o legislador quisesse restringir aquela remissão ao despacho de pronúncia, não utilizaria aquela forma de expressão, mas diria, muito simplesmente, “É correspondentemente aplicável ao despacho de pronúncia…”.
Mas não podemos ficar-nos pelas palavras do texto norma, pois é sabido que o elemento literal é, apenas, um factor hermenêutico a ter em conta e nem sequer é decisivo na determinação do sentido da norma.
A questão fundamental (como já se aflorou ao citar o Sr. Conselheiro Maia Costa) sobre a qual importa reflectir é a da natureza do despacho de não pronúncia. Concretamente, o punctum crucis está em saber se o despacho de não pronúncia tem efeitos de caso julgado formal apenas, ou se, transitado em julgado, faz caso julgado material.
Relembremos estas noções:
Uma decisão (despacho ou sentença) transita em julgado, formando caso julgado, quando, por não ser já susceptível de alteração ou revogação mediante reclamação ou recurso ordinário (já porque não foi impugnada, já porque, tendo-o sido, se esgotaram os meios de impugnação), se tornou definitiva, esgotando-se, então, o poder jurisdicional.
Tratando-se de uma decisão de mérito, ou seja, incidindo sobre a relação material controvertida, a decisão tem força vinculativa, não só dentro do processo em que foi proferida, mas também fora dele, impondo-se aos demais tribunais e a quaisquer outras entidades, públicas ou particulares.
Diz-se, então, que a decisão produz o efeito de caso julgado material (também designado como caso julgado res judicata), o mesmo é dizer que “a conformação das situações jurídicas substantivas por ela reconhecidas como constituídas impõe-se, com referência à data da sentença, nos planos substantivo e processual” (“Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2.º, Coimbra Editora, 2001, p. 678, de José Lebre de Freitas e outros).
Se a decisão incide sobre a relação jurídico-processual (p. ex., se julga verificado um pressuposto processual ou se rejeita um meio de prova), só vale intraprocessualmente, ou seja, é vinculativa, apenas, no próprio processo em que foi proferida e para as partes e por isso a mesma matéria pode ser diversamente apreciada noutro processo ou por outro tribunal.
Temos, então, o caso julgado formal, que constitui um efeito de vinculação intraprocessual e de preclusão. Efeito este que significa que toda e qualquer decisão (incontestável ou tornada incontestável) tomada por um juiz, implica necessariamente tanto um efeito negativo, de precludir uma «reapreciação», como um efeito positivo, de vincular o juiz a que, no futuro (isto é, no decurso do processo), se conforme com a decisão anteriormente tomada.
Volvendo ao caso concreto, a entender-se que o despacho de não pronúncia tem força vinculativa de caso julgado material, então isso implica, necessariamente, a definição de um objecto (de um “tema”) de não pronúncia, que não possa ser renovado. Ou seja, o despacho de não pronúncia tem de especificar, pelo menos, os factos considerados não suficientemente indiciados.
Como se sublinha no acórdão da Relação de Guimarães de 13.01.2003 (Des. Heitor Gonçalves), disponível em www.dgsi.pt, a importância da fixação da temática factual é fundamental “para a determinação dos efeitos do caso julgado da decisão final de não pronúncia, quando esta assenta na não verificação dos pressupostos materiais de punibilidade do arguido” (também assim, acórdão desta Relação de 16.12.2009, Des. Francisco Marcolino, disponível no mesmo sítio).
Ora, sobre esta questão, também a doutrina e a jurisprudência se dividem.
Para o Prof. Germano Marques da Silva (“Curso de Processo Penal”, vol. III, 2.ª edição, Verbo, 182 e segs.), o despacho de não pronúncia é uma decisão meramente adjectiva, que tem, apenas, efeitos de caso julgado formal e por isso não impede a reabertura do inquérito (na jurisprudência, perfilhando este entendimento, cfr. os acórdãos do STJ, de 18.01.2006, Proc. n.º 3613/05.3.ª, e desta Relação de 14.02.2007, Proc. n.º 0646485, e de 16.01.2002).
Porém, é outro o entendimento que tem prevalecido.
Paulo Pinto de Albuquerque (“Comentário do Código de Processo Penal”, 2.ª edição actualizada, UCE, pág. 779), considera fundamental a narração dos factos não suficientemente indiciados porque é sobre esses factos que incide o efeito de caso julgado, razão por que “a delimitação objectiva e subjectiva rigorosa dos factos no despacho de não pronúncia constitui (…) a garantia última da segurança jurídica do arguido”.
O Sr. Conselheiro Maia Costa, em comentário ao artigo 308.º do CPP (Loc. Cit.), escreve que “o despacho de não pronúncia por insuficiência de indícios deverá fixar expressamente quais os factos considerados suficientemente indiciados. É que sobre tais factos forma-se caso julgado, em termos de ser inadmissível a reabertura do processo face à eventual descoberta de novos factos ou meios de prova, ao contrário do que acontece com o inquérito arquivado, que pode ser reaberto se forem descobertos factos novos (art. 279.º, n.º 1)”.
Vão no mesmo sentido as posições doutrinárias de Frederico Lacerda da Costa Pinto, “Direito Processual Penal”, edição AAFDL, 1998, pag. 164, e de J.M Damião da Cunha, “Ne bis in idem e exercício da acção penal”, in “Que futuro para o processo penal?”, p. 557) e, na jurisprudência, além dos citados arestos desta Relação e da Relação de Guimarães, alinha pela mesma tese o acórdão da Relação de Coimbra, de 29.10.2003 (CJ XXVIII, T. 4, 51).
Temos para nós que o juiz de instrução que, pronunciando-se sobre o objecto do processo, decide que não se indiciam suficientemente os factos em que assenta a imputação do crime ou crimes que estiverem em causa e por isso determina o arquivamento do processo (a não pronúncia), não seguindo o processo para julgamento, profere uma decisão de mérito, que tem por isso força vinculativa, não só dentro do processo em que foi proferida, mas também fora dele, constituindo caso julgado res judicata e só mediante recurso de revisão poderá ser reaberta a discussão sobre tais factos.
Daí que não nos fiquem quaisquer dúvidas de que o despacho de não pronúncia tem de especificar os factos em relação aos quais existe prova indiciária suficiente e aqueles em relação aos quais não existem indícios suficientes.
De outro modo, não se revela possível conhecer, em recurso, se foi ou não correcta a decisão de não pronunciar o arguido.
Resta, então, saber quais as consequências da omissão no despacho de não pronúncia dessa especificação.
Também quanto a este ponto, podemos constatar profundas divergências, mas cremos ser possível afirmar a existência de uma posição dominante que considera que tal omissão fere de nulidade a decisão de não pronúncia e uma tese (que julgamos minoritária) que propende para a consideração de que a falta de especificação dos factos indiciados e não indiciados constitui uma irregularidade.
Contudo, de entre os que defendem que a decisão é nula, há quem entenda que é uma nulidade insanável, de conhecimento oficioso, tese que tem tido acolhimento, sobretudo, na Relação de Évora (acórdãos de 20.12.2012, 26.02.2013 e de 17.06.2014), mas também já foi perfilhada na Relação do Porto (acórdão de 17.02.2010), na Relação de Lisboa (acórdão de 07.05.2013) e na Relação de Coimbra (acórdão de 13.11.2013) e quem a considere uma nulidade sanável e, portanto, dependente de arguição (acórdãos da Relação do Porto de 17.02.2010, 27.02.2013 e de 07.07.2010, da Relação de Évora de 10.12.2009, 19.11.2013 e 22.04.2014 e da Relação de Lisboa, de 10.07.2007).
É, também, como nulidade sanável que a qualifica Paulo Pinto de Albuquerque (Op. Cit., anotação 3 ao artigo 309.º, p. 780).
Também os defensores da tese da irregularidade se dividem entre os que consideram que a insuficiência de fundamentação da decisão de não pronúncia constitui uma irregularidade sujeita ao regime geral do art. 123.º, só podendo ser conhecida mediante atempada arguição (assim, os já citados acórdãos da Relação do Porto, de 29.05.2013 e da Relação de Coimbra, de 03.07.2013) e os que afirmam ser uma irregularidade que influi no conhecimento da causa e por isso advogam o seu conhecimento oficioso, nos termos do artigo 123.º, n.º 2, do CPP, entendimento que vem sendo seguido na Relação de Guimarães, (acórdãos de 09.07.2009, 06.12.2010, 18.06.2007 e de 12.02.2007), mas também já foi adoptado no acórdão da Relação do Porto de 16.12.2009.
Por esta última corrente jurisprudencial alinha a Ex.ma Desembargadora Maria Luísa Arantes, aqui Adjunta (e que foi relatora do referido acórdão da Relação de Guimarães, de 06.12.2010).
O aqui relator tem adoptado o entendimento expresso no seguinte trecho do acórdão desta Relação de 07.07.2010 (Des. Jorge Gonçalves):
“Ainda assim, admitimos que, quando referida a uma acusação ou ao despacho de pronúncia, tal nulidade – por omissão dos factos imputados ao arguido, pelos quais deverá responder em julgamento - seja considerada insanável, tendo em vista a lógica do sistema.
Realmente, se a falta de narração dos factos na acusação pode ser conhecida oficiosamente, levando à rejeição desta como manifestamente infundada [artigo 311.º, n.º3, alínea b)], não faria sentido que a falta de factos no despacho de pronúncia não pudesse ser objecto do mesmo tipo de conhecimento em sede de recurso.
Por outras palavras: os casos referidos no n.º 3 do artigo 311.º que se contêm nas previsões das alíneas do n.º 3 do artigo 283.º reconduzem-se a uma forma de nulidade “sui generis”, insanável e de conhecimento oficioso.
Os demais casos do n.º3 do artigo 283.º, não subsumíveis à previsão da acusação manifestamente infundada, reconduzem-se ao regime geral das nulidades sanáveis e dependentes de arguição.
Daí que, tratando-se, no caso, não de um despacho de pronúncia, mas antes de um despacho de não pronúncia, a falta de fundamentação (e omissão de pronúncia) se traduza numa nulidade que é sanável e dependente de arguição”.
Seja como for, a decisão instrutória não pode manter-se face às apontadas irregularidades e terá de ser proferida nova decisão que as repare.

IIIDecisão
Pelo exposto, acordam os juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao presente recurso, se bem que por razões diversas das indicadas pelo recorrente, e, em consequência, revogar a decisão instrutória recorrida, a qual será substituída por outra em que se mostrem supridas as apontadas irregularidades.
Sem tributação.
(Processado e revisto pelo primeiro signatário, que rubrica as restantes folhas).

Porto, 16-09-2015
Neto de Moura
Maria Luísa Arantes
_____________
[1] Nos termos do art.º 283.º do Cód. Proc. Penal, o Ministério Público deduz acusação quando tiverem sido recolhidos “indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente” e no art.º 308.º substituiu-se o termo “crime” por “pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança”, expressão que corresponde à definição de crime que, “para efeitos do disposto no presente Código”, se contém no art.º 1.º do Cód. Proc. Penal.
[2] Cfr. os acórdãos do STJ de 08.10.2008 (Relator: Cons. Soreto de Barros) e de 24.09.2003 (Relator: Cons. Henriques Gaspar), acessíveis em www.dgsi.pt/jstj.
[3] Como escrevem M. Simas Santos, M. Leal-Henriques e João Simas Santos em “Noções de Processo Penal”, Rei dos Livros, 2010, p. 395), “pretendendo-se infirmar ou neutralizar um despacho que pôs termo ao inquérito, há que, pelo menos, lhe apontar defeitos que justifiquem a inversão decisória requerida. Defeitos que só se poderão descortinar se o requerente fornecer ao juiz de instrução, no seu requerimento, dados para se apurar onde e como o M.P. errou”.
[4] Fala-se, a este propósito, em “acusação implícita” (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Do procedimento (Marcha do processo), vol. III, UCE, 2014, p. 137, e em acusação alternativa, ou seja, aquela que, segundo o assistente, devia ter sido deduzida (e não foi) pelo Ministério Público (cfr. acórdãos do STJ, de 07.12.2005 e de 07.03.2007, ambos acessíveis em www.dgsi.pt).
[5] Assim, entre outros, os acórdãos do TRP, de 21.06.2006 e de 11.10.2006, e do STJ, de 07.05.2008 e de 22.10.2003 (todos disponíveis em www.dgsi.pt).
[6] Cfr. Professor Figueiredo Dias, “As Associações Criminosas no Código Penal Português de 1982”, Coimbra Editora, 27
[7] Três, pelo menos. Com a Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, foi acrescentado o n.º 5 ao artigo 299.º que veio esclarecer que se considera existir grupo, organização ou associação quando esteja em causa um conjunto de, pelo menos, três pessoas, actuando concertadamente durante um certo período de tempo.
[8] Idem, 34
[9] Cfr., entre outros, os Acórdãos do S.T.J. de 26.05.93 (C.J. 1993, Tomo 2, 237) e de 31.10.91 (B.M.J. 410.º, 418)
[10] Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, p. 1158.
[11] Por contraponto à falsificação material em que ocorre “uma alteração, modificação total ou parcial do documento” (genuíno) - Cfr. Helena Moniz, “Comentário Conimbricense…”, cit., 676.
[12] Assim, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, UCE, 2.ª edição actualizada, p. 775.
[13] Portanto, teríamos de ficcionar que não houve instrução e que o processo passou, directamente, da fase de inquérito para a fase de julgamento e por isso ainda haveria lugar à aplicação do n.º 2 do artigo 311.º do Cód. Proc. Penal.
[14] Note-se que, quando o n.º 1 do artigo 307.º prevê a possibilidade de o juiz de instrução fundamentar por remissão para a acusação ou para o requerimento de abertura de instrução, essa remissão é para “as razões de facto e de direito” que não são propriamente os factos indiciados.
[15] Que o arguido invoca na sua resposta.