Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4876/12.0TBSTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS QUERIDO
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
DANOS PRÓPRIOS
DANOS REFERENTES A COISAS
LUCROS CESSANTES
REGIME SUPLETIVO
PRIVAÇÃO DO USO
DEVERES ACESSÓRIOS
Nº do Documento: RP201603144876/12.0TBSTS.P1
Data do Acordão: 03/14/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 621, FLS.397-411)
Área Temática: .
Sumário: I - No contrato de seguro de danos referente a coisas, o n.º 2 do artigo 130.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo Decreto-lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, relativamente à cobertura dos lucros cessantes, consagra expressamente como regime supletivo o da não cobertura, à semelhança do que já ocorria no regime previsto no § 4.º do artigo 432.º do Código Comercial, onde tais danos assumem a designação de “lucro esperado”.
II - O mesmo regime de supletividade foi aplicado pelo legislador, expressamente, ao dano da privação de uso do bem, no n.º 3 do citado normativo.
III - Decorre do referido regime, que a seguradora apenas responde nos termos da cobertura contratada, pelo que, não tendo sido expressamente estipulada a abrangência de um determinado dano (nomeadamente de privação de uso), não será devida qualquer indemnização correspondente ao seu ressarcimento.
IV - Na esteira e por influência da doutrina alemã, abandonou-se entre nós a orientação clássica romanística, de que a obrigação se esgota no dever de prestar, adotando-se uma compreensão globalizante da situação jurídica creditícia, que passa a envolver, paralelamente aos deveres principais ou primários (com base nos quais se define o tipo de contrato), os deveres acessórios de conduta ou laterais.
V - Resulta da conjugação dos n.ºs 1 e 2 do artigo 102.º com o artigo 104.º do diploma legal citado, que o vencimento da prestação devida pela seguradora ocorre “após a confirmação da ocorrência do sinistro e das suas causas, circunstâncias e consequências”, havendo situações que pelos seus contornos justificam uma prévia averiguação das circunstâncias em que ocorreu o facto objeto da participação, podendo legitimar, não só o decurso do tempo, mas também a divergência da seguradora.
VI - O facto de a seguradora, divergindo da tese do segurado, não ter satisfeito de imediato a indemnização devida em consequência de um furto do veículo, vindo a ser condenada nessa prestação pelo tribunal, não significa, por si só, qualquer violação de deveres acessórios de conduta, suscetível de legitimar a condenação no pagamento dos valores pagos pelo segurado com o aluguer de uma viatura de substituição.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 4876/12.0TBSTS.P1

Sumário do acórdão:
I. No contrato de seguro de danos referente a coisas, o n.º 2 do artigo 130.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo Decreto-lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, relativamente à cobertura dos lucros cessantes, consagra expressamente como regime supletivo o da não cobertura, à semelhança do que já ocorria no regime previsto no § 4.º do artigo 432.º do Código Comercial, onde tais danos assumem a designação de “lucro esperado”.
II. O mesmo regime de supletividade foi aplicado pelo legislador, expressamente, ao dano da privação de uso do bem, no n.º 3 do citado normativo.
III. Decorre do referido regime, que a seguradora apenas responde nos termos da cobertura contratada, pelo que, não tendo sido expressamente estipulada a abrangência de um determinado dano (nomeadamente de privação de uso), não será devida qualquer indemnização correspondente ao seu ressarcimento.
IV. Na esteira e por influência da doutrina alemã, abandonou-se entre nós a orientação clássica romanística, de que a obrigação se esgota no dever de prestar, adotando-se uma compreensão globalizante da situação jurídica creditícia, que passa a envolver, paralelamente aos deveres principais ou primários (com base nos quais se define o tipo de contrato), os deveres acessórios de conduta ou laterais.
V. Resulta da conjugação dos n.ºs 1 e 2 do artigo 102.º com o artigo 104.º do diploma legal citado, que o vencimento da prestação devida pela seguradora ocorre “após a confirmação da ocorrência do sinistro e das suas causas, circunstâncias e consequências”, havendo situações que pelos seus contornos justificam uma prévia averiguação das circunstâncias em que ocorreu o facto objeto da participação, podendo legitimar, não só o decurso do tempo, mas também a divergência da seguradora.
VI. O facto de a seguradora, divergindo da tese do segurado, não ter satisfeito de imediato a indemnização devida em consequência de um furto do veículo, vindo a ser condenada nessa prestação pelo tribunal, não significa, por si só, qualquer violação de deveres acessórios de conduta, suscetível de legitimar a condenação no pagamento dos valores pagos pelo segurado com o aluguer de uma viatura de substituição.

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
Em 26.11.2012, no Tribunal Judicial da Comarca de Santo Tirso, “B…, S.A.”, intentou contra, “C… - Companhia de Seguros, S.A.” acção declarativa com processo ordinário, pedindo que seja «a Ré condenada a pagar à Autora a quantia de € 72.843,10, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde 06/06/2010 no que toca ao valor de € 59.800,00, e desde as datas em que a Autora fez os pagamentos dos valores do aluguer da viatura acima referida, quanto ao restante montante já liquido, bem como acrescido do que se vier a liquidar em incidente posterior à sentença, conforme alegado nos artigos 29.º a 34.º, tudo acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.».
O pedido global formulado corresponde à soma de duas parcelas: € 59.800,00 – valor do veículo e € 13.043,10 – despesas de aluguer de viatura idêntica.
Aleou em síntese a autora: é proprietária do veículo automóvel de matrícula ..-..-UZ, marca BMW, modelo …; celebrou com a ré um contrato de seguro; o qual inclui, para além da cobertura de responsabilidade civil contra terceiros, as coberturas de danos próprios, nomeadamente de choque, colisão e capotamento, incêndio, raio e explosão, furto ou roubo, fenómenos da natureza, riscos sociais, assistência em viagem, bem como as coberturas de ocupantes e proteção jurídica; coberturas essas pelo valor de capital seguro de € 59.800,00 (salvo a cobertura de proteção ocupantes, em que o capital contratado foi somente de € 10.000,00), e com uma franquia de € 350,00 relativamente às coberturas de choque, colisão ou capotamento e riscos sociais; a ré emitiu a respetiva apólice, com o número ………… e a autora pagou o correspondente prémio de seguro; o contrato entrou em vigor a partir do dia 04/12/2009; no dia 6 de Abril de 2010, à hora de entrada no expediente, quando os administradores da autora chegaram às instalações da empresa, onde a viatura tinha sido deixada aparcada no dia anterior, verificaram que a viatura havia sido dali furtada; até hoje, tal viatura não foi restituída à autora; a autora participou oportunamente o furto; a ré, independentemente de nunca ter posto em causa a existência da cobertura de furto contratada com a autora, não pagou o valor da indemnização a que esta tem direito, ou seja, o capital seguro de € 59.800,00; a autora comunicou à ré que iria proceder ao aluguer de uma viatura de características idênticas à furtada, para as deslocações das pessoas que utilizavam tal viatura; até hoje a ré não deu qualquer resposta; a autora suportou as despesas de aluguer, no montante diário de € 35,00, acrescido de I.V.A., desde o dia 28/06/2010 até ao dia 30/04/2011, momento a partir do qual, face ao hiato de tempo já decorrido, não pôde mais suportar aquele custo; liquidando à proprietária do veículo em causa o total de € 13.043,10; a autora continua desapossada da sua viatura.
Citada, a ré apresentou contestação, alegando em síntese: aceita que a autora formalmente consta como proprietária do veículo em causa, matrícula “..-..-UZ; não resultou confirmada a ocorrência do furto alegado pela autora; no que concerne aos valores peticionados alegadamente pagos por aluguer de viatura e de privação de uso, no valor alegado de € 13.043,10, nunca serão devidos, dado que o contrato de seguro em causa não prevê a cobertura de veículo de aluguer ou de substituição; não podendo também ser devida qualquer indemnização por privação de uso/aluguer de viatura de substituição dum veículo objeto de participação por furto; acresce que a ré veio de apurar que o veículo “..-..-UZ” esteve seguro, já após a participação do furto aqui em discussão, na congénere D…, Companhia de Seguros, S.A., desde 25 de Julho de 2012, tendo como tomadora E…; contrato esse que ficou que vigorou até 01.11.2012; tendo passado desde 24.12.2012 a ficar seguro também na D…, Companhia de Seguros, S.A, e continuando como tomadora E…, contrato que se manterá até à presente data, titulado pela apólice n.º ………; mais se apurou que F…, cunhado daquela tomadora e irmão do marido de E…, tinha adquirido em data que não especifica tal viatura a um senhor cujo nome não identificou de origem brasileira; caso no presente pleito a ré seja a final condenada a pagar a indemnização aqui peticionada pelo alegado furto do veículo, sempre os detentores do veículo deverão ser notificados para entregar a viatura à ré; com efeito, a perda da presente demanda para a ré sempre lhe causará prejuízo, e assistirá assim direito de regresso contra tais detentores do veículo do prejuízo assim causado; razão porque requer a intervenção provocada acessória de F… e de E….
A autora apresentou réplica, na qual, além do mais, pede a condenação da ré como litigante de má fé, em multa e indemnização a favor da autora, de valor nunca inferior a € 2.500,00.
Em 25.09.2013 foi proferido despacho com o seguinte teor: «[…] Pelo exposto, nos termos dos art.ºs 330.º e 331.º do C.P.C., admite-se a intervenção acessória provocada de F… e E…, como associados da R., nos termos requeridos. […]»
F… e E… deduziram contestação, na qual alegam em síntese: não é verdade que a autora seja proprietária do veículo automóvel de matricula ..-..-UZ de Marca BMW modelo ….; contudo é verdade que a propriedade de tal veículo se encontra ainda averbada em nome da autora; sendo também falso que desde a sua aquisição pela autora tal viatura tenha sido sempre utilizada pelos seus legais representantes à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, ininterruptamente na convicção de ser sua proprietária, uma vez que a mesma em data não apurada, mas seguramente antes de 6 de abril de 2010, a entregou a terceiros para procederem à sua venda; tendo passado a mesma a circular na margem sul do país, nomeadamente em …, …, … e …; tendo passado por diversas autoestradas onde ficou gravado o seu registo de passagem nas respetivas portagens; a autora e os seus legais representantes simularam o furto da viatura em causa.
Em 8.04.2014 realizou-se audiência prévia, na qual: foi fixado à ação o valor de € 72.843,10; foi definido como objeto do litígio: a propriedade do veículo, a existência do furto do veículo, a obrigação contratual de reparação em virtude do alegado furto, e a obrigação de reparação pela privação do uso da viatura; foram definidos os temas da prova.
Procedeu-se a julgamento, após o que, em 21.10.2015, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«Termos em que se decide julgar a acção por parcialmente procedentes, e, consequentemente:
- Condenar a Ré a C… - Companhia de Seguros S.A. a pagar à Autora, B…, S.A. quantia de €49.800,00 (quarente e nove mil e oitocentos euros), acrescida de juros de mora vencidos desde 6 de Junho de 2010 e vincendos até integral pagamento.
Custas da acção por Autora e Ré na proporção aritmética dos respectivos decaimentos.».
Não se conformou a autora e interpôs recurso de apelação, apresentando alegações nas quais formula as seguintes conclusões[1]:
I) - O presente recurso circunscreve-se unicamente à parte da sentença que não atendeu ao pedido da recorrente relativo à condenação da recorrida no pagamento de indemnização a título de compensação por privação de uso do veículo da recorrente, durante o tempo em que esteve – como ainda está – desapossada do mesmo, pelo facto de a recorrida, muito embora estivesse obrigada a tal, não ter procedido de harmonia com os deveres que tinha para com a recorrida, pagando-lhe o valor do capital seguro.
II) - A recorrente está desapossada daquele veículo – e do valor para poder adquirir um outro com idênticas características – desde a data daquele furto, e apesar de a recorrida ter obrigação de pagar o valor da indemnização contratada no prazo de 60 dias após aquele evento (portanto até ao dia 06/06/2010), não o fez, ora entendendo que o furto não ocorreu (!), ora entendendo que o valor do capital seguro para o veículo era superior ao valor do mesmo e que teria sido enganada pela recorrente na indicação desse valor (!), o que, como resultou da prova produzida em julgamento, era completamente falso e daí a sua condenação nos moldes em que ocorreu;
III) - Andou mal o Mº. Juiz “a quo”, quanto a esta parte da sentença, ao entender que por estarmos perante um seguro facultativo de danos próprios não haveria lugar ao pagamento da indemnização pela privação do uso do veículo porque a recorrente não teria contratado com a recorrida a cobertura de privação de uso do veículo, e tal indemnização estaria excluída pelo artigo 130º. do D.L. 72/2008, muito embora entendesse que tal disposição não invalida o pagamento de indemnização pelos danos que sejam causados pela mora;
IV) - A privação de uso do veículo constitui um dano autónomo que terá de ser indemnizado, nos termos dos artigos 562º. e segs. Do C.C.;
V) - Na lição de Pereira Coelho, in “O Problema da Causa Virtual na Responsabilidade”, pág. 250, “por dano pode entender-se (...) o prejuízo real que o lesado sofreu in natura, em forma de destruição, subtração ou deterioração de um certo bem corpóreo ou ideal”, sendo que o dano é “todo o prejuízo, desvantagem ou perda que é causada nos bens jurídicos, de carácter patrimonial ou não, de outrem” – Vaz Serra, in BMJ, nº 84, pág.8.
VI) - No respeitante aos danos patrimoniais, o princípio fundamental que tutela esta matéria é o da reposição da coisa no estado anterior à lesão, por ser a forma mais genuína de reparação, exceto se a restauração não for exequível ou se se revelar excessivamente onerosa para o devedor, e como ensina Almeida Costa, a restauração natural ou indemnização em forma específica dos interesses dos lesados é a forma mais perfeita da reparação. Desta sorte, apenas se apresenta inviável quando “não haja possibilidade material de reconduzir as coisas à situação exata ou aproximada em que estariam se a lesão se não tivesse verificado; ou porque desse modo se não reparam integralmente os danos; ou ainda porque a ordem jurídica a não admite, designadamente por considerá-la demasiado onerosa para o devedor. Terá então de operar-se uma indemnização ou restituição por equivalente, traduzida na entrega de uma quantia em dinheiro que corresponda ao montante dos danos” (“Direito das Obrigações”, 5ª edição, págs. 637 e ss; no mesmo sentido, Fernando Pessoa Jorge, in “Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil”, 1995, págs. 404 e 405);
VII) - No cumprimento do disposto no artigo 562º, do Código Civil, será obrigação dos responsáveis indemnizar pelos prejuízos experimentados, de forma a reconstituir-se-lhes a situação que existiria se não tivesse ocorrido o evento danoso;
VIII) - A culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso (artigo 487º, nº 2, do Código Civil). Adotando, com evidência, a doutrina da causalidade adequada entre facto e dano, determina o artigo 563º, do Código Civil, que a “obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão”;
IX) - No que se refere aos danos de natureza patrimonial, o apuramento do quantum da indemnização deverá obedecer ao disposto nos artigos 562º, 564º e 566º, do Código Civil, nos termos dos quais a indemnização há-de, em princípio, reconstituir a situação que existiria se o evento danoso se não tivesse verificado, sendo encargo do lesante promover a reparação dos danos que causou, sendo que o dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão – danos emergentes e lucros cessantes, na expressão do artigo 564º, nº 1, do Código Civil;
X) - Conforme se prescreve no Acórdão da Relação de Guimarães de 3 de Maio de 2011, in CJ, Ano XXXVI, Tomo III, pág. 278, “(…) A não reposição atempada da situação anterior ao evento lesivo … tem apenas como efeito o avolumar do dano decorrente da manutenção da situação lesiva. Se o lesante não repõe a situação anterior ao evento lesivo, suportará as consequências, tendo assim de pagar indemnização, tanto mais avultada quanto maior for o período em que o lesado se veja impedido de utilizaram veículo com as características idênticas às do acidentado.”;
XI) - A impossibilidade de o lesado usar e fruir o bem que é seu cessará quando o responsável repuser o seu património, através do pagamento do montante necessário à aquisição de outro bem com características idênticas;
XII) - Tal obrigação de reparação do dano que resulta da impossibilidade de fruir do veículo tem a sua causa adequada no próprio sinistro (furto), pelo que, apurada que seja a existência da obrigação de indemnizar, tem este dano que ser reparado paralelamente com o dano do furto do veículo, e daí que, quer decorra do facto lesivo uma impossibilidade de restauração natural, quer não, sempre ocorrerá para o lesado a privação temporária do uso do bem da sua propriedade, sendo que essa privação constitui um dano autónomo indemnizável pelo responsável civil – veja, neste sentido, o Acórdão da Relação do Porto de 05/01/2010, in CJ, ano
XXXV, tomo I, págs. 167 e 168 (neste mesmo acórdão da Relação do Porto pode ler-se em abono da tese aqui defendida: “Também nestes casos – perda total do veículo interveniente em acidente de viação – o evento traduz uma modificação negativa na relação entre o lesado e o seu património que não é cabalmente reposta com a atribuição da indemnização necessária à aquisição de outro veículo, pois que até ao recebimento de tal indemnização se manterá o desequilíbrio ocorrido com a perda da possibilidade de usar um bem da sua propriedade”);
XIII) - A mera disponibilidade de um bem tem expressão económica, de tal forma que a sua privação acarreta, por si só, um prejuízo efetivo ao titular, isto é, um dano (emergente) de natureza patrimonial. Quem dispõe de um bem, ao ver-se privado do mesmo, sofre desde logo o prejuízo correspondente ao valor da disponibilidade anterior, não podendo ser reconstituída a situação anterior ao dano sem que ele seja compensado por tal privação;
XIV) - Esta posição mostra-se superiormente defendida no estudo de Abrantes Geraldes: “Se a privação do uso do veículo durante um determinado período originou a perda das utilidades que o mesmo era suscetível de proporcionar e se essa forma não for reparada mediante a forma natural de reconstituição, impõe-se que o responsável compense o lesado na medida equivalente”.
XV) - Fazer depender invariavelmente a indemnização da prova da ocorrência de danos imputáveis diretamente a essa privação é solução que pode justificar-se quando o lesado pretenda uma quantia suplementar correspondente aos benefícios que deixou de obter, ou seja, aos lucros cessantes, nos termos do artigo 564º, nº 1, do Código Civil, ou às despesas acrescidas que o evento determinou, já não quando o seu interesse se reduz à compensação devida pela privação que, nos termos da mesma norma, corresponde ao prejuízo causado, isto é, aos danos emergentes” (Indemnização do Dano da Privação do Uso, Almedina, 2ª edição), pelo que “(…) perante uma situação de privação do uso de um bem, o nosso sistema responde de modo a conferir ao lesado a possibilidade de obter a imediata reconstituição natural da situação. Não sendo esta viável, como sucede quando a reconstituição da fruição não se mostre possível ou quando seja irrecuperável a privação do uso ocorrida em determinado período de tempo, verifica-se que o credor ficou privado das utilidades que o bem poderia proporcionar, devendo o ressarcimento fundar-se na atuação ilícita do agente.”;
XVI) - O simples uso, em suma, constitui uma vantagem suscetível de avaliação pecuniária, pelo que a sua privação consubstancia um dano que deve ser indemnizado como contrapartida da perda da capacidade de utilização normal durante o período de privação e, como expende Abrantes Geraldes, in “Indemnização do Dano da Privação do Uso”, Almedina, pág. 9, a privação comporta, em regra, um prejuízo efetivo na esfera jurídica do lesado, correspondente à perda temporária dos poderes de fruição, raramente sendo indiferente para o lesado a manutenção intangível do uso ou a sua privação durante um determinado período de tempo, jamais podendo a utilização no período transcorrido ser “restituída” em espécie;
XVII) - Das condições gerais do seguro juntas pela recorrida resulta que, no que toca à cobertura facultativa de furto ou roubo (páginas 44 e 45 de tais condições), tendo-se verificado o furto do veículo, a Ré tinha o prazo de 60 dias para proceder ao pagamento da indemnização devida, se ao fim desse prazo não fosse encontrado o veículo, o que não fez, incorrendo em mora e em responsabilidade civil perante a recorrente.
XVIII) - Consta das páginas 91 e 92 de tais condições que a cobertura de privação de uso é limitada ao máximo de 45 (quarenta e cinco), pelo que ainda que a recorrente quisesse negociar um período superior de privação de uso, não poderia, pois que a recorrida, nas condições gerais de apólice que unilateralmente estabeleceu, impôs aquele prazo máximo de quarenta e cinco dias, e tal sucede, naturalmente, porque a própria recorrida admite que o prazo de quarenta e cinco dias é um prazo razoável para regularizar o sinistro, e estabeleceu até nas mesmas condições que teria de pagar o valor da indemnização se o veículo não fosse encontrado no prazo de 60 dias, o que não fez no caso dos autos, até hoje (volvidos que estão mais de cinco anos);
XIX) - Assim, a privação do veículo terá de ser apreciada como um dano autónomo estruturalmente indemnizável, pois caso contrário, estará a recorrida incursa num manifesto abuso de direito (ao invocar a falta de contratação de tal cobertura e o disposto no D.L. 72/2008) – artigo 334º. Do Código Civil – pois que estabelece um período que entende razoável para resolução do sinistro e, depois, por motivo unicamente a si imputável, ele não é regularizado, e de outra forma estaria a premiar-se aquele que assume a obrigação de pagar e não o faz por longo tempo, transferindo a responsabilidade pela substituição da coisa para o lesado, lesado este que só com o recebimento da importância poderia adquirir uma outra viatura para usufruir das utilidades perdidas (vide sentença do Mº. Juiz de Círculo no processo nº. 130/09.3TBCBC, do Tribunal de Cabeceiras de Basto, e posterior Acórdão da Relação de Guimarães de 27/02/2014, que quantificou o valor da paralisação do veículo a indemnizar ao lesado, num caso de idêntica responsabilidade contratual; ou ainda o douto acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 26/03/2015, proferido no Proc. nº. 1319/11.0TBBCL.G1, da 1ª. Secção daquele Tribunal, disponível em www.dgsi.pt, em que se estava precisamente em causa com uma situação de seguro de danos próprios);
XX) - Como se refere no douto Acórdão da Relação do Porto de 25/01/2011, “Os deveres acessórios de conduta, ainda que não resultando do contrato, resultam sem dúvida do princípio da boa fé, tal como plasmado no art° 762° nº 1 do Código Civil, representando uma transferência, para o campo contratual, do princípio neminem laedere ou partem non-laedere. Atua em violação de um dever acessório de conduta a seguradora que, sabendo não ser contratualmente responsável pelos danos de privação de uso, demorou mais do que o razoável para o apuramento da indemnização devida e para o seu pagamento, violando o equilíbrio contratual e rompendo a colaboração inter-subjectiva, causando os referidos danos, bem como danos morais, na pessoa do beneficiário do seguro”;
XXI) - Como resulta do artigo 9º. do C.C., a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, e parece-nos evidente que aquilo que o artigo 130º. do D.L. 72/2008 pretende assegurar é que o direito a indemnização por privação de uso do bem só é assegurado se for contratado entre as partes, mas em situações normais, ou seja, em situações em que o contrato seja pontual e integralmente cumprido, como seria o caso em que a recorrida tivesse procedido ao pagamento da indemnização a que a recorrente tem direito nos sessenta dias após a verificação do evento sem que o veículo tivesse aparecido (como resulta das condições gerais que ela mesma estabeleceu);
XXII) - No caso dos autos não foi isso que sucedeu, e a recorrente não peticiona a indemnização pela privação do uso desde a data do sinistro, mas apenas desde a data em que a recorrida passou a incumprir o contrato, ou seja, a partir do sexagésimo primeiro dia após a verificação do furto do veículo, pois a recorrida deveria ter pago o valor da indemnização, no limite, naquela data, e não o tendo feito passou a incumprir o contrato, entrando em mora e causando danos à recorrente;
XXIII) E não se diga que a mora da recorrida seria ressarcida através do pagamento de juros, pois tais juros nunca teriam a virtualidade de ressarcir todos os danos sofridos pela recorrente decorrentes do incumprimento da recorrida, bastando pensar que os juros de mora, mesmo contados desde o dia 06/06/2010 até à presente data, ascendem a cerca de € 11.000,00, e a recorrente, em aluguer de veículos, resultante de estar privada do seu veículo, entre 28/06/2010 e 30/04/2011 gastou € 13.043,10, e se tivermos em conta o valor diário de aluguer de um veículo como aquele que foi furtado à recorrente (pelo menos € 80,00 como ficou provado), o valor daqueles juros não chega para pagar nem cinco meses da indemnização em causa, muito menos mais de cinco anos;
XXIV) Este dano autónomo da indemnização da privação de uso do veículo, pelo facto de a recorrida não ter cumprido com as suas obrigações contratuais, nada tem que ver com aquele outro “valor de privação de uso do bem” constante do artigo 130º. nº. 3 do D.L. 72/2008, que se refere a uma cobertura do seguro vigente enquanto tal contrato de seguro vigorar também, e não já àquele outro dano autónomo resultante do incumprimento contratual por parte da recorrida.
XXV) - Como foi referido no acórdão do Tribunal da Relação Guimarães, de 05-12-2013, disponível em www.dgsi.pt, “aceitando que a privação do uso de um veículo é, em si mesma, um dano indemnizável, desde logo por impedir o proprietário (ou, eventualmente, o titular de outro direito, diferente do direito de propriedade, mas que confira direito a utilizá-lo) de exercer os poderes correspondentes ao seu direito, não é menos verdade que a ré, ao abrigo do seguro de danos próprios dos autos, só estaria obrigada a ressarcir tal dano se a sua conduta consubstanciasse a violação de um dever acessório da prestação, nomeadamente por ter atrasado inexplicavelmente a ordem de reparação da viatura. Tal dever, não resultando do contrato, resulta sem dúvida do princípio da boa fé, tal como plasmado no art. 762º, nº 1, do CC, representando uma transferência, para o campo contratual, do princípio neminem laedere. Assim, quem venha a incorrer em responsabilidade contratual, por esta via, deve indemnizar o dano positivo que resultou para a contraparte, previsto no art. 798º, nº 1, do CC.”;
XXVI) Pese embora se possa defender que o pagamento da indemnização pela privação da fruição do veículo não encontre fundamento no cumprimento de obrigações contratuais principais, é por si só indemnizável nos termos do nº. 1 do 564º. do Código Civil, derivado da inércia da recorrida, que tudo fez para protelar o cumprimento das suas obrigações;
XXVII) - A recorrida, pese embora não tenha assumido contratualmente a responsabilidade de indemnizar pela privação da fruição do veículo, encontra-se por força daqueles deveres acessórios vinculada à obrigação de em tempo razoável (e sempre dentro dos 60 dias previstos nas condições gerais) proceder à indemnização dos danos cuja responsabilidade lhe tenha sido transferida;
XXVIII) - Assim – e como refere o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 25 de Janeiro de 2011 – o atraso excessivo na assunção das responsabilidades assumidas contratualmente pela recorrida sempre violaria os deveres acessórios de lealdade e cooperação inter partes, causando por esta via danos à recorrente que, nestes termos, serão reparáveis no âmbito da responsabilidade contratual;
XXIX) - Nos termos do artigo 798º. do C.C. – atinente à responsabilidade contratual - o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor, e no caso dos autos dúvidas não existem de que foi celebrado um contrato entre a recorrente e a recorrida, e que a recorrida faltou culposamente ao cumprimento das suas obrigações contratuais, e com isso causou prejuízos à recorrente, desde logo resultantes da privação do uso do seu veículo;
XXX) - A questão de saber se, no âmbito de um seguro de danos próprios, é devida indemnização pela privação do uso do veículo na sequência do furto de que o mesmo foi alvo, ou se não há lugar a qualquer indemnização em virtude da mesma não estar prevista no contrato de seguro, não tem merecido por parte da jurisprudência tratamento uniforme, mas a solução que exclui a obrigação de indemnizar o dano autónomo da privação do uso do veículo, pelo menos nos casos de demora injustificada no pagamento da indemnização pela perda do veículo – como no caso dos autos - não tem em devida consideração o equilíbrio a que todos os contratos devem estar sujeitos e, bem assim o princípio da boa fé, “princípio postulado sem matizes nos contratos em geral, quer na sua fase preliminar – art. 227º do Código Civil – quer durante a sua execução, artigo 762º, nº 1, do mesmo diploma, princípio normativo, ou seja, regra de conduta que deve ser escrupulosamente observada pelos contraentes” – vide Ac. do STJ de 31.05.2011, proc. 854/10.2TJPRT.S1, in www.dgsi.pt;
XXXI) - É facto incontornável que a recorrida se recusou ao pagamento da indemnização devida nos termos contratuais, com falsos argumentos, que não demonstrou e por isso foi condenada a pagar a indemnização à recorrente, como é certo que a privação do uso não está diretamente coberta pelo seguro, porém, esse prejuízo não fica ressarcido, naturalmente, pelos juros moratórios devidos pelo incumprimento contratual da seguradora;
XXXII) - A Seguradora, ao recusar-se a indemnizar a recorrente pelo dano resultante da perda total do veículo em consequência do furto, incorreu em incumprimento contratual, respondendo pelos danos causados (art.º 804º, nº 1 do CC), e a privação do uso trata-se de um dano autónomo – dano da privação do uso – e por isso mesmo indemnizável, sendo que em consequência da perda total do veículo, a recorrente ficou impedida de usar e fruir aquela viatura, e a recorrida ainda não lhe entregou a quantia devida nos termos contratuais, que seria necessária para a compra de um veículo substitutivo;
XXXIII) - A privação do uso decorre do incumprimento do dever contratualmente assumido pela recorrida de pagar uma indemnização ocorrendo furto, integrando-se tal prejuízo na categoria de dano concreto;
XXXIV) - Além dos deveres principais de prestação e dos direitos correspetivos, que definem o tipo da relação contratual, existem ou podem existir, também, deveres secundários de prestação, os quais, segundo Mota Pinto (Cessão da Posição Contratual, Almedina, 1982, p. 337) podem assim ser distinguidos: «(…) Deveres secundários com prestação autónoma: trata-se de prestações sucedâneas do dever primário de prestação, como será o caso da indemnização de perdas e danos por inadimplemento culposo do devedor, do direito do credor ao commodum subrogationis, do direito a uma prestação por força da extinção do contrato em virtude de denúncia da outra parte ou, então, de prestações coexistentes com a prestação principal, sem a substituírem, como o direito à indemnização em caso de mora ou em caso de cumprimento defeituoso da prestação principal; (…) Deveres secundários, acessórios da prestação principal, que não têm autonomia em relação a esta, como, por exemplo, o dever de custodiar a coisa prometida, de a embalar, de promover o seu transporte, etc. Estes deveres estão exclusivamente dirigidos à realização do interesse no crédito (interesse no cumprimento) e são, assim, acessórios do dever primário de prestação e a este dirigidos.»;
XXXV) - Outros deveres existem e que seguem a realização do iter do contrato, os quais se caracterizam por uma função auxiliar da realização positiva do fim contratual e de proteção à pessoa ou aos bens da outra parte contra os riscos de danos concomitantes. «Trata-se de deveres de adoção de determinados comportamentos impostos pela boa fé, em vista do fim do contrato (artºs 239º e 762º C.Civ.), dada a relação de confiança que o contrato fundamenta, comportamentos variáveis com as circunstâncias concretas da situação» (Mota Pinto, ob. cit., p. 339);
XXXVI) - Para a recorrida, ainda que implicitamente, tais deveres não integraram o acordo vertido na apólice de seguro. Mas importa acrescentar que tais deveres não tinham que integrar o acordo, pois trata-se «de deveres secundários de prestação e de deveres laterais, além de direitos potestativos, sujeições, ónus jurídicos, expetativas; todos os referidos elementos se coligam em atenção a uma identidade de fim e constituem o conteúdo de uma relação de carácter unitário e funcional: a relação complexa, em sentido amplo, ou, nos contratos, a relação contratual» (Almeida Costa, Obrigações, 9ª ed., p. 63); avaliam-se como simples deveres de conduta, decorrendo de «uma ordem normativa que envolve o contrato e sujeita os contraentes aos ditames da boa fé, por todo o período da sua vida» (Carneiro da Frada, Contrato e Deveres de Protecção, 1994, p. 39);
XXXVII) «A envolver os deveres de prestar, qualquer que seja a sua natureza, predispõem-se na relação obrigacional uma série de outros deveres essenciais ao seu correto processamento; não estão estes virados, pura e simplesmente, para o cumprimento do dever de prestar, antes visam a salvaguarda de outros interesses que devam, razoavelmente, ser tidos em conta pelas partes no decurso da sua relação; de um modo geral, eles exprimem, na formulação de Larenz, a necessidade de tomar em consideração os interesses justificados da contraparte e de adoptar o comportamento que se espera de um parceiro negocial honesto e leal, e costumam fundamentar-se no princípio da boa fé; pela sua índole, são suscetíveis de comparecer em qualquer relação obrigacional, seja o seu tipo aquele que for, e também só se especificam em função dos contornos que o desenrolar da vida da relação contratual venha a manifestar» (Ob. e loc. cit.. No mesmo sentido, citando também este Autor, vd. o Ac. da RP de 25.01.2011 já referido);
XXXVIII) - No caso em apreço, é inequívoco que o tempo joga a favor da recorrida seguradora - parte mais forte num contrato de seguro que garante a indemnização por danos próprios - uma vez que o segurado precisa de uma viatura de substituição o mais rápido possível;
XXXIX) - Embora possa ser discutida a distinção entre deveres secundários da prestação e deveres laterais ou acessórios da prestação – se bem que a violação de ambos conduza a idêntica consequência jurídica – a violação destes mencionados deveres, onde se incluía o aludido dever da recorrida diligenciar pelo pagamento da indemnização, proporcionando à recorrente possibilidade de haver para si outro veículo automóvel, deve ser classificada como deveres acessórios de conduta, enquanto não dirigidos ou complementares da prestação principal de indemnização, mas visando o risco de danos nos bens da contraparte (cfr. Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, Almedina, 1997, pp. 603 e ss: No mesmo sentido o Ac. da RP de 25.01.2011 já citado);
XL) Tratando-se de um dever acessório, estamos perante a violação de um dever de lealdade, que obrigava as partes a se absterem de comportamentos que pudessem falsear o objetivo do negócio ou desequilibrar o jogo das prestações consignado, e no caso em apreço, a inexplicável recusa no pagamento da indemnização à recorrente (com fundamentos falsos e dos quais a recorrida não fez a mínima prova), traduziu-se na violação de um dever acessório da prestação, que, se cumprido, possibilitaria àquele o recurso a um veículo idêntico ao furtado;
XLI) - Tal dever, não resultando do contrato, resulta sem dúvida do princípio da boa fé, tal como plasmado no artigo 762º, nº 1, do CC, representando uma transferência, para o campo contratual, do princípio neminem laedere (cfr. o Ac. da RP de 25.01.2011 referido);
XLII) - Assim, quem venha a incorrer em responsabilidade contratual, por esta via, deve indemnizar o dano positivo que resultou para a contra parte, previsto no artigo 798º, nº 1, do CC (cfr., neste sentido, Menezes Cordeiro Da Boa Fé… cit., pp. 594 e ss. e Paulo Mota Pinto, Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, II, pp. 1697 e 1698, este último autor citado no Ac. da RP de 25.01.2011).
XLIII) - Na situação concreta e como decorre do quadro factual apurado, o dano positivo resultou, para a recorrente, da privação do uso do veículo, sendo que as regras da determinação da obrigação de indemnizar (arts. 496º e 562º e ss., do CC) são comuns às duas responsabilidades civis – a contratual e a aquiliana e ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemos;
XLIV) - Em suma, existe no caso inexecução do contrato, por violação de deveres acessórios de conduta, violação imputável à recorrida, do que resulta ter a recorrente o direito a reclamar daquela o valor da indemnização a título de privação de uso, equivalente ao dano revelado no interesse contratual positivo, que encontra guarida no disposto nos arts. 562º, 566º, 762º nº2, 798º nº1 e 801º nº 2, todos do CC.
XLIV) - No caso dos autos provou-se que a recorrente, em virtude de não dispor do veículo furtado, e de não ter recebido da recorrida o valor do capital seguro para poder adquirir um outro veículo compatível, depois de comunicar à recorrida que iria ter de alugar um veículo e imputar-lhe os respetivos custos, teve de despender somente entre 28/06/2010 e 30/04/2011, em aluguer de outro veículo, o valor de € 13.043,10, provando-se ainda que o aluguer diário de uma viatura como a furtada custaria nunca menos de € 80,00, e que a recorrente está ainda hoje privada daquela viatura, que não foi restituída à recorrente, viatura essa que era utilizada diariamente pelos administradores da recorrente para as suas deslocações, quer em trabalho, quer particulares;
XLV) - Por isso, sempre terá a recorrida de ser condenada a pagar à recorrente aquele valor de € 13.043,10 (que a recorrente teve de despender por estar privada do seu veículo) acrescido do montante diário de € 80,00 desde o dia 06/06/2010 até 27/06/2010, e desde o dia 01/05/2011 até que coloque à disposição da recorrente o valor da indemnização pelo furto do veículo;
XLVI) - A sentença proferida violou, por erro de interpretação e aplicação, o disposto nos artigos 130º. do D.L. 72/2008 e 9º., 562º, 566º, 762º nº 2, 798º nº 1 e 801º nº 2, todos do C.C..
Decidindo assim, V. Excias farão Justiça.
A ré respondeu às alegações de recurso apresentadas pela autora, preconizando a manutenção do julgado e alegando em síntese:
1) O contrato de seguro em causa constitui um seguro facultativo de danos próprios. No presente pleito estamos, pois, no domínio do seguro facultativo e não obrigatório de responsabilidade civil. E nesta apólice não estão incluídas danos de privação de uso, veículo de aluguer ou ressarcimento por lucros cessantes.
2) É o próprio Recorrente que reconhece que a privação do uso não está coberta pelo contrato de seguro (cfr. página 22 das suas alegações)!
3) Para além de não cobertura contratual de tais tipos de danos, é a lei que assim o determina. Como resulta do disposto pelo art. 130º nº1 e 2 do D.L. 72/2008 de 16 de Abril, não haverá lugar, salvo convenção das partes em contrário, ao pagamento pela seguradora dos danos causados com a privação do bem ou com os lucros cessantes decorrentes do sinistro.
4) Olvida a Autora que a presente ação não foi por si proposta contra um autor do ilícito de furto da viatura cujo ressarcimento reclama e esteve aqui em discussão. A ação não foi proposta contra o autor do dito furto, mas contra a aqui Ré com quem a Autora somente contratou determinadas coberturas especificadas nas condições particulares da apólice que ela própria juntou a fls. 14 e 15 e que o Tribunal deu como reproduzidas no ponto 3 dos factos provados.
5) Também não resultou provado ou foi invocada qualquer nulidade/vício das condições contratuais do contrato ou desconhecimento das mesmas por parte da Autora e não entrega àquela destas, como vem alegar a Recorrente. Aliás, na petição inicial não alega estarem cobertos tais danos de privação de uso ou lucros cessantes e nas alegações do presente recurso, a certo trecho, até reconhece não estarem cobertos contratualmente.
6) Na p.i. a Autora teria que logo ter alegado que não conhecia e não lhe tinham sido entregues as condições gerais e especiais da apólice, o que não fez. O alegado pela Autora nos artigos 4 e 5 da p.i. demonstra bem que conhecia as coberturas contratadas na apólice, ao ali as elencar
7) Resulta da proposta de seguro junta a fls. como doc. 2 da Contestação da aqui Ré de fls., documento não impugnado pela Autora, que esta assinou a proposta, nela declarando, designadamente: “Tomei conhecimento das condições do contrato de seguro e foram-me prestados todos os esclarecimentos necessários e legalmente exigíveis”.
8) Cita a seguinte jurisprudência, no sentido que preconiza: o Ac. do Relação do Porto de 13-06-2013, proc. 4438/11.0TBVNG.P1, citado pelo tribunal a quo na sentença proferida; o Acórdão da Relação do Porto, processo 2965/12.0TBMTS.P1 de 28-10-2013; o Acórdão da Relação de Guimarães, no processo 915/12.3TBFLG.G1 de 13-02-2014, Acórdão da Relação de Guimarães no proc. 598/12.0TBVCT.G1 de 10-10-2013; Acórdão da Relação do Porto, processo 4393/13.1TBMAI.P1 de 23-06-2015; Acórdão da Relação do Porto, processo 2965/12.0TBMTS.P1 de 28-10-2013, Acórdão da Relação de Guimarães, no processo 915/12.3TBFLG.G1 de 13-02-2014, disponíveis na internet através do site www.dgsi.pt,

II. Do mérito do recurso
1. Definição do objecto do recurso
O objecto do recurso delimitado pelo recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 635.º, n.º 3 e 4 e 639.º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 3.º, n.º 3, do diploma legal citado), consubstancia-se numa única questão: saber se, face à natureza do contrato de seguro celebrado, e às cláusulas que as partes estipularam, impende sobre a ré a obrigação de ressarcir os danos invocados: privação de uso de veículo; e despesas de aluguer de um veículo de características equivalentes.

2. Fundamentos de facto
Está provada (assente) a seguinte factualidade relevante:
1. A propriedade do veículo automóvel de matrícula ..-..-UZ, marca BMW, modelo …., encontra-se registada na competente conservatória de registo automóvel a favor da Autora com data de 29.12.2009.
2. Desde a sua aquisição em 4.12.2009 à empresa G… Lda., que tal veículo se encontrava na posse da Autora, sendo utilizado pelos seus representantes legais, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, ininterruptamente, na convicção de ser sua proprietária e de não lesar direitos alheios.
3. No seguimento da proposta de seguro junta a fls. 50 a 55 cujo teor se dá por reproduzido junto de um mediador autorizado da Ré, a Autora acordou com a Ré a formalização de um seguro automóvel para circular com o veículo automóvel de matrícula ..-..-UZ, dando origem à apólice com o número …………, documento junto a fls. 14 a 15 cujo teor se dá por reproduzido.
4. Incluindo em tal seguro, para além da cobertura de responsabilidade civil contra terceiros, as coberturas de danos próprios, nomeadamente de choque, colisão e capotamento, incêndio, raio e explosão, furto ou roubo, fenómenos da natureza e riscos sociais.
5. Coberturas essas pelo valor de capital seguro de € 59.800,00, e com uma franquia de € 350,00 relativamente às coberturas de choque, colisão ou capotamento e riscos sociais.
6. O valor do capital seguro de € 59.800,00 foi o indicado pelo referido mediador da Ré e aceite por esta, assim como pela Autora/segurado, como correspondente ao valor, à data, do veículo automóvel seguro de matrícula ..-..- UZ.
7. Tendo a Ré emitido a respetiva apólice, com o número …………. e a Autora pago o respetivo prémio de, ficando o respetivo seguro em vigor a partir do dia 04/12/2009, com aquelas coberturas e por aqueles valores e sujeito às condições gerais, especiais e particulares juntas a fls. 542 a 602, cujo teor se dá por reproduzido.
8. Em hora não apurada mas situada entre as 19 horas do dia 3 de Abril e as 8.00h. do dia 6 de Abril de 2010, individuo (s) de identidade não apurada deslocaram-se às instalações da empresa Autora sitas no nº … da Avenida… em …, Santo Tirso, e do seu interior retiraram o veículo automóvel de matrícula ..-..-UZ que aí se encontrava aparcado, do qual se apoderaram e se colocaram em fuga, desaparecendo com o mesmo para parte incerta.
9. A Autora apenas se apercebeu do furto da referida viatura, pelas 8.00h. do dia 6 de Abril de 2010, quando os seus administradores e funcionários chegaram às instalações da empresa.
10. A Autora participou nesse dia 6.04.2010 o respetivo furto às autoridades competentes, conforme documento junto a fls. 16 cujo teor se dá por reproduzido.
11. A Autora também participou tal furto à Ré nesse mesmo dia, conforme documento junto a fls. 18 a 19 cujo teor se dá por reproduzido.
12. Tendo a Ré respondido pela carta datada de 23.6.2010 que constitui o documento junto a fls. 20, através da qual informou a Autora, que não iria pagar qualquer indemnização, alegando que “ficou devidamente comprovado” que o sinistro “não ocorreu nos moldes que constam da participação de sinistro”.
13. Em resposta a Autora, através do seu mandatário, remeteu à Ré, que o rececionou, o email que constitui o documento junto a fls. 21 cujo ter se dá por reproduzido, no qual solicitou esclarecimentos acerca da não assunção da responsabilidade por parte da Ré e lhe comunicou à Ré que iria proceder ao aluguer de uma viatura de características idênticas à furtada para as deslocações das pessoas que a utilizavam tal viatura, e lhe imputaria tais custos.
14. Até hoje a Ré não pagou à Autora qualquer valor a título de indemnização pelo furto da viatura segura de ..-..-UZ.
15. A Autora encontra-se desapossada daquela viatura desde a data do furto
16. Tal viatura era utilizada diariamente pelos Administradores da Autora para as suas deslocações, quer em trabalho, quer particulares.
17. Autora procedeu ao aluguer à empresa G… Lda. De uma viatura de características idênticas àquela que foi furtada desde o dia 28/06/2010 até ao dia 30/04/2011, suportando o custo do respetivo aluguer, no montante diário de € 35,00, acrescido de I.V.A., tendo pago por tal aluguer à referida empresa um total de € 13.043,10
18. O aluguer de uma viatura com as características da BMW … . importaria na quantia diária não apurada nunca inferir a €80.
19. A viatura de matrícula ..-..-UZ foi anterior e sucessivamente propriedade de duas empresas, a firma G…, Lda. (com registo automóvel a favor desta empresa em 12-06-2003) e G…, Lda. (com registo automóvel a favor desta firma em 23-122005), só depois tendo passado a estar registada em nome da Autora a partir de 29-12-2009
20. Ambas aquelas empresas têm como sócio H…, o qual também representa legalmente a aqui Autora.
21. O objeto social da firma G…, Lda. é o comércio de veículos automóveis ligeiros e não de aluguer de viaturas.
22. A viatura de matrícula ..-..-UZ teve a sua primeira matrícula em 02.05.2003, teve um acidente em Maio de 2009 tendo sido então reparados os danos sofridos e contava, à data de 2.12.2009, 210.119Kh.
23. A referida viatura de matrícula ..-..-UZ não foi, até hoje, restituída à Autora.
24. Tal viatura veio, em data não apurada, a ser localizada e encontra-se atualmente apreendida à ordem do processo-crime nº135/10.1GBSTS do Tribunal de Santo Tirso - Serviços do Ministério Público, tendo sido constituído fiel depositário da mesma o chamado F…, em cuja posse se encontrava aquando da apreensão.
25. Pese embora a matrícula ..-..-UZ se encontrasse cancelada pelo IMTT desde 30.4.2012, na sequência de participação da Autora para o efeito, a mesma foi sujeita a inspeção periódica obrigatória em 25.7.2012 no CIVA de …, e foi objeto de contrato de seguro automóvel celebrado pela chamada E… em 31.10.2011 na Seguradora D…, conforme documento junto a fls. 272 a 275 cujo teor se dá por reproduzido, contrato que, em virtude de sucessivas renovações, se mantém até à presente data, titulado pela apólice nº ……… atualmente da Seguradora I… S.A..
26. O valor da referida viatura de matrícula ..-..-UZ ascende, atualmente, à quantia de €10.000.
Não se provou que:
 A autora e os seus legais representantes tenham simulado o furto da viatura de matrícula ..-..-UZ, tendo declarado que o mesmo se verificou na madrugada de 6 de Abril de 2010.
No dia 5 de Abril a identificada viatura já se encontrava na zona de Lisboa e Almada, a fim de aí ser transacionada.
A autora tenha entregue, antes de 06/04/2010, a viatura a terceiros para procederem à sua venda.
Autora não tenha podido adquirir outra de idênticas características pelo facto de a Ré não ter pago o custo da viatura furtada.
O valor de €59.800,00 pelo qual ficou seguro o veículo BMW ..-..-UZ quanto aos danos próprios do veículo designadamente quanto à cobertura de furto ou roubo, tenha sido encontrado apenas com base no valor que foi indicado pela Autora aquando da subscrição do seguro, tendo a mediadora da Ré acreditado na veracidade da informação e aceite esse valor.
O veículo seguro não tinha, nem à data de apresentação da proposta em 04-12-2009, nem à data de apresentação da participação de furto, em 06-04- 2010, o valor de €59.800,00 (cinquenta e nove mil e oitocentos euros), mas apenas de €35.000,00 (trinta e cinco mil euros).

3. Fundamentos de direito
3.1. A não abrangência do dano invocado, na cobertura do seguro
A questão fulcral em debate neste recurso, tal como se enunciou, reside em saber se o contrato de seguro celebrado entre as partes engloba no seu âmbito de cobertura o dano de privação de uso do veículo e a consequente a obrigação de reparar, traduzida no pagamento de um indemnização correspondente ao aluguer de veículo de características similares.
Provou-se que o contrato de seguro em apreço inclui, para além da cobertura de responsabilidade civil contra terceiros, as coberturas de danos próprios, englobando os riscos de choque, colisão e capotamento, incêndio, raio e explosão, furto ou roubo, fenómenos da natureza e riscos sociais, pelo valor de capital seguro de € 59.800,00, com uma franquia de € 350,00 relativamente às coberturas de choque, colisão ou capotamento e riscos sociais (factos n.ºs 4 e 5).
A factualidade essencial em apreço decorre das condições particulares juntas aos autos pela autora, ora recorrente, a fls. 14.
Nas referidas condições particulares não há qualquer referência, nem à “cobertura facultativa de privação de condução”, nem à “cobertura facultativa de privação de veículo”, previstas nas condições especiais – fls. 593 e 594 dos autos.
Pretende a recorrente que, apesar de não ter contratado tais coberturas facultativas, ainda assim teria direito à indemnização do dano de privação de uso do veículo, traduzida no pagamento pela recorrida do aluguer de viatura similar à que foi objeto de furto.
Vejamos.
Sob a epígrafe “Seguro de coisas”, estipula o artigo 130.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo Decreto-lei n.º 72/2008, de 16 de Abril:
1 - No seguro de coisas, o dano a atender para determinar a prestação devida pelo segurador é o do valor do interesse seguro ao tempo do sinistro.
2 - No seguro de coisas, o segurador apenas responde pelos lucros cessantes resultantes do sinistro se assim for convencionado.
3 - O disposto no número anterior aplica -se igualmente quanto ao valor de privação de uso do bem.
Relativamente à cobertura dos lucros cessantes, o legislador consagrou como regime supletivo o da não cobertura[2].
Como lapidarmente se refere no acórdão desta Relação, de 13.06.2013[3]: “[…] o n.º 2 estabelece que o segurador apenas responde pelos lucros cessantes resultantes do sinistro se assim for convencionado e o n.º 3 determina que se aplique o mesmo regime quanto ao valor de privação do uso do bem. Estabelece-se, pois, um regime especifico para os contratos de seguro de danos, que se afasta do regime comum e do qual resulta que não havendo convenção das partes em contrário, a seguradora não suportará os danos causados com a privação do bem ou com os lucros cessantes decorrentes do sinistro”.
À luz do n.º 2 do artigo 130.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro [“No seguro de coisas, o segurador apenas responde pelos lucros cessantes resultantes do sinistro se assim for convencionado”], daí decorrendo que a indemnização por lucros cessantes pressupõe, necessariamente, a sua expressa convenção.
É também esse o entendimento de Pedro Romano Martinez e outros, expresso na anotação ao artigo 130.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro[4], na qual referem que há equivalência entre o n.º 2 do artigo 130.º do atual regime e o § 4.º do artigo 432.º do Código Comercial, estabelecendo ambos um regime supletivo de não cobertura.
Decorre do referido regime, como se decidiu no acórdão desta Relação, de 15.05.2012[5], que a seguradora apenas responde nos termos da cobertura contratada, pelo que, não tendo sido expressamente estipulada a abrangência de um determinado dano, não será devida qualquer indemnização correspondente ao seu ressarcimento.
O mesmo regime de supletividade foi aplicado pelo legislador, expressamente, ao dano da privação de uso do bem, no n.º 3 do normativo que se transcreveu[6].
Ressalvado todo o respeito devido, nas suas longas conclusões a recorrente cita doutrina e jurisprudência que não se adequam minimamente ao caso concreto em discussão nos autos, dado reportarem-se a acidentes causados culposamente por terceiro, situações diversas da que aqui abordamos, nas quais a seguradora responde pela conduta do lesante, sem limitações (artigos 562.º e 564.º do CC).
Por outro lado, a recorrente não hesita em citar em abono da sua tese um acórdão da Relação de Guimarães (acórdão de 23.10.2014, proferido no processo n.º 1319/11.0TBBCL.G1, acessível no site da DGSI), que se reporta a um caso de contrato de seguro semelhante, omitindo no entanto que o mesmo tem outra abrangência estipulada pelas partes: “… para além da cobertura de responsabilidade civil, as coberturas de danos próprios, nomeadamente de choque, colisão e capotamento, incêndio, raio e explosão, furto, roubo, ou furto de uso, bem como as coberturas de ocupantes, assistência em viagem plus, protecção jurídica, actos maliciosos, quebra de vidros, protecção a compras, veículo de substituição…”.
Finalmente, a recorrente aceita expressamente o facto de a privação de uso não integrar a cobertura do contrato de seguro celebrado, nomeadamente na conclusão XXXI, onde afirma: “… a privação do uso não está diretamente coberta pelo seguro…”.
Consta da sentença recorrida:
«Atentos os termos do seguro contratado entre Autora e Ré/Seguradora, dúvidas não existem de se estar perante um seguro facultativo de danos próprios em viatura automóvel.
(…)
2 – Pede ainda a Autora a condenação da Ré no pagamento de uma indemnização a título de compensação dos prejuízos sofridos pela privação do seu veículo automóvel, sendo €13.043,10 correspondente ao valor dos alugueres já pagos até 28.6.2010 e num valor diário no montante de €50 desde aquela data até pagamento a liquidar em execução de sentença.
Conforme se referiu o contrato de seguro em causa constitui um seguro facultativo de danos próprios.
Assim sendo e como resulta do disposto pelo art. 130º nº1 e 2 do D.L.72/2008 de 16 de Abril, não haverá lugar, salvo convenção das partes em contrário, ao pagamento pela seguradora dos danos causados com a privação do bem ou com os lucros cessantes decorrentes do sinistro – neste sentido o ac. do TRP de 13-06-2013, proc. 4438/11.0TBVNG.P1, sendo certo que nada é sequer alegado pela Autora no sentido de ter sido convencionado com a Ré o pagamento dos danos causados com a privação do bem ou com os lucros cessantes decorrentes do sinistro
É certo que tal disposição não invalida o pagamento de indemnização por outros danos que, nos termos gerais, sejam causados pela mora.
Todavia na presente acção nada resultou provado, ou foi sequer alegado pela Autora, no sentido de que a privação do bem em causa lhe tenha acarretado quaisquer danos emergentes susceptíveis de ressarcimento, razão pela qual a pretensão da Autora improcederá neste ponto.».
Pelos fundamentos já invocados, não podemos deixar de subscrever o entendimento expresso pelo Mº Juiz no segmento decisório que se transcreveu.
Sufragamos assim o entendimento jurisprudencial que nos parece unívoco, já trilhado, a título meramente exemplificativo: no acórdão desta Relação, de 28.10.2013, relatado pelo desembargador, ora 1.º adjunto, no processo n.º 2965/12.0TBMTS.P1; no acórdão desta Relação, de 13.06.2013, proferido no processo n.º 438/11.0TBVNG.P1; no acórdão da Relação de Coimbra, de 23.05.2006, proferido no processo n.º 1323/06; no acórdão da Relação de Guimarães, de 13.02.2014, proferido no processo n.º 915/12.3TBFLG.G1, todos acessíveis no site da DGSI.
3.2. A questão dos deveres acessórios de conduta
Após assumir que “a privação do uso não está diretamente coberta pelo seguro” (conc. 31.ª), a recorrente invoca um outro argumento: deveres secundários, acessórios da prestação principal:
“É facto incontornável que a recorrida se recusou ao pagamento da indemnização devida nos termos contratuais, com falsos argumentos, que não demonstrou e por isso foi condenada a pagar a indemnização à recorrente, como é certo que a privação do uso não está diretamente coberta pelo seguro, porém, esse prejuízo não fica ressarcido, naturalmente, pelos juros moratórios devidos pelo incumprimento contratual da seguradora (conc. 31.ª);
A Seguradora, ao recusar-se a indemnizar a recorrente pelo dano resultante da perda total do veículo em consequência do furto, incorreu em incumprimento contratual, respondendo pelos danos causados (art.º 804º, nº 1 do CC), e a privação do uso trata-se de um dano autónomo – dano da privação do uso – e por isso mesmo indemnizável, sendo que em consequência da perda total do veículo, a recorrente ficou impedida de usar e fruir aquela viatura, e a recorrida ainda não lhe entregou a quantia devida nos termos contratuais, que seria necessária para a compra de um veículo substitutivo (conc. 32.ª);
A privação do uso decorre do incumprimento do dever contratualmente assumido pela recorrida de pagar uma indemnização ocorrendo furto, integrando-se tal prejuízo na categoria de dano concreto (conc. 33.ª).
Recordemos a factualidade provada relevante:
Provou-se que:
A autora também participou o furto à ré, tendo esta respondido através da carta datada de 23.6.2010, informando a autora, que não iria pagar qualquer indemnização, alegando que “ficou devidamente comprovado” que o sinistro “não ocorreu nos moldes que constam da participação de sinistro”; a viatura havia sido anterior e sucessivamente propriedade de duas empresas, a firma J…, Lda. (com registo automóvel a favor desta empresa em 12-06-2003) e G…, Lda. (com registo automóvel a favor desta firma em 23-122005), só depois tendo passado a estar registada em nome da autora a partir de 29-12-2009; ambas aquelas empresas têm como sócio H…, o qual também representa legalmente a aqui autora; pese embora a matrícula ..-..-UZ se encontrasse cancelada pelo IMTT desde 30.4.2012, na sequência de participação da autora para o efeito, o mesmo veículo foi sujeito a inspeção periódica obrigatória em 25.7.2012 no CIVA de …, e foi objeto de contrato de seguro automóvel celebrado pela chamada E… em 31.10.2011 na Seguradora D…; a referida viatura veio, em data não apurada, a ser localizada e encontra-se atualmente apreendida à ordem do processo-crime nº 135/10.1GBSTS do Tribunal de Santo Tirso - Serviços do Ministério Público, tendo sido constituído fiel depositário da mesma o chamado F…, em cuja posse se encontrava aquando da apreensão.
Não se provou que: a autora e os seus legais representantes tenham simulado o furto da viatura de matrícula ..-..-UZ, tendo declarado que o mesmo se verificou na madrugada de 6 de Abril de 2010; a autora não tenha podido adquirir outra de idênticas características pelo facto de a Ré não ter pago o custo da viatura furtada.
A questão que se coloca é a de saber se o facto de a recorrida não ter de imediato procedido ao pagamento da indemnização devida pela perda da viatura (na sequência do furto que se veio a provar), se traduz na violação de quaisquer “deveres acessórios de conduta”, também frequentemente designados por deveres laterais, fundados nas regra de conduta segundo os ditamos da boa fé (artigo 762.º, n.º 2 do CC).
Como refere o Professor Manuel Carneiro da Frada [7], a relação contratual não é constituída apenas por aquilo em que as partes, no exercício da sua autonomia negocial, se comprometeram, incluindo níveis não negociais: “tem uma dimensão quase-negocial ou, mais amplamente, de ato juridicamente relevante”, plano no qual se situam os deveres acessórios. O inadimplemento de tais deveres é suscetível de gerar um incumprimento contratual, dando lugar à respetiva resolução por inexigibilidade da perduração da relação, para além do que se prevê nos artºs. 801.º e 802.º do CC.
Os deveres laterais referidos são normalmente denominados pela doutrina e pela jurisprudência como “deveres acessórios de conduta”[8].
Como refere o Professor Menezes Cordeiro[9], a boa-fé, na medida em que implica a efetiva prossecução do fim da obrigação (da sua integral realização), complementa as formulações, por vezes lacónicas, dos vínculos creditícios, porque na formação do contrato nem tudo é previsível quanto ao seu desenvolvimento, daí decorrendo, da parte do devedor, a assunção de deveres laterais, conexionados com o dever principal, de prestar.
Almeida Costa[10] sistematiza, de forma exemplificativa, os referidos deveres laterais: deveres de cuidado, previdência e segurança; deveres de aviso e de informação; deveres de notificação; deveres de cooperação; deveres de proteção e cuidado relativamente à pessoa e ao património da contraparte.
A jurisprudência e a doutrina consideram que os “deveres acessórios de conduta” radicam no nosso ordenamento na existência de um “dever geral de boa-fé”, imperativamente enunciado no n.º 2 do artigo 762.º do Código Civil “entendido o conceito no sentido de que os sujeitos contratuais, no cumprimento da obrigação, assim como no exercício dos direitos correspondentes, devem agir com honestidade, e consideração pelos interesses da outra parte – princípio da concretização”[11].
Em suma, na esteira e por influência da doutrina alemã, abandona-se a orientação clássica romanística, de que a obrigação se esgota no dever de prestar, adotando-se uma compreensão globalizante da situação jurídica creditícia, que passa a envolver, paralelamente aos deveres principais ou primários (com base nos quais se define o tipo de contrato), os deveres acessórios de conduta ou laterais[12].
Definidos os contornos da figura invocada pela recorrente, é tempo de regressarmos à situação concreta em debate nos autos.
A questão que se coloca, para a qual haverá que encontrar resposta nesta sede recursória, é a de saber se o facto de a recorrida não ter de imediato procedido ao pagamento do valor do veículo se traduz na violação de um qualquer dever acessório de conduta, emergente do contrato celebrado.
Vejamos.
Provaram-se factos que revelam alguma ‘singularidade’ no processo de aquisição da viatura furtada e de posterior aluguer do veículo de substituição:
1.º A autora adquiriu o veículo ..-..-UZ à sociedade G…, Lda., que por sua vez o adquirira à sociedade J…, Lda. (facto 19);
2.º Após o furto, a autora alugou um veículo de substituição à sociedade J… Lda. (facto 17);
3.º As sociedades G…, Lda., e J…, Lda. têm como sócio H… a, o qual é também o legal representante da autora (facto 20);
4.º O objeto social da firma G…, Lda. é o comércio de veículos automóveis ligeiros e não de aluguer de viaturas (facto 21).
5.º Já após a participação da autora, o veículo ..-..-UZ foi sujeito a inspeção periódica obrigatória em 25.7.2012 no CIVA de …, e foi objeto de contrato de seguro automóvel celebrado pela chamada E… em 31.10.2011 na Seguradora D…, conforme documento junto a fls. 272 a 275 (facto 25).
Cumpre questionarmo-nos sobre se, à luz do dever geral de boa-fé, enunciado no n.º 2 do artigo 762.º do Código Civil, perante o quadro factual sintetizado, a recorrida deveria pagar de imediato o valor do veículo (e alugueres), sob pena de violação do invocado princípio.
Sob a epígrafe “Realização da prestação do segurador”, preceitua o n.º 1 do artigo 102.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 72/2008 de 16 de Abril: “O segurador obriga-se a satisfazer a prestação contratual a quem for devida, após a confirmação da ocorrência do sinistro e das suas causas, circunstâncias e consequências”. Prevê o n.º 2 da citada disposição legal: “Para efeito do disposto no número anterior, dependendo das circunstâncias, pode ser necessária a prévia quantificação das consequências do sinistro.”. Finalmente, nos termos do artigo 104.º “A obrigação do segurador vence -se decorridos 30 dias sobre o apuramento dos factos a que se refere o artigo 102.º”.
Em suma, a lei prevê o vencimento da prestação devida pela seguradora “após a confirmação da ocorrência do sinistro e das suas causas, circunstâncias e consequências”.
Há situações que pelos seus contornos justificam uma prévia averiguação das circunstâncias em que ocorreu o facto objeto da participação, podendo legitimar, não só o decurso do tempo, mas também a divergência da seguradora.
Perante a ‘especificidade’ da factualidade provada anteriormente referida, a recorrida teve dúvidas e manifestou reservas quanto ao direito invocado pela recorrente, o que determinou a que o Tribunal fosse chamado a decidir o litígio.
Na sua réplica, a autora (ora recorrente), pediu a condenação da ré (recorrida) como litigante de má fé, em multa e indemnização de valor nunca inferior a € 2.500,00.
O Mº Juiz considerou improcedente este pedido, não tendo sido tal segmento decisório impugnado pelas partes.
A recusa de pagamento de indemnização por parte da seguradora, por divergir do segurado (ou do beneficiário do seguro), não se reconduz inevitavelmente à conduta de má fé, ainda que o Tribunal venha a reconhecer que não lhe assiste razão e a condená-la no pagamento dos valores peticionados.
Na situação sub judice, salvo todo o respeito devido, não vislumbramos a violação por parte da recorrida, de quaisquer “deveres acessórios de conduta”, apesar de o Tribunal ter concluído pelo reconhecimento do direito da ora recorrente e, consequentemente, pela condenação da recorrida no pagamento do valor do veículo.
O acesso aos tribunais é um direito com garantia constitucional (art.º 20.º da CRP) e a divergência, nomeadamente na interpretação e consequências contratuais, é lícita, desde que não se prove que, face aos princípios da boa fé, o devedor tenha procedido com “animus nocendi” do direito da contraparte, com a consciência de que está a omitir uma prestação devida.
Situação diversa seria, por exemplo, a aceitação incondicional e sem reservas da responsabilidade (nomeadamente quanto á quantificação da indemnização) por parte da seguradora e o posterior e incoerente adiamento da realização da prestação, com manobras e argumentos dilatórios.
Ressalvado sempre o devido respeito, levada às últimas consequências, a tese da recorrente assumiria contornos fundamentalistas, traduzidos na seguinte asserção: sempre que um contraente recusasse o incumprimento, vindo a ser condenado em ação intentada com esse fim, estaria a violar deveres acessórios de conduta.
Decorre do exposto a improcedência do recurso, também quanto a este segmento argumentativo.

III. Dispositivo
Com fundamento no exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar totalmente improcedente os recurso, ao qual negam provimento, e, em consequência, em manter a decisão recorrida.
Custas do recurso pela recorrente.
*
O presente acórdão compõe-se de trinta páginas e foi elaborado em processador de texto pelo relator, primeiro signatário.

Porto, 14 de março de 2016
Carlos Querido
Soares de Oliveira
Alberto Ruço
_____
[1] Dispõe o n.º 1 do artigo 639.º do CPC: «O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão
O que se verifica in casu, salvo o devido respeito, é o incumprimento por parte do recorrente, do ditame enunciado, traduzido na falta de síntese, que torna as conclusões longas, fastidiosas e repetitivas, não fazendo um mínimo de esforço de cumprimento da exigência legal de “forma sintética”, enunciada na norma citada. No entanto, por razões de economia e celeridade processual abstemo-nos de convidar o recorrente a aperfeiçoar as suas conclusões, passando-se à fase de apreciação do mérito do recurso.
[2] Referem Pedro Romano Martinez e outros (Lei do Contrato de Seguro, 2011, 2.ª edição, Almedina, pág. 444, que a solução consagrada nesta norma tem antecedentes longínquos, sendo exactamente a constante do Código Comercial de 1888 – “admissão de convenção pelas partes - pelo que o regime supletivo é o da não cobertura; solução, aliás, comum no direito comparado próximo”.
[3] Proferido no Processo n.º 4438/11.0TBVNG.P1, acessível no site da DGSI. Veja-se também a este propósito, a parte final do acórdão desta Relação, de 28.10.2013 (Proc. 2965/12.0TBMTS.P1), relatado pelo Exmo. Desembargador que subscreve o presente na qualidade de 1.º adjunto.
[4] Lei do Contrato de Seguro, 2011, 2.ª edição, Almedina, pág. 443.
[5] Proferido no Processo n.º 1900/10.5TBVFR.P1, acessível no site da DGSI.
[6] Na anotação referida, enfatizam os autores citados: «A mesma solução do n.º 2 (admissão de cobertura por convenção pelas partes – pelo que o regime supletivo é o de não cobertura), aplicou-a o legislador, no n.º 3, ao valor de privação de uso do bem, valor cuja cobertura, no caso outro do seguro de responsabilidade civil é obrigatoriamente assegurado pelo previsto no n.º 3 do artigo 146.º (concretamente pela inclusão do dano correspondente á privação de uso no perímetro dam obrigação de restitutio in integrum, art. 562.º CC)».
[7] “Os Deveres (ditos) Acessórios e o Arrendamento”, In Revista da Ordem dos Advogados - ROA, 2013 (Ano 73), nº 1, p. 267-290.
[8] Vide Antunes Varela, Das obrigações em geral. Vol. I. Coimbra: Almedina, 1986, p. 117.
Os deveres em causa encontram-se lapidarmente sintetizados no acórdão do STJ, de 7.12.2010, processo n.º 984/07.8TVLSB.P1.S1 (acessível no site da DGSI), nestes termos:
«I - Os contratos incluem não só as obrigações deles expressamente constantes, mas também deveres acessórios inerentes à prossecução do resultado por eles visado. II - Estes deveres resultantes acessoriamente do próprio contrato, em paralelo com a obrigação principal e destinados a assegurar a perfeita execução desta, a ponto de a sua violação poder gerar uma situação de incumprimento, implicam a adoção de procedimentos indispensáveis ao cumprimento exato da prestação, com destaque para o dever de cooperação, sem o qual muitas vezes a utilidade final do contrato não é alcançada. III - Tais deveres são indissociáveis da regra geral que impõe aos contraentes uma atuação de boa-fé – art.º 762.°, n.° 2, do CC – entendido o conceito no sentido de que os sujeitos contratuais, no cumprimento da obrigação, assim como no exercício dos direitos correspondentes, devem agir com honestidade e consideração pelos interesses da outra parte – princípio da concretização.»
[9] Direito das Obrigações, 1.º Volume, 1980, AAFDL, pág. 149.
[10] Direito das Obrigações, 12.ª edição, revista e atualizada, Almedina, 2011, pág. 77 e 78.
[11] Acórdão do STJ, de 29.04.2010, Proc. 982/07.1TVPRT.P1.S1, acessível no site da DGSI, e Almeida Costa, obra citada, pág. 67.
[12] Almeida Costa – obra citada, pág. 76 e 77 – refere, para além dos deveres principais, os deveres secundários e os deveres laterais.