Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
901/11.0PAPVZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ERNESTO NASCIMENTO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
ELEMENTOS DO TIPO
Nº do Documento: RP20120919901/11.0PAPVZ.P1
Data do Acordão: 09/19/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A conduta típica da violência doméstica é descrita através do conceito de “maus-tratos físicos ou psíquicos”, que podem incluir, designadamente, “castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais”.
II – Da actual descrição do tipo do artigo 152°, resultante da Lei 59/2007, de 4SET, resulta:
a) a ampliação do âmbito subjectivo do crime, que passa a incluir as situações de violência doméstica envolvendo ex-cônjuges e pessoas de outro ou do mesmo sexo que mantenham ou tenham mantido uma relação análoga à dos cônjuges;
b) o recurso, em alternativa, às ideias de reiteração e intensidade, com a consolidação do entendimento de que, condutas agressivas, mesmo que praticadas uma só vez, desde que se revistam de gravidade suficiente, podem ali ser enquadradas e,
c) que, por outro lado, não são, todas as ofensas corporais entre cônjuges que ali cabem, mas só aquelas que se revistam de uma certa gravidade, só aquelas que, fundamentalmente, traduzam crueldade, ou insensibilidade, ou até vingança desnecessária, da parte do agente e que, relativamente à vítima, se traduzam em sofrimento e humilhação.
II - Como a própria expressão legal sugere, a acção não pode limitar-se a uma mera agressão física ou verbal, ou à simples violação de alguma ou algumas das liberdades da vítima, tuteladas por outros tipos legais de crimes. Importa que a agressão em sentido lato constitua uma situação de “maus tratos”. E estes só se verificam quando a acção do agente concretiza actos violentos que, pela sua imagem global e pela gravidade da situação concreta são tipificados como crime pela sua perigosidade típica para a saúde e bem-estar físico e psíquico da vítima.
III - Se os maus tratos constituem ofensa do corpo ou da saúde de outrem, contudo, nem toda a ofensa inserida no seio da vida familiar/doméstica representa, imediatamente, maus tratos, pois estes pressupõem que o agente ofenda a integridade física ou psíquica de um modo especialmente desvalioso e, por isso, particularmente censurável.
IV - Não são os simples actos plúrimos ou reiterados que caracterizam o crime de maus tratos a cônjuge, o que importa é que os factos, isolados ou reiterados, apreciados à luz da intimidade do lar e da repercussão que eles possam ter na possibilidade de vida em comum, coloquem a pessoa ofendida numa situação que se deva considerar de vítima, mais ou menos permanente, de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro do ambiente conjugal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo comum singular 901/11.0PAPVZ do 1º Juízo Criminal da Póvoa de Varzim

Relator - Ernesto Nascimento
Adjunto – Artur Oliveira

Acordam, em conferência, na 2ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório

I. 1. Efectuado o julgamento foi proferida sentença a condenar o arguido B…, pela prática de um crime de violência doméstica previsto pelo artigo 152º/1 alínea a) e 2 C Penal, na pena de 2 anos de prisão, cuja execução foi suspensa, subordinada ao dever do arguido, nesse período, se submeter a tratamento para abstinência de bebidas alcoólicas, em organismo a definir pela DGRS.

I. 2. Inconformado com o assim decidido, recorreu o arguido, apresentando, aquilo que designa de conclusões, mas que nem numa noção por demais abrangente do que se tem que entender como resumo das razões do pedido, pode, como tal ser considerado, donde aqui e agora se não transcrevem, apenas se enunciando as questões aí abordadas e, que são:

a verificação do vício do erro notório na apreciação da prova versus erros de julgamento;
a violação do artigo 355º C P Penal;
a subsunção dos factos ao Direito e,
a nulidade da sentença, por falta de fundamentação quanto à aaposição da condição imposta à suspensão da execução da pena de prisão – o dever de o arguido nesse período se submeter a tratamento para abstinência de bebidas alcoólicas.

I. 3. Respondeu o MP pugnando pela improcedência do recurso.

II. Subidos os autos a este Tribunal o Exmo. Sr. Procurador Geral Adjunto, emitiu parecer no sentido, igualmente, do não provimento do recurso, acompanhando a argumentação apresentada pelo MP na 1ª instância.

No cumprimento do disposto no artigo 417º/2 C P Penal nada mais foi aduzido.
Seguiram-se os vistos legais.

Foram os autos submetidos à conferência.

Cumpre agora apreciar e decidir.

III. Fundamentação

III. 1. Como é por todos consabido, são as conclusões, resumo das razões do pedido, extraídas pelo recorrente, a partir da sua motivação, que define e delimita o objecto do recurso, artigo 412º/1 C P Penal.
No caso presente, de harmonia com o que o arguido designou de conclusões, podemos, enunciar que para apreciação, foram suscitadas as seguintes questões:

a verificação do vício do erro notório na apreciação da prova versus erros de julgamento;
a violação do artigo 355º C P Penal;
a subsunção dos factos ao Direito e,
a nulidade da sentença, por falta de fundamentação quanto à aaposição da condição imposta à suspensão da execução da pena de prisão – o dever de o arguido nesse período se submeter a tratamento para abstinência de bebidas alcoólicas.

III. 2. Vejamos, então, para começar, a matéria de facto definida pelo Tribunal recorrido.

Factos provados
O arguido B… casou com a ofendida C…, no dia 27.03.1999.
Deste casamento nasceram 3 filhos, agora com idades compreendidas entre os 7 e os 12 anos de idade.
Desde o ano de 2011 até ao dia 2.10.2011, o arguido e a ofendida viveram em comunhão de habitação, juntamente com os 3 filhos e os pais da ofendida, no …, …, na Póvoa de Varzim.
A partir do mês de Agosto de 2011 o arguido começou a ameaçar de morte a ofendida, a insultá-la de ‘puta’ e ‘vaca’ e a desferir-lhe bofetadas, pontapés, murros, empurrões e a puxar-lhe os cabelos.
Estas situações ocorreram sempre no interior da citada residência, sobretudo no quarto do casal, com uma periodicidade quase semanal.
Numa dessas ocasiões o arguido disse à ofendida, em tom sério e ameaçador, que se pudesse fina e para dormir com um olho aberto e outro fechado, pois quando menos esperasse a mataria ali mesmo.
Noutra ocasião o arguido disse à ofendida, no mesmo tom sério e ameaçador e afrente dos 3 filhos menores, que ia arranjar um bidão de gasolina e que ia queimá-la toda.
Na noite de 23 para 24 de Setembro de 2011, quando estavam ambos no interior do quarto do casal, o arguido pegou em peças de roupa da ofendida e, na presença dela, queimou-as com um isqueiro, ao mesmo tempo que lhe disse ‘Estás a ver? Para a próxima és tu’.
Nessa altura chamou-lhe também ‘filha da puta’, ‘vaca’.
No dia 2 de Outubro de 2011, cerca de 1 hora, no interior da citada residência, o arguido começou a discutir com a ofendida, a ameaçá-la e a insultá-la dizendo-lhe, em tom sério e de forma agressiva ‘Eu mato-te; és uma puta; vadia’.
Com receio de ser novamente agredida fisicamente pelo arguido, a ofendida pediu à D…, através de mensagem por telemóvel, que chamasse a polícia, tendo aquela solicitado a presença da PSP no local, que ali compareceu momentos depois.
Quando se apercebeu da situação o arguido, dirigiu-se à ofendida, que se encontrava com os 3 filhos menores no exterior da residência, e, ainda mais exaltado e de forma autoritária e agressiva disse-lhe: ‘já para dentro, senão arrebento-te’.
Receando pela sua integridade física, a ofendida obedeceu e entrou em casa com os filhos, que, amedrontados com a situação, se encontravam a chorar.
Aí dentro o arguido voltou a dirigir-se à ofendida e disse-lhe em voz alta, audível do exterior, que ‘ia matá-los a todos e que iam pagar’.
Depois permaneceu fechado em casa com a ofendida, os filhos e os sogros, e só abriu a porta minutos depois, após várias insistências dos elementos policiais nesse sentido.
Nessa altura a ofendida conseguiu sair de casa e foi refugiar-se no quintal anexo à residência, onde o arguido acabou por ser detido.
Em consequência das referidas agressões a ofendida sofreu sempre dores nas regiões atingidas e por vezes feridas e hematomas em várias zonas do corpo, as quais nunca foi receber tratamento hospitalar por receio do arguido, pois temia seriamente que, a qualquer altura, ele concretizasse os males que prenunciara, agredindo-a ou matando-a.
Agiu o arguido de forma deliberada, livre e consciente.
Sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
O arguido verbalizou arrependimento.
Mostrou-se envergonhado dos factos.
Tem 32 anos de idade.
É pescador.
O arguido não regista antecedentes criminais da mesma natureza da dos autos.

Factos não provados

Que os factos supra referidos ocorressem quando o arguido regressava a casa ao fim de semana após ter estado ausente durante a semana na faina da pesca do mar.
Que o arguido chegasse a apontar uma faca à ofendida.
Que o arguido no dia 23 para o dia 24 de Setembro de 2011, chamasse à ofendida ‘mulher da rua’, ‘galdéria’, ‘vadia’ e ‘prostituta’ e lhe desferisse murros na cabeça, lhe apertasse o braço direito e lhe puxasse os cabelos.

Porque tal questão releva igualmente para a discussão do recurso, vejamos, também, o que em sede de fundamentação se deixou exarado no que concerne à convicção assim formada pelo Tribunal.

Para formar a convicção, o tribunal baseou-se na análise crítica, conjugada e ponderada da prova produzida em audiência de julgamento, apreciando-a à luz das regras da livre apreciação e da livre experiência (nos termos do art. 127º do Código de Processo Penal, bem como nos documentos juntos aos autos.
Inicialmente a ofendida C… declarou não pretender prestar o seu depoimento, nos termos do artigo 61º/1, al. d) e 134º/1, al. a) C P Penal.
O mesmo sucedeu com as testemunha E… e F…, sogros do arguido.
No que tange ao arguido, remeteu-se ao silêncio, nos termos do artigo 343º/1 C P Penal, tendo já no final declarado estar arrependido e envergonhado em resultado dos factos.
1) Ao depoimento da testemunha D…, amiga da ofendida, que demonstrou ter conhecimento indirecto de alguns desentendimentos entre o casal, através da sua amiga, tendo constatado que a mesma, pelo menos em duas vezes, apresentava marcas (vermelhões) na cara e nas costas, a qual revelou boa razão de ciência.
Disse que quando conheceu a ofendida já era uma pessoa que demonstrava tristeza, contudo com o passar do tempo os desabafos foram sendo mais frequentes, sendo notório o constrangimento que evidenciava com receio que a situação chegasse ao conhecimento de terceiros, o que ainda hoje se verifica. Aliás, tal relato foi de encontro ao que o tribunal percepcionou quando a ofendida, já no final da audiência, decidiu prestar o seu depoimento mas pediu ao tribunal que fizesse sair a sua mãe da sala, local onde se encontrava.
No que tange aos factos ocorridos em 02/10/2011, disse que foi contactada, via telefone, pela ofendida que lhe pediu para chamar a polícia o que fez ao deslocar-se a sua casa acompanhada dos agentes que tomaram conta da ocorrência. Nessa noite, pela primeira vez, ouviu o arguido a chamar ‘filha da puta’ à ofendida que a obrigou a entrar em casa, com os filhos e os sogros, e nessa altura sentiu, pelo barulho produzido que era perfeitamente audível, que havia agressões e pediu aos Agentes da PSP que interviessem, posto que já lá se encontravam. Foi ela quem, nessa noite, levou consigo os filhos do casal dada o estado de agressividade em que o arguido se encontrava e o pânico demonstrado pelas crianças.
Disse que desde então, e com a separação do casal o que ocorreu nessa noite, sente a ofendida mais tranquila e menos ansiosa.
2) Ao depoimento do Agente da PSP, G…, que confirmou o estado de exaltação e violência em que o arguido se encontrava, o que presenciou, que obrigou a família, onde se incluía a ofendida, os filhos e os sogros, a entrar em casa com a ameaça que caso não obedecessem os ‘rebentava’ e que os ‘matava a todos’, estando todos amedrontados, mantendo-se os adultos num silencio profundo e as crianças choravam agarrados a mãe. Logo que lhe foi possível a ofendida fugiu e o arguido foi manietado. Mesmo nessa altura, e quando já se encontrava em segurança, a ofendida não conseguiu verbalizar o que quer que fosse, e chorava.
O depoimento desta testemunha mostrou-se elucidativo e espelhou de uma forma clara e sustentada o momento de tensão vivido por toda a família, designadamente quando o arguido se confrontou com a presença da autoridade policial no local, e a dificuldade que tiveram em o manietar, na noite de 02/10/2011.
3) Ao depoimento da ofendida C… que, como acima se registou, só após terem sido ouvidas as duas testemunhas se dispôs a falar sobre os factos, tendo permanecido até esse momento e durante toda a sessão de julgamento com a cabeça apoiada nas pernas, no que foi acompanhada pela mãe que se manteve uma grande parte do tempo na mesma posição. Confirmou que cerca de dois meses antes de 02/10/2011 o arguido aos fins de semana, por norma, chegava a casa de madrugada, entre as 3/4horas, nervoso, inquieto e embriagado, chamava-lhe puta, cabra, mulher da rua, puxava-lhe os cabelos e dava-lhe murros na cabeça e nas costas, tendo tido sempre a preocupação de proteger a cara. Ameaçava-a que caso chamasse a policia punha os seus pais fora de casa, dado que estes viviam com o casal.
Confirmou, no mais, os factos tal como se mostram assentes, e esclareceu que os insultos, as ameaças e as agressões ocorriam sempre no quarto do casal, sem que os filhos e os pais ouvissem, com excepção dos relativos a 02/10/2011, que se encontrava no quarto dos filhos tendo os mesmos acordado e presenciado os insultos e os relativos ao anúncio que a ia queimar com gasolina, o que verbalizou na frente dos menores.
E foi, assim, que a ofendida, num depoimento frágil, sofrido, mas sereno, objectiva e genuíno, relatou o sofrimento porque passou em resultado do comportamento do arguido, sentimentos que conteve perante os filhos e pais que consigo viviam, cuja preocupação evidenciou em pleno julgamento, quando se decidiu pelo esclarecimento dos factos. O seu depoimento foi, de igual modo, credível e convincente, pela sua impressibilidade, certeza, e localização espacial e temporal, no que tange ao relato dos factos e as circunstâncias em que ocorriam as agressões, injúrias e ameaças, tal como se encontram, assentes, e acrescentou pormenores que da acusação não constavam.
Concluiu que a agressividade do arguido se intensificou nos dois últimos meses que antecederam os factos de 02/10/2011 e justificou-os devido à ingestão de bebidas alcoólicas em excesso dado que quando não bebia tudo corria dentro da normalidade, tendo, inclusive, aventado que caso se tratasse a hipótese de uma possível reconciliação era quase segura.
Atento o discurso consistente da ofendida, mesmo quando sujeita a pedido de esclarecimento, que alicerceram a convicção do tribunal no sentido da prática dos factos pelo arguido, cuja credibilidade do seu depoimento saiu reforçada em confronto com o depoimento das testemunhas D… e G…, que demonstraram boa razão de ciência.
Aos documentos:
Aos Auto de notícia de fls. 2-v, a 4.
Ao fotograma de fls. 77.
Às certidões de fls. 86, 91, 96, 101, mAo eor do relatório completo de urgência de fls. 15 a 28, 63 a 91.
Ao TIR, de fls. 161.
Ao CRC, de fls. 410.
Quanto aos factos vertido em 18 e 19 como os mesmos se reportam a uma atitude interior do arguido - a uma atitude psicológica – o tribunal socorreu-se, para os apreciar, dos elementos de natureza objectiva e de presunções e ilações ligadas ao principio da normalidade da vida e da experiência comum, para concluir que o arguido tinha como objectivo ofender física e psicologicamente a ofendida, sendo óbvio que quem adopta tais condutas sabe da ilicitude das mesmas.
O tipo de crime de violência doméstica raramente têm prova testemunhal, porque é no ‘seio e segredo do lar’ que o mesmo é, na maioria das vezes, cometido, perservadas da observação alheia, só sendo presenciadas pelo agressor e a vitima, na maioria das vezes.
Neste contexto, quando os arguidos escassamente confessam os factos, como aconteceu no caso dos autos, pese embora a verbalização do arrependimento, as declarações da vitima devem merecer a devida ponderação do julgador, no âmbito do principio da livre apreciação, plamasdo no art. 127.º, do CPP, a qual revelou grande lucidez.
No entanto, neste caso foi claro que uma parte dos factos foi presenciada pelas duas testemunhas ouvidas, D… e G….

III. 3. Apreciemos.

Preliminarmente, devemos fazer uma precisão.
Quer o arguido quer o MP laboram em erro ao referirem, ambos, que a condenção foi-o também ao abrigo da alínea c) do n.º 1 do artigo 152º C Penal, quando não foi. Foi apenas com base na alínea a) de tal norma, acrecida do n.º 2, é certo.

III. 3. 1. O vício do erro notório na apreciação da prova versus erros de julgamento e a alegada violação do artigo 355º/1 C P Penal.

III. 3. 1. 1. As razões do arguido.

Discorda o arguido do julgamento efectuado acerca dos pontos de facto contidos nos n.ºs 3. a 11., 13., 17. e 18 do elenco dos provados, ententendo que deles se não fez prova, invocando, para o efeito de demonstrar e defender que se justifica a alteração do sentido do decidido, as declarações da ofendida e os depoimentos das várias testemunhas inquiridas.
Pontos de facto que são do seguinte teor:

3. Desde o ano de 2011 até ao dia 2.10.2011, o arguido e a ofendida viveram em comunhão de habitação, juntamente com os 3 filhos e os pais da ofendida, no …, …, na Póvoa de Varzim.
4. A partir do mês de Agosto de 2011 o arguido começou a ameaçar de morte a ofendida, a insultá-la de ‘puta’ e ‘vaca’ e a desferir-lhe bofetadas, pontapés, murros, empurrões e a puxar-lhe os cabelos.
5. Estas situações ocorreram sempre no interior da citada residência, sobretudo no quarto do casal, com uma periodicidade quase semanal.
6. Numa dessas ocasiões o arguido disse à ofendida, em tom sério e ameaçador, que se pudesse fina e para dormir com um olho aberto e outro fechado, pois quando menos esperasse a mataria ali mesmo.
7. Noutra ocasião o arguido disse à ofendida, no mesmo tom sério e ameaçador e afrente dos 3 filhos menores, que ia arranjar um bidão de gasolina e que ia queimá-la toda.
8. Na noite de 23 para 24 de Setembro de 2011, quando estavam ambos no interior do quarto do casal, o arguido pegou em peças de roupa da ofendida e, na presença dela, queimou-as com um isqueiro, ao mesmo tempo que lhe disse ‘Estás a ver? Para a próxima és tu’.
9. Nessa altura chamou-lhe também ‘filha da puta’, ‘vaca’.
10. No dia 2 de Outubro de 2011, cerca de 1 hora, no interior da citada residência, o arguido começou a discutir com a ofendida, a ameaçá-la e a insultá-la dizendo-lhe, em tom sério e de forma agressiva ‘Eu mato-te; és uma puta; vadia’.
11. Com receio de ser novamente agredida fisicamente pelo arguido, a ofendida pediu à D…, através de mensagem por telemóvel, que chamasse a polícia, tendo aquela solicitado a presença da PSP no local, que ali compareceu momentos depois.
13. Receando pela sua integridade física, a ofendida obedeceu e entrou em casa com os filhos, que, amedrontados com a situação, se encontravam a chorar.
17. Em consequência das referidas agressões a ofendida sofreu sempre dores nas regiões atingidas e por vezes feridas e hematomas em várias zonas do corpo, as quais nunca foi receber tratamento hospitalar por receio do arguido, pois temia seriamente que, a qualquer altura, ele concretizasse os males que prenunciara, agredindo-a ou matando-a.
18. Agiu o arguido de forma deliberada, livre e consciente.

Curiosamente não impugna o julgamento que versou sobre os factos constantes dos pontos 12., 14, 15. e 16. do seguinte teor:

12. Quando se apercebeu da situação o arguido, dirigiu-se à ofendida, que se encontrava com os 3 filhos menores no exterior da residência, e, ainda mais exaltado e de forma autoritária e agressiva disse-lhe: ‘já para dentro, senão arrebento-te’.
14. Aí dentro o arguido voltou a dirigir-se à ofendida e disse-lhe em voz alta, audível do exterior, que ‘ia matá-los a todos e que iam pagar’.
15. Depois permaneceu fechado em casa com a ofendida, os filhos e os sogros, e só abriu a porta minutos depois, após várias insistências dos elementos policiais nesse sentido.
16. Nessa altura a ofendida conseguiu sair de casa e foi refugiar-se no quintal anexo à residência, onde o arguido acabou por ser detido.

III. 3. 1. 2. Apreciemos.

O recorrente estrutura a sua pretensão – de revogação da decisão recorrida e a sua consequente absolvição - no facto de, na sua óptica, a prova pessoal não ter sido devidamente apreciada, passando, depois a invocar excertos dela, acabando, no entanto, por concluir que fundamenta a procedência do recurso, na questão da verificação de um dos vícios da decisão, no caso, o do erro notório na apreciação da prova e, por outro lado, na violação do disposto no artigo 355º/1 C P Penal.

Grande confusão.
Assim, se na cogitação do recorrente, está - seguramente pelos termos e forma como, em substância, se exprimiu – a pretensão de impugnar a matéria de facto, isto porque no corpo da motivação, dá integral cumprimento aos requisitos do artigo 412º/3 e 4 C P Penal, especificando os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, bem como as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e analisando, desde logo, excertos de vários depoimentos das testemunhas (o que está vedado para a apreciação dos vícios do artigo 410º/2 C P Penal, como é sabido), que transcreve, na parte que lhe interessará – o certo é que nas conclusões vem a enquadrar o fundamento do recurso no apontado vício da sentença e na violação do artigo 355º/1 C P Penal.

Sem prejuízo do disposto no artigo 410º, a decisão, da 1ª instância, relativa à matéria de facto pode ser modificada - artigo 431º alínea b) C P Penal - quando a prova tiver sido impugnada de acordo com o disposto no artigo 412º/3 do mesmo diploma.
Estamos, então, perante 2 vias que podem conduzir à modificação/alteração do julgamento da matéria de facto.
O erro de julgamento não se confunde com o vício da decisão. O erro de julgamento da matéria de facto tem a ver com a apreciação da prova produzida em audiência em conexão com o princípio da livre apreciação da prova constante do artigo 127º C P Penal, e existe quando o tribunal dá como provado certo facto relativamente ao qual não foi feita prova bastante e que, por isso, deveria ser considerado não provado, ou então o inverso.
Já os vícios do n.º 2 do artigo 410º C P Penal são vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei. Vícios da decisão, não do julgamento.
O erro-vício não se confunde com errada apreciação e valoração das provas. Embora em ambos se esteja no domínio da sindicância da matéria de facto, são muito diferentes na sua estrutura, alcance e consequências. Aquele examina-se, indaga-se, através da análise do texto; esta, porque se reconduz a erro de julgamento da matéria de facto, verifica-se em momento anterior à elaboração do texto, na ponderação conjugada e exame crítico das provas produzidas do que resulta a formulação de um juízo, que conduz à fixação de uma determinada verdade histórica que é vertida no texto; daí que a exigência de notoriedade do vício se não estenda ao processo cognoscitivo/valorativo, cujo resultado vem a ser inscrito no texto.

Labora, então, o recorrente em manifesto e incompreensível equívoco – enquadrando em termos processuais na existência de um vício da decisão, aquilo que em substância trata como erros de julgamento.
Com efeito, pretende ser absolvido, pela consideração da sua versão/interpretação dos factos, fazendo apelo aos depoimentos das testemunhas e às declarações, da própria ofendida, daqui defendendo estarmos perante o vício do erro notório na apreciação da prova e a violação do dispsoto no artigo 355º/1 C P penal.

Se no caso do artigo 412º C P Penal - impugnação da matéria de facto – estamos perante erros de julgamento, no caso dos vícios do artigo 410º/2 C P Penal estamos perante vícios da decisão.
Qualquer das situações referidas no artigo 410º/2 C P Penal, traduzem-se, sobretudo em deficiências na construção e estruturação da decisão e ou dos seus fundamentos, maxime na sua perspectiva interna, não sendo por isso o domínio adequado para discutir os diversos sentidos a conferir à prova.
Qualquer um dos vícios previstos no n.º 2 do referido artigo 410º C P Penal, é inerente ao silogismo da decisão e apenas dela pode ser apurado, nos termos do artigo 410º/2 C P Penal - não sendo possível o recurso a outros elementos que não o texto da decisão, para sua afirmação - ainda que conjugado com as regras da experiência, sendo a consequência lógica e imediata, da sua existência, salvo o caso de ser possível conhecer da causa, o reenvio do processo, artigo 426º C P Penal.
Na sequência lógica destes pressupostos, a sua emergência, como resulta expressamente referido no artigo 410º/2 C P Penal terá que ser detectada do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum.
Em sede de apreciação dos vícios do artigo 410º C P Penal, não está em causa a possibilidade de se discutir a bondade do que se considerou provado ou não provado, a maior ou menor abundância de prova para sustentar um facto.
Qualquer dos vícios do artigo 410º/2 C P Penal, pressupõe uma outra evidência e a argumentação da recorrente gira, então, em volta de uma melhor avaliação, ponderação e, quiçá, interpretação dos depoimentos da apontadas testemunhas e das declarações da ofendida, donde o recorrente estrutura a existência daquele apontado vício, não numa análise da decisão na sua componente interna, de racionalidade, de lógica e de coerência das diversas asserções dadas como provadas, mas antes, numa perspectiva de expressar o seu inconformismo com o resultado do julgamento da matéria de facto, que lhe foi desfavorável.
Em sede de apreciação dos vícios do artigo 410º C P Penal, não está em causa a possibilidade de se discutir a bondade do que se considerou provado ou não provado, a maior ou menor abundância de prova para sustentar um facto.
Os vícios do artigo 410º/2 C P Penal não podem ser confundidos com uma suposta insuficiência dos meios de prova para a decisão tomada em sede de matéria de facto, nem pode emergir da mera divergência entre a convicção pessoal da recorrente sobre a prova produzida em julgamento e a convicção que o tribunal firmou sobre os factos, no respeito pelo princípio da livre apreciação da prova inserto no artigo 127º C P Penal - aqui poderá haver erro de julgamento, sindicável, nos termos definidos no artigo 412º C P Penal.

A valoração da prova em sentido diverso - fora o caso de erro notório - ao pugnado pelo recorrente, merece tratamento em sede erro de julgamento, nos termos do artigo 412º C P Penal, através do controlo do erro na apreciação das provas (sobre a sua admissibilidade e valoração dos meios de prova) e a consequência imediata da sua procedência, é a modificação da matéria de facto, artigo 431º C P Penal.
Cremos ser evidente que a forma como o recorrente pretende obter a modificação do julgado, está longe de ser modelar, pois que trata questões atinentes à impugnação da matéria de facto, não em sede de erro de julgamento, seja no âmbito do artigo 412º C P Penal, mas antes, no âmbito do artigo 410º C P Penal, que se reporta, de resto, a vícios da decisão, do conhecimento oficioso.
Cremos que erradamente.
Andou, por isso mal, ao dar a veste processual que deu, a esta sua, pretensão de absolvição, desde logo, com base na sua própria, valoração e apreciação sobre a prova produzida, de forma diversa, oposta, daquela que foi feita pela entidade competente, o tribunal.
Todas as invocações feitas no sentido da existência do vício do erro notório, feitas pelo recorrente laboram em manifesto erro e confusão de conceitos, dado que a sua existência vem estruturada tão só, como corolário da discordância que patenteia com a forma como foi feita a valoração da prova na decisão recorrida.
Assim, perante este manifesto erro de enfoque feito pela recorrente, ao qualificar como vícios do artigo 410º/2 C P Penal, que a existirem constituiriam vícios da decisão, pretensão esta, estruturada no facto de o tribunal a quo não ter valorado, na sua perspectiva, correctamente a prova produzida, de natureza pessoal, o que, a ocorrer, constituiria erro de julgamento, temos que concluir que não se verifica, pelas razões apontadas, nem outras se vislumbrando para a ocorrência, qualquer dos vícios previstos no artigo 410º/2 C P Penal.
Com efeito, da leitura da decisão e, designadamente dos segmentos dos factos provados e da motivação, caldeada com as regras da experiência comum, pois que a outros elementos não pode o Tribunal socorrer-se, não se vislumbra que se patenteie, quer o apontado,
erro notório na apreciação da prova, pois que não existem pontos de facto fixados na decisão recorrida, tão manifestamente arbitrários, contraditórios ou violadores das regras da experiência comum;
nem, o da, insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito – aqui em causa, seja a subsunção dos factos ao Direito e, salvo o que adiante se apreciará, em termos de aposição da concreta condição para a suspensão da execução da pena, que o arguido também suscita - pois não se vê que matéria de facto, com utilidade e pertinência, poderia o tribunal, mais ter averiguado, (vício que, de resto, se não confunda com a insuficiência de prova em relação a determinado facto ou com a discordância do sentido da decisão)
como da mesma forma, não se vislumbra, contradição insanável na fundamentação ou entre esta e a decisão, já que não se descortina a existência de factos ou de afirmações que estejam entre si numa relação de contradição.
Do acervo destas noções, resulta manifesto que os fundamentos em que o recorrente estrutura a existência do erro notório, não têm a virtualidade de o integrar, na noção, que pacífica e unanimemente, lhe vem sendo atribuída.
Bem como, naturalmente, existe um erro de enfoque na invocação da volação do artigo 355º/1 C P penal, que como é sabido, proíbe, para o efeito de formação da convicção do Tribunal, a valoração de quaisquer provas que não hajam sido produzidas ou examinadas em audiência.
O que aqui se proíbe é a valoração de provas que, de todo, não sejam produzidas e examinadas em audiência e, o que alegadamente estará em causa nos autos, é tão, só, a valoração de forma diversa da pugnada pelo arguido, que o Tribunal fez da prova pessoal aí produzida.
O que em relação à prova pessoal esta norma, inequivocamente, impõe, é que as declarações do arguido, do assistente, das partes civis e os depoimentos de testemunhas ou declarações de peritos e consutores técnico, deve ser produzida na audiência de julgamento e, de forma imediata e oral.
Nada mais. E foi-o, sem dúvida. Quanto ao mais, constitui matéria atinente à sua valoração.
Inexiste pois qualquer violação do disposto em tal norma legal.

O que o recorrente, desta forma, inequivocamente, pretende é alterar o sentido da decisão sobre a totalidade da matéria de facto.

III. 3. 1. 3. Apreciemos então, o que afinal se reconduz, a uma diversa valoração do sentido da prova pessoal produzida e, por via disso e, por arrastamento, a um possível erro na subsunção dos factos ao Direito – no pressuposto de que se não verificarão – de resto, mesmo que seja improcedente a impugnação da matéria de facto - os elementos constitutivos do tipo de violência doméstica.

Para fundamentar os pretensos erros de julgamento transcreve o arguido, excertos, que lhe interessarão, das declarações da ofendida e dos depoimentos de diversas testemunhas.

Antes de avançarmos na consideração mais aprofundada desta temática, justifica-se fazer um breve parêntesis aos poderes conferidos às Relações em termos de modificação da matéria de facto apurada em 1.ª instância.
É que não se trata, como à primeira vista poderia resultar de uma leitura mais imediata dos correspondentes preceitos processuais, de poderes que traduzam um conhecimento ilimitado dessa mesma factualidade.
Para isso concorre, essencialmente, a concepção adoptada no nosso ordenamento adjectivo que concebe os recursos como “remédio jurídico” para os vícios de julgamento, ou se se quiser, o seu entendimento como juízos de censura crítica e não como “novos julgamentos”, bem como ainda, as decorrências do princípio da livre apreciação da prova, artigo 127º C. P Penal e bem assim o natural privilegiamento que compreensivelmente se há-de conferir à decisão que foi proferida numa relação de maior imediação e proximidade com a sua própria produção.
Por via de regra, o tribunal de recurso não vai à procura de uma convicção autónoma fundada na sua própria interpretação da prova, mas antes verificar se a factualidade definida na decisão em apreciação se mostra adequadamente ancorada na análise crítica efectuada das provas.
Da mesma maneira, a alteração solicitada em recurso de um qualquer facto só é de proceder, quando de forma clara e convincente o juízo alternativo apresentado sobre a sua definição como provado ou não provado, evidencie o seu melhor fundamento em relação ao apresentado pela instância.
A questão, suscitada pelo recorrente, nesta sede, tem, desde logo, subjacente o controlo sobre a admissibilidade e valoração dos meios de prova de que depende em última análise, a fixação dos factos materiais da causa.

A circunstância de o tribunal, perante duas versões distintas – o que no caso, nem sequer acontece, pois que o arguido não prestou declarações - dar crédito a uma em detrimento da outra, tem a ver com o exercício do princípio da livre apreciação da prova, artigo 127º C P Penal, segundo o qual o julgador deve proceder à avaliação e ponderação dos meios de prova sem vinculação a um quadro pré-definido de valoração das provas, sujeito apenas às regras da experiência comum e ao dever de dar explicação concisa das razões da relevância atribuída à cada prova e do percurso racional que levou à decisão tomada.

Se assim é, se o Tribunal da Relação não procede a um segundo julgamento de facto, pois que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em 2.ª instância, não pressupõe a reanálise pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzida, mas tão-só o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento que tenham sido mencionados no recurso e das provas, indicadas pelo recorrente, que imponham (e não apenas, sugiram ou permitam) decisão diversa, estamos perante uma reapreciação restrita aos concretos pontos de facto que o mesmo entende incorrectamente julgados e às razões dessa discordância.
Os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos apontam inequivocamente para uma resposta diferente da que foi dada pela 1ª instância. E já não naqueles em que, existindo versões contraditórias, o tribunal recorrido, beneficiando da oralidade e da imediação, firmou a sua convicção numa delas (ou na parte de cada uma delas que se apresentou como coerente e plausível).

De resto, a consagração de um efectivo duplo grau de jurisdição em matéria de facto, pode vir a transformar o julgamento na 2ª instância, num jogo de palavras vazio do pulsar da vida, da percepção dos sentidos e sentimentos.
Na verdade, não podemos esquecer que, ao apreciar a matéria de facto, o Tribunal da 2ª instância está condicionado pelo facto de não ter com os participantes do processo, aquela relação de proximidade comunicante que lhe permite obter uma percepção própria do material que há-de ter como base da sua decisão. Só os princípios da oralidade e da imediação permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais contritamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais. Tal relação estabeleceu-se com o Tribunal de 1ª instância e daí que a alteração da matéria de facto fixada, deverá ter como pressuposto a existência de elemento que, pela sua irrefutabilidade, não possa ser afectado pelo funcionamento do princípio da imediação. [1]

A este propósito convém, então, referir que, nos termos do artigo 127º C P Penal, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
A maior parte das vezes, os recursos, quanto a esta concreta questão, de impugnação da credibilidade dos elementos de prova, demonstram um evidente equívoco - o da pretensão de equivalência entre a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto e o exercício, juridicamente ilegítimo, por irrelevante, do que corresponde ao princípio da livre apreciação da prova, exercício este que, para ser legítimo, logo juridicamente relevante, por imposição do artigo 127º C P Penal, somente ao tribunal, entidade competente, notoriamente, incumbe.
Não pode é, a convicção do recorrente sobrepor-se à do julgador.
À pergunta sobre o que significa, negativa e positivamente, a livre apreciação da prova, ou, o que é o mesmo, valoração discricionária ou valoração da prova segundo a livre convicção do julgador, responde o Prof. Figueiredo Dias, “(…) significa, negativamente, ausência de critérios legais predeterminantes do valor a atribuir à prova; mas qual o seu significado positivo? Uma coisa é desde logo certa: o princípio não pode de modo algum querer apontar para uma motivação imotivável e incontrolável – e portanto arbitrária – da prova produzida; se a apreciação da prova é, na verdade, discricionária, tem evidentemente esta discricionaridade (como já dissemos que a tem toda a discricionaridade jurídica) os seus limites, que não podem ser licitamente ultrapassados; a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada verdade material -, de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo, possa embora a lei renunciar à motivação e o controlo efectivos”. [2]
“Livre apreciação da prova não é, portanto, livre arbítrio ou valoração puramente subjectiva, mas apreciação que, liberta do jugo de um rígido sistema de prova legal, se realiza de acordo com critérios lógicos e objectivos, e, dessa forma, determina uma convicção racional, logo, também ela objectivável e motivável; já se vê, assim, que sendo a dúvida que legitima a aplicação do princípio in dubio pro reo, obviamente, a que obsta à convicção do juiz, tal dúvida não pode ser puramente subjectiva, antes tem de, igualmente, revelar-se conforme à razão ou racionalmente sindicável”. [3]
“Embora os meios de prova produzidos não estejam sujeitos a qualquer regime de prova legal, mas antes à livre apreciação do tribunal, artigo 127º C P Penal, a verdade é que livre apreciação não significa pura convicção subjectiva, mas sim “convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros. E uma tal convicção existirá quando e só quando o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável; não se tratará, pois, de uma mera opção voluntarista pela certeza de um facto e contra a dúvida, ou operada em virtude da alta verosimilhança ou probabilidade do facto, mas sim de um processo que só se completará quando o tribunal, por uma via racionalizável ao menos à posteriori tenha logrado afastar qualquer dúvida para a qual pudessem ser dadas razões, por pouco verosímil ou provável que ela se apresentasse”. [4]

No entanto, o enunciado julgamento, a invocada prova e pormenorizada fundamentação de que a decisão recorrida dá conta, não só não pode ser colocada em causa pela argumentação do arguido, como de resto, responde, por antecipação, de forma cabal e absolutamente esclarecedora, às apontadas críticas.
Com efeito.
Tendo presente que da acta da audiência de julgamento consta que a prova pessoal “foi gravada através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal” - e que o recorrente situa em concreto, no suporta digital as passagens que terão a virtualidade de fazer modificar o sentido da decisão do julgamento acerca da matéria de facto – atentemos nos excertos por si transcritos.

Concretizando, considera o arguido, situando no suporte de gravação e transcrevendo o excerto que lhe interessa,

quanto ao ponto 3.
que não se podia ter julgado como provado que desde o ano de 2011 até ao dia 2/10/2011 o arguido e a ofendida viveram em comunhão de habitação, juntamente com os 3 filhos e os pais da ofendida,
uma vez que, nenhuma testemunha, referiu o tempo que o arguido e a ofendida viveram em comunhão de habitação e nenhuma das testemunhas nem a ofendida afirmou que o casal apenas viveu em comunhão de habitação desde o ano de 2011.
Com efeito:
- a testemunha D1… referiu que já conhecia a ofendida C… há 3 anos e por isso sabia desde há 3 anos que eram casados e viviam na ….
A instâncias do MP, sobre se conhecia o casal, respondeu a testemunha: “ A D. C… é que eu conheço há cerca de 3 anos”,
sobre se não conhece o marido, respondeu: “Conheço, sei que é marido dela, mas…“
Mais referiu saber que eles eram casados e terem 3 filhos menores de 18 anos e que residiam no …. Nada mais;
- a testemunha G…, agente da PSP, não mostrou qualquer conhecimento de há quanto tempo viviam juntos mas refere que a ofendida lhe terá dito que viviam juntos ofendida e arguido, pais da ofendida e os 3 filhos.
Percorrido todo o depoimento desta testemunha nada resulta quanto a este facto;
- a testemunha e ofendida C…, embora não directamente questionada sobre tal facto, ao longo do seu depoimento, apenas refere que viviam juntos, o casal, os pais dela e os filhos.
Percorrido todo o depoimento desta testemunha que se encontra gravado nada resulta quanto a este facto.
Donde conclui que o ponto 3. não podia ter-se como provado, pelo menos da forma como o foi, por não ter qualquer suporte na prova produzida.

E tal facto tem importância na medida em que define o período de tempo em que o arguido e a ofendida viveram juntos como casal e que releva uma vez que está em causa um crime de violência doméstica.
Apenas se sabe e está provado por força da certidão de casamento - a data do casamento, e que dura há 12 anos esse casamento.
Pelo que tal facto não podia ser dado como provado, porque não resulta do depoimento das testemunhas, nem de qualquer documento junto ao autos, nem pode resultar da convicção do julgador.

Nenhuma razão nem o mais remoto fundamento sério, existe nesta parte da impugnação do julgamento.
Com efeito, desde logo no facto provado no n.º 1 resulta que o casamento do arguido com a ofendida data de 27MAR1999, donde o facto de se ter como provado no facto n.º 3 que desde o ano de 2011, até ao dia 2OUT, viveram em comunhão de habitação, não invalida nem prejudice o que está nos 11 anos anteriores de matrimónio e, o enfoque dado ao ano de 2011, tem a sua razão de ser na chamada de atenção que se quis fazer, para a restrição dos factos no tempo, reportados, tão só, ao ano de 2011 e como se vê adiante, ainda assim, , tão só a partir do mês de Agosto, com o inerente e consequente, não, branqueamento do passado, mas a sua irrelevância, sem nada digno de registo ou relevo para o que aqui está em discussão – como afinal o próprio arguido vem a recohecer a invocar, depois o facto de o casamento ter 12 anos e os factos se reportarem, a um mínimo e restrito período de tempo.
Improcede, pois este segmento da impugnação.

Quanto ao ponto 4.
que não podia ter-se julgado como provado que “o arguido começou a desferir-lhe bofetadas, pontapés, murros e empurrões“,
pois que de tal factualidade não foi feita prova suficiente.
Com efeito:
- a testemunha D1… em momento algum afirmou ter conhecimento de que o arguido tenha começado a partir do mês de Agosto de 2011 a desferir bofetadas, pontapés, murros, empurrões e a puxar os cabelos à ofendida; nem que fosse no interior da residência, sobretudo no quarto do casal, com uma periodicidade quase semanal.
Apenas disse a testemunha, que apenas tinha conhecimento pelo que a ofendida lhe transmitia, e que não era senão tristeza e angústia, que: “ela só me dizia desentendemo-nos”, “assim, marcas visíveis de agressões não posso dizer que tenha visto”;
- a testemunha G…, de igual forma, em momento algum afirmou ter conhecimento de que o arguido tenha começado a partir do mês de Agosto de 2011 a desferir bofetadas, pontapés, murros, empurrões e a puxar os cabelos à ofendida; nem que fosse no interior da residência, sobretudo no quarto do casal, com uma periodicidade quase semanal.
Nada relatou relativamente a esta matéria.
- nem tal factualidade resultou integralmente das declarações da testemunha e ofendida C….
Esta testemunha apenas referiu a instâncias do Mº Pº sobre a forma como o arguido lhe batia: “ele batia-me… mais nas costa ou … “, “uma vez na cabeça fiquei com altos“, “ era mais puxar cabelos”.
Concretamente e, no que se refere a “desferir bofetadas, pontapés, murros e empurrões”, nada disso afirmou a testemunha e ofendida C….
Não disse a testemunha com referência a datas, locais, a forma concreta como a agredia o arguido.
Donde e confrontando o depoimento da mesma e o depoimento das duas outras testemunhas, não podia ser dado como provado que a partir do mês de Agosto de 2011 o arguido começou a desferir-lhe bofetadas, pontapés, murros, empurrões.

Quanto aos pontos 5., 6., 7., 8. e 9.
dado que se baseia apenas e só no depoimento da ofendida, não merece força que permita dar os factos aó insertos como provados, uma vez que não se pode esquecer que a ofendida é sempre uma parte interessada contra o arguido, no sentido de não ser isenta de sentimentos contra o mesmo.
Donde, o Tribunal não podia ancorar-se apenas e só neste meio de prova.
Aliás, refere a Mmª Juiz na fundamentação que a mesma só quis falar na ausência do arguido e que esteve todo o julgamento com a cabeça entre os joelhos.
Tal, poderia dever-se a qualquer outra circunstância, nomeadamente do facto de estarem a ser ditas inverdades.
Por outro lado, e nomeadamente quanto ao facto 9., em momento algum a referida testemunha refere que o arguido lhe chamou filha da puta e vaca, nas referidas circunstâncias.
Pelo que, em se bastando o Tribunal com o simples depoimento da ofendida, o que não se aceita, sempre, só podia dar como provado o facto 5, 6, 7 e 8.

Quanto ao ponto 10.
que percorrendo o depoimento das três testemunhas que depuseram em audiência, com conhecimento directo desta factualidade ocorrida em 2.10.2011, não se pode extrair que o arguido tenha ameaçado a ofendida C… dizendo “eu mato-te”.
- a testemunha D… nada diz quanto a ter ouvido esta ameaça. Apenas afirma ter ouvido “filha da puta”, acrescentando que “são palavras banais que se dizem quando se está alterado - eu própria digo.”
- a testemunha G… nada diz quanto a ter ouvido esta ameaça:
- a testemunha C… nada diz quanto a ter ouvido esta ameaça
Aliás, esta última testemunha (ofendida) disse apenas que ele chegou a casa, e no interior da residência, não me bateu, só me começou a insultar.
As demais testemunhas só compareceram mais tarde e não entraram na residência.
Logo, e reiterando o que já se afirmou quanto ao facto de apenas se sustentar o tribunal nas declarações da ofendida, entende que, porque a arguida nada refere, não podia o Tribunal a quo dar esta alegada ameaça como provada.

É certo, que não existem testemunhas presencias, factuais, oculares, dos factos – que alegadamente tinham lugar no interior da casa de habitação.
Muito embora a testemunha D… haja referido - embora desvalorizando, é certo - o facto de ter ouvido o arguido chamar a mulher de filha da puta.
As outras testemunhas não estavam presentes, pelo que não podiam testemunhar a ameaça.

Sobre a fundamentação e análise crítica da prova reportada a estes factos, dá-nos a sentença conta do que disse a ofendida:
cerca de dois meses antes de 2OUT, o arguido aos fins de semana, por norma, chegava a casa de madrugada, entre as 3/4horas, nervoso, inquieto e embriagado, chamava-lhe puta, cabra, mulher da rua, puxava-lhe os cabelos e dava-lhe murros na cabeça e nas costas, tendo tido sempre a preocupação de proteger a cara, que a ameaçava, que caso chamasse a policia, punha os seus pais fora de casa, dado que estes viviam com o casal;
confirmou, no mais, os factos tal como se mostram assentes, e esclareceu que os insultos, as ameaças e as agressões ocorriam sempre no quarto do casal, sem que os filhos e os pais ouvissem, com excepção dos relativos ao dia 2OUT, quando se encontrava no quarto dos filhos tendo os mesmos acordado e presenciado os insultos e os relativos ao anúncio que a ia queimar com gasolina, o que verbalizou na frente dos menores.
Para se conluir, que, a ofendida, num depoimento frágil, sofrido, mas sereno, objectiva e genuíno, relatou o sofrimento porque passou em resultado do comportamento do arguido, sentimentos que conteve perante os filhos e pais que consigo viviam, cuja preocupação evidenciou em pleno julgamento, quando se decidiu pelo esclarecimento dos factos. O seu depoimento foi, de igual modo, credível e convincente, pela sua impressibilidade, certeza, e localização espacial e temporal, no que tange ao relato dos factos e as circunstâncias em que ocorriam as agressões, injúrias e ameaças, tal como se encontram, assentes, e acrescentou pormenores que da acusação não constavam.
Concluiu que a agressividade do arguido se intensificou nos dois últimos meses que antecederam os factos de 02/10/2011 e justificou-os devido à ingestão de bebidas alcoólicas em excesso dado que quando não bebia tudo corria dentro da normalidade, tendo, inclusive, aventado que caso se tratasse a hipótese de uma possível reconciliação era quase segura.
Atento o discurso consistente da ofendida, mesmo quando sujeita a pedido de esclarecimento, que alicerceram a convicção do tribunal no sentido da prática dos factos pelo arguido, cuja credibilidade do seu depoimento saiu reforçada em confronto com o depoimento das testemunhas D… e G…, que demonstraram boa razão de ciência.
Como é bom de ver, estamos perante factos que ocorrem no seio da intimidade da vida privada, sem a presença de testemunhas, na casa de morada de família – daí a agravação contida no n.º 2 do artigo 152º C Penal, que se teve presente no caso concreto – pelo que - como, de resto salienta o Magistrado do MP na sua resposta – “com naturalidade é a ofendida quem, dadas as circunstâncias em que os factos são praticados (na intimidade do lar e longe da vista de testemunhas, sendo que no caso dos autos foi evidente a preocupação constante da ofendida em proteger os filhos e os seus pais a quem sempre ocultou o que estava a passar), melhor os pode relatar e esclarecer ao Tribunal”.

Declarações que no caso, não merecem qualquer sombra de dúvida ou de reserva quanto à sua credibilidade e seriedade – nem o arguido chega a tanto – salientando-se, na decisão recorrida – desde logo que a ofendida apenas falou depois das testemunhas, pois que num primeiro momento se escusou a fazê-lo – ainda que, “não deixou de impressionar a preocupação que teve em realçar que tais comportamentos do arguido se deviam à ingestão de bebidas alcoólicas e querer reconciliar-se com ele desde que se tratasse”.
Nem se diga que pelo facto de a ofendida, apenas ter falado na ausência do arguido e ter estado todo o julgamento com a cabeça entre os joelhos, tal pretende significar que estavam a ser ditas inverdades – ou que ela própria, as disse.
Nenhum fundamento sério o plausível assume tal interpretação, quando, todo o contexto – ademais invocado, pelo arguido no recurso, como justificação para a chamada das autoridades policiais – se reporta a um sempre presente sentimento de vergonha, por parte da ofendida, perante os outros, filhos pais e vizinhos, do que com ela se estava a passar.

Afastado o princípio do “testis uno testis nulo”, de resto, as declarações da ofendida têm de ser conjugadas e apreciadas com o depoimento da testemunha D…, sua amiga, que relatou ao Tribunal a tristeza da ofendida, o conhecimento que tinha dos desentendimentos do casal e as marcas no corpo da ofendida que pelo menos por duas vezes viu - e quanto aos facto socorridos a 2OUT, ainda com o depoimento do agente de autoridade, chamado ao local, por esta testemunha, a pedido da ofendida, que de forma directa relataram o que então se passou, este naturalmente, apenas, quanto aos factos ocorridos depois da sua chegada.

Improcede, pois, também, este segmento da impugnação.

Quanto ao ponto 11.
que não podia ter-se julgado como provado que “com receio de ser novamente agredida fisicamente pelo arguido, …”.
Com efeito,
resultou provado que a ofendida pediu à D… através de mensagem por telemóvel que chamasse a polícia, tendo aquela solicitado a presença da PSP no local, que ali compareceu momentos depois, no entanto, estamos perante uma mensagem escrita por telemóvel, cujo teor não foi apurado;
percorrendo o depoimento da testemunha D… e da ofendida, nada resulta nesse sentido,
nenhuma testemunha, nem a própria ofendida disse ao Tribunal que a ofendida pediu através de mensagem à D… que chamasse a polícia, com receio de ser novamente agredida fisicamente pelo arguido.
Aliás, bem pelo contrário:
- a testemunha D1… disse que não era receio, era vergonha.
- a testemunha D… afirmou “ Ela não tinha receio, mas vergonha”, “um dos problemas maiores era a vergonha de expor a situação!”.
E a ofendida referiu que “naquela noite ele não me bateu“, “apenas me chamou nomes“.
Donde se vê que se o arguido não bateu, não tinha a ofendida razões para ter receio.
A mesma refere mais à frente que queria era pôr um ponto final naquilo.
O que se verificou foi uma discussão, em que os ânimos que já estariam exaltados, mais se exarcerbaram da parte do arguido quando se apercebeu que alguém chamara a polícia.
- a testemunha D1… até refere: “ palavras normais que até eu digo e mais porque ficou surpreendido com a situação.
Assim, entende que, quanto a este facto concreto, porque a ofendida nada refere, nem as duas outras testemunhas o fazem, não podia o Tribunal a quo dar este facto como provado.
Apenas podia dar como provado que a pediu à D… através de mensagem por telemóvel que chamasse a polícia, tendo aquela solicitado a presença da PSP no local, que ali compareceu momentos depois.
Nada mais, nomeadamente que o haja feito com receio de ser novamente agredida fisicamente pelo arguido.

Quanto ao ponto 13.
que o Tribunal não podia dar com o provado que “receando pela sua integridade física“.
Na verdade, considerando que resultou provado que a ofendida obedeceu ao arguido e entrou em casa com os filhos, que amedrontados estavam a chorar.
Mas, nada mais.
Percorrendo o depoimento da testemunha D… e da ofendida, tal não podia ser dado como provado.
Nenhuma testemunha, nem a própria ofendida disse ao Tribunal que o tenha feito receando pela sua integridade física.
- a testemunha D1… disse que não era receio, era vergonha.
- a testemunha G… num depoimento muito peculiar quanto às expressões utilizadas, refere pânico medo e terror da parte da ofendida, mas esta testemunha não sabe os motivos pelos quais a ofendida foi para dentro.
- a testemunha C… / ofendida, nada diz quanto ao que a levou a entrar, mas de todo o seu depoimento resulta que viu exposta toda a situação na via pública e na frente dos pais, e quis pôr um ponto final no problema.
Pelo que terá entrado para evitar mais escândalo.
Pelo que se vem de expor e pela prova produzida em julgamento, tal facto não podia ser dado como provado.

Também, este segmento da impugnação está votado ao fracasso.
Com efeito, vindo provado, que,
no dia 2 de Outubro de 2011, cerca de 1 hora, no interior da citada residência, o arguido começou a discutir com a ofendida, a ameaçá-la e a insultá-la dizendo-lhe, em tom sério e de forma agressiva ‘Eu mato-te; és uma puta; vadia’ e que, a ofendida pediu à D…, através de mensagem por telemóvel, que chamasse a polícia, a conclusão de que o fez com receio de ser novamente agredida fisicamente pelo arguido, não merece qualquer reserva, dúvida ou discussão, sérias e é a que resulta das regras da experiência.
Mormente, se alicerçada, quer, nos antecedentes, quando anteriormente, a partir do mês de Agosto de 2011 o arguido a começou a ameaçar de morte, a insultá-la de ‘puta’ e ‘vaca’ e a desferir-lhe bofetadas, pontapés, murros, empurrões e a puxar-lhe os cabelos, tendo em uma das ocasiões, dito, em tom sério e ameaçador, que se pusesse fina e para dormir com um olho aberto e outro fechado, pois quando menos esperasse a mataria ali mesmo, em outra dito, no mesmo tom sério e ameaçador e e frente dos 3 filhos menores, dito que ia arranjar um bidão de gasolina e que a ia queimar toda e na noite de 23 para 24 de Setembro de 2011, quando estavam ambos no interior do quarto do casal, o arguido pegou em peças de roupa da ofendida e, na presença dela, queimou-as com um isqueiro, ao mesmo tempo que lhe disse ‘Estás a ver? Para a próxima és tu’, tendo, na mesma altura chamado-lhe também ‘filha da puta’, ‘vaca’,
Da mesm forma, o facto de ter obedecido à ordem do arguido para entrar para casa, se atentarmos no que se seguiu, depois da chegada das autoridades ao local - quando se apercebeu da situação o arguido, dirigiu-se à ofendida, que se encontrava com os 3 filhos menores no exterior da residência, e, ainda mais exaltado e de forma autoritária e agressiva disse-lhe: ‘já para dentro, senão arrebento-te’.
A obediência a esta ordem, não pode ter sido motivada, senão, pelo receio pela sua integridade física.
O que fica, ainda mais bem ilustrado quando, uma vez já, no interior, o arguido voltou a dirigir-se à ofendida e disse-lhe em voz alta, audível do exterior, que ‘ia matá-los a todos e que iam pagar’, tendo, depois permanecido fechado em casa com a ofendida, os filhos e os sogros, e só abriu a porta minutos depois, após várias insistências dos elementos policiais nesse sentido, altura que a ofendida aproveitou para sair de casa e foi refugiar-se no quintal anexo à residência, onde o arguido acabou por ser detido.

Nenhuma censura merece pois este preciso julgamento.

Quanto ao facto provado 17.
nenhuma das testemunhas, incluindo a própria ofendida, em nenhuma instância, referiu que a ofendida sofreu sempre dores nas regiões atingidas.
Tão pouco alguma testemunha referiu que nunca foi receber tratamento hospitalar “por receio do arguido“, pois que temia seriamente que a qualquer altura ele concretizasse os males que prenunciara, agredindo-a ou matando-a.
Desde logo,
não foi dito pela testemunha, nem ninguém lhe perguntou:
se os puxões de cabelos eram com força,
se teve com isso dores
se teve feridas ou hematomas.
Além de que, a instâncias da Mmª Juiz a testemunha/ofendida C…, questionada sobre se alguma vez tinha ido receber tratamento hospitalar, a mesma apenas e só disse que “não.”
Em momento algum nenhuma testemunha o disse nem lhe foi perguntado qual a razão pela qual a ofendida nunca foi receber tratamento hospitalar.
Pelo que não podia tal facto dado como provado, não pelo menos pela forma dada.

Obviamente que como o arguido saberá, por ser resultado das normais regras da experiência comum - o que de certo estaria, de resto, presente na motivação para a sua concreta e precisa actuação - bofetadas, pontapés, murros, empurrões e puxar os cabelos – independentemente provocar, ou não, a necessidade, desde logo, de recurso a assistência hospitalar – e aqui coloca-se, mais uma vez a questão da alegada vergonha, aliada, porventura à pouca gravidade, objectiva das lesões – provoca, necessariamente dores, desde logo, físicas, nas regiões visadas.

Nenhuma censura merece, pois, também, este preciso e concreto julgamento.

Quanto ao facto provado 18.
- o arguido não prestou declarações.
- a ofendida referiu ao longo do seu depoimento - que ele e mais a partir de Agosto de 2011 até Outubro de 2011 ao fim de semana bebia e chegava a casa com sinais de ter bebido e a maltratava.
Mas a mesma referiu que quando não bebia não tinham problemas nenhuns -“tínhamos uma relação normal“,“ele quando não está com álcool nós não temos problemas, não temos chatices, convivemos sempre bem”.
Donde também daqui se extrai que o arguido não actuou no seu estado normal. Não actuou deliberada e conscientemente em toda a factualidade que a ofendida descreveu.
Aliás, a ofendida referiu que em não existindo álcool, e se o arguido se emendasse, o casamento era para manter e estava disposta a continuar com o arguido.
Donde não podia o Tribunal dar como provado que o arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, devendo tal factualidade resultar, ao invés, não provada.

Cremos resultar medianamente claro e evidente, que não é o facto de o arguido maltratar a mulher quando hega a casa embriagado, que, tal facto lhe retira a vontade e o discernimento, de forma a excluir o dolo da sua actuação.
Coisa diversa, que de resto, também, não tem essa virtualidade é o facto de se não ingerisse álcool, não provocava problemas – o que, de resto, poderia colocar uma situação de embriaguez pré-ordenada, de uma actio libere in causa.
Também, aqui, finalmente, não tem fundamento a impugnação do arguido.

Donde, se, como é certo,
a convicção do julgador só pode ser modificada pelo tribunal de recurso quando seja obtida através de provas ilegais ou proibidas, ou contra a força probatória plena de certos meios de prova ou, então, quando afronte, de forma manifesta, as regras da experiência comum;
desde que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, se deve acolher a opção do julgador da 1ª instância,
então, não merece acolhimento, na generalidade, a crítica que é dirigida ao decidido.

Está, pois, todo, este segmento do recurso, votado ao insucesso.

III. 3. 2. A subsunção dos factos ao Direito.

O arguido – como vimos já – vem condenado pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pela alínea a) do n.º 1 e pelo n.º 2 do artigo 152º C Penal.
Norma que, sob a epígrafe de “violência doméstica”, hoje apresenta a seguinte redacção:
“1. quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) ao cônjuge ou ex-cônjuge;
(…);
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2. No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos”.

O objectivo desta incriminação é a de prevenir as frequentes e, por vezes, tão subtis, quão perniciosas, formas de violência no âmbito da família, quer para a saúde física e psíquica e ou para o desenvolvimento harmonioso da personalidade ou para o bem estar.
A necessidade prática desta neo-criminalização, resultou, por um lado, do facto de muitos destes comportamentos não configurarem em si, crime de ofensas corporais simples e, por outro, resultou da consciencialização ético-social dos tempos recentes sobre a gravidade individual e social destes comportamentos, consagrando-se a ideia de que a família não mais podia ser vista como um feudo sagrado, onde o direito penal se tinha de abster de intervir.
A razão de ser deste tipo legal, no entanto não é a protecção da comunidade familiar ou conjugal, antes a protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana.
Com esta incriminação visa-se assegurar uma “tutela especial e reforçada da vítima perante situações de violência desenvolvida no seio da vida familiar ou doméstica que, pela sua caracterização e motivação - geralmente associada a comportamentos obsessivos e manipuladores - constituam uma situação de maus tratos, que é por si mesma indiciadora do perigo e da ameaça de prejuízo sério frequentemente irreversível”. [5]
Pode-se dizer que os bens jurídicos protegidos pela incriminação deste tipo, são, em geral, os da dignidade humana, particularmente a saúde, compreendendo-se aqui o bem estar físico, psíquico e mental, podendo a sua violação ocorrer por qualquer espécie de comportamento que afecte a dignidade do cônjuge e seja susceptível de pôr em causa qualquer dos bens acima mencionados.
O relevante é que os factos praticados, isolados ou reiterados, apreciados à luz da intimidade do lar e da repercussão que eles possam ter para a vida comum, sejam susceptíveis de colocar a vítima na situação de, mais ou menos permanentemente, sofrer um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade no seio da sociedade conjugal. [6]
A conduta típica da violência doméstica é descrita através do conceito de “maus-tratos físicos ou psíquicos”, que podem incluir, designadamente, “castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais”.
Da actual descrição do tipo do artigo 152º, resultante da Lei 59/2007, de 4SET, resulta,
a ampliação do âmbito subjectivo do crime, que passa a incluir as situações de violência doméstica envolvendo ex-cônjuges e pessoas de outro ou do mesmo sexo que mantenham ou tenham mantido uma relação análoga à dos cônjuges;
o recurso, em alternativa, às ideias de reiteração e intensidade, com a consolidação do entendimento de que, condutas agressivas, mesmo que praticadas uma só vez, desde que se revistam de gravidade suficiente, podem ali ser enquadradas e,
que, por outro lado, não são, todas as ofensas corporais entre cônjuges que ali cabem, mas só aquelas que se revistam de uma certa gravidade, só aquelas que, fundamentalmente, traduzam crueldade, ou insensibilidade, ou até vingança desnecessária, da parte do agente e que, relativamente à vítima, se traduzam em sofrimento e humilhação.
“O desvalor potencial fundamentalmente tomado em consideração para justificar esta específica modalidade de incriminação se prende com os sérios riscos para a integridade psíquica da vítima que podem advir da sujeição a maus tratos físicos e/ou psíquicos, sobremaneira quando se prolongam no tempo”. [7]
“A panóplia de acções que integram o tipo de crime em causa, analisadas à luz do contexto especialmente desvalioso em que são perpetradas, constituem-se em maus tratos quando, por exemplo, revelam uma conduta maltratante especialmente intensa, uma relação de domínio que deixa a vítima em situação degradante ou um estado de agressão permanente”. [8]
“Neste sentido, o crime de violência doméstica assume não a natureza de crime de dano mas de crime de perigo, nomeadamente de crime de perigo abstracto. É, com efeito, o perigo para a saúde do objecto de acção alvo da conduta agressora que constitui motivo de criminalização, pretendendo-se deste modo oferecer uma tutela antecipada ao bem jurídico em apreço, própria dos crimes de perigo abstracto”. [9]
“O importante é, pois, analisar e caracterizar o quadro global da agressão física de forma a determinar se ela evidencia um estado de degradação, enfraquecimento, ou aviltamento da dignidade pessoal da vítima que permita classificar a situação como de maus tratos, que, por si, constitui um “risco qualificado que a situação apresenta para a saúde psíquica da vítima”. [10]
Só em tal situação se impõe a condenação pelo crime de violência doméstica.
Como a própria expressão legal sugere, a acção não pode limitar-se a uma mera agressão física ou verbal, ou à simples violação de alguma ou algumas das liberdades da vítima, tuteladas por outros tipos legais de crimes. Importa que a agressão em sentido lato constitua uma situação de “maus tratos”. E estes só se verificam quando a acção do agente concretiza actos violentos que, pela sua imagem global e pela gravidade da situação concreta são tipificados como crime pela sua perigosidade típica para a saúde e bem-estar físico e psíquico da vítima.
Se os maus tratos constituem ofensa do corpo ou da saúde de outrem, contudo, nem toda a ofensa inserida no seio da vida familiar/doméstica representa, imediatamente, maus tratos, pois estes pressupõem que o agente ofenda a integridade física ou psíquica de um modo especialmente desvalioso e, por isso, particularmente censurável.
“Não são os simples actos plúrimos ou reiterados que caracterizam o crime de maus tratos a cônjuge, o que importa é que os factos, isolados ou reiterados, apreciados à luz da intimidade do lar e da repercussão que eles possam ter na possibilidade de vida em comum, coloquem a pessoa ofendida numa situação que se deva considerar de vítima, mais ou menos permanente, de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro do ambiente conjugal”. [11]

Para uma correcta qualificação dos factos há que atentar no respectivo enquadramento e concretas circunstâncias em que o arguido agiu.

Perante a objectividade apurada,
a partir do mês de Agosto de 2011 o arguido começou a ameaçar de morte a ofendida, a insultá-la de ‘puta’ e ‘vaca’ e a desferir-lhe bofetadas, pontapés, murros, empurrões e a puxar-lhe os cabelos;
o que ocorria sempre no interior da citada residência, sobretudo no quarto do casal, com uma periodicidade quase semanal;
numa dessas ocasiões o arguido disse à ofendida, em tom sério e ameaçador, que se pudesse fina e para dormir com um olho aberto e outro fechado, pois quando menos esperasse a mataria ali mesmo;
em outra, disse à ofendida, no mesmo tom sério e ameaçador e afrente dos 3 filhos menores, que ia arranjar um bidão de gasolina e que ia queimá-la toda;
na noite de 23 para 24 de Setembro de 2011, quando estavam ambos no interior do quarto do casal, o arguido pegou em peças de roupa da ofendida e, na presença dela, queimou-as com um isqueiro, ao mesmo tempo que lhe disse ‘Estás a ver? Para a próxima és tu’ e na mesm altura chamou-lhe também ‘filha da puta’, ‘vaca’;
no dia 2 de Outubro de 2011, cerca de 1 hora, no interior da citada residência, o arguido começou a discutir com a ofendida, a ameaçá-la e a insultá-la dizendo-lhe, em tom sério e de forma agressiva ‘Eu mato-te; és uma puta; vadia’;
com receio de ser novamente agredida fisicamente pelo arguido, a ofendida pediu à D…, através de mensagem por telemóvel, que chamasse a polícia, tendo aquela solicitado a presença da PSP no local, que ali compareceu momentos depois;
quando se apercebeu da situação o arguido, dirigiu-se à ofendida, que se encontrava com os 3 filhos menores no exterior da residência, e, ainda mais exaltado e de forma autoritária e agressiva disse-lhe: ‘já para dentro, senão arrebento-te’;
receando pela sua integridade física, a ofendida obedeceu e entrou em casa com os filhos, que, amedrontados com a situação, se encontravam a chorar;
aí dentro o arguido voltou a dirigir-se à ofendida e disse-lhe em voz alta, audível do exterior, que ‘ia matá-los a todos e que iam pagar’;
depois permaneceu fechado em casa com a ofendida, os filhos e os sogros, e só abriu a porta minutos depois, após várias insistências dos elementos policiais nesse sentido;
nessa altura a ofendida conseguiu sair de casa e foi refugiar-se no quintal anexo à residência, onde o arguido acabou por ser detido,
cremos estar bem evidenciado um quadro de terror, que traduzia o Inferno, que o arguido recreava em casa, nas relações com a mulher, ao humilhar e vexar, em vários segmentos do que ela tem de mais valioso, inserido, no que globalmente se pode considerar como o último reduto da dignidade da pessoa humana.
O que não é prejudicado, dada a natureza pública do crime, elo facto de a ofendida estar disposta a continuar a viver com o arguido, pai dos filhos menores, mormente se este se tratar ao problema do alcoolismo, o que de certa forma traduz - independentemente das razões e motivações - o ditado popular, ainda pertinente no dealbar do séc. XXi, “quanto mais me bates, mais gosto de ti”.

Justifica-se, de resto, perante as dúvidas colocadas pelo arguido, no quadro legal vigente, que se coloque a questão:
se isto não é violência doméstica, então o que será?

Donde não merece censura o decidido, no sentido de que o comportamento do arguido configura a prática de um crime de de violência doméstica, com referência ao artigo 152º/1 alínea a) e 2 C Penal.

III. 3. 3. A nulidade por falta de fundamentação da aposição da concreta condição à suspensão da execução da pena.

Entende o arguido que, o Tribunal sujeitou a suspensão da execução da pena de prisão a uma condição sem sustentação factual que fundamente a necessidade de tal exigência, pugnando, pela sua revogação, na parte em que condicionou a suspensão da execução da pena, a submissão a tratamento para abstinência de bebidas alcoólicas.
Isto porque, diz o recorrente, nem a sua culpa, nem as exigências de prevenção nem a factualidade provada indicam nem justificam a necessidade da mesma condição, cuja aplicação se não mostra justificada e devidamente fundamentada.

Como é sabido, nos termos do an.º 4 do artigo 50º C enal, a decisão condenatória especifica sepre os fundamentos da suspense e das suas condições.
Em sede de fundamentação da aposição da condição à suspensão da execução da pena, expendeu-se na decisão recorrida, pela forma seguinte:
“no caso em análise, pensa-se que a reprovação pública inerente à pena suspensa e o castigo que ela envolve, aplicada num processo-crime e em audiência, devendo sujeitar-se a tratamento para abstinência de bebidas alcoólicas, satisfazem o sentimento jurídico da comunidade e, consequentemente, as exigências de prevenção geral de defesa da ordem jurídica, realizando de forma adequada e suficiente as finalidades da punição e a ressocialização em liberdade do condenado.
Pelo exposto, decido suspender a execução da pena de prisão de 2 anos, imposta ao arguido(a), pelo mesmo período, artigos 50º/2 e 52º/3 C Penal - período que se entende adequado para apontar ao arguido o rumo certo no domínio de valoração do seu comportamento”.
Donde, a justificação foi aduzida, como se deixa evidenciado com a pertinente transcrição da sentence.
Questão diversa é, como salienta o arguido, o facto de, não existir suporte para o que ali se concluiu, em sede de julgamento da matéria de facto.
Com efeito, como salienta, o arguido, não resulta dos factos provados que o arguido, sequer, ingerisse bebidas alcoólicas. Muito menos que tenha um problema de alcoolismo, que necessite de ser tratado.

Como bem refere o Magistrado do MP na sua resposta ao recurso, o facto de que o arguido ingeria bebidas alcoólicas, ficou evidente da prova produzida em audiência de julgamento e, mais, que, tal era a maior razão para actuar da forma descrita.
De resto, é o próprio arguido quem, na motivação do recurso, pretende ver provado que não agiu livre, voluntária e conscientemente, em virtude de não ter actuado no seu estado normal … mas sim sob influência do álcool – como vimos já.

Então a ingestão de álcool – facto que não consta do elenco dos factos provados - é utilizado pelo arguido para defender que não actuou dolosamente e, por outro lado, é utilizado, na vertente da omissão da sua inclusão no elenco dos factos provados – para justificar a falta de fundamentação e a nulidade da parte da sentença em que condiciona a suspensão da execução da pena ao tratamento ao problema de alcoolismo !!!
Curiosamente, o próprio arguido na audiência de julgamento que decorreu no dia 05/03/2012 declarou que aceitava submeter-se a tratamento do álcool caso viesse a ser condenado, como consta da acta, a fls. 171.
O que merece o seguinte reparo.
“A ideia do procedimento justo expresso, processualmente concretizado no princípio da lealdade, deve compreender-se como uma exigência da optimização de valores constitucionais. Esse pressuposto fundamental consubstancia-se na exigência de que todos os actores do processo penal tenham a sua actuação procedimental pautada pela finalidade última que é a da realização da justiça, e da procura da verdade material. Este objectivo teleológico não se compadece com a realização processual que visa a utilização estratégica do processo como um instrumento acrítico e neutro, procurando outras finalidades laterais e, até, em clara oposição com aquela realização e procura.
O princípio da lealdade no comportamento processual, nomeadamente na aceitação, consentimento para determinada condição da suspensa da execução da pena, representa uma imposição de princípios gerais inscritos na própria dignidade humana, e da ética, que deve presidir a todos ao actos do cidadão. O mesmo princípio liga-se, de forma inexorável, ao direito a um processo justo e ao princípio da igualdade de armas: em qualquer litígio a existência de um princípio geral de lealdade é essencial para a afirmação da existência do Estado de Direito.
No caso dos autos, o facto de o arguido haver declarado aceitar submeter-se a tratamento do álcool, caso viesse a ser condenado e a posterior invocação de falta de fundamentação quanto a esta decisão concreta que a final veio a ser consagrada – ainda que seja patente - configura uma conduta que toca as regras da lealdade processual e, como tal, afecta a existência de um processo justo. Na verdade, a partir do momento em que um acto processual é construído também com a adesão do sujeito processual, com inteiro e completo conhecimento de causa, não é admissível uma inflexão que vise destruir aquilo que previamente se construiu”, cfr. Ac do STJ de 23NOV2011, a propósito, de recolha de prova – junção de documento, o que não pode deixar de ter repercussão.
Em sede de renúncia ao recurso – se estivéssemos no âmbito do processo civil - ou, pelo menos, evidenciando falta de legitimidade para o efeito de o interpor – no caso do processo penal.

De qualquer forma, o certo é que assiste razão ao arguido quando defende que a sentença não tem suporte fáctico para a aposição da dita condição à suspensão da execução da pena.
O que se não se traduz em qualquer nulidade da sentença, pois que a situação se não enquadra no elenco das previstas no artigo 379º C P Penal, desde logo, fica insubsistente a consequência que o arguido pretende se retire – a nulidade de tal segmento da decisão.
Estamos, seguramente, perante um vício da decisão.
No caso, o da insuficiência para a decisão da matéria de facto, previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo 410º C P Penal.
Vício que determina a formação de forma incorrecta de um juízo, porque a conclusão não é suportada pelas premissas: a matéria de facto não é a suficiente para fundamentar a solução de direito, correcta, legal e justa.
“O termo “decisão”, refere-se à decisão justa que devia ter sido proferida, não à decisão recorrida”. [12]
A insuficiência releva-se em termos quantitativos porque o tribunal não esgotou todos os seus poderes de indagação em matéria de facto. Na descoberta da verdade material, o tribunal podia e devia ter ido mais além. Não o tendo feito, a decisão formou-se incorrectamente por deficiência da premissa menor. O suprimento da insuficiência faz-se com a prova de factos essenciais, que fazem alterar a decisão recorrida, já na qualificação jurídica os factos, já na medida concreta da pena ou em ambas as situações, conjuntamente ou nos pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos. Se os novos factos não determinarem alguma dessas alterações, não são essenciais - o vício não será importante, podendo ser sanado no tribunal de recurso.
Isto porque, a decisão de direito não encontra na matéria de facto provada uma base tal que suporte um raciocínio “lógico-subsuntivo”, em virtude de se ter deixado de investigar toda a matéria com interesse para a decisão da causa.
E, como é sabido, nos termos do artigo 368º C P Penal, o Tribunal deve-se pronunciar sobre os factos que resultarem da discussão da causa, relevantes, como acontece, inequivocamente com a questão trazida, desde logo, pela ofendida, ao justificar a agressividade do arguido com a ingestão de bebidas alcoólicas em excesso, pois que, quando não bebia tudo corria dentro da normalidade – donde, chegou, mesmo a aventar a hipótese de que uma possível reconciliação era quase segura, se o mesmo se tratasse.

Assim, cremos que o facto de na decisão recorrida se não ter, seguramente, averiguado – deixado exarado, no seu texto, contra a prova produzida nesse sentido, como da análise crítica consta – tal facto, para dele, depois se socorrer, para alicerçar a aposição de uma condiçâo à suspensão da execução da pena de prisão, é susceptível de configurar a existência do apontado vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

Do texto da decisão recorrida e maxime da sua linha de raciocínio, resulta, no entanto e, tão só, que tal facto foi implicitamente tido em conta, o que consente se afirme que na decisão recorrida se não esgotou o conhecimento e a apreciação de tal questão, desde logo, afirmando a sua existência.
Omitiu-se na decisão recorrida, este dever, em busca da procura da verdade material, o dever se se averiguar, de se afirmar a existência de um problema de alcoolismo por parte do arguido.

A consequência da existência deste vício é e, porque, no caso, é possível decidir a causa - nos termos do artigo 426º/1 C P Penal – a modificação em conformidade com a prova produzida - de que a análise crítica da prova, exarada aquando da fundamentação do julgamento acerca da matéria de facto nos dá conta - nos termos do artigo 431º C P Penal, por forma a que passe a constar do elenco dos factos provados, os seguintes pontos, sob os n.ºs 25 e 26, respectivamente, com a seguinte redacção:
“os factos supra descritos eram levados a cabo depois de o arguido ingerir bebidas alcoólicas em excesso”;
“quando não bebia o arguido não demonstrava qualquer agressividade contra a mulher”.

Com o assim decidido, fica justificada, de forma cabal e absoluta, em sede de matéria de facto, o julgamento acerca da pertinência da condição da suspensão da execuçã da pena.

III. 3. 4. Finalmente.

Se em relação à pretensa violação do artigo 152º C Penal, se pode entender como reportada à subunção jurídico-penal dos factos provados – a que acima jé demos resposta - já quanto a do artigo 32º da CRP, cumpre referir o seguinte.
Como é sabido, quem recorre não se pode limitar a proclamar, muito menos, a sugerir ou aventar hipóteses de violações normativas, erros de julgamento, vícios da decisão.
Tem obrigatoriamente, até pelo princípio da lealdade, probidade e honestidade, a que está vinculado, de fazer a crítica das soluções para que propendeu a decisão de que recorre, aduzindo os motivos do seu inconformismo, a base jurídica em que se apoia e o caminho que deveria ter sido percorrido ou que haverá a percorrer.
Não basta alvitrar a violação de normas legais ou constitucionais.
Necessário era afirmar e tentar demonstrar e situar, em concreto, qual o sentido da interpretação dada e com que tais normas foram aplicadas e qual aquele com que o deveriam ter sido, cfr artigo 412º/2 alínea b) C P Penal.
Se se pode considerar que a violação da norma que prevê o tipo pelo qual vem condenado, se reporta, à consequência da patenteada discordância do julgamento da matéria de facto – que a proceder, terá, em última análise, que levar à conclusão da não verificação da sua factualidade típica, já a invocação da violação da norma de cariz constitucional que consagra as garantias do processo criminal, com 10 números, sendo que 9 deles se reportam ao processo penal e um, ao processo contra-ordenacional, sem a concretização do segmento que se teve em mente – se é que se teve algum – naquela asserção, é, rigorosamente, nada.
Se, manifesta e seguramente, o recorrente não obedeceu a estas regras básicas, não pode, então, esperar que o Tribunal de recurso inicie uma qualquer manobra exploratória, tendente a descobrir uma hipotética violação normativa, que ele próprio não situa, nem concretiza, de resto.
Donde, terá que ver, por razões que lhe são, exclusivamente, imputáveis, arredada qualquer possibilidade de o tribunal se debruçar sobre esta, genericamente invocada, questão.

Assim se conclui, pelo não provimento, na totalidade, do recurso apresentado pelo arguido.

IV. Dispositivo

Nestes termos e com os fundamentos mencionados, acordam os juízes que compõem este Tribunal, em,

1. negar provimento ao recurso apresentado pelo arguido B…;
2. no entanto, na verificação oficiosa, do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, modifica-se a decisão a ela referente, por forma a que se adite ao elenco dos factos provados os seguintes pontos, sob os n.ºs 25 e 26, respectivamente, com a seguinte redacção:
“os factos supra descritos eram levados a cabo depois de o arguido ingerir bebidas alcoólicas em excesso”;
“quando não bebia o arguido não demonstrava qualquer agressividade contra a mulher”.

Anote-se no lugar devido, depois da baixa dos autos.

Taxa de justiça pelo arguido que se fixa no equivalente a 4 UC,s.

Elaborado em computador. Revisto pelo Relator, o 1º signatário.

Porto, 2012.setembro.19
Ernesto de Jesus de Deus Nascimento
Artur Manuel da Silva Oliveira
_________________
[1] Cfr. Figueiredo Dias, in Princípios Gerais do Processo Penal, 160.
[2] In Direito Processual Penal, 202/203.
[3] No dizer do Ac. STJ de 4NOV1998, in CJ, S, III, 209.
[4] Cfr. Prof. Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, 125.
[5] Cfr. Nuno Brandão, in “A Tutela penal especial reforçada da violência doméstica”, Julgar, 12º, 18.
[6] Cfr. Ac . deste Tribunal de 29.9.2004, in CJ, IV, 210.
[7] Cfr. Nuno Brandão, 18.
[8] Cfr. Plácido Conde Fernandes, in “Violência doméstica – Novo quadro penal e processual penal”, Revista do CEJ, Jornadas sobre a revisão do Código Penal, 2009, Número especial, 307.
[9] Cfr. Nuno Brandão, 17.
[10] Cfr. Nuno Brandão, pág. 21.
[11] Cfr. Ac. RC de 28JAN2010.
[12] Cfr. neste sentido o Ac. STJ de 13.5.98, relator Joaquim Dias, in CJ, S, II, 199.