Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4118/20.5T8MTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ISABEL SILVA
Descritores: AÇÃO SUB-ROGATÓRIA
SUB-ROGAÇÃO
DIREITOS SOCIAIS
COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL DE COMÉRCIO
Nº do Documento: RP202306154118/20.5T8MTS.P1
Data do Acordão: 06/15/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Na sub-rogação (art.º 606º CC), o direito exercido pelo credor sub-rogante é o mesmo que pertencia anteriormente a outro credor.
II - O mecanismo da sub-rogação é de ordem processual, servindo apenas para legitimar o credor a acionar um direito que, sem esse instituto, não o poderia fazer (fenómeno da substituição processual ou modificação subjetiva da relação jurídica).
III - Para além da qualidade de sócio, o critério geral e primacial para distinção entre a jurisdição comum e a comercial é o da natureza societária da relação jurídica em litígio.
IV - O art.º 128º nº 1 al. c) da LOSJ fala em “direitos sociais” e não em “direitos dos sócios, o que nos permite a ilação de que o conceito é mais abrangente, podendo incluir as questões relacionadas com a atividade das sociedades comerciais e não apenas os direitos que assistam aos sócios na sua própria pessoa. Da mesma feita, há que reconhecer que existem direitos dos sócios que nada têm a ver com a especificidade da natureza societária.
V - Quando o direito acionado em sub-rogação é o direito da sociedade sobre os seus sócios relativo à entrega do valor das quotas não liberadas (art.º 26º, 202º, 277º do CSC) merece a qualificação de direito social, porque respeitante a matéria intrínseca das sociedades comerciais do ponto de vista substantivo, como é o caso do capital social.
VI - Uma tal ação é da competência dos Tribunais do Comércio, ao abrigo da al. c) do nº 1 do art.º 128º da LOSJ.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 4118/20.5T8MTS.P1



ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

I – Resenha histórica do processo
1. A..., L.da instaurou ação de sub-rogação e de condenação contra AA e BB, pedindo que o Tribunal se digne:
- Declarar a sub-rogação da Autora nos direitos de crédito de que a sociedade insolvente era titular perante as 1.º e 2.º Rés, relativos ao não pagamento integral das entradas não realizadas no seu capital social, porquanto não se extinguiram as relações jurídicas da sua titularidade, e, subsequentemente, serem as Rés solidariamente condenadas, a favor da Autora, a proceder ao pagamento no montante das entradas não realizadas, designadamente o valor de €27.040,00 (vinte e sete mil e quarenta euros), acrescido de juros até efetivo e integral pagamento;
Ou, se assim não se entender, o que apenas por mera hipótese se coloca,
- Condenar a 1.º e 2.º Rés, pela inobservância culposa de deveres de diligência, cuidado e lealdade, bem como das normas destinadas à proteção dos interesses dos credores, ao abrigo dos artigos 64.º e 78.º do CSC, a indemnizar a Autora na quantia de €3.436,94 (três mil quatrocentos e trinta e seis euros e noventa e quatro cêntimos), sem prejuízo dos juros vincendos até efetivo e integral pagamento;
Ainda, e caso subsista entendimento diverso,
- Condenar a 1.º e a 2.º Rés a indemnizar a Autora no valor de €3.436,94 (três mil quatrocentos e trinta e seis euros e noventa e quatro cêntimos), sem prejuízo dos juros vincendos até efetivo e integral pagamento, por violação de disposições legais protetoras de interesses dos credores, designadamente o da aqui Autora, e consequente responsabilidade civil extracontratual, ao abrigo do artigo 483.º do CC;
Ainda, e em última linha,
- Condenar a 1.º e 2.º Rés, a indemnizar a Autora pelo dano da confiança sofrido, no montante do prejuízo que não teria ocorrido se não tivesse celebrado o negócio, designadamente o valor de € 3.436,94 (três mil quatrocentos e trinta e seis euros e noventa e quatro cêntimos), bem como os juros de mora vincendos até efetivo e integral pagamento.
Em todo o caso,
- Condenar o 1.º Ré a indemnizar a Autora, ao abrigo dos artigos 64.º e 78.º do CSC, pela inobservância dos deveres de lealdade, cuidado e diligência a que se encontrava adstrita e pela insuficiência patrimonial da sociedade, no valor de €3.436,94 (três mil quatrocentos e trinta e seis euros e noventa e quatro cêntimos), sem prejuízo dos juros vincendos até efetivo e integral pagamento;
- Condenar a 1.ª e 2.ª Ré, solidariamente, ao pagamento da quantia de €3.436,94 (três mil quatrocentos e trinta e seis euros e noventa e quatro cêntimos), bem como os juros de mora vincendos até efetivo e integral pagamento.
Alicerçou o seu pedido alegando, em resumo, ter tido relações comerciais de prestação de serviços com a sociedade B..., Lda, da qual as Rés eram sócias e a 1ª, gerente; tendo emitido as competentes faturas, essa sociedade não as liquidou na íntegra, pelo que a Autora instaurou procedimento de injunção, que veio a ser procedente e a sociedade condenada a pagar; como a sociedade não pagou, a Autora instaurou execução; no âmbito das diligências de penhora, foi apurado que a B..., Lda. não tinha bens, nem prestava contas, tendo cessado atividade para efeitos fiscais em 2016; por conseguinte, a Autora requereu a insolvência da devedora B..., Lda., que veio a ser decretada, sendo titular de um crédito sobre esta no montante de €3.462,51; igualmente requereu a qualificação da insolvência como culposa contra as aqui 2 Rés.
Não obstante a B..., Lda., não ter qualquer património ou bens suscetíveis de penhora, e se encontrar insolvente, ela tem um crédito sobre as Rés, consubstanciado nas entradas por elas não realizadas integralmente no capital social. Na verdade, em 2015 o capital social foi aumentado de mil euros para €66.400,00, sendo que as Rés devem €27.040,00 respeitantes a quotas não liberadas. Pretende, pois, a Autora ser sub-rogada à credora B... nesse crédito.
Subsidiariamente, invocou factualidade atinente a demonstrar a culpa das Rés na insuficiência do património social, pretendendo ativar a responsabilidade civil das mesmas, nos termos do art.º 64º do CSC e, subsidiariamente, do art.º 483º do CC.
Apenas contestou a Ré BB, invocando a sua ilegitimidade e a prescrição e impugnando a factualidade alegada pela Autora.
A Autora sustentou a improcedência das exceções.
Após uma troca de requerimentos entre as partes, a Sr.ª Juíza proferiu decisão em que julgou:
«verificada a excepção de incompetência material e, em consequência, declara-se este tribunal absolutamente incompetente por violação das regras de competência em razão da matéria e absolvem-se as RR. da instância, sem prejuízo do disposto no art.º 99º, nº 2 do C.P.C.»

2. Inconformada com tal decisão, dela apelou a Autora, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
«I. O presente recurso tem como objecto a matéria de Direito da sentença proferida nos presentes autos e em que o Tribunal a quo se declarou absolutamente incompetente, em razão da matéria, para julgar a acção proposta pela Recorrente contra as Recorridas, com fundamento no disposto no artigo 30.º do Código das Sociedades Comerciais (CSC), em que a Recorrente peticionava a declaração da sua sub-rogação no direito de crédito de que a sociedade B..., Lda. (entretanto insolvente) era titular perante as Recorridas pelo facto de estas não terem realizado integralmente as entradas no capital social dessa sociedade.
II. Considerando os pedidos formulados na petição inicial e a respectiva causa de pedir, não pode considerar-se estar em causa uma acção enquadrável no artigo 128.º da LOSJ, tão-pouco se tratando de acção relativa a exercício de direitos sociais.
III. A Recorrente não é, nem nunca foi, sócia da sociedade B..., Lda., nem tem qualquer relação com as Recorridas (muito menos societária), para além da que resulta do crédito que pretende reclamar.
IV. Os «direitos sociais» que se integram na referida normal pressuporiam que a Recorrente tivesse a qualidade de sócia, que o direito que visava realizar pela acção se fundasse no contrato de sociedade e que o pedido visasse a protecção de um dos seus interesses sociais (cf., além do mais, os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, no Acórdão de 18 de Abril de 2016, proferido no âmbito do processo n.º 84362/15.3YIPRT.P1, e do Tribunal da Relação de Coimbra, no Acórdão de 8 de Maio de 2019, proferido no âmbito do processo n.º 119/17.9T8CLD.C1).
V. Não se verificam, no caso vertente, os pressupostos para que possa considerar-se estar-se perante o «exercício de direitos sociais», uma vez que a Recorrente não tem a qualidade nem o estatuto de sócia, nenhum direito invocado ou alegado pela Recorrente se alicerça diretamente no contrato de sociedade, nem o pedido formulado visa a proteção de interesses sociais, mas tão-só o seu interesse como credora.
VI. Assim, embora pretendendo a Recorrente sub-rogar-se na posição da referida sociedade relativamente à exigência e realização de entradas não realizadas, não pode considerar-se como estando a mesma a exercer um direito social.
VII. O Tribunal a quo é, pelo exposto, o materialmente competente para a presente acção.
VIII. Em face do exposto, ao decidir como decidiu - i. e., que não é materialmente competente para a presente acção e absolvendo as Recorridas da instância - , o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 128.º e 130.º da LOSJ, 30.º do CSC, e 96.º, alínea a), 97.º e 577.º, alínea a), do CPC, preceitos estes que, isoladamente e/ou conjugadamente, deveriam ter sido interpretados no sentido de que o Tribunal a quo é o materialmente competente para a acção conforme ao que foi configurada pela Recorrente.
Termos em que, e noutros que V. Exas. suprirão, concedendo-se a apelação e revogando-se a sentença revidenda, substituindo-se por outra que julgue inverificada a excepção dilatória de incompetência material e mande prosseguir os autos, far-se-á JUSTIÇA.»

3. Não houve contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO
4. Apreciando o mérito do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art.º 615º nº 1 al. d) e e), ex vi do art.º 666º, 635º nº 4 e 639º nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC).
No caso, uma única questão se nos depara: se o Tribunal de jurisdição comum (Juízo Local de Matosinhos) é competente em razão da matéria para o julgamento da presente ação.

4.1. (in)competência em razão da matéria
Importa começar por explicitar alguns conceitos que importam ao caso.
A incompetência em razão da matéria constitui exceção dilatória, insuprível, de conhecimento oficioso e importando a absolvição da Ré da presente instância: art. 96º al. a), 97º nº 1, 99º, 278º nº 1 al. a) e 577º al. a) do CPC.
Como é sabido, a competência em razão da matéria contende com as diversas espécies de tribunais, comuns ou especiais, estatuindo-se as normas delimitadoras da jurisdição desses tribunais de acordo com a matéria ou o objeto do litígio.
Nos termos do art.º 65º do CPC são as leis de organização judiciária que determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais judiciais dotados de competência especializada.
E, de acordo com o art.º 38º nº 1 da Lei nº 62/2013, de 26.08 (LOSJ, Lei de Organização do Sistema Judiciário), a competência dos tribunais fixa-se no momento em que a ação é proposta.
E, a ser assim, se o que define a propositura da ação é a petição inicial, a competência em razão da matéria terá de ser aferida em função do pedido e da causa de pedir, tal como formulados pelo Autor. [1]

Como é sabido, pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor suscetíveis de penhora (art.º 601º CC). O património do devedor constitui a garantia geral das obrigações.
Um dos ativos do património do devedor são os direitos de crédito que ele tenha sobre terceiro.
Acautelando a posição do credor, a lei admite que o credor possa exercer contra esses terceiros, os direitos de conteúdo patrimonial que competem ao devedor quando este não o faça. Eis o núcleo da sub-rogação. O que está em causa na sub-rogação é a possibilidade de um credor se poder substituir ao seu devedor no exercício do crédito que este tem perante terceiro: art.º 606º CC.
A sub-rogação constitui, pois, um dos meios de conservação da garantia geral das obrigações, provocando uma modificação subjetiva da relação jurídica, na medida em que opera a substituição do credor ao seu devedor.
«A sub-rogação, sendo uma forma de transmissão das obrigações, coloca o sub-rogado na titularidade do mesmo direito de crédito (conquanto limitado pelos termos do cumprimento) que pertencia ao credor primitivo. (…)
A sub-rogação envolve um benefício concedido (umas vezes por uma ou outra das partes; outras, pela lei) a quem, sendo terceiro, cumpre, por ter interesse na satisfação do direito do credor.» [2]
Ou seja, o direito exercido pelo credor sub-rogante é o mesmo que pertencia anteriormente a outro credor.
E, nas palavras de Margarida Lima Rego, a ação sub-rogatória pode assumir uma dupla função: a função conservatória de garantia das obrigações e a função de satisfação do direito de crédito.
«Contudo, se atentarmos na letra da lei, e mais precisamente no disposto no número 2 do artigo 606° do Código Civil, iremos encontrar, como possibilidades de justificação da actuação sub-rogatória, quer o exercício essencial à garantia do direito do credor, ou seja, à manutenção da possibilidade de execução do património do devedor para satisfação do direito do credor, quer o exercício essencial à própria satisfação do direito do credor. (…)
Entendemos que os casos em que o exercício do direito do devedor é essencial à própria satisfação - e já não à garantia — do direito do credor serão os casos em que com a actuação em sub-rogação se visa assegurar, directamente, a possibilidade de cumprimento, voluntário ou coercivo, pelo devedor, de certos deveres de prestar.» [3]
Essencial para o caso é registar que o credor vai exercitar o (mesmo) direito que existia na titularidade do seu devedor.

A incompetência foi decretada por recurso à alínea c) do nº 1 do art.º 128º da LOSJ: “Compete às secções de comércio preparar e julgar: (…) c) As ações relativas ao exercício de direitos sociais”.
Não existindo na lei qualquer definição do conceito, tentemos entender o que são, ou quais são, estes “direitos sociais”.
Entende a Recorrente que os direitos sociais a que alude o preceito pressupõem a qualidade de sócio, qualidade que ela não tem, não invoca, nem pretende acionar.
Em primeiro lugar, é de registar que o art.º 128º nº 1 al. c) da LOSJ fala em “direitos sociais” e não em “direitos dos sócios, o que nos permite a ilação de que o conceito é mais abrangente, podendo incluir as questões relacionadas com a atividade das sociedades comerciais e não apenas os direitos que assistam aos sócios na sua própria pessoa.
Da mesma feita que existem direitos dos sócios que nada têm a ver com a especificidade da jurisdição dos Tribunais do Comércio. Sendo a qualidade de sócio um elemento essencial, ele não é bastante; necessário ainda é que o direito que se pretende exercer se situe no âmbito da relação social enquanto tal e que dela ainda se não tenha autonomizado.
Ou seja, é à natureza do direito, ou da relação jurídica acionada que se deve atender.
«Na verdade, a competência dos Tribunais de comércio prende-se com questões relacionadas com a vida e atividade das sociedades comerciais e das sociedades civis sob forma comercial, não podendo deixar de ser esse o quadro hermenêutico - sistemático e teleológico - que deve orientar o intérprete na determinação do sentido e alcance que o legislador quis atribuir à referida alínea d) do n° 1 do artigo 89° da LOFTJ.» [4]
Na doutrina, também assim o entende Lebre de Freitas, considerando que: «A expressão “direitos sociais” não cobre, assim, na epígrafe que consideramos, uma categoria de direitos, mas sim realidades heterogéneas, perante as quais tanto significa um “direito” respeitante ao funcionamento da sociedade como um direito individual resultante da qualidade de sócio, de credor obrigacionista ou ainda de (qualquer) credor, neste último caso para o fim da liquidação decorrente da invalidade do contrato de sociedade.» [5]
Em termos jurisprudenciais, assim foi entendido nas seguintes decisões:
Acórdão do TRC, de 22/09/2015, processo 5542/13.5TBLRA.C1:
«1. Os direitos sociais são os direitos cuja matriz, directa e imediatamente, se funda na lei societária (lei que estabelece o regime jurídico das sociedades comerciais) e/ou no contrato de sociedade.
2. Podem ser titulares de direitos sociais a sociedade, os sócios, os credores sociais e terceiros.
3. Na atribuição de competência especializada às Secções de Comércio para preparar e julgar as acções relativas ao exercício dos direitos sociais releva a circunstância de estarmos perante matérias que exigem especial preparação técnica e sensibilidade e envolvem dificuldades/complexidades que podem repercutir-se também na respectiva solução.»
Acórdão do TRG, de 23/03/2023, processo 1356/20.4T8BRG.G1:
«III - O conceito normativo de exercício de “direitos sociais”, para efeitos do artigo 128.º, n.º 1, al. c) da LOSJ, deve ser interpretado em sentido amplo, compreendendo não apenas o exercício de direitos dos sócios perante a sociedade, mas todos os direitos da sociedade, dos sócios, dos credores sociais e de terceiros que sejam conferidos pela lei societária ou pelo contrato de sociedade.»
Acórdão do STJ, de 05/07/2018, processo 11411/16.0T8LSB.L1:
«1. Compete aos juízos do comércio, além do mais, a apreciação das ações relativas ao “exercício de direito sociais”, isto é, ao exercício de direitos que emergem especificamente do regime jurídico das sociedades comerciais.»
Podemos então concluir que o critério geral e primacial para distinção entre a jurisdição comum e a comercial é, para além da qualidade de sócio, o da natureza societária/comercial da relação jurídica em litígio.
E, porque para a qualificação do direito é o direito material que importa, olhemos então a situação tal com a Autora a configurou no articulado inicial, e que no essencial é a seguinte:
- A Autora é credora da B..., crédito firmado por sentença judicial transitada em julgado; no decurso do processo executivo que se lhe seguiu foi apurado que a devedora não tinha quaisquer bens, pelo que a Autora requereu a sua insolvência, que veio a ser decretada.
- No âmbito do processo de insolvência, veio a Autora a tomar conhecimento que em 2015 o seu capital social foi aumentado de €1.000,00 para €66.400,00, através de duas entradas, realizadas em dinheiro, por ambas as sócias, no valor de €32.700,00 cada uma.
- As duas sócias, que são as aqui Rés, não realizaram na íntegra a totalidade do aumento do capital social; aliás, as Rés devem €27.040,00, respeitante a quotas não liberadas.
- A título principal, pedem ao Tribunal que declare “a sub-rogação da Autora nos direitos de crédito de que a sociedade insolvente era titular perante as 1.º e 2.º Rés, relativos ao não pagamento integral das entradas não realizadas no seu capital social, porquanto não se extinguiram as relações jurídicas da sua titularidade, e, subsequentemente, serem as Rés solidariamente condenadas, a favor da Autora, a proceder ao pagamento no montante das entradas não realizadas, designadamente o valor de € 27.040,00 (vinte e sete mil e quarenta euros), acrescido de juros até efetivo e integral pagamento”.
- Estribou o seu pedido nos arts.º 30º, 78º, 64º nº 1, b) do CSC e arts.º 606º a 609º e 483º do CC.
Como é bom de ver, o direito aqui acionado é o direito da sociedade B... (credor originário) sobre as Rés relativo à entrega do valor das quotas não liberadas (art.º 26º, 202º, 277º do CSC).
Trata-se, pois, a nosso ver, de um direito social, porque respeitante a matéria intrínseca das sociedades comerciais do ponto de vista substantivo, como é o caso do capital social. A entrada em dinheiro é uma obrigação principal do sócio e contende com a formação do capital social, que é um elemento fundamental das sociedades comerciais de capitais.
«(…) o capital social é elemento não apenas essencial mas essencialíssimo, uma vez que, como sublinha ULIBARRI, desempenha um papel insubstituível. Por um lado, porque é em função dele que se determina o poder dentro da sociedade; por outro, porque o capital social é imprescindível para a própria existência da mesma sociedade, uma vez que os sócios o são unicamente em função da sua entrada em capital, sendo igualmente em função desta que se fixam, em princípio, os seus direitos sociais. Pelo que, conforme sublinham alguns autores, pode dizer-se que o capital social é, nas sociedades de capitais, não apenas funcional mas fundacional; é a própria razão de ser destas sociedades, que, sem ele, não existiriam.» [6]
E tanto assim é que, se o sócio não efetuar a prestação de entrada a que está obrigado, várias consequências podem advir, desde a exclusão do sócio, com perda total ou parcial da quota a favor da sociedade, da divisão proporcional aos outros sócios ou venda a terceiros (art.º 202º a 209º do CSC).
O mecanismo da sub-rogação é de ordem processual, mecanismo que legitima a Autora a acionar um direito que, sem esse instituto, não o poderia fazer. Recordamos o acima referido que se trata de uma substituição processual, uma modificação subjetiva da relação jurídica.
Também Lebre de Freitas, feitas as devidas adaptações (o objeto do estudo do autor refere-se especificamente à ação de responsabilidade do gerente/administrador), faz operar a semelhança com situações idênticas às dos autos, nos seguintes termos: «Quanto ao direito de o sócio se substituir à sociedade no exercício do direito de indemnização contra gerentes e administradores, mediante a propositura da ação de responsabilidade, decorre da posição de sócio e não é dela autonomizável, visto que cessa com a perda desta posição. Trata-se, pois, dum direito social.
Mas este direito tem natureza processual, diversamente dos direitos e poderes adjectivados nos arts. 1479º CPCa 1501º CPC e dos direitos consagrados no art.º 21º-1 CSC: o direito substantivo à indemnização é ¯ e continua a ser ¯ da titularidade da sociedade (art.º 71º-1 CSC); o tribunal aprecia a sua existência, condenando, se for caso disso, o administrador ou gerente numa “reparação a favor da sociedade” (art.º 77º-1 CSC). O mesmo acontece quando a acção é proposta pelo credor, com sujeição ao regime geral dos arts. 606º CC a 609º CC (art.º 78º-2 CSC).
Trata-se, quer no caso do sócio, quer no do credor, da atribuição do direito de acção a um não titular do direito substantivo que se quer fazer valer, pelo que, rigorosamente, não se trata dum direito de controlar a actuação dos órgãos da sociedade, mas do direito de se substituir à sociedade no exercício, por sua conta, dum direito desta. (…)
A norma do art.º 77º CSC é, como em todos os casos de acção sub-rogatória e outros de substituição processual, uma norma de legitimidade processual, que não interfere no objecto da acção. E só este objecto interessa determinar quando se quer saber se certo processo respeita a direitos sociais: a qualificação a fazer é substantiva e não processual; é social, para o art.º 89º-1-c LOFTJ, o direito como tal considerado pelo direito material e a questão é saber se em torno dum direito dessa natureza gira a discussão de mérito entre as partes e há-de incidir a decisão de mérito a proferir pelo tribunal.» [7]
No mesmo sentido, o acórdão do STJ, já referido na sentença, de 26/06/2012, processo 9398/10.1TBVNG.P1.S1:
«2. A demandante, ao invocar as normas e princípios do Código das Sociedades Comerciais que autorizam e conferem o direito de sub-rogação – art. 78º, nº2 – e ao ancorar nesse fundamento – causa de pedir dominante – o pedido de condenação que formula, filia a sua pretensão indemnizatória num direito social, que exerce por via de sub-rogação legal, sendo essa consideração decisiva para definir a competência material do tribunal.
3. Sendo a sub-rogação o ingresso de um terceiro na posição do credor, a prestação se for feita àquele que intervém em substituição, tem a mesma natureza daquela que era devida ao credor titular que se manteve inerte ou renunciou ao seu direito em prejuízo de terceiros, havendo transmissão automática do conteúdo obrigacional, apenas mudando a pessoa do credor; sendo o direito exercido pelo credor que se sub-roga da mesma natureza do crédito daquele por quem intervém, o seu conteúdo não muda: se era um direito social, continuará a sê-lo.»
A satisfação do interesse da Autora concretiza-se num direito de crédito, que pertence a uma sociedade comercial, relativo ao pagamento das entradas não liberadas das Rés no seu capital social, o qual constitui um elemento essencial à vida e relações societárias,
Concluindo, a relação jurídica material em causa nestes autos respeita a direitos sociais, pelo que é da competência dos Tribunais do Comércio.

5. Sumariando (art.º 663º nº 7 do CPC)
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III. DECISÃO
6. Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção cível da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação, mantendo-se o decidido em 1ª instância.

Custas do recurso a cargo da Recorrente.


Porto, 15 de junho de 2023
Isabel Silva
Deolinda Varão
Isabel Rebelo Ferreira
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[1] Não esquecendo que a causa de pedir consiste no ato ou facto jurídico de que emerge o direito que o autor se propõe fazer valer ou «(…) no acervo dos factos que integram o núcleo essencial da previsão da norma ou normas do sistema que estatuem o efeito de direito material pretendido (…).».
[2] Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, vol. II, 7ª edição, Almedina, pág. 346/347.
[3] Margarida Lima Rego, “As Partes Processuais numa Acção em Sub-rogação”, revista Themis, ano VII, nº 13, 2006, pág. 69-70.
[4] Acórdão do STJ, de 19.09.2002 (processo 02B2071), disponível em www.gde.mj.pt, sítio a ter em conta nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem, e ainda no domínio de anteriores versões do preceito aqui em causa.
[5] Em artigo “Do tribunal competente para a acção de responsabilidade de gerente ou administrador de sociedade comercial”, in revista Direito e Justiça, Estudos dedicados ao Professor Doutor Luís Alberto Fernandes, vol. II, pág. 304.
[6] Paulo de Tarso Domingues, “Do Capital Social, Noção, Princípios e Funções”, Coimbra Editora, 2ª edição, 2004, pág. 27.
[7] Artigo citado, pág. 310/311.