Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
104226/15.8YIPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CORREIA PINTO
Descritores: PRESCRIÇÃO PRESUNTIVA
PROFISSÃO LIBERAL
Nº do Documento: RP20170522104226/15.8YIPRT.P1
Data do Acordão: 05/22/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 651, FLS.282-291)
Área Temática: .
Sumário: I - A prescrição presuntiva funda-se na presunção de cumprimento da obrigação e determina a inversão do ónus da prova.
II - Para efeitos de aplicação do artigo 317.º, alínea c), do Código Civil é essencial a natureza dos serviços prestados, mas indiferente a qualificação jurídica da entidade que os presta, nada impedindo que se trate de uma sociedade comercial que tenha por objeto a prestação dos serviços enquadráveis no exercício de profissão liberal.
III - Perante os concretos factos provados (não impugnados em sede de recurso) e estando demonstrado que a requerida não efetuou o pagamento das faturas a que se reportam os autos, nem na sua data de vencimento, nem posteriormente até à presente, não obstante as diligências encetadas pela requerente nesse sentido, não pode o tribunal decidir, na ausência de impugnação da matéria de facto, ignorando tal facto.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 104.226/15.8YIPRT.P1
5.ª Secção (3.ª Secção Cível) do Tribunal da Relação do Porto

Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil):
I - A prescrição presuntiva funda-se na presunção de cumprimento da obrigação e determina a inversão do ónus da prova.
II - Para efeitos de aplicação do artigo 317.º, alínea c), do Código Civil é essencial a natureza dos serviços prestados, mas indiferente a qualificação jurídica da entidade que os presta, nada impedindo que se trate de uma sociedade comercial que tenha por objeto a prestação dos serviços enquadráveis no exercício de profissão liberal.
III - Perante os concretos factos provados (não impugnados em sede de recurso) e estando demonstrado que a requerida não efetuou o pagamento das faturas a que se reportam os autos, nem na sua data de vencimento, nem posteriormente até à presente, não obstante as diligências encetadas pela requerente nesse sentido, não pode o tribunal decidir, na ausência de impugnação da matéria de facto, ignorando tal facto.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I)
Relatório
1. B…, Lda., intentou o presente procedimento de injunção, contra C…, Lda., todos melhor identificados nos autos.
1.1 A requerente alega que, no exercício da sua atividade, prestou à requerida, a pedido desta, os serviços que constam das três faturas que discrimina, no montante global de €5.658,00.
A requerida não efetuou o pagamento das faturas, nem na sua data de vencimento, nem posteriormente e até ao presente, não obstante as diligências encetadas pela requerente nesse sentido, pelo que àquele valor global acrescem os juros de mora vencidos e vincendos, às sucessivas taxas legais aplicáveis, contados desde o vencimento das faturas até ao seu efetivo e integral pagamento, que à data de 6 de julho de 2015 perfazem o montante de €455,44, bem como o reembolso da taxa de justiça, no montante de € 102,00.
Requer a notificação da requerida, no sentido de lhe ser paga a quantia de €6.215,44.
1.2 A requerida deduziu oposição, começando por invocar a prescrição, alegando que não deve à requerente o valor peticionado; duas das faturas estão pagas e está parcialmente paga a terceira, presumindo-se tais pagamentos nos termos do artigo 317.º, alínea c), do Código Civil.
Relativamente ao remanescente da terceira fatura, alega que o pagamento não se realizou porque foi firmado um acordo entre requerente e requerida para isenção de pagamento dos serviços prestados pela requerente, pelas razões que enuncia.
Acresce que a requerente atrasou o cumprimento de obrigações assumidas, o que determinou para a requerida o pagamento de coimas à segurança social, pelo que se deve considerar paga por compensação a quantia peticionada, deduzindo para o efeito reconvenção.
Conclui que a presente injunção deve ser julgada improcedente, por não provada, absolvendo-se a requerida do pedido e que a reconvenção deve ser julgada procedente por provada e a requerente condenada a pagar €3.675,00 à requerida, correspondente ao valor das multas pagas por esta.
1.3 Foi então proferido despacho que não admitiu a reconvenção deduzida pela requerida, não tendo sido questionada esta decisão.
1.4 A requerente veio depois responder ao requerimento de oposição, alegando que as faturas peticionadas no requerimento inicial de injunção, ao contrário do que alega a requerida, não se encontram pagas, não se aplicando a presunção constante do invocado artigo 317.º, alínea c), do Código Civil, por não terem sido os serviços em causa prestados no exercício de qualquer profissão liberal, não operando a prescrição em causa.
Refuta a existência de qualquer acordo com a requerida quanto à isenção de pagamento dos serviços prestados.
Conclui que se devem julgar improcedentes as exceções invocadas e reitera o pedido inicialmente formulado.
1.5 Realizada audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que, depois de fixar a matéria de facto provada e não provada e respetiva motivação, em apreciação de direito e como questão prévia, avaliou a invocada prescrição presuntiva, afirmando a sua improcedência, posto o que apreciou o mérito da ação e, perante os factos provados, julgou a mesma totalmente
procedente e, em consequência, condenou a ré no pedido.
2. A ré, não se conformando com a decisão proferida, veio interpor o recurso que aqui se aprecia, concluindo assim a respetiva motivação:
«A – O recorrente vem recorrer da decisão, por entender que dos elementos apurados ela não devia ter sido proferida, por entender que algumas normas jurídicas, determinantes, foram violadas e outras deveriam ter sido interpretadas e aplicadas num sentido diverso.
1. A injunção foi notificada à ora recorrente em Setembro de 2015.
2. Ré, ora recorrente, alegou o pagamento total das duas primeiras faturas e parcial da última das faturas, nomeadamente alegou ter pago os meses de Julho e Agosto de 2013.
3. Alegou que tal pagamento se presumia nos termos do artigo 317.º c) do Código Civil.
4. Os serviços de assessoria fiscal e contabilidade, contratados pela Ré à Autora enquadram-se, numa atividade, que é uma profissão liberal.
5. A forma como se encontra organizada a entidade que presta os serviços específicos duma atividade liberal é indiferente para a definição do âmbito de aplicação da alínea c) do artigo 317.º
6. O que releva para esse efeito é a própria natureza desses serviços.
7. Mostrando-se volvidos mais de dois anos entre a data em que foram prestados os serviços e o momento em que foi instaurado o procedimento de injunção é forçoso concluir-se pela prescrição do crédito da Autora/apelante.
8. Por profissão liberal entende-se as atividades de carácter intelectual e que sejam desenvolvidas sem subordinação jurídica, entende-se que a prestação de serviços na área da contabilidade é precisamente o exercício de uma profissão liberal.
9. Sendo o crédito derivado de serviços que se enquadram no exercício duma profissão liberal, resulta indiferentes que, no caso, estes tenham sido prestados a uma sociedade ou a uma pessoa singular.
10. Para o efeito de aplicação da norma é a natureza dos serviços em causa e não a qualidade da pessoa que presta, ou a quem os serviços são prestados.
11. A invocação da prescrição presuntiva já contém implícita a alegação de cumprimento, ou seja, a invocação de um facto extintivo do direito contra si deduzido.
12. Mas tal alegação foi acompanhada da alegação expressa de um facto extintivo da obrigação, ou seja, o pagamento.
13. Calvão da Silva, no artigo “A prescrição presuntiva e a armadilha do ónus da prova”, defende que “a alegação da prescrição presuntiva, porque assente na presunção de cumprimento pelo decurso do prazo, contém em si mesma a alegação do cumprimento e sua prova por presunção legal...”, não sendo exigível ao réu/devedor o ónus de alegação expressa do cumprimento.
14. A Ré alegou o cumprimento da obrigação do pagamento do preço relativo aos serviços faturados pela Autora, o que torna ainda mais clara a sua posição e indiscutível a inexistência de qualquer ato contraditório ou incompatível com a presunção legal de cumprimento.
15. A presunção de cumprimento não foi ilidida por qualquer forma, nomeadamente mediante confissão da Ré.
16. A Ré individualizou bem a sua defesa e não tomou posição sobre os factos sobre os quais alegou a prescrição presuntiva.»
Termina afirmando que o presente recurso de apelação deverá ser julgado procedente e, consequentemente, ser revogada ou alterada a sentença proferida pelo Tribunal a quo, na parte em que considera a não aplicação da prescrição presuntiva, substituindo-a por outra que a absolva parcialmente do pedido.
2.2 A autora respondeu, concluindo nos seguintes termos:
«1. A Recorrente alegou que, em razão dos elementos apurados, a douta Sentença não deveria ter sido proferida, argumentando que algumas normas jurídicas determinantes haviam sido violadas e outras deveriam ter sido interpretadas e aplicadas num sentido diverso.
2. Alegou ainda a Recorrente que, no decurso da audiência de discussão e julgamento, teria havido uma infundada inversão do ónus da prova.
3. A Recorrente invocou o pagamento total da FT … e da FT …, assim como o pagamento parcial da FT …, no que concerne aos meses de Julho e Agosto de 2013, com fundamento na alínea c) do artigo 317.º CC, não obstante a douta Sentença ter considerado assente e julgado provado que não efetuou o pagamento das ditas faturas.
4. Os artigos 312.º a 317.º CC reconhecem e garantem as prescrições presuntivas, que se
fundam na presunção do cumprimento, protegendo sobretudo o devedor em situações em que em situações em que subsiste dificuldade na prova.
5. O legislador estabeleceu nas prescrições presuntivas que com o decurso do prazo legal se presume o pagamento da dívida, dispensando o devedor da prova do cumprimento, mas antes onerando o sobre o credor o ónus de ilidir essa mesma presunção, devendo provar o não cumprimento do devedor.
6. As prescrições presuntivas não visam liberar o devedor da satisfação do crédito a que está adstrito, sendo certo que somente o dispensam da prova do seu cumprimento, transferindo para o credor o ónus da prova, designadamente a demonstração do não pagamento.
7. Cabe ao interessado na prescrição presuntiva alegar, expressa e inequivocamente, que efetuou o pagamento, pois só assim ficará dispensado da sua prova.
8. O credor somente prova o não pagamento do crédito por intermédio de confissão expressa ou tácita do devedor originário ou daquele a quem a dívida tiver sido transmitida por sucessão, nos termos e para os efeitos dos artigos 313.º e 314.º CC.
9. A alínea c) do artigo 317.º CC prevê que prescrevem no prazo de dois anos os créditos pelos serviços prestados no exercício de profissões liberais e pelo reembolso das despesas correspondentes.
10. Os serviços prestados pela Recorrida por intermédio de profissionais liberais geram, perante a Recorrente, créditos emergentes do contrato de prestação de serviços e não do exercício da atividade desses mesmos profissionais.
11. A prescrição presuntiva consagrada na alínea c) do artigo 317.º CC somente abarca os créditos de que sejam titulares profissionais liberais emergentes de serviços por si prestados no âmbito da sua profissão, excluindo os créditos de entidades sobre terceiros beneficiários desses serviços, sem embargo da prestação ter sido feita com intervenção de um profissional liberal.
12. A alínea c) do artigo 317.º CC abrange os serviços prestados no exercício de profissões liberais, designadamente de atividades lucrativas por conta própria, que não sejam de natureza comercial ou industrial, mas antes emergentes de uma matriz humanista e intelectual, por si só inconciliáveis com práticas comerciais ou industriais (Ana Prata, in Dicionário Jurídico, pág. 424).
13. A Recorrida não subscreve o que a Recorrente verte nas suas alegações, designadamente que a forma como se encontra organizada a entidade que presta os serviços específicos duma atividade liberal é indiferente para a definição do âmbito de aplicação da alínea c) do artigo 317.º CC, porquanto o que releva é a natureza dos serviços.
14. O escopo das prescrições presuntivas radica sobretudo na proteção do devedor, impedindo que satisfaça mais do que uma vez os créditos a que está adstrito, nomeadamente nas situações em que não é usual solicitar o comprovativo do pagamento ou conservá-lo durante muito tempo.
15. As prescrições presuntivas têm em vista a tutela dos interesses do consumidor comum, abarcando as obrigações emergentes das relações da vida quotidiana, porquanto em regra não possui contabilidade organizada e não tem a preocupação de solicitar e guardar durante muito tempo o recibo comprovativo do pagamento.
16. A Recorrente configura uma sociedade comercial em que todos os pagamentos têm de ser acompanhados de documento de quitação, que deve ser incorporado na sua contabilidade durante alguns anos, conforme resulta da lei.
17. O Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26 de Abril de 2016 expõe que o instituto da prescrição presuntiva não deve estender-se às relações mantidas entre sociedades comerciais com a escrita organizada, não obstante a prestação ter sido executada por intermédio de um profissional liberal, rematando que a Jurisprudência maioritária se tem pronunciado neste sentido.
18. Não obstante a Recorrente alegar a prescrição presuntiva, o caso em apreço não é subsumível na alínea c) do artigo 317.º CC, porquanto não se verificam os pressupostos subjacentes à sua aplicação.
19. Jamais poderia recair sobre a Recorrida o ónus de ilidir a presunção do cumprimento, não lhe competindo a prova da não satisfação dos seus créditos.
20. Na audiência de discussão e julgamento somente operou uma inversão do ónus da prova porquanto cabia efetivamente à Recorrente a prova de que satisfez os créditos a que estava adstrita perante a Recorrida.»
Termina afirmando que deve ser negado provimento ao recurso, mantendo-se a sentença recorrida, com as legais consequências.
3.1 Colhidos os vistos legais e na ausência de fundamento que obste ao conhecimento do recurso, cumpre apreciar e decidir.
As conclusões formuladas pela apelante definem a matéria que é objeto de recurso e que cabe aqui precisar, delas resultando que se impõe a apreciação da seguinte questão:
■ Saber se está em causa, nos presentes autos, um crédito que, em termos de prescrição presuntiva, se enquadra na alínea c) do artigo 317.º do Código Civil (serviços prestados no exercício de profissão liberal).
II)
Fundamentação
1. Factos relevantes.
Antes de avançar na apreciação das questões suscitadas em sede de motivação de recurso e com interesse para a decisão a proferir, importa considerar os factos que foram julgados provados e não provados na sentença que é objeto de recurso e que integralmente se transcrevem.
«Factos provados:
1) A Requerente, no exercício da sua atividade, prestou à Requerida, a pedido desta, no período que vai de 10-04-2013 a 06-07-2015 os serviços que constam das faturas: … no valor de 1.230,00€ emitida e vencida em 10/04/2013; … no valor de 738,00€, emitida e vencida em 10/09/2013; e … no valor de 3.690,00€ emitida e vencida em 01/12/2014; no montante global de 5.658,00€, as quais se venciam no próprio dia da data de emissão;
2) A requerida não efetuou o pagamento das ditas faturas nem na sua data de vencimento, nem posteriormente até à presente, não obstante as diligências encetadas pela requerente nesse sentido;
3) A requerida foi notificada para pagar à requerente, faturas de prestações de serviços de contabilidade;
4) A fatura …, relativa à totalidade dos serviços prestados em 2014 e aos últimos 3 meses de 2013, foi emitida em Dezembro de 2014;
5) Apenas quando a requerida cessou a colaboração com a B…, Lda., é que esta emitiu a fatura …;
6) A Requerente, após o início da prestação de serviços contratada com a requerida, enviou uma proposta de honorários, de onde constavam as suas “incumbências”;
7) Entre outras cabia à requerente B…, Lda.: “assunção da responsabilidade técnica, nas áreas contabilísticas e fiscais, bem como o envio dessas informações para as entidades públicas competentes, pelos meios legalmente definidos na legislação em vigor”;
8) Sendo também da sua responsabilidade a “elaboração do processamento de salários de todos os funcionários e/ou supervisionar a sua elaboração, sempre com a responsabilidade do cumprimento dos atos declarativos, aferindo a sua regularidade e legalidade, bem como todas as obrigações que lhe estão associadas”;
9) A entrega das “declarações de remunerações” dos trabalhadores da requerida na segurança social, apenas foi efetuada em Julho de 2013;
10) Com tais atrasos nas entregas das declarações, a C…, pagou coimas à segurança social que totalizaram 3.675€;
11) A requerida não era acionista da sociedade “D…, SA”;
12) O atraso na entrega das “declarações de remunerações” resultou do facto de a “senha de acesso” ter sido entregue tardiamente pela funcionária da requerida D. E....
Factos não provados:
Não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a decisão da causa, designadamente:
Que a requerida não deve à requerente o valor por ela peticionado;
Que as faturas peticionadas no requerimento de injunção, duas delas, … emitida em 10-04-2013, por serviços prestados até Março de 2013 e … emitida em 10-09-2013, por serviços prestados até Junho de 2013, se encontram pagas;
Que relativamente à fatura … emitida em 1-12-2014, referente aos meses de 1-7-2013 a 31-12-2013, já se encontram pagos os meses de Julho e Agosto;
Que a fatura … foi enviada para a requerida em 27-01-2015 por e-mail;
Que tal deve-se ao facto de haver um acordo entre requerente e requerido para isenção de pagamento dos serviços prestados pela requerente;
Que foi para retribuir o facto de uma empresa, sócia com a totalidade do capital social da requerida, ter investido 5.000€ numa sociedade, “D… S.A”, pertença do sénior manager da B…, Lda., D…;
Que por esse investimento ter sido perdido, uma vez que tal sociedade acabou por ficar insolvente, o Sr. F…, comprometeu-se a não cobrar os serviços prestados pela B…, ora requerente;
Que apenas quando a requerida cessou a colaboração com a B…, Lda., é que esta se apressou a faturar os serviços;
Que conforme combinado com a requerida a empresa requerente deixou de faturar a partir de Setembro de 2013 de forma a equilibrar as contas com a requerida;
Que desde Setembro de 2012 até Maio de 2013, esta obrigação não foi cumprida;
Que o montante das coimas em devido tempo foi imputado à B…, Lda. e por esta foi aceite.
2. A prescrição presuntiva a que se reporta o artigo 317.º, alínea c), do Código Civil.
Pretende a recorrente que, contrariamente ao que é afirmado na sentença recorrida, o crédito reclamado pela autora se enquadra nesta norma.
2.1 Nos termos do artigo 317.º, alínea c), do Código Civil, prescrevem no prazo de dois anos os créditos pelos serviços prestados no exercício de profissões liberais e pelo reembolso das despesas correspondentes.
O Código Civil, nos artigos 300.º e seguintes, regula a matéria relativa à prescrição. Contudo, sob esta designação genérica, a lei regula duas figuras distintas, com enquadramentos diversos, dois tipos de prescrição, a extintiva e a presuntiva.
Nos termos do artigo 304.º do Código Civil, completada a prescrição, tem o respetivo beneficiário a faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou de se opor, por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito, mesmo assumindo o incumprimento. Estamos então perante a prescrição extintiva, a qual configura uma exceção perentória e determina a absolvição do pedido.
Figura diferente é, no entanto, a prescrição presuntiva, a qual, nos termos do artigo 312.º do Código Civil, se funda na presunção de cumprimento da obrigação cuja satisfação se pretendia. Visa-se deste modo proteger o devedor contra o risco de satisfazer em duplicado uma dívida em relação à qual não é usual exigir ou guardar durante muito tempo o respetivo recibo – cf. Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, volume I, 3.ª edição, página 280, em anotação ao artigo 312.º.
Nas palavras do Prof. Vaz Serra (“Revista de Legislação e de Jurisprudência”, ano 109, pág. 246), «as prescrições presuntivas são presunções de pagamento, fundando-se em que as obrigações a que se referem costumam ser pagas em prazo bastante curto e não é costume exigir quitação do seu pagamento; decorrido o prazo legal presume, pois, a lei que a dívida está paga, dispensando assim o devedor da prova do pagamento, prova que lhe poderia ser difícil, ou até impossível, por falta de quitação».
Em consideração destas características, ocorre então uma inversão do ónus da prova, porquanto, cabendo geralmente ao devedor fazer a prova do cumprimento – artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil – passa a caber ao credor provar que foi omitido o pagamento. Atenta, no entanto, a particular natureza das obrigações em questão, bem como a presunção de pagamento que passa a existir, os meios de prova admissíveis para o efeito são restritos, apenas podendo provir do próprio devedor, através de confissão judicial e extra judicial, conforme disposto nos artigos 313.º e 314.º do Código Civil.
Por não ter natureza extintiva, assentando na presunção de cumprimento da obrigação pelo decurso do tempo, a prescrição presuntiva não confere ao devedor a faculdade de recusar a prestação ou de se opor ao exercício do direito.
Daí que, a ocorrer a referida prescrição, ela determine apenas a inversão do ónus da prova nos termos supra referidos – isto, sem prejuízo de entretanto poder ocorrer o prazo de prescrição extintiva (neste sentido, Prof. Vaz Serra, “Prescrição Extintiva e Caducidade”, BMJ, n.º 106, pág. 53).
Também por essa razão, a invocação da prescrição presuntiva é incompatível com a discussão da própria natureza, validade ou montante da obrigação e, genericamente, com tudo o que possa pôr em causa a presunção que se invoca.
Nas palavras do artigo 314.º do Código Civil, considera-se confessada a dívida se o devedor se recusar a depor ou a prestar juramento no tribunal, ou praticar em juízo atos incompatíveis com a presunção de cumprimento.
A confissão de factos, especificamente, a confissão do não pagamento, pode ser efetuada espontânea e expressamente ou de modo tácito, a que se reporta a parte final da norma que se deixou citada.
«Ao apreender o espírito das prescrições presuntivas não podemos deixar de lado o princípio da boa-fé processual: as prescrições presuntivas não foram criadas para libertar o devedor do cumprimento da sua obrigação, mas tão só de o libertar do ónus de provar que pagou» (Acórdão da Relação de Lisboa, de 16 de Junho de 1992, publicado no tomo 3/1992 da “Colectânea de Jurisprudência”, pág. 206 a 209). Por isso, existe confissão tácita quando o devedor não impugna factos alegados na ação pelo credor que conduzem ao não pagamento.
Importa também salientar que «a alegação da prescrição presuntiva, porque assente na presunção de cumprimento pelo decurso do prazo, contém em si mesma a alegação do cumprimento e sua prova por presunção legal, não podendo, por conseguinte, valor como confissão tácita de dívida a não impugnação expressa, direta e especificada, da falta de pagamento alegada pelo autor/credor» – Calvão da Silva, “A prescrição presuntiva e a armadilha do ónus da prova”, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 138.º, n.º 3956, página 269.
2.2 Na sentença recorrida afirma-se a improcedência da exceção de prescrição em causa, expressando-se para o efeito os seguintes fundamentos (transcrição parcial):
«As razões da concessão do referido benefício ao devedor prendem-se com as características dos negócios aos quais se aplica. Com efeito, estamos perante relações contratuais: a) em que, normalmente, o pagamento coincide com o fornecimento do bem ou prestação do serviço ou é efetuado em prazo bastante curto; b) em que, usualmente, não é facultado/exigido recibo ou o mesmo não é conservado ou o não é por um período de tempo significativo; c) o credor, dotado de uma dada estrutura, exerce uma certa atividade com carácter habitual, regular e lucrativo, pelo que é lícito esperar a cobrança célere dos seus créditos; d) o devedor, ao invés, apresenta-se como um mero consumidor, a usufruir a título particular dos bens que lhe são fornecidos ou dos serviços que lhe são prestados, não sendo de prever que disponha de arquivos documentais que lhe permitam provar o pagamento.
É a este conjunto de características que apelam os artigos 316.º e 317.º do Código Civil quando usam as expressões “estabelecimentos”, “comerciantes”, “exercício profissional de uma indústria” ou “exercício de profissões liberais”, por um lado, e “não comerciantes”, “não destinados ao seu comércio” ou “não destinados à sua indústria”, por outro.
Uma das razões adiantadas para que o crédito de uma sociedade comercial sobre outra, emergente de um contrato de prestação de serviços em que reciprocamente se vincularam, não caber na previsão da al. c) do art.º 317.º do Código Civil, ainda que tal prestação seja feita com a intervenção de profissional liberal, resulta do facto de uma sociedade, enquanto tal e dada a sua própria natureza, não exercer nenhuma profissão.
Assim, ainda que a autora prestasse os seus serviços através de profissionais liberais, o crédito da autora emerge do contrato de prestação de serviços e não do exercício da atividade de tais profissionais, sendo certo que a prescrição presuntiva, apenas abarca os créditos de que sejam titulares os profissionais liberais, emergentes de serviços prestados, ou despesas efetuadas, no âmbito da respetiva profissão, não se estendendo aos créditos de quaisquer outras entidades sobre os terceiros beneficiários de tais serviços.
Pois, o crédito de uma sociedade comercial sobre outra, emergente de um contrato de prestação de serviços em que reciprocamente se vincularam, não cabe na previsão da al. c) do art.º 317.º do Código Civil, ainda que tal prestação seja feita com a intervenção de profissional liberal – cfr. de entre outros os Acs. da RL de 21-11-2013, proferido no processo n.º 196990/12.8YIPRT.L1-6, e de 12-10-2010, proferido no processo n.º 843/08.7TJLSB.L1-7, disponíveis na internet, no site do ITIJ.
(…) O sujeito beneficiário da presunção de cumprimento é o consumidor comum que, em regra, não possui contabilidade organizada e não tem a preocupação de solicitar e/ou guardar, por muito tempo, o recibo comprovativo do pagamento – cfr. Almeida Costa, in Direito das Obrigações, 4.ª edição, pág. 795.
(…) Todavia, no caso dos autos, tal circunstancialismo não se verificará, porquanto, se trata de sociedades comerciais, onde todos os pagamentos têm necessariamente de ser acompanhados de documento de quitação e este deve ser incorporado na contabilidade da sociedade e aí permanecer por alguns anos como resulta da lei.
(…) É, assim, justificável que se considere não ser aplicável o regime da prescrição presuntiva quando esteja subjacente ao crédito judicialmente exigido uma obrigação relativamente à qual é usual, contra o pagamento, emitir-se documento de quitação e bem assim quando é expectável
quer porque é usual e regra, quer porque é dever legal que o devedor proceda à guarda e conservação de tal recibo de quitação – designadamente em casos em que o devedor tem a preocupação de exigir o recibo comprovativo do pagamento, conservando-o no seu arquivo contabilístico, mais ou menos organizado.
A inaplicabilidade do regime da prescrição presuntiva em tais casos assenta na consideração de que nenhuma tutela especial demanda o devedor, pois não corre o risco de ter de cumprir duas vezes, por estar impedido de comprovar, com o documento de quitação, a satisfação da obrigação – nestes casos o devedor não tem qualquer dificuldade de prova do pagamento, pois, o documento de quitação é exigido, é emitido e é conservado em arquivo contabilístico – cfr. Ac. da RP de 23-02-2012, proferido no processo n.º 154791/10.9YIPRT-A.P1, disponível na internet, no site do ITIJ.»
A recorrente questiona este entendimento, pretendendo que opera a prescrição presuntiva relativamente a crédito derivado de serviços que se enquadram no exercício duma profissão liberal, independentemente de terem sido prestados a – ou por – uma sociedade ou uma pessoa singular.
Importa salientar que em sede de jurisprudência se assinalam leituras divergentes, no que concerne ao alcance da norma do artigo 317.º, alínea c), do Código Civil, relativamente a sociedades.
A decisão recorrida acompanha o entendimento expresso nos acórdãos que cita, proferidos pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no âmbito dos processos n.º 196990/12.8YIPRT.L1-6 e n.º 843/08.7TJLSB.L1-7 [ambos disponíveis na base de dados informática do IGFEJ (www.dgsi.pt)], onde se considera que o crédito de uma sociedade comercial sobre outra, emergente de um contrato de prestação de serviços em que reciprocamente se vincularam, não cabe na previsão da alínea c) do artigo 317.º do Código Civil, ainda que tal prestação seja feita com a intervenção de profissional liberal.
Em sentido divergente, o Supremo Tribunal de Justiça (acórdão proferido em 12 de setembro de 2006, no âmbito do processo 06A1764, disponível na mesma base de dados), considerou que os serviços na área da contabilidade, traduzidos em consultoria fiscal, designadamente a realização de estudos económicos e análises contabilísticas e o acompanhamento de processos administrativos e burocráticos, enquadram-se substancialmente no exercício duma profissão liberal, sendo que, para efeitos de aplicação do artigo 317.º, alínea c), do Código Civil é essencial a natureza dos serviços prestados, mas indiferente a qualificação jurídica da entidade que os presta, nada impedindo que se trate uma sociedade comercial tendo por objeto a prestação dos serviços antes referidos.
Afirma-se neste acórdão:
«A prescrição presuntiva, portanto, tem um carácter diferente da prescrição comum; nesta, basta ao devedor invocar e provar a inércia do credor no exercício do direito durante o tempo fixado na lei; naquela, exatamente porque só se presume o cumprimento, o devedor carece de provar os elementos (requisitos) que a caracterizam e definem. No caso ajuizado, o elemento fulcral é o tratar-se de créditos por serviços prestados no exercício de profissão liberal. Ora, tal elemento está demonstrado, contrariamente ao que a autora, recorrida, sustenta. Na verdade, encontra-se provado que a autora é uma sociedade por quotas que tem por objeto a prestação de serviços na área da contabilidade, sendo certo que os serviços que estão na base dos honorários reclamados se traduziram, essencialmente, em consultoria fiscal (segundo a petição, a autora efetuou para a ré, conforme o contratado, estudos económicos, análises contabilísticas e trabalhos de organização empresarial, efetuou pedidos de isenções e acompanhou os processos administrativos e burocráticos, obtendo benefícios fiscais para a ré). Serviços, portanto, que substancialmente se enquadram no exercício duma profissão liberal, sendo indiferente para o legislador a qualificação jurídica da entidade que os presta; tanto da letra como do espírito da norma resulta que o critério de subsunção ao preceito em análise se define unicamente pela natureza dos serviços em causa, e não da entidade que os presta».
Neste Tribunal da Relação do Porto regista-se que a matéria em questão foi apreciada, nomeadamente, no acórdão proferido em 29 de maio de 2012, no âmbito do processo 212/11.1TVPRT.P1, onde se afirma que é enquadrável na previsão da alínea c) do artigo 317.º do Código Civil o crédito de uma sociedade por quotas resultante de serviços prestados ao réu no âmbito de um projeto de arquitetura com este contratado, quando o objeto social daquela consiste, precisamente, na prestação de serviços de elaboração de projetos de tal natureza e respetivo licenciamento, mediante a cobrança de honorários, isto porque o que releva para o efeito é a natureza dos serviços em causa e não o facto de serem prestados por uma pessoa singular ou por uma sociedade comercial.
Ainda na Relação do Porto, afirma-se no acórdão proferido em 24 de março de 2015, no âmbito do processo 102608/13.9YIPRT.P1 (disponível, como o anterior, na base de dados antes referida), apreciando prestação de serviços de advocacia:
« (…) Será que ao crédito da Autora, que é uma sociedade de advogados, não se aplica o prazo de prescrição de dois anos?
A apelante estriba-se no acórdão da Relação de Lisboa de 12.10.2010 [processo 843/08.7TJLSB.L1-7, antes referido] para responder afirmativamente a essa questão.
Nesse acórdão, que versava sobre um crédito de uma sociedade cuja atividade era a prestação de serviços de contabilidade, escreveu-se, designadamente, o seguinte:
“ (…) o crédito da requerente não cabe na previsão da alínea c) do mencionado artigo porquanto não emerge do exercício de profissão liberal pois, como é intuitivo, uma sociedade, enquanto tal e dada a sua própria natureza, não exerce nenhuma profissão.
Ora, mesmo que a autora prestasse os seus serviços através de profissionais liberais (facto nem sequer alegado), o crédito da recorrente emerge do contrato de prestação de serviços e não do exercício da atividade de tais profissionais.
Ou seja, a prescrição presuntiva invocada pela recorrida apenas abarca os créditos de que sejam titulares os profissionais liberais, emergentes de serviços prestados (ou despesas efetuadas) no âmbito da respetiva profissão, não se estendendo aos créditos de quaisquer outras entidades sobre os terceiros beneficiários de tais serviços.”
Divergimos deste entendimento.
Os serviços de consulta jurídica especializada, contratados pela Ré à Autora (pontos 1. e 2. dos factos provados), enquadram-se, substancialmente, na atividade da advocacia, que é, como todos sabem, uma profissão liberal.
A forma como se encontra organizada a entidade que presta os serviços específicos duma atividade liberal é indiferente para a definição do âmbito de aplicação da alínea c) do artigo 317.º, pois o que releva para esse efeito é a própria natureza desses serviços. E estes são, indiscutivelmente, específicos do exercício da advocacia».
Acompanha-se este entendimento, isto é, que para efeitos de aplicação do artigo 317.º, alínea c), do Código Civil é essencial a natureza dos serviços prestados, mas indiferente a qualificação jurídica da entidade que os presta, nada impedindo que se trate de uma sociedade comercial que tenha por objeto a prestação dos serviços enquadráveis no exercício de profissão liberal.
2.3 Perante este entendimento, importa determinar as suas implicações no caso dos autos, nomeadamente, se impõe a revogação ou alteração da sentença proferida, com a absolvição parcial do pedido, como pretende a recorrente.
A resposta aqui é negativa.
Analisada a matéria de facto provada, não se vê caracterizada, de modo concreto, a atividade da autora, em termos que permitam afirmar de modo seguro e incontroverso o efetivo exercício de profissão liberal. Sobre a ré recaía o ónus da prova, pelo que a ausência da aludida caracterização reverte em seu prejuízo.
Mas mesmo que se entenda que se caracteriza o exercício de profissão liberal, sempre o recurso improcede ao pretender a revogação ou alteração da sentença proferida, com a absolvição parcial do pedido.
A apreciação a fazer assenta nos factos provados, acima transcritos. Aí se inclui o seguinte:
«1) A Requerente, no exercício da sua atividade, prestou à Requerida, a pedido desta, no período que vai de 10-04-2013 a 06-07-2015 os serviços que constam das faturas: … no valor de 1.230,00€ emitida e vencida em 10/04/2013; … no valor de 738,00€, emitida e vencida em 10/09/2013; e … no valor de 3.690,00€ emitida e vencida em 01/12/2014; no montante global de 5.658,00€, as quais se venciam no próprio dia da data de emissão;
2) A requerida não efetuou o pagamento das ditas faturas nem na sua data de vencimento, nem posteriormente até à presente, não obstante as diligências encetadas pela requerente nesse sentido.»
Como antes se assinalou, a prescrição presuntiva, por não ter natureza extintiva, assentando na presunção de cumprimento da obrigação pelo decurso do tempo, não confere ao devedor a faculdade de recusar a prestação ou de se opor ao exercício do direito, apenas determinando a inversão do ónus da prova nos termos antes referidos.
A recorrente não questiona, em sede de recurso, a matéria provada e não provada e,
especificamente, o parágrafo 2 que se deixa transcrito.
A afirmação de que, para efeitos de aplicação do artigo 317.º, alínea c), do Código Civil é indiferente a qualificação jurídica da entidade que presta os serviços, nada impedindo que se trate uma sociedade comercial, não implica como consequência necessária a alteração da matéria de facto.
Ao não impugnar a matéria de facto provada, a recorrente está a admitir a mesma.
A prescrição extintiva levaria a que, mesmo perante este reconhecimento, a recorrente pudesse opor ao credor, com sucesso, a extinção do crédito e a recusa de cumprimento.
A situação é diversa no caso da prescrição presuntiva, como antes se assinalou, em que há apenas a inversão do ónus da prova.
Não tendo sido impugnada a matéria de facto, em sede de recurso, não pode o tribunal alhear-se dos concretos factos provados. Estando demonstrado que a requerida não efetuou o pagamento das faturas a que se reportam os autos, nem na sua data de vencimento, nem posteriormente até à presente, não obstante as diligências encetadas pela requerente nesse sentido, não pode o tribunal decidir, na ausência de impugnação da matéria de facto, ignorando tal facto.
III)
Decisão:
Pelas razões que se deixaram expostas decide-se julgar improcedente o recurso, ao pretender a revogação ou alteração da decisão proferida.
Custas a cargo da recorrente.
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Porto, 22 de Maio de 2017.
Correia Pinto
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes