Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3668/18.8T8STS-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULO DIAS DA SILVA
Descritores: INSOLVÊNCIA CULPOSA
PRESUNÇÕES
MONTANTE INDEMNIZATÓRIO
CRITÉRIO DE FIXAÇÃO
Nº do Documento: RP202204213668/18.8T8STS-B.P1
Data do Acordão: 04/21/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – “Nos termos do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham praticado qualquer facto enunciado nas suas várias alíneas.
II - Do advérbio “sempre”, retiram a doutrina e a jurisprudência, de forma pacífica, a conclusão de que a presunção estabelecida pela norma, relativamente aos comportamentos enunciados nas suas várias alíneas tem natureza inilidível ou iuris et de iure.
III - Contrariamente, o n.º 3 do citado normativo consagra mera presunção ilidível ou iuris tantum, de existência de culpa grave, sempre que se verifique a omissão das condutas ali previstas”.
IV - A al. e) do nº 2 do art.º 189º do CIRE deve ser interpretada em termos hábeis quando conjugada com o subsequente nº 4: a indemnização não pode ultrapassar a diferença entre o valor dos créditos reconhecidos e o que é pago aos credores pelas forças da massa insolvente, e também não pode ser desproporcional relativamente à gravidade da situação prejudicial criada pelo afectado na insolvência, aproximando-se do valor dos danos efectivamente causados, sem esquecer que tem também natureza sancionatória.
V - Entendemos que a indemnização devida não pode ser fixada em montante igual ao dos créditos reconhecidos no processo de insolvência e que não obterão pagamento, mas fazendo apelo a um juízo equitativo, ponderando a culpa do afectado, que deverá responder apenas na medida em que o prejuízo possa/deva ser atribuído ao acto ou actos determinantes dessa culpa.
VI - Tal interpretação sai reforçada com a alteração da alínea e) emergente da Lei n.º 9/2022, de 09 de Janeiro.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação - 3ª Secção
ECLI:PT:TRP:2022:3668/18.8T8STS-B.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
Por apenso aos autos de insolvência n.º 3668/18.8T8STS.P1 em que foi declarada insolvente a sociedade “M... Unipessoal, Lda.” foi autuado o presente incidente de qualificação da insolvência.
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A Sr.ª Administradora da Insolvência veio, nos termos do disposto no artigo 188º, n.º 2 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, apresentar parecer, propondo a qualificação da insolvência de “M... Unipessoal, Ld.ª” como culposa, fundamentando tal proposta em factos que traduzem a violação do disposto no artigo 186º, n.º 2, alínea d) e n.º 3, alínea a) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
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Cumprido o disposto no artigo 188º, n.º 3 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o Ministério Público emitiu parecer de concordância com a qualificação da insolvência como culposa, aderindo à posição da Administradora de Insolvência.
Ambos requereram a afectação de AA e BB.
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O requerido BB foi citado editalmente.
Foi nomeado patrono oficioso ao mesmo, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 21.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, que não apresentou contestação.
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Citada, a requerida AA apresentou contestação, pugnando pela qualificação da insolvência como fortuita.
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Notificado, o Sr. Administrador da Insolvência respondeu.
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Foi proferido despacho saneador.
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Realizou-se audiência de discussão e julgamento com observância das formalidades legais
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Após a audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença na qual se decidiu:
“a) Qualificar a insolvência da devedora “M... Unipessoal, Ld.ª” como culposa;
b) Declarar afectados por essa qualificação AA e BB, aos quais se atribui culpa média;
c) Decretar a inibição de AA e BB para administrar patrimónios de terceiros e para o exercício do comércio, bem como para ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa pelo período de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses;
d) Declarar perdidos quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente eventualmente detidos por AA e BB e a restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos, caso tenham tido lugar
e) Condenar os afectados AA e BB, solidariamente e no montante correspondente a 50% dos créditos não satisfeitos, a indemnizar os credores da devedora/insolvente “M... Unipessoal, Ld.ª”, até às forças do respectivo património, pelo valor dos créditos que sejam incluídos na lista definitiva de credores.”
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Não se conformando com a decisão proferida, veio a requerida AA, interpor o presente recurso de apelação, em cujas alegações conclui da seguinte forma:

I. Foi a Recorrente notificada da sentença proferida, nos termos da qual o Tribunal a quo decidiu:
a) Qualificar a insolvência da devedora M... Unipessoal, Ld.ª como culposa;
b) Declarar afetados por essa qualificação AA e BB, aos quais se atribui culpa média;
c) Decretar a inibição de AA e BB para administrar patrimónios de terceiros e para o exercício do comércio, bem como para ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa pelo período de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses;
d) Declarar perdidos quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente eventualmente detidos por AA e BB e a restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos, caso tenham tido lugar
e) Condenar os afetados AA e BB, solidariamente e no montante correspondente a 50% dos créditos não satisfeitos, a indemnizar os credores da devedora/insolvente M... Unipessoal, Ld.ª, até às forças do respetivo património, pelo valor dos créditos que sejam incluídos na lista definitiva de credores.”

II. A decisão fundamenta-se no facto de se mostrarem “preenchidas as causas de qualificação da insolvência como culposa, previstas no art. 186º, n.º 2, al. d) n.º 3, al. a) do CIRE, sendo que as pessoas responsáveis por estes atos culposos foram AA e BB, a primeira por ser gerente de direito, constando como tal no registo comercial, e também gerente de facto a partir de meados de 2016, e o segundo por ser gerente de facto da insolvente até meados de 2016.”

III. Não pode a Recorrente conformar-se com tal decisão, pelo que vem impugná-la de facto e de direito nos termos das disposições conjugadas dos artigos 9.º, n.º 1 e 14.º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresa e 627.º, n.º 1, 638.º, n.º 1 e 7, 639.º, 640.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil.

DA NULIDADE DA SENTENÇA
IV. Incorre a douta sentença em nulidade, nos termos do disposto no artigo 615º, n.º 1, alínea d), 1.ª parte, do Código de Processo Civil, por falta de pronúncia, na medida em que o M.mo Juiz a quo deixou de se pronunciar sobre factos que lhe cumpria conhecer, por terem sido invocados e com relevância para a decisão,

V. Não cuidou o Tribunal a quo de se pronunciar sobre os esforços da ora recorrente no sentido de evitar a insolvência, no período em que, além de gerente de direito, efetivamente assume as funções de gerente de facto, os quais foram invocados nos pontos 26º a 29º da Oposição ao Incidente de Qualificação de Insolvência e resultaram provados em sede de discussão e julgamento – factos manifestamente relevantes para a decisão da causa, no sentido de aferir do grau de participação/responsabilidade da ora recorrente na situação da insolvência, e cuja apreciação foi colocada ao tribunal recorrido.

VI. Como, aliás, ficou consignado no início da audiência. (CD - FICHEIRO 20210908100728_15457905_3995017, minuto 00:47: “Ó Srª Drª, há aqui uma coisa que importa ficar perfeitamente claro. É que, na circunstância de se verificar alguma das presunções do artigo 186º, n.º 2, do CIRE, o gerente de direito é sempre afetado pela qualificação. A orientação jurisprudencial é totalmente nesse sentido.
Portanto, por muito esforço que haja da senhora querer distanciar-se, a verdade é que ela é gerente de direito, assumiu essa condição e sofre as consequências dessa situação. Portanto, isto é apenas um alerta porque, porventura poderá ser inglório, um esforço processual no sentido de demonstrar que a senhora estava alheada, a verdade é que a senhora era gerente de direito e quando o legislador criou essa norma não foi para afastar o gerente de direito, foi para alargar ao gerente de facto essa responsabilidade no sentido da afetação pela insolvência culposa.
”MANDATÁRIA : “Eu tenho perfeita noção disso.”
JUIZ: “Pronto, Sr.ª Drª, existindo essa noção, a Srª Drª poderá tentar demonstrar que ela estaria alheia à vida da sociedade, mas a verdade é que era a gerente de direito e isso não está contestado no processo.”
MANDATÁRIA : “Sabendo disso de antemão, não só tentarei, como é óbvio, abordar esse assunto, tanto mais para averiguar o grau da culpa, que eu acho que é importante, designadamente para efeitos da medida, de facto, mas veremos se, de facto, as presunções serão…poderão ou não estar verificadas.”

VII. Porém, o Tribunal recorrido omitiu tal factualidade, não tendo, sequer, sido apresentada qualquer fundamentação para sustentar tal omissão ou para os excluir seleção de factos.

DA MATÉRIA DE FACTO
VIII. O erro notório na apreciação da prova consiste num vício no apuramento da matéria de facto, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, é o que nos parece ter acontecido nestes autos.

IX. Porquanto, salvo o devido respeito, não podiam ter sido considerados provados ou carecem de aditamentos e esclarecimentos os factos constantes dos pontos 6, 7, 10, 12, 13, 14, 15, 16, 26, 27, 28.

X. Quanto aos pontos 6, 7, 26, 27 e 28 o Tribunal a quo considerou provado que “
…”6. No período entre 20 de janeiro de 2014 e meados de 2016, a gerência de facto da sociedade foi exercida única e exclusivamente pelo requerido BB, pai da gerente de direito e requerida AA, passando esta a exercer em exclusivo tais funções desde meados de 2016.
7. Até meados de 2016, não obstante fosse gerente de direito, a requerida AA nunca havia participado na vida social/financeira da sociedade insolvente.
(…)
26. Até meados de 2016, a requerida AA nunca tomou qualquer decisão de pagamento a fornecedores, trabalhadores ou ao Estado.
27. Até meados de 2016, foi sempre o requerido BB a lidar com os fornecedores, quer comprando, quer pagando; a lidar com o Técnico Oficial de Conta da sociedade insolvente, a quem entregava os documentos necessários para a contabilidade; a emitir as faturas aos clientes e recebia destes os respectivos pagamentos.
28. Até meados de 2016, a requerida AA nunca esteve envolvida no giro e funcionamento comercial da insolvente, nunca acompanhou e controlou a condução da atividade da sociedade, nunca teve poder decisório sobre o destino da empresa, nunca contratou com terceiros em nome da empresa, nunca admitiu ou despediu, nunca exerceu poderes de chefia, nunca praticou atos de comando, ou deu instruções ou ordens aos empregados, nunca fez pagamentos a fornecedores ou credores, ou sequer encomendas, nem tão pouco contactos com clientes, fornecedores ou credores.”

XI. Contudo, tais factos carecem de esclarecimentos que foram omitidos pelo Tribunal a quo e que foram prestados pelas testemunhas em sede de audiência e julgamento.

XII. A factualidade ora em causa terá, de acordo com o vertido na motivação, sido considerada provada em face do depoimento das testemunhas CC, contabilista certificado (anteriormente denominado TOC) da sociedade insolvente M..., o qual, de acordo com o Tribunal a quo“…num depoimento espontâneo, objetivo, coerente e devidamente fundamentado, merecedor por isso da credibilidade que o Tribunal lhe conferiu, apontou o período correspondente a meados de 2016, como aquele em que, apercebendo-se do avolumar das dívidas à Segurança Social, alertou a requerida AA para a necessidade de assumir as respetivas responsabilidades enquanto gerente da M..., dizendo-lhe “AA, tens mesmo de ser tu a gerir”, passando desde então (“a partir de 2016”) a ser “mais ativa na vida da sociedade”, da qual passou a “tomar rédeas”, deixando desde então o seu pai e requerido BB de intervir na gestão da empresa“.

XIII. Atentemos, então, no depoimento da testemunha CC, gravado através do sistema integrado de gravação, que, em momento algum, afirma que a AA assumiu as funções de gerente de facto em junho de 2016 (CD – FICHEIRO 20210908105221_15457905_3995017, Minuto 06:41)
ADVOGADA: “Esta [sociedade] foi aberta por quem?”
CC: “Quem veio ter comigo foi o Sr. BB e, posteriormente, quando fui constituir fui com a AA.”
ADVOGADA: “A AA na altura, o quê que fazia?”
CC: “A AA provavelmente teria terminado de estudar, era muito nova.”
ADVOGADA: “Era muito nova na altura?”
CC: “Sim.”
ADVOGADA: “O que lhe pareceu, nessa altura, e depois, nos meses seguintes, quem é que tratava…de gerir?”
CC: “Quem tratava comigo era o Sr. BB.”
ADVOGADA: “Sempre tratou consigo?”.
CC: “Sim”.
ADVOGADA: “E pagamentos, sabe alguma coisa?”
CC: “Os pagamentos eram feitos por transferência bancária, ou seja, eu enviava, e continuo com esse mesmo método, envio as faturas por e-mail para os clientes e os pagamentos eram feitos por transferência bancária.
Mas quando eu me dirigia às instalações para levantar a documentação, que é um método que eu tenho, contactava sempre com o Sr. BB.”
ADVOGADA: “Olhe, e em termos de contratação de funcionários? Eu sei que muitas vezes estas coisas também passam pelos contabilistas?”
CC: “Claro que sim.”
ADVOGADA: “Quem é que pedia os documentos?”
CC: “O Sr. BB.”
ADVOGADA: “Desculpe?”
CC: “O Sr. BB.”
ADVOGADA: “A AA entra mais tarde?”
CC: “A AA entra mais tarde quando eu próprio falo com ela e lhe digo que ela tem uma responsabilidade sobre a empresa porque a empresa foi constituída por ela, na minha presença, é ela a detentora da quota e é ela a gerente e que realmente tem que, de facto tem de fazer alguma coisa porque senão, e desculpem-me a expressão, ficaria com o futuro comprometido e denegrido.”
JUIZ: “Quando foi esse contacto?”
CC: “Quando foi…desculpe?”
JUIZ: “Esse contacto?”
CC: “O contacto foi quando eu comecei a ver a nível de dívidas para com a Segurança Social, que mês após mês não me aparecia o comprovativo do pagamento, ou seja, não me era enviado juntamente com a documentação da contabilidade, destas faturas, o respetivo pagamento.”
JUIZ: “E isso foi em meados de?”
CC: “Não lhe posso precisar.”
JUIZ: “Tendo por referência o ano em que deixou de trabalhar, em 2018, essas dívidas…”
CC: “Provavelmente, a empresa em 2018 entra em insolvência, provavelmente em 2016, mas não posso agora dizer o momento exato, sei que lhe chamo a atenção e falo com ela e digo: AA, tens que passar a ser mesmo tu a gerir porque a situação é esta e inteirei-a cem por cento da situação , ou seja, as dívidas que a empresa tinha para com a Segurança Social, a nível de Autoridade Tributária também tinha, mas a AA daí em diante fez sempre um esforço muito grande porque, acima de tudo, foi o que eu lhe disse, tens que resolver a situação e é mais penoso a questão da dívidas para com a AT, por causa das multas que são aplicadas - são muito graves, são gravosas, e a AA sempre fez um esforço maior com a Autoridade Tributária, também tentou fazer com a Segurança Social, mas….”
JUIZ: “Olhe, ela tinha...disse que ela era muito nova quando a sociedade foi constituída, mas tinha habilitações, tinha um curso superior?
CC: “Não”
JUIZ: “Não tinha?”
CC: “Não, não.”
JUIZ: “Disse que era estudante…?”
CC: “Estava a estudar…eu quando começo a contactar com ela, penso que ela tinha terminado o secundário. A AA não tem, que eu saiba, atenção, eu acho que a AA não tem nenhuma formação superior.”
JUIZ: “Mas quando lhe disse tens que assumir, isto está mal, ela passou a ser sua interlocutora no tratamento das questões, passou a dar-lhe conta daquilo que ia fazendo” Porque aquilo que o senhor fez foi avisá-la da responsabilidade?”
CC: “Exatamente.”
JUIZ: “Isto em meados de 2016. Portanto, a partir dessa altura, ela ficou consciente, se não estava antes, da responsabilidade que teria?”
CC: “Exatamente.”
JUIZ: “E passou a conversar com ela sobre os assuntos, ela passou a ser mais ativa na vida da sociedade?”
CC: “Muito mais, exatamente.”
ADVOGADA: “Relativamente a essa data em que a alterou, tem a certeza que foi no ano de 2016?”
CC: “É assim, como eu lhe disse, eu sei que a empresa em 2018 fecha, eu estou a recuar 1 ano, 1 ano e qualquer coisa para trás, não posso agora precisar, hoje, em 2021, dizer…mas sei que a alerto para a situação, mas quando a alerto para situação, a AA já está ali com um problema a nível de dívidas, de passivo…
ADVOGADA: “Que fez ela para, entretanto, resolver essa situação?”
CC: “Começa a, pronto, confrontou o pai, até porque… foi aí que me apercebi na totalidade que a AA desconhecia a real situação da empresa mesmo, e depois tentou gradualmente a subir, não foi fácil porque ela teve que fazer frente mesmo ao pai, em relação a dizer ao pai: não, eu sou gerente no papel e quero passar a ser gerente…
Mais adiante, ao minuto 21:04 do seu depoimento, a instâncias do Mmo Juíz a quo:
JUIZ: “Olhe, então houve um período da vida da empresa, digamos, depois daquele choque, daquelas discussões que referiu, a AA tomou as rédeas da sociedade?”
CC: “Tomou, sim senhor”.
(…)
JUIZ: “Portanto, em meados de 2016, segundo disse, 2016, foi por aí, não é?
CC: “Provavelmente”
JUIZ: “Foi o período que referiu desde o início”.

XIV. Só que, com o devido respeito, o que resulta do seu depoimento é que tendo como referência o ano da apresentação da insolvência, teria que recuar cerca de um ano, ano e meio como tendo sido a data em que alertou a AA para a real situação da empresa e em que assumiu as funções de gerente de facto.

XV. Minuto 23:34 do mesmo ficheiro
ADVOGADA: “Só para terminar, quando diz que a AA também (…) em que período é que ela de facto assumiu a gerência, uma vez que tanto diz que não sabe, como diz que foi em meados de 2016, portanto ficamos aqui sem saber ao certo em que data é que…
CC: “Eu não posso precisar o mês certo, mas…
ADVOGADA: “Disse há instantes que foi um ano, um ano e pouco antes da situação…
CC: “da situação da insolvência.”
ADVOGADA: “Se a sociedade entrou em insolvência em outubro de 2018, portanto, não podemos recuar a meados de 2016?
CC: “Digo um ano, ano e meio, sei que a AA, depois, de uma luta intensa com o pai assume realmente as funções de gerente”.

XVI. Estas foram as declarações feitas pela testemunha quanto ao início da participação da Recorrente AA na vida social/financeira da sociedade, não se podendo concluir, com toda a certeza, como fez o douto Tribunal, que tal aconteceu em meados ou em junho de 2016.

XVII. Aliás, tal factualidade foi contrariada através do depoimento prestado pela Administradora da Insolvência que, a este propósito, disse (CD – FICHEIRO 20210908101147_15457905_3995017, Depoimento de DD, Minuto 8:01): DD: “As dívidas, a maior dívida aqui, para além das dívidas por créditos salariais, que essas são dos últimos meses, a dívida grande que temos aqui é a da Segurança Social e essa dívida remonta já a 2015.”
Magistrada do MP: “Portanto, praticamente desde o início, é isso?”
DD: “Setembro de 2015. Depois, Fazenda Nacional, temos dívidas vencidas em novembro de 2017, desde novembro de 2017, não é, e por aí fora, mas as mais antigas são as da Segurança Social e cujo montante é o mais elevado também.”
Magistrada do MP: “Olhe, tem noção quem é que geria o dia a dia desta empresa’
DD: “É assim, eu …a única pessoa com que eu falei foi com a gerente que me explicou, quando eu comecei a colocar questões sobre o dinheiro que tinha saído, sobre a venda da viatura, pronto, explicou-me que, de facto, não era ela que geria a sociedade, que era o pai, que ela só tinha tomado conhecimento desta situação toda no último ano, que entretanto tinha decidido apresentar a sociedade à insolvência e, é assim, não tenho nada que me faça duvidar disso.”
Juiz: “Mas também não tem nada que faça acreditar nisso? Portanto, o que sabe, foi o que foi transmitido por ela?
DD: “Exatamente, Sr. Dr.”
Portanto, eu acabei por qualificar em relação aos dois gerentes uma vez que…pronto, não houve nada que contradissesse e fazia sentido tudo o que a gerente me explicou, agora…
Juiz: “Ó Srª Drª, mas a Sr.ª Dr.ª referiu que ela manifestou ter conhecimento daquele movimento da venda da viatura por 500€?”
DD: “Mas esse movimento foi feito no último ano.”
Juiz: “Portanto, ela estaria inteirada de alguma coisa, não estaria totalmente alheada?”
DD: “Ela explicou-me que no último ano que se tinha inteirado da situação da sociedade, tinha tentado recuperá-la, ver se conseguia, pronto, resolver a situação.”
Juiz: “Portanto, isso no último ano, antes da insolvência, é?”
DD: “Sim, se me dá licença, tenho aqui até um mail que… desde junho de 2017 que se tinha inteirado da situação da sociedade e que desde aí, então…”.”

XVIII. Ora, as afirmações constantes da sentença proferida pelo Tribunal recorrido baseiam-se, nas especulações e perceções do Senhor Juiz a quo, pois que, não existe qualquer afirmação ou documento que comprove a conclusão de que a recorrente assumiu, de facto, a gerência em meados de 2016 – ao invés, resulta claro que tal acontecer cerca de um ano, ou ano e meio antes da apresentação da insolvência, isto é, no ano de 2017.

XIX. Se atendermos às declarações da Senhora Administradora – único interveniente munido dos meios necessários ao apuramento de tais factos – concluímos que a mesma não cuidou de o fazer por não haver qualquer motivo para duvidar das declarações oportunamente recolhidas junto da ora recorrente, não podendo concluir-se – como foi feito – no sentido indicado pelo tribunal.

XX. Por outro lado, a testemunha CC declarou que tendo como referência o ano da apresentação da insolvência, a recorrente assumiu as funções de gerente de facto cerca de um ano, ano e meio antes, tendo sido nessa altura que alertou a AA para a real situação da empresa.

XXI. Acresce que nenhuma das restantes testemunhas indicadas foi peremptória no sentido de afirmar, inequivocamente, que tal ocorreu em meados de 2016.
Atentemos nos respetivos depoimentos:
CD – FICHEIRO 20210908111919_15457905_3995017.
Depoimento de EE
Minuto 04:10
EE: Eu fui trabalhar para… eu trabalho nessa empresa, pronto, desde que ela abriu, não é, mas depois tive de vir para casa porque tive os meus pais acamados e eu vim cuidar deles, em, se a memória não me atraiçoa, a 20, vinte e poucos de fevereiro e estive 2 anos e meio. Comecei a trabalhar a 12 de junho de 2017. O meu pai faleceu em maio, eu comecei a trabalhar em junho. Quando fui trabalhar era a AA, quando eu vim para casa, em 2015, ainda estava o BB.
Depois não sei o que se passou na firma.”
Magistrada do MP:” O BB era o pai da AA?”
EE: “Era o pai da AA.”
CD – FICHEIRO 20210908113106_15457905_3995017.
Depoimento de FF
Minuto 02:17
Magistrada do MP:” Há quanto tempo é que ela [AA] estava à frente da empresa?
Desde o início, foi a partir de certa altura, como é que foi?”
FF: “Foi a partir de certa altura. De início ara o pai que estava”
Magistrada do MP:” E em que altura foi essa, faz ideia?”
FF: “Eu não sei dizer a data específica. Aquilo foi em junho, mais ou menos, 2 anos, não sei, para trás.
Magistrada do MP: “2 anos para trás de 2018, é isso que diz?”
FF: “Eu não tenho bem a certeza, mas eu…pelas contas, acho que sim, 2 anos, mais ou menos, não tenho bem a certeza.”
CD - FICHEIRO 20211103150026_15457905_3995017.
Depoimento de GG
Minuto 03:20
ADVOGADA: “Olhe D. GG, e a sua filha…Esta sociedade foi constituída como tendo única sócia a sua filha. Ela assumiu funções ou alguma função na sociedade, na empresa desde o início?”
GG: “A AA ainda andava a estuda, estava a tirar o 12º ano.”
ADVOGADA: “A AA estava…que idade tinha?
GG: “Ela devia estar com 18 anos.”
JUIZ: “Desculpe, perdi esta parte. A AA teria 18 anos em que altura?”
GG: “Quando abriram a empresa.”
JUIZ: “Quando constituíram a empresa?”
GG: “Sim.”
JUIZ: “Obrigado. E porquê que ela deu a cara para a empresa e não o seu ex marido?”
GG: “Ele já tinha tido várias empresas e não podia abrir empresas em nome dele.”
JUIZ: “Não podia?”
GG: “Não.”
ADVOGADA: “E não podia, porquê?”
GG: “Porque estavam insolventes, as empresas.”
ADVOGADA: “Todas as outras também ficaram insolventes?”
GG: resposta impercetível.
ADVOGADA: “E, portanto, não estando ela, quem é que estava a gerir a empresa?”
GG: “Foi sempre ele, até ao momento em que abandonou.”
ADVOGADA: “E abandonou em que altura?”
GG: “Ele abandonou em 2016 ou 2017, não tenho bem a certeza da data.”

XXII. Ora, da conjugação destes depoimentos, contrariamente ao vertido na sentença a quo, não resulta inequívoco que a requerida AA, além de gerente de direito desde a constituição da sociedade, tenha assumido efetivamente o exercício exclusivo de gerente de facto daquela empresa, desde meados de 2016, tal como consta dos pontos ora em crise da factualidade dada como provada.

XXIII. Assim, atento o exposto, não se alcança como é que o Tribunal a quo, lançando mão de presunções, conclui nos termos feitos nos pontos 6, 7, 26, 27 e 28.

XXIV. Pelo que, tais factos devem ser substituídos no sentido de passar a constar que a gerente/recorrente assumiu a gerência de facto da empresa, cerca de um ano, ano e meio antes da sua apresentação à insolvência.

XXV. Outrossim, e por iguais motivos, sucede com os factos vertidos nas alíneas a) e c) da factualidade dada como não provada, que, deverão ser alterados nos termos supra expostos, e aditados ao probatório.

XXVI. Quanto ao ponto 10 veio o Tribunal a quo a considerar provado que: “À data da venda, o valor comercial da referida viatura não era inferior a €5.000,00 (cinco mil euros).”

XXVII. Na fundamentação, considerou o Meritíssimo Juiz a quo aderir ao Parecer da AI “no sentido de considerar que o respetivo valor comercial não era inferior a €5.000,00, tendo em conta que o contabilista certificado aludiu ao estado daquela viatura como “normal” e ao facto de a mesma ter sido inscrita na contabilidade com o valor de €8.500,00, daí resultando igualmente a falta de prova da matéria descrita nas alíneas g) e h), sendo certo que nenhuma prova se produziu que a quantia obtida com a venda do referido veículo não haja sido usada em proveito pessoal da requerida AA, sabendo-se simplesmente que não ingressou na contabilidade da sociedade.

XXVIII. Sucede que, a testemunha CC, esclareceu que, à data da apresentação da insolvência, era desconhecido o estado da viatura de marca Renault, pois só o viu no início da constituição da empresa, referindo que o seu estado era norma naquela data, desconhecendo, contudo, o seu estado no momento da venda (CD – FICHEIRO 20210908105221_15457905_3995017, minuto 04:39):
MAGISTRADA DO MP: “Olhe, sabe se antes da insolvência existia um veículo, um Renault ..., lembra-se disto?
CC: “Recordo-me do Renault ..., mas no início da empresa. Na empresa, quando entra em processo de insolvência, existia um jipe, um Nissan. O ... vi-o muito pouco, muito pouco mesmo. Agora, no fim… Inclusive, havia um leasing desse mesmo carro, desse mesmo Nissan.”
Mais adiante, ao minuto 16:21:
ADVOGADA: “Olhe, este ..., diz que via o ... muito poucas vezes…”
CC: “Eu vi o ... muito poucas vezes.”
ADVOGADA: “Mas quem é que o conduzia?”
CC: “O pai, o Sr. BB.”
JUIZ: “Era conduzido pelo pai como se fosse veículo próprio? Ele tinha uma outra viatura?
CC: “Era a viatura que eu, normalmente eu ia uma vez por mês à empresa e via o Sr. BB a conduzir essa carrinha. Agora, depois no seu dia a dia, não sei porque eu raramente me cruzava com ele, mas quando ia cheguei a ver o Sr. BB…”
JUIZ: “Já agora, e já que o via, lembra-se da cor do carro? Se era claro, se era escuro, já que tem alguma referência…”
CC: “Não sei se era assim um cinzento a cair para o escuro.”
JUIZ: “Olhe, e o caro estava podre, a cair de podre, era um carro em bom estado?”
CC: “Não, o carro não estava a cair de podre, não, de forma alguma.”
JUIZ: “Pergunto eu, qual era o estado … a cair de podre é um estremo, estava como se estivesse a sair do stand?
CC: “Não, estava normal mediante a sua própria idade, não é, porque já era um carro com alguma idade, mas estava normal. É assim, honestamente, nunca andei junto do carro, ou seja, eu via o carro, mas de forma alguma estava a cair de podre:”
Juiz: “Portanto, não é capaz de dizer se o valor, tendo conhecimento do valor de mercado da viatura, se o valor de 500€ para venda da viatura é um valor aceitável?
CC: “Eu não posso precisar a idade do carro, não sei.”
Juiz: “Pronto, nós sabemos que essas coisas são como são. O Renault ... não é propriamente um topo de gama, é um ..., mas 500€ também é muito pouco dinheiro por uma viatura, não é? É muito pouco dinheiro, é um valor irrisório para uma viatura. Isto é …parece quase um salvado, 500€…para peças, não é? Não tem ideia de nenhum acidente que tenha destruído a viatura, que tenha comprometido…?
CC: “Desconheço.”
Juiz: “Pronto, já sei. E, portanto, ele apresentava-se no carro, o carro estava normal, sim senhor, e não sabe o ano da viatura.”

XXIX. Desta forma, as afirmações constantes da sentença proferida pelo Tribunal a quo baseiam-se, mais uma vez, nas especulações e perceções da Senhora Administradora e do Juiz a quo, pois que, não existe qualquer documento que comprove o valor do veículo à data da venda, nem existe qualquer documento que ateste a idade do carro ou sequer se o mesmo havia sofrido qualquer acidente que o desvalorizasse, pelo que, em conformidade com a prova produzida, deverá tal facto ser suprimido da matéria assente.

XXX. Veio igualmente o Tribunal a quo a considerar provado que:
(…)
12. Do balancete analítico, reportado a 30 de outubro de 2018, resulta que a sociedade insolvente tem um crédito sobre a sócia gerente AA, no valor de €96.920,99.
13. Das demonstrações financeiras apresentadas à Autoridade Tributária, resulta que a sociedade insolvente faturou e recebeu, em 2015, o montante de €252.814,43 e que, nesse ano, já se encontrava registado na conta de acionistas/sócios o valor de €79.482,56.
14. Em 2016, a sociedade faturou e recebeu o valor de 269.816,88€ e, nesse ano, encontrava-se registado na conta de acionistas/sócios o valor de €72.801,45.
15. Em 2017, a sociedade faturou e recebeu o montante de €236.474,35 e, nesse ano, encontrava-se registado na conta de acionistas/sócios o valor de €98.602,77.
16. A saída do referido valor de €96.920,99 descapitalizou a sociedade e dificultou pagamento de dívidas vencidas, nomeadamente, ao Estado.”

XXXI. Veio igualmente o Tribunal a quo a considerar provado que:

XXXII. Contudo, tais factos carecem de esclarecimentos que foram omitidos pelo Tribunal a quo e que foram prestados pelas testemunhas em sede de audiência e julgamento.

XXXIII. Na verdade, tais resultados não podem ser analisados, sem serem enquadrados no contexto da Sociedade.

XXXIV. Esse enquadramento foi fornecido ao Tribunal pelas testemunhas DD, Administradora da Insolvência e CC, contabilista certificado da Insolvente (CD – FICHEIRO 20210908101147_15457905_3995017, depoimento de DD, minuto 5:25):
Magistrada do MP: “No seu relatório, no seu parecer fala no facto de existir um crédito de 96.920,99€ sobre a gerente, a AA. Esta quantia diz respeito a quê?”
DD: “O quê que acontece? Eu verifico, através da contabilidade, que existe este valor inscrito em nome da gerente. No fundo, é como se a sociedade tivesse feito empréstimos à gerente neste montante. Claro que não foi tudo no mesmo ano, mas ao longo dos anos.
Normalmente, e foi o que o contabilista me explicou, é que isto são saídas de dinheiro da sociedade que não estão justificadas documentalmente e que, portanto, ele não tem outra alternativa senão inscrevê-los na conta do gerente.
Magistrada do MP: “Quase como se fossem suprimentos. É isso?”
DD: “Ao contrário. Normalmente os suprimentos é do sócio à sociedade. Aqui é ao contrário porque é a sociedade que está a emprestar…”
Magistrada do MP: “São saídas de caixa não documentadas?
DD: “Ás vezes são saídas de caixa, outras vezes são saídas mesmo da conta, não é. São saídas de dinheiro da conta da sociedade para as quais não há justificação documental.”
Magistrada do MP: “Dinheiro esse que existia, supostamente. Se foi retirado…”
DD: “Sim, obviamente.”
Magistrada do MP: “Tem noção em que período, durante que período é que esse dinheiro foi sendo retirado?”
DD: “Pelo menos, portanto, eu fiz a análise dos últimos três anos, pelo menos, durante esses três anos.”
Magistrada do MP: “Nos últimos três anos anteriores à insolvência?”
DD: “Eu creio que tenho a indicação (…) em 2015, já se encontrava registado nesta conta o valor de 79.482,56€, em 2016 o valor de €72.801,45€, portanto aqui houve uma ligeira diminuição, e depois houve novamente um aumento em 2017 para 98.602,77€.”
Magistrada do MP: “Olhe, esta sociedade… as dividas que tinha são recentes, são só dos últimos três anos, ou havia dívidas anteriores?”
DD: “As dívidas, a maior dívida aqui, para além das dívidas por créditos salariais, que essas são dos últimos meses, a dívida grande que temos aqui é a da Segurança Social e essa dívida remonta já a 2015.”
Magistrada do MP: “Portanto, praticamente desde o início, é isso?”
DD: “Setembro de 2015. Depois, Fazenda Nacional, temos dívidas vencidas em novembro de 2017, desde novembro de 2017, não é, e por aí fora, mas as mais antigas são as da Segurança Social e cujo montante é o mais elevado também.”
Magistrada do MP: “Olhe, tem noção quem é que geria o dia a dia desta empresa’
DD: “É assim, eu …a única pessoa com que eu falei foi com a gerente que me explicou, quando eu comecei a colocar questões sobre o dinheiro que tinha saído, sobre a venda da viatura, pronto, explicou-me que, de facto, não era ela que geria a sociedade, que era o pai, que ela só tinha tomado conhecimento desta situação toda no último ano, que entretanto tinha decidido apresentar a sociedade à insolvência e, é assim, não tenho nada que me faça duvidar disso.”
Juiz: “Mas também não tem nada que faça acreditar nisso? Portanto, o que sabe, foi o que foi transmitido por ela?
DD: “Exatamente, Sr. Dr.”
Portanto, eu acabei por qualificar em relação aos dois gerentes uma vez que…pronto, não houve nada que contradissesse e fazia sentido tudo o que a gerente me explicou, agora…
Juiz: “Ó Srª Drª, mas a Sr.ª Dr.ª referiu que ela manifestou ter conhecimento daquele movimento da venda da viatura por 500€?”
DD: “Mas esse movimento foi feito no último ano.”
Juiz: “Portanto, ela estaria inteirada de alguma coisa, não estaria totalmente alheada?”
DD: “Ela explicou-me que no último ano que se tinha inteirado da situação da sociedade, tinha tentado recuperá-la, ver se conseguia, pronto, resolver a situação.”
Juiz: “Portanto, isso no último ano, antes da insolvência, é?”
DD: “Sim, se me dá licença, tenho aqui até um mail que… desde junho de 2017 que se tinha inteirado da situação da sociedade e que desde aí, então…”.”
Juiz: “Ó, Srª Drª, vamos convir, a Srª Drª acha isso plausível, ou seja, alguém que de repente, tendo uma relação de parentesco (filha/pai) descobre que a sociedade está a ter problemas, inteira-se da situação, e tenta, segundo as suas palavras, a tentou-a recuperar? Portanto, isto não parece plausível. Quer dizer, normalmente aquele gerente de direito que se exime da responsabilidade é aquela pessoa que, entre aspas, é um tótó, não percebe nada e só está lá para encher e satisfazer um requisito legal que é figurar no registo como gerente de direito. Alguém que se abalança a tentar, na expressão da Sr.ª Dr.ª, recuperar é porque terá conhecimentos e terá expediente para desenvolver algum tipo de atividade que se repercuta utilmente na vida da sociedade, não sei se me faço entender, Sr.ª Dr.ª?”
DD: “Sim, eu penso que aqui havia uma relação de confiança, não é (filha/pai)?”
Juiz: “Mas como é que a Srª Drª interpreta essa expressão que referiu…dela tentar recuperar, apercebeu-se da situação, em 2017, e tentou recuperar. Tentou recuperar como?”
DD: “Pois…”
Juiz: “Mas foi o que lhe foi dito?
DD: “Foi.”
Juiz: “Ela disse-lhe que tentou, foi ela ou o pai?
DD: “Pois, eu isso não sei, porque eu nunca consegui falar com o pai.”
Juiz: “Mas ela disse que tentou recuperar?
DD: “Na altura o que ela me disse, ela disse que só se tinha apercebido da situação há um ano atrás e que tinha confiado no pai. Portanto, eu suponho que houvesse ali algum problema para o pai não poder ser gerente, não é? Eventualmente, problemas passados, mas estou a falar sem saber…”
Juiz: “Pronto, não sabe Srª Drª, mas sabe aquilo que lhe foi dito.”
Por sua vez, (CD–FICHEIRO 20210908105221_15457905_3995017), depoimento de CC, minuto 03:16)
MAGISTRADA DO MP: “Olhe, faz alguma ideia qual era a maior fatia dos débitos da empresa? A quem é que mais deviam?”
CC: “Sim, ora, é como lhe digo, (…) seriam a Segurança Social, os bancos, neste caso, penso que era o Banco 1..., se a memória não me falha e, eventualmente, depois mais para o fim, embora, houvesse um esforço muito grande por parte da AA de liquidar sempre os salários aos colaboradores, mas depois a questão para o fim dos salários. Mas havia sempre um esforço, recordo-me nos últimos meses que a AA fazia sempre um esforço muito grande para liquidar os salários aos colaboradores.” O que me lembra sim é da Segurança Social, que era o valor maior, a divida maior.”
Minuto 09:57
JUIZ: “Olhe, ela tinha...disse que ela era muito nova quando a sociedade foi constituída, mas tinha habilitações, tinha um curso superior?
CC: “Não”
JUIZ: “Não tinha?”
CC: “Não, não.”
JUIZ: “Disse que era estudante…?”
CC: “Estava a estudar…eu quando começo a contactar com ela, penso que ela tinha terminado o secundário. A AA não tem, que eu saiba, atenção, eu acho que a AA não tem nenhuma formação superior.”
JUIZ: “Mas quando lhe disse tens que assumir, isto está mal, ela passou a ser sua interlocutora no tratamento das questões, passou a dar-lhe conta daquilo que ia fazendo” Porque aquilo que o senhor fez foi avisá-la da responsabilidade?”
CC: “Exatamente.”
JUIZ: “Isto em meados de 2016. Portanto, a partir dessa altura, ela ficou consciente, se não estava antes, da responsabilidade que teria?”
CC: “Exatamente.”
JUIZ: “E passou a conversar com ela sobre os assuntos, ela passou a ser mais ativa na vida da sociedade?”
CC: “Muito mais, exatamente.”
ADVOGADA: “Relativamente a essa data em que a alterou, tem a certeza que foi no ano de 2016?”
CC: “É assim, como eu lhe disse, eu sei que a empresa em 2018 fecha, eu estou a recuar 1 ano, 1 ano e qualquer coisa para trás, não posso agora precisar, hoje, em 2021, dizer…mas sei que a alerto para a situação, mas quando a alerto para situação, a AA já está ali com um problema a nível de dívidas, de passivo…
ADVOGADA: “Que fez ela para, entretanto, resolver essa situação?”
CC: “Começa a, pronto, confrontou o pai, até porque… foi aí que me apercebi, na totalidade, que a AA desconhecia a real situação da empresa mesmo, e depois tentou gradualmente a subir, não foi fácil porque ela teve que fazer frente mesmo ao pai, em relação a dizer ao pai: não, eu sou gerente no papel e quero passar a ser gerente…
JUIZ: “Olhe, perante essa situação, alguma lhe recomendou: olha, a situação é muito difícil, vais ter dificuldade em sair desta situação, apresenta-te à insolvência porque tens um prazo legal para isso, alguma vez lhe disse isso?”
CC: “Não.”
JUIZ: “Seria um bom conselho. Até por o senhor também já tinha a experiência anterior, porque já nos disse aqui que o pai foi condenado por ter culposamente dado causa de uma outra sociedade!”
CC: “Claro que sim.”
JUIZ: “Também, como contabilista, não é nada de transcendente que existe uma obrigação, um prazo para a apresentação da insolvência?”
CC: “Sr. Dr. Juiz, a área das insolvências não é a área da minha matéria. A minha matéria diária é Código de IRC, código de IVA e código de IRS, as insolvências é uma área em que eu não estou minimamente à vontade para falar.”
JUIZ: “Pronto, ok. Portanto, ela, desde essa intervenção que teve, desde esse alerta que tinha pleno conhecimento que a situação da empresa era difícil, de tal modo que até confrontou o pai?”
CC: ”Sim.”
ADVOGADA: “E o pai aceitou, já agora, aceitou bem essa situação?”
CC: “Não foi fácil, não foi. Eles tiveram ali discussões, várias discussões até ela conseguir realmente, mas não foi um processo do dia para a noite e rapidamente, ou seja…
ADVOGADA: “E conseguiu, em que medida? É isso que eu quero saber.”
CC: “Ela conseguiu que o pai deixasse mesmo de intervir quer nas decisões quer nos pagamentos, quer na gestão da empresa.”
ADVOGADA: “Relativamente à vida da sociedade, ela conseguiu colocar a empresa…”
CC: “Com um passivo daquela dimensão, eu recordo-me que o problema da empresa era a segurança social, e outro problema que estava a acontecer e que era, ao nível, do trabalho que estava a ser feito, as margens de lucro eram muito, muito reduzidas. Ou seja, a AA ainda tentou junto do banco, através de financiamentos bancários para resolver a situação do passivo da Segurança Social, mas sem sucesso.”
ADVOGADA: “E ela, a título pessoal, ela fez alguma coisa, sabe se ela assumiu…”
CC: “A AA tentou por tudo, eu recordo-me perfeitamente que a AA tentou por tudo que a empresa tivesse pernas para andar, uma preocupação muito grande junto dos funcionários de pagar os salários; pagar aos funcionários era uma preocupação da AA, mas infelizmente não conseguiu!
Não foi por falta de vontade, mas não conseguiu!”
(…)
ADVOGADA: “Relativamente a esta rubrica dos 96 mil e tal euros, que são saídas de dinheiro sem qualquer justificação, do que se recorda, porque já disso que, como é evidente, isto já lá vai algum tempo, esses movimentos ou essas saídas de caixa ocorreram no período em que o pai geria a empresa ou no período em que a AA geria a empresa?”
CC: “No período em que o pai geria a empresa.”
ADVOGADA: “Maioritariamente, todo?
CC: “Maioritariamente.”
ADVOGADA: “E o quê que ele…naturalmente que o questionava quanto a isso?
CC: “A questão é…era para resolver coisas. Eu não posso fazer rigorosamente mais nada quando me dizem isto.”

XXXV. Desta forma, urge aditar aos pontos 12, 13, 14 e 15 dos factos provados (que descreve os valores registados na conta de acionistas/sócios) que os valores em causa só chegaram ao conhecimento no momento em que a recorrida assumiu as funções de gerente de facto, ou seja, no ano, ano e meio, anterior à apresentação da insolvência uma vez que até então não era conhecedora da realidade económica e financeira da sociedade insolvente– altura em que tudo fez para evitá-la.

XXXVI. Importará ainda acrescentar que relativamente aos mesmos factos (12 a 16) da factualidade dada como provada, a imputação dos mesmos recai maioritariamente sobre o gerente de facto, BB, o que se mostra absolutamente relevante para se concluir que foi o requerido BB que contribui de forma significativa e preponderante para a situação da sociedade que culminou com a respetiva insolvência, bem como do grau de participação/responsabilidade da ora recorrente na situação da insolvência.

XXXVII. Outrossim, e por iguais motivos, sucede com os factos vertidos nas alíneas b) e d) da factualidade dada como não provada, que, deverão ser alterados nos termos supra expostos, e aditados ao probatório.

XXXVIII. Ademais, veio o Tribunal a quo a considerar como não provados factos que, salvo o devido respeito, resultaram integralmente provados, pelo que deverão ser aditados ao probatório.

XXXIX. Concretamente, que “A quantia obtida com a venda do referido veículo não haja sido usada em proveito pessoal da requerida AA.” - (ponto i da factualidade não provada)

XL. Os factos constantes da alínea i) resultou integralmente provado pelas declarações da testemunha GG – que esclareceu que o veículo foi vendido por exigência do requerido BB (pai da recorrente) e que, por sua vez, se apropriou do produto da venda de tal bem (CD – FICHEIRO 20211103150026_15457905_3995017, minuto 13:19).
ADVOGADA: “Olhe, só para terminar. Há aqui uma questão que tem a ver com um veículo que foi vendido pela AA, pela sociedade já muito próximo da data da insolvência, (…) recorda-se dela ter vendido, a quem é que o vendeu?
GG: “Ele exigiu esse carro.”
ADVOGADA: “Ele, quem?”
GG: “O pai dela.”
ADVOGADA: “Exigiu, porquê?”
GG: “Porque era dele, o carro. E depois ela vendeu-o, o carro, e ele disse que era para ela, que era para ele o …dinheiro do carro, que era para ele, que era dele.”
ADVOGADA: “Ela vendeu a quem, afinal?”
GG: “Foi para uma moça, não sei, ela era daqui da Maia.”
ADVOGADA: “Sim, mas o que eu lhe pergunto é…se, a pessoa a quem ela vendeu, não foi diretamente a ele?”
GG: “Não, não porque ele não podia ter nada em nome dele. O carro foi para ele.”
ADVOGADA: “0 negócio, indo mais diretamente ao assunto, o negócio foi feito por ela ou por ele?”
GG: “O negócio foi ele, ele exigiu o carro, ela vendeu o carro como se fosse …, é dele, o carro era dele, foi para a moça que ficou com o carro, foi ele que tratou disso.”
ADVOGADA: “E o dinheiro ficou com ele?”
GG: “Foi, foi para ele.”

XLI. Atenta a assertividade com que a testemunha esclareceu o Tribunal quanto a esta matéria, terá a mesma que ser considerada como provada, até porque, na verdade, não vemos como poderá o tribunal ter considerado não provado tal facto quando, por um lado considerou que esta testemunha revelou estar inteirada da dinâmica da sociedade e, por outro, não atendeu, sem qualquer justificação para tal, ao seu depoimento no que diz respeito a esta questão reveladora relevante para a decisão da causa, pelo que, deve o facto alegado ser aditado à matéria assente.

DO ALEGADO PREENCHIMENTO DA ALINEA D) DO N.º 2 DO ARTIGO 186º DO CIRE, mas apenas quanto à requerida AA.”

XLII. O Tribunal Recorrido, em sede de subsunção jurídica, mesmo não tendo qualquer evidência documental ou outra, em sede de subsunção jurídica, desenvolveu a seguinte fundamentação:
“…Por outro lado, para os fins em presença, só há que falar em proveito quando o ato de disposição se traduz na outorga de um benefício sem uma justa ou legítima correspondência prestacional (se existe correspondência prestacional do terceiro, não há proveito deste, mas sim o recebimento do que lhe compete, justa e legitimamente, receber).
Aqui chegados, em face da factualidade que emergiu provada nos pontos 8, 9 e 10, é inequívoco que a sócia gerente AA, enquanto gerente de facto e de direito à data da venda, tendo esta sido realizada em 22-10-2018, cerca de um mês antes da apresentação à insolvência (19-11-218), praticou um ato lesivo da sociedade, na medida em que alienou o ... de marca Renault, modelo ..., com a matrícula ..-GE-.., em proveito de terceiro, por um valor de €500,00, cerca de 10 vezes inferior ao preço de mercado, que se situa em €5.000,00, beneficiando-o ilegitimamente nessa medida e prejudicando a sociedade, por inexistência de um nexo de correspetividade (sinalagma) entre as prestações.
Como tal, há que concluir que se mostra preenchida a previsão da alínea d), mas apenas quanto à requerida AA.”

XLIII. Nem a Senhora Administradora, nem o Tribunal a quo conseguem identificar a existência de proveito próprio da Administradora AA, ora recorrente, ou sequer o real valor do veículo vendido.

XLIV. Da matéria de facto provada não resulta demonstrada a existência de proveito próprio da Administradora AA, ora recorrente. Na verdade, conforme decorre da matéria de facto provada, apenas ficou provado que:
“8. Em 22 de outubro de 2018, a sociedade alienou a viatura de marca Renault, modelo ..., com a matrícula ..-GE-.., de 16 de julho de 2008, pelo preço de €500,00 (quinhentos euros).
9. Tal viatura foi inscrita na contabilidade com um valor de €8.500,00.
10. À data da venda, o valor comercial da referida viatura não era inferior a €5.000,00 (cinco mil euros).

XLV. Ora, nos termos da al. d) do nº 2 do art. 186º do CIRE considera-se sempre culposa a Insolvência do devedor quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham” disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros”.

XLVI. Para o efeito deste preceito legal, tem-se entendido que tais comportamentos tanto são aqueles que têm por efeito a saída dos bens do património do devedor (como sucede, por exemplo com a venda dos bens), como os que, não implicando necessariamente a saída dos bens do património do devedor, retiram-lhe, no entanto, a disponibilidade, colocando-os na disponibilidade de outrem. Em qualquer uma das situações, o legislador formula, no entanto, a exigência adicional de que o ato de disposição seja feito em proveito pessoal dos administradores ou de terceiros.

XLVII. Destas considerações decorre, assim, que, no âmbito da al d) do citado preceito legal, ter-se-ão de apurar factos de onde decorra que os Administradores, de facto, ou de direito, da devedora/Insolvente realizaram (i) atos de disposição, (ii) de bens do devedor, (iii) em proveito pessoal (do Administrador) ou de terceiros.

XLVIII. Ora, compulsada a factualidade dada como provada, constata-se, efetivamente, que o terceiro requisito que aqui se assinala não se mostra preenchido, já que, apesar de se ter apurado que foram realizados atos de disposição, a verdade é que não consta da factualidade dada como provada quaisquer factos que permitam concluir que o bem em causa tivesse sido vendido para proveito pessoal da ora recorrente- o que constitui, como se referiu, um dos requisitos da aplicação da al. d) aqui em discussão.

XLIX. Com efeito, importa ter em atenção que a presunção que aqui está em jogo mostra-se estabelecida em função dos atos de disposição e do proveito que deles possa ter resultado para os terceiros adquirentes ou para os próprios Administradores da devedora/Insolvente.

L. Nessa medida, também se pode duvidar que o aludido ato de disposição tenha revertido em proveito pessoal da Recorrente. Desde logo, porque nada se apurou quanto à efetivação do ato de disposição do veículo aqui em discussão- e, reforça-se, é em função destes que o legislador presumiu a insolvência culposa.

LI. Na verdade, não resulta da matéria de facto provada que o ato da venda do veículo tenha sido realizado em proveito pessoal da recorrente.

LII. Ora, julga-se que da factualidade dada como provada (pontos 8, 9 e 10) não se pode extrair, sem mais, que o ato de disposição tenha sido realizado, conforme exige a al d) do nº 2 do art.º. 186º do CIRE, em proveito pessoal da Administradora/Recorrente.

LIII. Desde logo, porque o imputado proveito próprio da Administradora/Gerente da Insolvente não decorre do ato de disposição do veículo, conforme exige o citado preceito legal, mas antes - na tese do Tribunal Recorrido -, por via indireta, do destino que foi dado ao produto da venda realizada.

LIV. Ou seja, o imputado (e alegado) proveito próprio do Administrador decorre do destino que foi dado ao produto da venda. Não surge, pois, de uma forma direta no âmbito do ato de disposição do veículo, já que da matéria de facto apurada não decorre que deste ato a Administradora/Gerente da devedora tenha obtido qualquer proveito.

LV. Na verdade, dos factos provados não decorre o que sucedeu ao produto da venda do veículo, designada e concretamente se o destinou ao pagamento de qualquer credor ou se o guardou para si- pelo que também não se pode imputar por essa via a existência de proveito próprio do Administrador.

LVI. Por conseguinte, impõe-se concluir que que está afastado o requisito de tal ato de disposição ter produzido proveito próprio ou de terceiros.

LVII. Julga-se, também, se tornava necessário apurar o valor dos bens sobre que recaiu o ato de disposição aqui questionado.

LVIII. Como se refere no Acórdão da Relação de Guimarães de 9.2.2012, in www.gdsi.pt “ não se apurando o valor dos bens, não se podem considerar verificados nem o facto referido na al. a), nem na al. d), do nº 2, do artº 186, do CIRE…”. E acrescenta que “ …sem se ter apurado o valor dos bens não é possível determinar o modo como foi afetado o património do devedor, nos termos exigidos na al. a), ou seja, “...no todo ou em parte considerável...”, nem o “...proveito de terceiros.

LIX. É certo que, como refere o Acórdão da Relação do Porto de 7 de Dezembro de 2016, in www.gdsi.pt “… na descrição da situação nela prevista (na al. d)) - terem disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros - não se faz qualquer referência à importância económica dos bens objeto dessa atuação e à necessidade de o seu relevo patrimonial ser significativo – ao contrário da alínea a) “.
Mas “… isso é assim porque, cremos, a preocupação subjacente à previsão legal já não é diretamente a preservação do património da devedora (indiretamente sim), mas antes evitar que esse património que deverá ser afeto à satisfação dos credores redunde afinal em benefício ilegítimo dos próprios administradores ou de terceiros.
Todavia, julgamos que em qualquer circunstância esses bens têm de ter algum relevo económico, não nos parecendo conforme à ordem jurídica qualificar uma insolvência como culposa e imputar aos gerentes as consequências dessa qualificação apenas porque um dos administradores ou um terceiro se apropriou de um bem da insolvente de escasso valor económico, cujo interesse para o funcionamento da devedora nas condições existentes à data não fosse significativo….”.

LX. Decorre, assim, que não se mostrando apurado o real valor do veículo aqui em causa, tem que se concluir que não é possível concluir pelo preenchimento do requisito legal previsto no art. 186º, n.º 2, al. d) do CIRE, e consequentemente qualificar a Insolvência como culposa, nos termos do como entendeu o Tribunal Recorrido.

DO ALEGADO PREENCHIMENTO DA ALINEA A) DO N.º 3 DO ARTIGO 186º DO CIRE
LXI. No caso vertente, entendeu o tribunal recorrido que foi produzida prova, com afetação de ambos os requeridos, considerando para efeitos de motivação da sua convicção que “… o pedido de insolvência apenas foi apresentado em novembro de 2018, sendo certo que a situação de insustentabilidade financeira da sociedade insolvente já existia desde 2015, prolongando-se nos anos seguintes: em 2016, 2017 e 2018 (cfr. pontos 12 a 18 dos factos provados).
Na situação em presença, o avolumar progressivo das dívidas com o retardamento da apresentação à insolvência redundou em claro prejuízo para os credores, que viram agravada a possibilidade de cobrança dos respetivos créditos vencidos, o que nesta altura se revela impossível, atenta a receita de apenas €197,00 resultante da liquidação do ativo, tendo em conta que a persistência do exercício de uma actividade deficitária culminou com uma declaração de insolvência apenas em novembro de 2018, num contexto de descapitalização da sociedade com saídas de caixa que se foram avolumando desde 2015 e cujo valor, registado contabilisticamente a 30 de outubro de 2018, ascendeu a €96.920,99, com dívidas de elevados valores, designadamente a trabalhadores (€150.000,00), Segurança Social (€133.831,50) e Fazenda Nacional (€11.009,81), tal como resulta dos pontos 12 a 18 e 22 a 24 dos factos provados.
Neste âmbito, afigura-se irrelevante para o que aqui importa, o facto de, aquando da constituição da insolvente, a requerida AA ser estudante do 12º ano do ensino secundário, pois os factos que emergiram provados antes revelam a prática de atos típicos do exercício pleno da atividade de gerente, designadamente com a alienação de bem da sociedade (ponto 8 dos factos provados) e assumindo, na qualidade de responsável subsidiário, relativamente à reversão da execução fiscal em que era executada a insolvente, o pagamento da dívida à Segurança Social no âmbito do plano prestacional acordado (ponto 29 dos factos provados).
De facto, a sua eventual inexperiência no desempenho de tais funções não a desoneram, nem eximem, das responsabilidades legais inerentes à condição de gerente que livremente assumiu e também exerceu. Assim, é por demais evidente que a insolvente M... Unipessoal, Ld.ª não cumpriu o dever de apresentação tempestiva à insolvência, facto que agravou, pelo menos, a situação de insolvência, nos termos sobreditos.”

LXII. Existem nos autos questões de relevo que não foram devidamente apreciadas, embora tenham sido submetidas à apreciação do tribunal, porquanto se reputarem absolutamente necessárias para a decisão da causa,

LXIII. Ora, in casu, não foi a Recorrente sido referida, em nenhum momento, como sendo a pessoa responsável pela criação ou agravamento invocada pela Senhora Administradora como causa do presente incidente.

LXIV. Sendo que, conforme esclarece a nossa jurisprudência (vide acórdão do STJ de 6 de outubro de 2011 disponível em www.dgsi.pt) não se dispensa neste n.º 3 do artigo 186.º do CIRE a demonstração do nexo causal entre o comportamento presumido gravemente culposo do devedor e o surgimento ou agravamento da situação de insolvência.

LXV. Desde logo, impõe-se sublinhar que, pelo menos até junho de 2016 (embora a recorrente defenda que tal ocorreu apenas em 2017), a gerência de facto da insolvente competia, única e exclusivamente, a BB, pai da aqui recorrente.

LXVI. A aqui recorrente até àquela data nunca exerceu de facto o cargo de gerente da sociedade insolvente.

LXVII. Durante aquele período temporal, o seu exercício foi unicamente de direito, uma vez que nunca teve quaisquer contactos com a parte administrativa, contabilística, laboral, fiscal e financeira da sociedade, limitando-se a seguir as ordens e decisões do seu pai, o indicado BB. Sempre foi este, desde a constituição da sociedade, quem exerceu de facto as funções de gerente da insolvente.

LXVIII. A recorrente, até à indicada data, nunca esteve envolvida no giro e funcionamento comercial da insolvente, nunca acompanhou e controlou a condução da atividade da sociedade, nunca teve poder decisório sobre o destino da empresa, nunca contratou com terceiros em nome da empresa, nunca admitiu ou despediu, nunca exerceu poderes de chefia, nunca praticou actos de comando, ou deu instruções ou ordens aos empregados, nunca fez pagamentos a fornecedores ou credores, ou sequer encomendas, nem tão pouco contactos com clientes, fornecedores ou credores.

LXIX. Deste modo, a recorrente, como não era gerente de facto, não era conhecedora da realidade económica e financeira da sociedade insolvente pelo que não poderá ser responsabilizada pela, como refere a sentença, “situação de insustentabilidade financeira da sociedade insolvente” que “ já existia desde 2015 prolongando-se nos anos seguintes: em 2016, 2017 e 2018 (cfr. pontos 12 a 18 dos factos provados).”

LXX. Foi o gerente de facto, BB, que manteve, desde que a sociedade foi constituída e durante os anos em que exerceu essas funções, uma exploração que contribuiria com grande probabilidade a uma situação de insolvência.

LXXI. Pelo que a responsabilidade da criação da situação da insolvência apenas poderá ser imputada sobre o gerente de facto, BB e não à aqui recorrente tudo fez para evitar a insolvência.

LXXII. Acresce que, os negócios celebrados por ela não só foram lícitos como respeitaram os termos usuais do comércio, motivo pelo qual não foram susceptíveis de causar qualquer agravamento da situação patrimonial da Devedora; foram os negócios celebrados pela recorrente que permitiram pagar os salários dos trabalhadores; no que se refere aos credores estaduais, não obstante o facto de existir crédito vencido, certo é que o mesmo se encontrava garantido (recorde-se que a ora recorrente assumiu, na qualidade de responsável subsidiário, o pagamento da dívida à Segurança Social no âmbito do plano prestacional acordado - ponto 29 da factualidade dada como assente); e, assim, continuou, pagando à Segurança Social, aos seus fornecedores, clientes e trabalhadores, cumprindo com a generalidade das suas obrigações.

LXXIII. E tanto assim é que, para além da Fazenda Pública e da Segurança Social (com quem a recorrente havia acordado o pagamento da dívida em prestações), os únicos credores da Insolvente são os trabalhadores.

LXXIV. Desta forma, no que diz respeito à recorrente, não se verifica o preenchimento do fator índice invocado pela Senhora Administradora e valorado pelo Tribunal a quo na sentença proferida, inexistindo por isso qualquer nexo causal entre a não apresentação à insolvência por parte da ora recorrente e o agravamento da situação patrimonial.

LXXV. Atento o supra exposto, ao declarar como culposa a insolvência da Devedora e ao afetar a ora Recorrente o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 18.º, 186.º e 188.º do CIRE.

O CRITÉRIO LEGAL DA INDEMNIZAÇÃO A FIXAR NOS TERMOS DO ARTº 189º Nº2 ALÍNEA E) DO CIRE
LXXVI. Por último, e caso assim não se entenda, o que apenas por mera cautela de patrocínio se concede, certo é que a decisão proferida pelo Tribunal a quo revela-se manifestamente desproporcional quanto ao montante indemnizatório.

LXXVII. Com efeito, decidiu o tribunal recorrido “condenar os afetados AA e BB, solidariamente e no montante correspondente a 50% dos créditos não satisfeitos, a indemnizar os credores da devedora/insolvente M... Unipessoal, Ld.ª, até às forças do respetivo património, pelo valor dos créditos que sejam incluídos na lista definitiva de credores.”

LXXVIII. Não se alcança a bondade de tal conclusão na medida em que, dos factos provados em 25 a 29 resulta que a culpa da gerente é diminuta pois a mesma assumiu a gerência de facto da devedora no último ano, ano e meio que antecedeu a apresentação da Sociedade à insolvência.

LXXIX. Altura em que assumiu, na qualidade de responsável subsidiário, o pagamento da dívida à Segurança Social no âmbito do plano de pagamento em prestações acordado - ponto 29 da factualidade dada como assente.

LXXX. Altura em que já se encontrava registado na conta de acionistas/sócios o valor de 79.482,56€ dos 96.920,99€ dos registados em outubro de 2018 – data da decisão da apresentação à Insolvência.

LXXXI. Deste conjunto de factos resulta claramente que, se as dívidas da sociedade insolvente não se constituíram (na sua maior parte) no período em que a recorrente assumiu, para além das funções de gerente de direito, o exercício das funções de gerente, e se demonstrou que um outro gerente de facto foi o verdadeiro dinamizador da atividade da empresa até então, tal diminui o grau de culpa da gerente Recorrente.

LXXXII. Vista toda a factualidade apurada, e o grau de culpa relativo manifestado pela Requerida, deve ela responder apenas na proporção de 1/10 dos créditos não satisfeitos na insolvência.
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Foram apresentadas contra-alegações.
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Colhidos que se mostram os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir.
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2. Fundamentos de Facto
2.1 Factos provados
O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:
1. A insolvente M... Unipessoal, Ld.ª foi constituída em 20 de janeiro de 2014 e tem a sua sede na Praceta ..., “G”, freguesia ..., concelho ..., ... ....
2. Constitui objeto daquela sociedade a “Indústria de vestuário em série; representação comercial de vestuário em feiras, exposições e outros eventos; importação e exportação de vestuário; comércio a retalho de artigos de vestuário.”
3. Tem o capital social de €1.000,00 (mil euros), sendo seu único sócio a requerida AA, com uma quota de igual valor.
4. A requerida AA é única gerente da referida sociedade desde a sua constituição, vinculando-se a sociedade pela intervenção de um gerente.
5. A insolvente tem o CAE principal .....-R3 (confeção de outro vestuário em série), sendo considerada uma pequena empresa, de acordo com a classificação do Decreto-Lei n.º 372/2007, de 6 de novembro.
6. No período entre 20 de janeiro de 2014 e meados de 2016, a gerência de facto da sociedade foi exercida única e exclusivamente pelo requerido BB, pai da gerente de direito e requerida AA, passando esta a exercer em exclusivo tais funções desde meados de 2016.
7. Até meados de 2016, não obstante fosse gerente de direito, a requerida AA nunca havia participado na vida social/financeira da sociedade insolvente.
8. Em 22 de outubro de 2018, a sociedade alienou a viatura de marca Renault, modelo ..., com a matrícula ..-GE-.., de 16 de julho de 2008, pelo preço de €500,00 (quinhentos euros).
9. Tal viatura foi inscrita na contabilidade com um valor de €8.500,00.
10. À data da venda, o valor comercial da referida viatura não era inferior a €5.000,00 (cinco mil euros).
11. Em 26 de outubro de 2018, as trabalhadoras da empresa apresentaram a resolução dos respetivos contratos de trabalho, com fundamento em justa causa, por se encontrarem por liquidar os salários respeitantes aos meses de setembro e outubro, bem como os respetivos duodécimos de subsídio de férias e de Natal.
12. Do balancete analítico, reportado a 30 de outubro de 2018, resulta que a sociedade insolvente tem um crédito sobre a sócia gerente AA, no valor de €96.920,99.
13. Das demonstrações financeiras apresentadas à Autoridade Tributária, resulta que a sociedade insolvente faturou e recebeu, em 2015, o montante de €252.814,43 e que, nesse ano, já se encontrava registado na conta de acionistas/sócios o valor de €79.482,56.
14. Em 2016, a sociedade faturou e recebeu o valor de 269.816,88€ e, nesse ano, encontrava-se registado na conta de acionistas/sócios o valor de €72.801,45.
15. Em 2017, a sociedade faturou e recebeu o montante de €236.474,35 e, nesse ano, encontrava-se registado na conta de acionistas/sócios o valor de €98.602,77.
16. A saída do referido valor de €96.920,99 descapitalizou a sociedade e dificultou o pagamento de dívidas vencidas, nomeadamente, ao Estado.
17. A sociedade insolvente tem dívidas ao Estado que foram reclamadas no âmbito do presente processo, tanto pela Fazenda Nacional, com créditos no valor €11.009,81, como pelo Instituto da Segurança Social, I.P., com um crédito no valor de €133.831,50.
18. Foram ainda reclamadas, no âmbito do presente processo, dívidas relativas a créditos salariais de valor superior a €150.000,00.
19. Em 23 de outubro de 2018, foi deliberada a apresentação da sociedade à insolvência, tendo em 19-11-2018 dado entrada em juízo a petição inicial de apresentação à insolvência que deu origem ao presente processo.
20. A devedora foi declarada insolvente por sentença de 29 de novembro de 2018, tendo sido nomeado como administrador da insolvência a Sr.ª Dr.ª DD.
21. Em 26-04-2019, a Sr.ª Administradora da Insolvência apresentou ao Tribunal o relatório a que alude o art. 155º do CIRE, propondo o prosseguimento do processo para liquidação, o que assim foi determinado por despacho de 20-05-2019.
22. Mediante auto de apreensão datado de 15-02-2019 e junto em 13-07-2020, constante do apenso F), a Sr.ª Administradora da Insolvência apenas apreendeu para a massa insolvente “um lote de máquinas de costura, em estado de sucata, conforme relatório fotográfico em anexo, no valor de €150,00”.
23. Das diligências tendentes à venda dos bens móveis apreendidos, resultou para a massa insolvente uma receita de €197,00 (cento e noventa e sete euros), conforme consta do apenso I), relativo à liquidação do ativo.
24. Por decisão proferida no processo principal em 22-11-2021, foi determinado o encerramento do processo nos termos do artigo 232º, n.º 2 do CIRE, por insuficiência da massa insolvente para pagamento das custas do processo e restantes dívidas.
25. Aquando da constituição da insolvente, a requerida AA era estudante do 12º ano do ensino secundário.
26. Até meados de 2016, a requerida AA nunca tomou qualquer decisão de pagamento a fornecedores, trabalhadores ou ao Estado.
27. Até meados de 2016, foi sempre o requerido BB a lidar com os fornecedores, quer comprando, quer pagando; a lidar com o Técnico Oficial de Conta da sociedade insolvente, a quem entregava os documentos necessários para a contabilidade; a emitir as faturas aos clientes e recebia destes os respetivos pagamentos.
28. Até meados de 2016, a requerida AA nunca esteve envolvida no giro e funcionamento comercial da insolvente, nunca acompanhou e controlou a condução da atividade da sociedade, nunca teve poder decisório sobre o destino da empresa, nunca contratou com terceiros em nome da empresa, nunca admitiu ou despediu, nunca exerceu poderes de chefia, nunca praticou atos de comando, ou deu instruções ou ordens aos empregados, nunca fez pagamentos a fornecedores ou credores, ou sequer encomendas, nem tão pouco contactos com clientes, fornecedores ou credores.
29. A requerida AA assumiu, na qualidade de responsável subsidiário, relativamente ao projeto de reversão da execução fiscal em que é executada a insolvente, o pagamento da dívida à Segurança Social no âmbito do plano prestacional acordado, conforme documento de fls. 138-verso e 139, cujo teor se dá por reproduzido.
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2.1 Factos não provados
O Tribunal a quo considerou não provados os seguintes factos:
a) As situações descritas nos pontos 12, 26, 27 e 28 dos factos provados tenham ocorrido até junho de 2017.
b) Os factos descritos nos pontos 11 e 15 tenham sido registados na conta de acionistas/sócios depois de a requerida AA ter assumido a gerência de facto.
c) A requerida AA tenha tomado conhecimento da realidade da insolvente após junho de 2017.
d) A requerida AA desconhecesse a origem do crédito que se encontra registado a seu favor.
e) A situação de insolvência da sociedade tivesse ficado evidente para a requerida AA a partir de outubro de 2018.
f) A apresentação à insolvência tenha ocorrido dentro dos 30 dias seguintes ao conhecimento da situação de insolvência pela requerida AA.
g) A requerida AA nunca tenha auferido quaisquer lucros ou vantagens da situação a que se sujeitou, nem dela tenha retirado qualquer proveito pessoal.
h) O valor comercial do veículo referido no ponto 7 dos factos provados corresponda ao faturado.
i) A quantia obtida com a venda do referido veículo não haja sido usada em proveito pessoal da requerida AA.
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2.3 Motivação
O Tribunal a quo fundou a sua convicção nos seguintes termos:
“A convicção do Tribunal fundou-se na análise crítica e conjugada do acervo documental junto aos presentes autos incidentais de qualificação de insolvência, nas peças processuais juntas aos autos principais e demais apensos, designadamente da apreensão de bens e reclamação de créditos, nas declarações da AI e no depoimento das testemunhas ouvidas em audiência. Tudo, em articulação com o princípio da liberdade de apreciação da prova e as regras da experiência comum.
Assim, a prova da matéria a que se reportam os pontos 1 a 5 dos factos provados, assentou no teor da certidão permanente junta pela devedora com a petição inicial, a fls. 7 do processo principal, e que igualmente acompanha o parecer da AI, a fls. 8 e 9 deste apenso, a qual, tendo sido produzida por um organismo público no âmbito das respetivas atribuições legais, sem que tenha sido suscitada a falsidade do respetivo teor, é idónea à demonstração dos factos inscritos no registo que dela constam.
Os pontos 17, 18, 20, 21, 22, 23 e 24 dos factos provados, resultam das peças processuais correspondentes, constantes do processo principal e respetivos apensos.
Relativamente aos pontos 12 a 16 da matéria de facto provada, tal decorreu essencialmente do próprio teor dos documentos que acompanham o parecer produzido pela AI, designadamente balancetes e IES’s, tendo a mesma confirmado nas suas declarações em Tribunal a análise que verteu naquele parecer, descrevendo com pertinência e de modo coerente e tecnicamente consistente os factos em que assentaram as conclusões a que nele chegou, reafirmando igualmente que a data assinalada como início da participação da requerida AA na vida social/financeira da sociedade insolvente – junho de 2017 – (arts. 14 e 15 do parecer da AI) resultou de informação prestada pela própria requerida.
Acontece que tal informação prestada pela requerida à AI, e que esta verteu no respetivo parecer, foi contrariada pela testemunha CC, contabilista certificado (anteriormente denominado TOC) da sociedade insolvente M..., o qual, num depoimento espontâneo, objetivo, coerente e devidamente fundamentado, merecedor por isso da credibilidade que o Tribunal lhe conferiu, apontou o período correspondente a meados de 2016, como aquele em que, apercebendo-se do avolumar das dívidas à Segurança Social, alertou a requerida AA para a necessidade de assumir as respetivas responsabilidades enquanto gerente da M..., dizendo-lhe “AA, tens mesmo de ser tu a gerir”, passando desde então (“a partir de 2016”) a ser “mais ativa na vida da sociedade”, da qual passou a “tomar rédeas”, deixando desde então o seu pai e requerido BB de intervir na gestão da empresa. Em face do que acaba de se referir, resultou a prova dos factos 6 e 7 e a falta de prova da matéria em sentido contrário, designadamente da plasmada nas alíneas a) a e).
Declarou igualmente esta testemunha, com relevância, que as saídas de caixa (saídas de dinheiro da sociedade sem suporte documental) ocorreram maioritariamente quando o requerido BB geria a sociedade, admitindo que parte dessas saídas de caixa aconteceram em período em que a gerência de facto já estava a cargo da requerida AA, o que está em coerência com a documentação contabilística da sociedade, plasmada nos pontos 12 a 16 dos factos provados, em especial com os pontos 14 e 15, reportados aos anos de 2016 (parcialmente) e 2017 (na totalidade), em que a gerência já era efetivamente exercida pela requerida AA, daí resultando que as saídas de caixa no valor total de €96.920,99, descapitalizando a sociedade e dificultando o pagamento de dívidas vencidas, nomeadamente, ao Estado (cfr. ponto 16 dos factos provados), tiveram a intervenção de ambos os requeridos, inicialmente do requerido BB e, posteriormente - a partir de meados de 2016 -, da sua filha, a requerida AA.
Relativamente ao negócio de venda da viatura ..., modelo ..., com a matrícula ..-GE-.., em 16 de julho de 2008, pelo preço de €500,00, e que a mesma estava inscrita na contabilidade da insolvente com um valor de €8.500,00, a prova dessa matéria, contida nos pontos 8 e 9 (tal como o facto provado sob o ponto 11), decorre da confissão ficta da requerida AA, bem como dos documentos juntos pela AI com o respetivo parecer, esclarecendo a AI no seu depoimento que a própria requerida transmitiu que aquele valor foi recebido em dinheiro, existindo fatura da venda, mas sem entrada na contabilidade, aderindo-se ao parecer da AI no sentido de considerar que o respetivo valor comercial não era inferior a €5.000,00, tendo em conta que o contabilista certificado aludiu ao estado daquela viatura como “normal” e ao facto de a mesma ter sido inscrita na contabilidade com o valor de €8.500,00, daí resultando igualmente a falta de prova da matéria descrita nas alíneas g) e h), sendo certo que nenhuma prova se produziu que a quantia obtida com a venda do referido veículo não haja sido usada em proveito pessoal da requerida AA, sabendo-se simplesmente que não ingressou na contabilidade da sociedade.
Sobre a situação financeira da M... que conduziu à respetiva insolvência, a AI esclareceu que tal resultou da descapitalização da empresa ao longo de vários anos, sendo que os gastos com o pessoal eram excessivos em relação à faturação da sociedade (nas palavras da AI: “gerência descuidada com gastos superiores à capacidade da sociedade gerar receitas”). Mais referiu o contabilista certificado da insolvente ter alertado várias vezes a requerida AA que a situação da sociedade era insustentável, o que disse ter feito cerca de um ano a um ano e meio antes da apresentação à insolvência.
Neste sentido, é inequívoco que a requerida AA, além de gerente de direito desde a constituição da sociedade ..., assumiu efetivamente o exercício exclusivo de gerente de facto daquela empresa, desde meados de 2016, o que foi reforçado pelos depoimentos das testemunhas FF e EE, ambas trabalhadoras têxteis ao serviço da insolvente desde o início da atividade da sociedade até ao seu encerramento, revelando ambas que de início era o pai (requerido BB) e mais tarde a filha (requerida AA) quem geria (“estava à frente”, na expressão de ambas) a M.... A própria mãe da requerida AA e ex-cônjuge do requerido BB, GG, mostrando estar inteirada da dinâmica da sociedade, da qual revelou ter sido colaboradora, admitiu que quem geriu a empresa foi o ex-marido BB, “até 2016 ou 2017”.
Também não se demonstrou que a apresentação à insolvência tenha ocorrido dentro dos 30 dias seguintes ao conhecimento da situação de insolvência pela requerida AA (alínea f) dos factos não provados), antes resultando dos autos a crescente insustentabilidade da situação financeira da sociedade insolvente, ao longo dos anos de 2015, 2016, 2017 e 2018, revelada nos pontos 12 a 18 dos factos provados.
De todo o exposto resultou a prova da factualidade assinalada, não resultando demonstrados quaisquer outros factos relevantes alegados, designadamente dos elencados nas alíneas a) a i), quer pela prova da matéria em sentido contrário, quer ainda por falta de prova dos fatos correspondentes, nos termos sobreditos.”.
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3. Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar e decidir:
Das conclusões formuladas as quais delimitam o objecto do recurso, tem-se que as questões a resolver no âmbito do presente recurso são as seguintes:
i) Se a decisão é nula;
ii) Da impugnação da matéria de facto;
iii) Da qualificação da insolvência como culposa;
iv) Da adequação da indemnização.
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4. Conhecendo do mérito do recurso:
4.1 Da nulidade da decisão
Arguiu a recorrente a nulidade da decisão recorrida por falta de pronúncia, alegando que o Tribunal a quo deixou de se pronunciar sobre factos que lhe cumpria conhecer relativos aos esforços da apelante no sentido de evitar a insolvência, no período em que, além de gerente de direito, efectivamente assumiu funções de gerente de facto.

Vejamos, então, se a decisão sob recurso é nula.
Ora, as causas de nulidade da sentença vêm taxativamente enunciadas no artigo 615.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, aplicável a outras decisões, por força do disposto no artigo 613.º, n.º 3, onde se estabelece que é nula a sentença:
- Quando não contenha a assinatura do juiz (al. a)).
- Quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (al. b)).
- Quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível (al. c)).
- Quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (al. d)).
- Quando condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido (al. e)).
O Prof. Castro Mendes, in “Direito Processual Civil”, Vol. III, pág. 297, na análise dos vícios da sentença enumera cinco tipos: vícios de essência; vícios de formação; vícios de conteúdo; vícios de forma e vícios de limites.
Os vícios determinantes da nulidade da sentença correspondem, assim, a casos de irregularidades que afectam formalmente a sentença e provocam dúvidas sobre a sua autenticidade, como é a falta de assinatura do juiz, ou ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduz, logicamente, a resultado oposto do adoptado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de pretender conhecer questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões de que deveria conhecer (omissão de pronúncia).
São, sempre, vícios que encerram um desvalor que excede o erro de julgamento e que, por isso, inutilizam o julgado na parte afectada.
Em nosso entender, a falta de pronúncia que determina a nulidade da sentença incide sobre as questões, entendendo-se por questão o dissídio ou o problema concreto a decidir e não sobre factos concretos com relevo para a decisão da causa que constituíam o objecto do processo ou lhe cabia apurar, sendo certo que, como bem se refere no Acórdão da Relação de Lisboa de 29/03/2011, proferido no processo 288/09.1GBMTJ.L1-5, acessível em www.dgsi.pt., «os conceitos de facto e questão não são sobreponíveis».
Aliás, tal temática sempre pode ser suscitada em sede de alteração/impugnação da matéria de facto.
Afigura-se-nos, por isso, que a sentença recorrida não está assim ferida do invocado vício de nulidade por omissão de pronúncia.
Não ocorre, assim, este fundamento de nulidade da decisão.

4.2. Da Impugnação/alteração da Matéria de facto
Pugna, ainda, a recorrente que não podem ser considerados provados os factos que constam dos pontos 6, 7, 10, 12, 13, 14, 15, 16, 26, 27 e 28 da factualidade provada nos termos aí enunciados.
Quanto aos pontos 6, 7, 26, 27 e 28, invoca a apelante que o Tribunal a quo considerou provado que:
“…6. No período entre 20 de janeiro de 2014 e meados de 2016, a gerência de facto da sociedade foi exercida única e exclusivamente pelo requerido BB, pai da gerente de direito e requerida AA, passando esta a exercer em exclusivo tais funções desde meados de 2016.
7. Até meados de 2016, não obstante fosse gerente de direito, a requerida AA nunca havia participado na vida social/financeira da sociedade insolvente.
(…)
26. Até meados de 2016, a requerida AA nunca tomou qualquer decisão de pagamento a fornecedores, trabalhadores ou ao Estado.
27. Até meados de 2016, foi sempre o requerido BB a lidar com os fornecedores, quer comprando, quer pagando; a lidar com o Técnico Oficial de Conta da sociedade insolvente, a quem entregava os documentos necessários para a contabilidade; a emitir as faturas aos clientes e recebia destes os respetivos pagamentos.
28. Até meados de 2016, a requerida AA nunca esteve envolvida no giro e funcionamento comercial da insolvente, nunca acompanhou e controlou a condução da atividade da sociedade, nunca teve poder decisório sobre o destino da empresa, nunca contratou com terceiros em nome da empresa, nunca admitiu ou despediu, nunca exerceu poderes de chefia, nunca praticou atos de comando, ou deu instruções ou ordens aos empregados, nunca fez pagamentos a fornecedores ou credores, ou sequer encomendas, nem tão pouco contactos com clientes, fornecedores ou credores.”.
Defende a apelante que os referidos factos devem ser alterados passando a constar que a gerente/recorrente apenas assumiu a gerência de facto da empresa, cerca de um ano, ano e meio antes da sua apresentação à insolvência.
Acrescenta que o mesmo sucede com os factos vertidos nas alíneas a) e c) da factualidade dada como não provada, que, deverão também ser alterados nos termos atrás expostos.
Quanto ao ponto 10, onde consta como provado que “À data da venda, o valor comercial da referida viatura não era inferior a €5.000,00”, defende a apelante que o mesmo deve ser suprimido da referida enunciação fáctica.
Pugna, ainda, que sejam aditados aos pontos 12, 13, 14 e 15 dos factos provados (que descreve os valores registados na conta de accionistas/sócios) que os valores em causa só chegaram ao conhecimento da apelante no momento em que a mesma assumiu as funções de gerente de facto, ou seja, no ano, ano e meio, anterior à apresentação da insolvência uma vez que até então não era conhecedora da realidade económica e financeira da sociedade insolvente - altura em que tudo fez para evitá-la.
Defende, por fim, que quanto aos factos vertidos nas alíneas b) e d) da factualidade dada como não provada, deverão ser os mesmos alterados nos termos atrás expostos, e aditados ao probatório.

Vejamos, então.
Entende-se actualmente, de uma forma que se vinha já generalizando nos tribunais superiores, hoje largamente acolhida no artigo 662.º do Código de Processo Civil, que no seu julgamento, a Relação, enquanto tribunal de instância, usa do princípio da livre apreciação da prova com a mesma amplitude de poderes que tem a 1ª instância (artigo 655.º do anterior Código de Processo Civil e artigo 607.º, n.º 5, do actual Código de Processo Civil), em ordem ao controlo efectivo da decisão recorrida, devendo sindicar a formação da convicção do juiz, ou seja, o processo lógico da decisão, recorrendo com a mesma amplitude de poderes às regras de experiência e da lógica jurídica na análise das provas, como garantia efectiva de um segundo grau de jurisdição em matéria de facto; porém, sem prejuízo do reconhecimento da vantagem em que se encontra o julgador na 1ª instância em razão da imediação da prova e da observação de sinais diversos e comportamentos que só a imagem fornece.
Como refere A. Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, págs. 224 e 225, “a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência”.
Veio, porém, a jurisprudência precisar que a impugnação da decisão de facto não se justifica a se, de forma independente e autónoma da decisão de mérito proferida, assumindo antes um carácter instrumental face à mesma.
Tem vindo a ser entendido de forma maioritária pelos Tribunais Superiores - vd, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-05-2017, proferido no Processo nº 4111/13.4TBBRG.G1.S1, in www.dgsi.pt - que, por força dos princípios da utilidade, da economia e da celeridade processual, não se deve reapreciar a matéria de facto quando os factos objecto da impugnação não forem susceptíveis de, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, terem relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe ser inútil (artigos 2º, n.º 1 e 130º, ambos do Código de Processo Civil).
Com efeito, a «impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, consagrada no artigo 685.º-B [do anterior C.P.C.], visa, em primeira linha, modificar o julgamento feito sobre os factos que se consideram incorrectamente julgados. Mas, este instrumento processual tem por fim último possibilitar alterar a matéria de facto que o tribunal a quo considerou provada, para, face à nova realidade a que por esse caminho se chegou, se possa concluir que afinal existe o direito que foi invocado, ou que não se verifica um outro cuja existência se reconheceu; ou seja, que o enquadramento jurídico dos factos agora tidos por provados conduz a decisão diferente da anteriormente alcançada. O seu efectivo objectivo é conceder à parte uma ferramenta processual que lhe permita modificar a matéria de facto considerada provada ou não provada, de modo a que, por essa via, obtenha um efeito juridicamente útil ou relevante» (Acórdão da Relação de Coimbra, de 24.04.2012, relator Beça Pereira, proferido no processo n.º 219/10, com bold apócrifo).
Logo, «por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objecto da impugnação for insusceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente» (Acórdão da Relação de Coimbra, de 27.05.2014, relator Moreira do Carmo, proferido no processo n.º 1024/12, com bold apócrifo).
Por outras palavras, se, «por qualquer motivo, o facto a que se dirige aquela impugnação for, “segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito”, irrelevante para a decisão a proferir, então torna-se inútil a actividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto, pois, nesse caso, mesmo que, em conformidade com a pretensão do recorrente, se modifique o juízo anteriormente formulado, sempre o facto que agora se considerou provado ou não provado continua a ser juridicamente inócuo ou insuficiente.
Quer isto dizer que não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objecto da impugnação não for susceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, antemão, ser inconsequente, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processual consagrados nos artigos 2.º n.º 1, 137.º e 138.º.» (Acórdão da Relação de Coimbra, de 24.04.2012, relator Beça Pereira, Processo n.º 219/10, com bold apócrifo).
No caso vertente, detendo a requerida, aqui apelante, a qualidade de gerente de direito é manifesto que a insolvência que seja declarada culposa a tem de abranger, ainda que a gerência de facto seja exercida por terceiro durante um período temporal mais limitado. Na verdade, a finalidade da lei foi alargar a responsabilização, incluindo quer os gerentes de facto quer os de direito, nos casos em que as funções de gerência não estão reunidas na mesma pessoa, e não restringi-la aos gerentes de facto, com exclusão dos gerentes de direito. Diga-se, ainda, que a previsão do artigo 186.º, nºs 1 e 2 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas não visou excluir os administradores de direito, que o não sejam de facto, mas, inversamente, estender a qualificação a actos praticados por administradores de facto, sendo certo que a ignorância e o alheamento dos destinos da sociedade constituem, por si só, uma violação dos deveres gerais do gerente da insolvente (artigo 64.º, n.º 1 Código das Sociedades Comerciais).
De resto, a jurisprudência tem sido unânime em considerar que a qualidade de gerente de direito permite-lhe acompanhar a vida da sociedade, inteirar-se da gerência e do modo como é exercida, zelar pelo cumprimento dos deveres legais, sendo esse o conteúdo funcional do ofício/função, cuja omissão o faz incorrer em responsabilidade.
Assim, sendo a apelante gerente de direito é irrelevante para este fim apurar em que período temporal preciso desempenhou, ainda, funções de gerente de facto, o que seria diferente caso não fosse gerente de direito e apenas gerente de facto. De resto, no caso vertente e no período aqui em causa, a apelante, além de gerente de direito, desempenhou também funções como gerente de facto, como resulta da prova produzida, cuja apreciação não merece reparo, sendo certo que pretende, em grande parte da impugnação apresentada, circunscrever, apenas, o referido período temporal, o que se nos afigura irrelevante nesta sede.
Afigura-se-nos, por isso, que as limitações temporais do exercício de facto pela aqui apelante e que se pretende aditar, alterando a matéria de facto são, nesta sede, irrelevantes.
De resto, a prova encontra-se bem e devidamente apreciada.
Com efeito, a avaliação do Senhor Juiz a quo, efectivada no contexto da imediação da prova, surge-nos como claramente sufragável, com iniludível assento na prova produzida e em que declaradamente se alicerçou, nada justificando, por isso, a respectiva alteração.
Na realidade, a convicção expressa pelo tribunal a quo tem razoável suporte naquilo que a gravação das provas e os demais elementos dos autos lhe revela.
Como é sabido, a livre apreciação da prova, não se confunde, de modo algum com apreciação arbitrária da prova, nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova; a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios de experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica. Dentro destes pressupostos se deve portanto colocar o julgador ao apreciar livremente a prova.
De resto, a actividade dos Juízes, como julgadores, não pode ser a de meros espectadores, receptores de depoimentos. A sua actividade judicatória há-de ter, necessariamente, um sentido crítico. Para se considerarem provados factos não basta que as testemunhas chamadas a depor se pronunciem sobre as questões num determinado sentido, para que o Juiz necessariamente aceite esse sentido ou essa versão. Os Juízes têm necessariamente de fazer uma análise crítica e integrada dos depoimentos com os documentos e outros meios de prova que lhes sejam oferecidos.
Ora, conforme já sustentamos e apesar das razões aduzidas pela recorrente nada nos leva a concluir noutro sentido.
Aliás, parece-nos, igualmente, que a testemunha CC, contabilista certificado (anteriormente denominado TOC) da sociedade insolvente M..., prestou um depoimento espontâneo, objectivo, coerente e devidamente fundamentado, merecedor, por isso, da credibilidade que o Tribunal a quo lhe conferiu, bem como da credibilidade deste Tribunal. De resto, o referido depoimento sai reforçado com a análise crítica da prova documental junta aos autos.
Afigura-se-nos, por isso, não existirem motivos que justifiquem a alteração devendo manter-se as respostas dadas aos referidos pontos da matéria de facto provada.
Em face do que vem de ser exposto, improcede o recurso sobre a decisão da matéria de facto.
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4.3 Da qualificação da insolvência como culposa
Nos termos do artigo 185.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, a insolvência pode ser qualificada como fortuita ou como culposa. Por exclusão de partes, uma vez que a lei apenas define os pressupostos da insolvência culposa, fortuita é a insolvência que não é culposa.
De acordo com o artigo 186.º, n.º 1, a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência. São assim pressupostos desta qualificação da insolvência (i) uma conduta do devedor (ou dos seus administradores, de facto ou de direito), (ii) ocorrida nos três anos anteriores ao início do processo, (iii) que seja dolosa ou com culpa grave e (iv) tenha criado ou agravado a situação de insolvência.
Segundo Alexandre de Soveral Martins, in Um curso de direito da insolvência, 2016, 2.ª edição revista e actualizada, pág. 404, “Considera-se culposa a insolvência se a situação (de insolvência) foi «criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, de devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência» (art. 186.º, 1). Assim, a lei exige que esteja em causa um comportamento de certos sujeitos (o devedor ou os seus administradores, de direito ou de facto), a existência de dolo ou culpa grave, uma relação causal entre aquele comportamento e a criação ou agravamento da situação de insolvência e, por fim, que o comportamento tenha lugar dentro de um certo lapso de tempo (nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência). A situação de insolvência pode ter sido criada sem que existisse culpa mas pode ter havido culpa no agravamento da situação de insolvência. Em ambos os casos a insolvência pode ser qualificada como culposa.”
A este propósito assinalou-se, no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12.10.2010, proferido no processo n.º 243/09.1TJPRT-G.P1, in www.dgsi.pt, que “o que se qualifica é o comportamento do devedor na produção ou agravamento do estado de insolvência, de modo a que se averigue se existe, à luz da teoria da causalidade adequada, um nexo de causalidade entre os factos por si cometidos ou omitidos e a situação de insolvência ou o seu agravamento, e o nexo de imputação dessa situação à conduta do devedor, estabelecido a título de dolo ou culpa grave. Dolo que, enquanto conhecimento e vontade de realização do facto em causa, pode revestir-se das modalidades de directo, necessário e eventual. Culpa, (stricto sensu) quando o autor prevê como possível a produção do resultado, mas por leviandade, precipitação, desleixo ou incúria crê na sua não verificação e não toma as providências necessárias para o evitar. Este é o recorte da culpa consciente, já que na culpa inconsciente se enquadram as situações em que o agente, por imprevidência, descuido, imperícia ou inaptidão, não chega sequer a conceber a possibilidade do facto se verificar, podendo e devendo prevê-lo e evitar a sua verificação, se usasse da diligência devida. Estes os termos em que devem ser entendidas estas noções usadas pelo CIRE (artigo 186º, 1). Nada dispondo em particular sobre essa matéria, tais conceitos devem ser entendidos nos termos gerais do Direito. E, por isso, também repescada a tese da culpa em abstracto consagrada no Código Civil, apreciada pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso (artigo 487º, 2). A norma exige, no entanto, a culpa grave, traduzida em não fazer o que faz a generalidade das pessoas, em não observar os cuidados que todos, em princípio, observam, contraposta à culpa leve, vertida na omissão da diligência normal, e à culpa levíssima, correspondente à omissão de cuidados especiais que só as pessoas mais prudentes e escrupulosas observam.
O n.º 2 do artigo 186.º, na redacção anterior à conferida pela Lei 9/2022, de 9 de Janeiro, que sofreu ligeira alteração na redacção da alínea i), acrescenta que se considera sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;
b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas;
c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação;
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
e) Exercido, a coberto da personalidade colectiva da empresa, se for o caso, uma actividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa;
f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto;
g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;
h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;
i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no n.º 2 do artigo 188.º.
Por sua vez o n.º 3 do preceito, na redacção anterior à conferida pela Lei 9/2022, de 9 de Janeiro, que sofreu, igualmente, uma ligeira alteração na sua redacção, estatui que se presume a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido: a) o dever de requerer a declaração de insolvência; b) a obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.
No Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15.07.2009, proferido no processo n.º 725/06.7TYVNG-C.P1, in www.dgsi.pt, afirma-se a este respeito o seguinte:
A generalidade da doutrina [o relator refere-se a Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado”, Vol. II, pág. 14; Menezes Leitão, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado”, pág. 175, 2ª edição; e Carneiro da Frada, “A Responsabilidade dos Administradores na Insolvência”, in Estudos Jurídicos e Económicos em Homenagem ao Prof. Doutor António Sousa Franco, Vol. II, pág. 963] considera que as várias alíneas do n.º 2 constituem presunções legais jure et jure, isto é, inilidíveis, conducentes à qualificação da insolvência como culposa. Apesar disso, e partindo do conceito de presunção legal desenhado no artigo 349º do Código Civil, inclinamo-nos mais para o entendimento de que essas alíneas integram factos-índice ou tipos secundários de insolvência culposa. No acórdão do Tribunal Constitucional de 26.11.2008 [in DR, 2ª Série, n.º 9, de 14.01.2009], escreveu-se a este propósito: «… é duvidoso que na previsão do artigo 186º do CIRE se instituam verdadeiras presunções. Na verdade, o que o legislador faz corresponder à prova da ocorrência de determinados factos não é a ilação de que um outro facto (fenómeno ou acontecimento da realidade empírico-sensível) ocorreu, mas a valoração normativa da conduta que esses factos integram. Neste sentido, mais do que perante presunções inilidíveis, estaríamos perante a enunciação legal … de situações típicas de insolvência culposa». De todo o modo, sejam presunções ou factos-índice, o legislador prescinde de uma autónoma apreciação judicial acerca da existência de culpa. Provada qualquer uma das situações enunciadas nas citadas alíneas, estabelece-se de forma automática o juízo normativo de culpa do administrador, sem necessidade de demonstração do nexo causal entre a omissão dos deveres constantes das diversas alíneas do n.º 2 e a situação de insolvência ou o seu agravamento. O n.º 3 do mesmo artigo apresenta, por seu turno, um conjunto de situações de presunção de culpa grave. Trata-se, contudo, de presunções juris tantum, ilidíveis por prova contrária. A culpa grave, assim presumida, não implica, sem mais, a qualificação da insolvência como culposa, mas apenas que, ao omitir-se o cumprimento desses deveres, se actuou com culpa grave. Com efeito, como nas hipóteses do n.º 3 já se não presume o nexo de causalidade de que a omissão dos deveres aí descritos determinou a situação de insolvência da empresa, ou que para ela contribuiu, agravando-a, além da prova desses comportamentos omissivos, deve provar-se o nexo de causalidade, ou seja, que foram essas omissões que provocaram a insolvência ou a agravaram.
Maria do Rosário Epifânio, in Manual do Direito da Insolvência, 5.ª edição, pág. 131, escreve que “para auxiliar o intérprete, o art. 186.º (…) prevê dois conjuntos de presunções: o n.º 2 contém um elenco de presunções iuris et de iure de insolvência culposa de administradores de direito ou de facto do insolvente e do próprio insolvente pessoa singular; por seu turno, o n.º 3 prevê um elenco de presunções iuris tantum de culpa grave dos administradores de direito ou de facto do insolvente e do próprio insolvente pessoa singular. A opção por esta técnica jurídica justifica-se pela necessidade de garantir uma maior «eficiência da ordem jurídica na responsabilização dos administradores por condutas censuráveis que originaram ou agravaram insolvências», para além disso favorece a previsibilidade e a rapidez da apreciação judicial dos comportamentos.”
Também Menezes Leitão, in Direito da Insolvência, 2009, pág. 271, acentua que o que resulta do artigo 186º nº 3, é apenas uma presunção de culpa grave, em resultado da actuação dos administradores, mas não uma presunção da causalidade da sua conduta em relação à situação de insolvência, exigindo-se a demonstração nos termos do artigo 186º nº 1 que a insolvência foi causada ou agravada em consequência dessa mesma conduta. No mesmo sentido, Soveral Martins, loc. cit, pág. 422, afirma que «o art. 186.º, 3, permite no entanto perguntar se a presunção é apenas relativa à culpa grave ou se também é presumida a insolvência culposa. Perante o disposto no artigo 186.º, 1, parece-nos que as presunções previstas no n.º 3 seguinte apenas dizem respeito à actuação do devedor. Será, ainda, necessário provar que tal actuação com culpa grave (presumida) criou ou agravou a situação de insolvência». Na jurisprudência pronunciaram-se nesse sentido, entre outros os Acórdãos da Relação do Porto de 26.01.2010, proc. 110/08.6TBAND-D.C1, de 04.05.2010, proc. 427/07.TBAGD-G.C1, e de 07.07.2016, proc. 353/09.5TYVNG-E.P1, da Relação de Lisboa de 13.09.2007, proc. n.º 0731516, in www.dgsi.pt.
Podemos, pois, assentar no seguinte: para que a insolvência possa ser qualificada como culposa é necessário que a actuação do devedor tenha sido causa da situação de insolvência ou do seu agravamento, uma vez que o devedor pode ter actuado dolosamente mas em nada ter contribuído para a criação ou agravamento da insolvência. Todavia, verificada uma das situações do n.º 2 do artigo 186.º presume-se iuris et de iure a verificação desses requisitos e a insolvência não pode deixar de ser qualificada como culposa. Já se apenas estiver verificada uma das situações previstas no nº 3, para a insolvência ser declarada culposa é necessário que se demonstre que a actuação com culpa grave criou ou agravou a situação de insolvência, presumindo-se a culpa grave mas facultando-se ao insolvente a faculdade de ilidir essa presunção iuris tantum.
Fazendo aplicação destes normativos à matéria de facto assente, na decisão recorrida entendeu-se “que a conduta dos afectados e, designadamente, da aqui apelante pela qualificação da insolvência tem de ser subsumida ao disposto na alínea d), do n.º 2, do referido artigo 186.º, do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas, e, ainda, no n.º 3, alínea a), do Código de Insolvência e de Recuperação de Empresa”.
Diverge a recorrente desta qualificação jurídica dos factos provados sustentando, desde logo, que não estão preenchidas as situações da alínea d) do n.º 2 do artigo 186.º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas.
Sem razão, adiantamos desde já.
Com efeito, como vimos, a previsão da alínea d) contempla a situação de os administradores terem disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros.
Embora o legislador tenha pretendido retractar nas diversas alíneas do n.º 2 situações de facto distintas, essas previsões não são necessariamente exclusivas ou excludentes, nada obstando a que a mesma actuação possa preencher em simultâneo a previsão de mais de uma alínea.
Na decisão recorrida entendeu-se que a alínea d) está preenchida tendo o Tribunal a quo relevado a seguinte factualidade dada como provada:
“8. Em 22 de outubro de 2018, a sociedade alienou a viatura de marca Renault, modelo ..., com a matrícula ..-GE-.., de 16 de julho de 2008, pelo preço de €500,00 (quinhentos euros).
9. Tal viatura foi inscrita na contabilidade com um valor de €8.500,00.
10. À data da venda, o valor comercial da referida viatura não era inferior a €5.000,00 (cinco mil euros).”
Ora, da factualidade provada enunciada resulta que a insolvente alienou a viatura de marca Renault, modelo ..., com a matrícula ..-GE-.., de 16 de Julho de 2008, pelo preço de €500,00, inscrita na contabilidade, com um valor de €8.500,00, sendo certo que à data da venda, o valor comercial da referida viatura não era inferior a €5.000,00.
Ou seja, a apelante alienou o ... de marca Renault, modelo ..., com a matrícula ..-GE-.., em proveito de terceiro, por um valor de €500,00, cerca de 10 vezes inferior ao preço de mercado, que se situa em €5.000,00, beneficiando-o ilegitimamente nessa medida e prejudicando a sociedade, por inexistência de um nexo de correspetividade (sinalagma) entre as prestações, pelo que se deve considerar preenchida a previsão da alínea d), do n.º 2, do artigo 186.º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas. Com efeito, o proveito da alienação não tem que ser pessoal, podendo ser de terceiros, alheio aos interesses da sociedade.
A decisão recorrida considerou, ainda, preenchida a previsão da alínea a), do n.º 3, do artigo 186.º referente ao não cumprimento do dever de apresentação à insolvência, segmento da decisão com a qual a recorrente, igualmente, não concorda.
Ora, embora sem unanimidade mas de forma largamente maioritária, a doutrina e a jurisprudência têm vindo a interpretar a presunção de existência de culpa grave a que alude o n.º 3 do citado artigo 186.º no sentido de que, sendo constatada a omissão do dever, a lei apenas faz presumir a culpa grave do respectivo administrador ou gerente, o que é insuficiente para qualificar a insolvência como culposa, por faltar um dos requisitos previstos no n.º 1 do mesmo artigo, isto é, o nexo de causalidade entre aquela omissão culposa e a criação ou o agravamento da situação de insolvência, o qual, não podendo presumir-se, terá que ser demonstrado (cf. na jurisprudência, v.g. os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 6/10/2011, processo n.º 46/07.8TBSVC-O.L1.S1 e deste Tribunal da Relação, de 24/5/2010, processo n.º 316/08.0TBVFR-C.P1; de 22/6/2010, proc. 242/09.3TJPRT-A.P1; de 20.10.2009, proc. 578/06.5TYVNG-A.P1; de 07.01.2008, proc. 0754886; de 17.11.2008, proc. 0855650; de 13.09.2007, proc. 0731516; de 24.09.2007, proc. 0753853; de 18.06.2007, proc. 0731779; de 15.03.2007, proc. 0730992; e de 22.05.2007, proc. 0722442, todos disponíveis em www.dgsi.pt.; e na doutrina, Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, págs. 611 e 612; Luís Menezes Leitão, Direito da Insolvência, pág. 273; e em sentido não totalmente coincidente com os anteriores autores, Catarina Serra, O Novo Regime Português da Insolvência, Uma Introdução, Almedina, 2008, pág. 95 e artigo intitulado “Decoctor ergo fraudactor”? - A insolvência culposa (esclarecimento sobre um conceito a propósito de uma presunções)”, in Caderno de Direito Privado Português, n.º 21, Janeiro/Março, 2008, pág. 60, citados naquele primeiro acórdão).
Entendeu o Senhor Juiz a quo que o pedido de insolvência apenas foi apresentado em Novembro de 2018, sendo certo que a situação de insustentabilidade financeira da sociedade insolvente já existia desde 2015, prolongando-se nos anos seguintes: em 2016, 2017 e 2018.
Entendeu, ainda, que o avolumar progressivo das dívidas com o retardamento da apresentação à insolvência redundou em claro prejuízo para os credores, que viram agravada a possibilidade de cobrança dos respectivos créditos vencidos, o que nesta altura se revela impossível, atenta a receita de apenas €197,00 resultante da liquidação do activo, tendo em conta que a persistência do exercício de uma actividade deficitária culminou com uma declaração de insolvência apenas em Novembro de 2018, num contexto de descapitalização da sociedade com saídas de caixa que se foram avolumando desde 2015 e cujo valor, registado contabilisticamente a 30 de Outubro de 2018, ascendeu a €96.920,99, com dívidas de elevados valores, designadamente a trabalhadores (€150.000,00), à Segurança Social (€133.831,50) e à Fazenda Nacional (€11.009,81).
Entendeu, por fim, que neste âmbito, afigura-se irrelevante para o que aqui importa, o facto de, aquando da constituição da insolvente, a apelante AA ser estudante do 12º ano do ensino secundário, pois os factos que emergiram provados antes revelam a prática de actos típicos do exercício pleno da actividade de gerente, designadamente com a alienação de bem da sociedade (ponto 8 dos factos provados) e assumindo, na qualidade de responsável subsidiário, relativamente à reversão da execução fiscal em que era executada a insolvente, o pagamento da dívida à Segurança Social no âmbito do plano prestacional acordado. Assim, é por demais evidente que a insolvente M... Unipessoal, Ld.ª não cumpriu o dever de apresentação tempestiva à insolvência, facto que agravou, pelo menos, a situação de insolvência, nos termos sobreditos.
Essas conclusões afiguram-se-nos absolutamente irrefutáveis.
Destes factos pode-se concluir que ocorreu o incumprimento generalizado susceptível de accionar a presunção “juris et de jure” de conhecimento ou do dever de conhecimento por parte da recorrente da situação de insolvência da sociedade, sendo que a não apresentação à insolvência agravou a situação de insolvência.
Em suma, a insolvência não pode deixar efectivamente ser qualificada como culposa, sendo certo que as sanções aplicadas à apelante afiguram-se-nos adequadas.
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4.4 Da medida da indemnização
Nas últimas conclusões a apelante questiona igualmente a sua condenação a indemnizar os credores da insolvente solidariamente com o outro afectado no montante de 50% dos créditos não satisfeitos e até às forças do seu património.
A alínea e) do n.º 2 do artigo 189.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, na redacção anterior conferida pela Lei n.º 9/2022, de 09 de Janeiro, estabelece que a condenação em causa tem por objecto a indemnização dos credores no montante dos créditos não satisfeitos até às forças dos patrimónios dos responsáveis, acrescentando apenas que a responsabilidade dos diversos obrigados é solidária.
Na nova redacção conferida pela Lei n.º 9/2022, de 09 de Janeiro, a referida alínea e), ligeiramente alterada, estabelece que a condenação em causa tem por objecto a indemnização dos credores até ao montante dos créditos não satisfeitos, considerando as forças dos respectivos patrimónios, sendo tal responsabilidade solidária entre todos os afectados.
O n.º 4 do artigo 189.º acrescenta que ao proferir essa condenação «o juiz deve fixar o valor das indemnizações devidas ou, caso tal não seja possível em virtude de o tribunal não dispor dos elementos necessários para calcular o montante dos prejuízos sofridos, os critérios a utilizar para a sua quantificação, a efectuar em liquidação de sentença».
Como é sabido, a condenação das pessoas afectadas pela qualificação a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente tem a natureza de sanção civil. O seu objectivo é a prevenção de comportamentos que consubstanciam a violação dos deveres dos administradores em prejuízo dos credores através da sua responsabilização (responsabilidade civil) pelos danos que sejam consequência adequada da actuação que conduz à qualificação da insolvência como culposa. Trata-se, assim, de uma previsão que faz acrescer à responsabilidade genérica prevista nos artigos 64.º, n.º 1, alínea b), e 78.º do Código das Sociedades Comerciais, uma responsabilidade específica dos administradores perante os credores sociais numa situação de insolvência da pessoa colectiva devedora.
Na interpretação que se nos afigura mais conforme ao texto da lei, o que nos parece sair reforçado com a alteração emergente da Lei n.º 9/2022, de 09 de Janeiro, à natureza da responsabilidade ali prevista e ao princípio da proporcionalidade, a responsabilidade dos administradores não corresponde necessariamente ao montante dos créditos que as forças da massa insolvente não permitirão satisfazer. Esse é apenas o limite da obrigação de indemnizar: os credores não poderão exigir do afectado pela qualificação uma indemnização superior à parte do valor do crédito reclamado e verificado na insolvência que não seja satisfeito pelo produto da massa.
João Labareda e Carvalho Fernandes, in Código da Insolvência e Recuperação de Empresas Anotado, 2.ª edição, pág. 736, observam que a forma como esta responsabilidade está desenhada “revela que, a mais da função ressarcitória que realiza, assume manifestamente um carácter de penalização pela culpa da insolvência”. Para estes autores o modelo “recuperou substancialmente a solução que fora acolhida nos artigos 126.º-A e 126.º-B do CPEREF, introduzidos pelo Decreto Lei 315/98, de 20 de Outubro”, embora com diferenças relevantes, de que aqui se destaca o facto da nova lei não fazer “nenhuma referência à possibilidade de a responsabilidade ser limitada ao dano efectivamente causado pelo culpado quando inferior ao do passivo não coberto pelas forças da massa, diferentemente do que sucedia com a parte final do n.º 1 do art.º 126.º-B”. Anotam ainda que deste modo se permite “ao juiz referenciar factores que, designadamente, em razão das circunstâncias do processo, devam mitigar o recurso, puro e simples, a meras operações aritméticas de passivo menos resultado do activo” abrindo consequentemente “espaço para uma reflexão atinente ao grau de culpa atribuído aos atingidos pela qualificação de insolvência”.
O Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 280/2015, in www.tribunalconstitucional.pt, considerou a este respeito que “a determinação do período de tempo de cumprimento das medidas inibitórias previstas nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 189.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (inibição para a administração de patrimónios alheios, exercício de comércio e ocupação de cargo de titular de órgão nas pessoas colectivas aí identificadas) e, naturalmente, a própria fixação do montante da indemnização prevista na alínea e) do n.º 2 do mesmo preceito legal, deverá ser feita em função do grau de ilicitude e culpa manifestado nos factos determinantes dessa qualificação legal”.
Nessa medida, deve entender-se que a medida da condenação deve reflectir a gravidade da conduta que determinou a qualificação da insolvência como culposa, ponderando a culpa do afectado à luz do princípio da proporcionalidade.
Segundo esse critério, a indemnização deve corresponder ao montante dos danos causados pelo comportamento do afectado que conduziu à qualificação da insolvência. Se, por exemplo, a qualificação da insolvência decorre de um comportamento que se traduziu na destruição ou dissipação de todo ou parte considerável do património do devedor, a indemnização deve ascender ao valor do património destruído ou dissipado que se não fosse esse comportamento iria responder pela satisfação dos créditos.
É por isso que as normas em apreço estabelecem que o juiz deve fixar o valor das indemnizações devidas e, se isso não for possível, fixar, ao menos, os critérios que permitirão liquidar o seu valor, o que não seria minimamente necessário se a indemnização devesse corresponder apenas à diferença entre o valor dos créditos e o pagamento a ser obtido na distribuição do produto da liquidação do activo.
Já se a condenação emergir da qualificação da insolvência em virtude da não apresentação da sociedade à insolvência, o valor da indemnização deve corresponder ao montante que traduz o agravamento da situação de insolvência causado pela não apresentação no momento prescrito pela lei. Por outras palavras, nesta situação, a indemnização deve ser fixada por referência à situação patrimonial da insolvente no momento em que a apresentação devia ter sido feita e comparando a medida em que a mesma permitiria satisfazer o passivo social nesse momento e a medida em que o produto da liquidação do activo irá agora permitir satisfazê-lo, sendo esse o limite da indemnização exigível ao afectado.
No caso vertente, a actuação imputada à recorrente que determinou a qualificação da insolvência é a de ter alienado a viatura de marca Renault, modelo ..., com a matrícula ..-GE-.., de 16 de Julho de 2008, pelo preço de €500,00, inscrita na contabilidade, com um valor de €8.500,00, sendo certo que à data da venda, o valor comercial da viatura não era inferior a €5.000,00. Acresce a violação do dever de apresentação à insolvência que conduziu ao agravamento da situação de insolvência, sendo de salientar que no período temporal em questão o valor saído da conta de accionistas/sócios ascendeu, designadamente, a €98.602,77.
Este comportamento é passível de um grau de censura elevado por revelar uma notória indiferença perante os interesses dos credores e da própria sociedade, da mesma forma que evidencia uma impreparação e incúria no exercício de actos de gestão de sociedades comerciais que são totalmente contrários aos interesses da economia em geral.
Nesse pressuposto e levando em consideração esse elevado grau de censura, o escasso património social de que a empresa dispunha para garantia do direito dos credores e a diferença entre esse património e o que se conseguiu apreender para a massa, entende-se fixar o montante da indemnização a suportar solidariamente pelos afectados em benefício dos credores no montante global de 75.000,00€.
Procede, nesta parte e medida o recurso.
Impõe-se, por isso, a procedência parcial da apelação.
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Sumariando em jeito de síntese conclusiva:
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5. Decisão
Nos termos supra expostos, acordamos neste Tribunal da Relação do Porto em alterar a decisão recorrida fixando em 75.000,00€ (setenta e cinco mil euros) o valor da indemnização em que a apelante é condenada solidariamente com o outro afectado, improcedente no demais o recurso de apelação interposto.
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Custas a cargo da apelante na proporção de 4/5.
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Notifique.

Os Juízes Desembargadores
Paulo Dias da Silva
Isabel Silva
João Venade

(a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinatura electrónica e por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)