Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2892/17.5T8PNF.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDA SOARES
Descritores: CONTRATO DE TRABALHO
DESPEDIMENTO
CRÉDITOS LABORAIS
DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
PESSOA COLECTIVA
Nº do Documento: RP201901072892/17.5T8PNF.P1
Data do Acordão: 01/07/2019
Votação: MAIORIA COM 1 DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ªSECÇÃO (SOCIAL), (LIVRO DE REGISTOS N.º287, FLS.314-321)
Área Temática: .
Sumário: I - Para efeitos da desconsideração da personalidade colectiva importa visualizar na conduta do agente uma combinação de actos, ainda que formalmente lícitos, para atingir um fim ilegítimo.
II - A matéria de facto provada não permite concluir que quer a 1ª Ré – com quem a trabalhadora celebrou contrato de trabalho e que a despediu – quer a 2ª Ré – cujo sócio-gerente contratou a trabalhadora, na qualidade de sócio-gerente da 1ª Ré, mas que renunciou à gerência e vendeu a quota dois anos antes do despedimento da trabalhadora – fizeram uma utilização abusiva da personalidade jurídica colectiva com vista a impedir a trabalhadora despedida de obter o pagamento de créditos salariais.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º2892/17.5T8PNF.P1
Relatora: M. Fernanda Soares – 1583
Adjuntos: Dr. Domingos José de Morais
Dra. Teresa Sá Lopes

Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I
B… instaurou no Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este – Juízo do Trabalho de Penafiel – Juiz 4, acção de impugnação de despedimento, sob a forma de processo comum, contra C…, Unipessoal Lda., e D…, Lda., pedindo a condenação das Rés a pagarem à Autora a) A indemnização em substituição da sua reintegração; b) A quantia de €12.507,00 relativa à indemnização por antiguidade; c) As remunerações que deixou de receber, nomeadamente desde Maio de 2017 até à reintegração da Autora; d) A quantia de €3.000,00 a título de danos não patrimoniais. Pede ainda a condenação das Rés por litigância de má-fé.
Alega ter sido contratada pelo então gerente da Ré C…, E…, em Novembro de 2006, não obstante desde sempre ter desempenhado funções para a Ré D…. Acontece que no dia 12.06.2017 após troca de palavras entre o gerente E… e a Autora, aquele exaltou-se e despediu-a verbalmente, expulsando-a do local de trabalho. No dia seguinte, 13.06.2017, a Autora compareceu para trabalhar tendo sido novamente expulsa pelo referido gerente.
A Ré D… veio contestar alegando que nunca celebrou com a Autora qualquer contrato de trabalho e como tal nunca a despediu. Conclui pela improcedência da acção.
A Ré C… veio contestar alegando que a Autora deixou de comparecer ao trabalho desde 12.06.2017 pelo que a Ré instaurou processo disciplinar com fundamento em faltas injustificadas ocorridas desde aquela data e que culminou no seu despedimento. Pede a improcedência da acção.
A Autora veio responder às contestações referindo que sempre trabalhou segundo a direcção e horário da 2ª Ré, sempre na sede desta e com instrumentos de trabalho pertença da 2ª Ré. Ambas as Rés vieram responder à resposta da Autora.
Foi fixado o valor da acção em €15.507,00, dispensada a realização de audiência prévia, elaborado o despacho saneador, identificado o objecto do litígio e enunciados os seguintes temas de prova: 1. Se a Autora foi transmitida pela 1ª Ré à 2ª Ré; 2. Se são devidos à Autora os créditos laborais que reclama; 3. Se as Rés despediram verbalmente a Autora.
Procedeu-se a julgamento com gravação da prova pessoal e foi proferida sentença que declarou ilícito o despedimento da Autora levado a cabo pela Ré C…, julgou ter ocorrido actuação com abuso de direito por ambas as Rés e desconsiderando a personalidade jurídica autónoma das sociedades em causa condenou ambas as Rés, solidariamente, no pagamento à Autora 1. Da quantia de €9.120,00, a título de indemnização por antiguidade, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da cessação do contrato até efectivo e integral pagamento; 2. Das retribuições que a Autora deixou de auferir desde a data do despedimento – 13.06.2017 – à razão de €760,00 mensais, e o trânsito em julgado da sentença, acrescidas dos juros de mora, à taxa legal, desde a data do vencimento de cada retribuição até integral pagamento, descontado dos montantes eventualmente recebidos a título de subsídio de desemprego, tudo a liquidar posteriormente nos termos do disposto no artigo 358º, nº2 do CPC. Dos demais pedidos foram as Rés absolvidas.
A Ré D…, inconformada, veio recorrer pedindo a revogação da sentença e a sua substituição por acórdão que a absolva dos pedidos, concluindo nos seguintes termos:
1. Da petição inicial depreendeu a recorrente que a recorrida estaria a alegar a sua cedência da 1ª Ré à 2ª Ré, entendimento esse também sufragado pelo Tribunal, já que como se alcança do despacho saneador um dos temas de prova incluído foi «Se a Autora foi transmitida pela 1ª Ré à 2ª Ré».
2. Como resulta dos factos dados como provados não se provou a transmissão ou cedência da Autora da 1ª Ré para a 2ª Ré, tendo-se, sim, provado que a Autora sempre foi trabalhadora da 1ª Ré e que terá sido despedida por E…, o qual, apesar de ser o gerente da recorrente, terá despedido a Autora como gerente de facto da 1ª Ré e, assim, terá agido em representação da 1ª Ré.
3. Deveria, assim, a aqui recorrente ter sido absolvida dos pedidos. Só que
4. O Tribunal a quo, sem qualquer sustentação fáctica, decidiu responsabilizar a 2ª Ré recorrendo à figura da desconsideração da personalidade jurídica autónoma das duas Rés.
5. Afigura-se à recorrente que o Tribunal a quo não andou bem nesta decisão, que mais não passa de que uma mera construção teórica, pois dos factos provados não resulta o «embuste» que só o Tribunal logrou descortinar.
6. Se é verdade que o gerente da aqui recorrente é pai da gerente da 1ª Ré, de tal facto não se chega à ilação que o Tribunal a quo retirou de que «O que, desde logo, indicia que a 1ª Ré não terá sido criado com o fundamento e fim supra assinalados como legalmente associados ao direito de constituir uma sociedade comercial (nova), que a transmissão dessa sociedade à filha de E… também não terá passado de um artifício formal, e que a projectada liquidação da 1ª Ré indicia fortemente o projecto de impedir a Autora de ver satisfeitos os seus créditos laborais».
7. Os sócios fundadores da 1ª Ré e da Ré recorrente não são os mesmos, tão pouco eram os mesmos gerentes à data da constituição das sociedades. Resulta, assim, desde logo, que a 1ª Ré foi constituída no seu direito de constituir uma sociedade comercial nova.
8. Ao longo da sua existência, cada uma das sociedades contratou diversos trabalhadores, nunca tendo nenhum deles sido funcionário de ambos.
9. É verdade que em 2017, data em que cessou o contrato de trabalho da Autora, a 1ª Ré só tinha como funcionária a Autora.
10. Porém, como resulta dos autos, a Autora foi admitida ao serviço da 1ª Ré em Novembro de 2006. Assim, presumir-se que a 1ª Ré foi criada para impedir que a Autora não visse satisfeitos os seus créditos reclamados em 2017, será caso para dizer que o poder de «adivinhação», a tão longo prazo, das Rés seria, no mínimo, extraordinário.
11. O que quer dizer que tal presunção ou ilação do Tribunal a quo não pode colher.
12. Resulta ainda dos autos que ao longo dos anos, cada uma das sociedades registou na Conservatória a sua prestação de contas, que ao longo dos anos foi a 1ª Ré quem efectuou e entregou os descontos obrigatórios nos vencimentos da Autora à Segurança Social, que ao longo destes anos foi a 1ª Ré que efectuou os pagamentos dos vencimentos da Autora.
13. Como resulta dos autos, a 1ª Ré entrou em liquidação em Outubro de 2017, sendo que tal facto não indicia, nem «fortemente o projecto de impedir a Autora de ver satisfeitos os seus créditos laborais», nem sequer levemente.
14. Na verdade, a 1ª Ré registou a sua dissolução, mas encontra-se ainda em liquidação, o que significa que o seu património – activo e passivo – ainda não foi partilhado ou liquidado.
15. Ou seja, não é pelo facto de se encontrar dissolvida que se pode concluir, ou presumir, que a 1ª Ré não tenha activo que possa responder pelos créditos da Autora que lhe venham a ser reconhecidos nestes autos.
16. Em nenhum momento do processo a Autora alegou, ou provou, que a 1ª Ré não tinha ou tem património ou liquidez que lhe permitam pagar eventuais créditos que venham a ser reconhecidos à Autora, ou seja, dos autos nada resulta quanto à situação patrimonial da 1ª Ré.
17. Se o Tribunal a quo desconhece se a 1ª Ré tem ou não bens que possam responder pelos créditos laborais da Autora, não pode dizer que a liquidação em que a 1ª Ré se encontra é um projecto para impedir a Autora de ver satisfeitos os seus créditos laborais.
18. Assim, a «teoria» do embuste, da fraude à lei, do abuso da personalidade colectiva, no caso, não passa disso mesmo: duma «teoria».
19. Na verdade, a actuação da recorrente, e da 1ª Ré, em momento algum se pode considerar ilícita, não resulta dos factos provados, nem face ao exposto, pode resultar, por presunção, que em algum momento a recorrente e a 1ª Ré tenham tido um nítido propósito de iludir a lei.
20. Violou, assim, a sentença recorrida, o disposto nos artigos 334º e 512º do C. Civil.
A Exma. Procuradora Geral Adjunta junto desta Relação emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Admitido o recurso o processo foi inscrito em tabela e foi adiado por falta de vencimento da relatora. Cumpre decidir.
* * *
II
Matéria de facto dada como provada e com relevância para a decisão do recurso [remete-se para os termos da decisão da 1ª instância quanto à demais factualidade aqui não transcrita nos termos do nº6 do artigo 663º do CPC].
1. A trabalhadora B…, ora Autora, foi admitida ao serviço da Ré C…, em 15 de Novembro de 2006, por contrato de trabalho escrito, por tempo indeterminado, para exercer as funções de empregada de balcão, auferindo como vencimento mensal, a quantia de €557,00.
2. Na altura foi contratada pelo senhor E…, gerente da referida sociedade.
3. A Autora desde sempre e até 12 de Junho de 2017 desempenhou funções de assistente comercial – “back office” -, sendo que tal sucedeu nos últimos 5 ou 6 anos na loja da 2ª Ré, praticando a Autora horário de trabalho das 8.30 h às 12.30 h e das 14.30 h às 18.30 h, sendo a única funcionária ao serviço da 1ª Ré, empresa esta que tinha por único objecto a prestação de serviços de assistente comercial – “back office” – à 2ª Ré.
4. Auferia a Autora ultimamente a quantia de média de 760€ mensais.
5. Os funcionários da 2ª Ré que trabalhavam e trabalham na referida loja da 2ª Ré têm o seguinte horário: das 9 h às 12.30 h e das 14.30 h às 19 h.
6. A 2ª Ré pertenceu e pertence a E….
7. Em 18/1/2007 foi registada a aquisição de quotas e designação como gerente da 2ª Ré de E…, estando registada a cessão da quota e designação como gerente dessa empresa da filha de E…, F…, em 29/9/2014, estando ainda registada a entrada dessa mesma sociedade em liquidação em 4/10/2017.
8. No dia 12 de Junho de 2017 a Autora interpelou E… acerca de uma desconformidade que entendia existir no recibo de vencimento.
9. A Autora deslocou-se ao gabinete que faz a contabilidade das duas Rés e entregou a chave da loja referida em 3).
10. No dia 13 de Junho de 2017 a Autora compareceu na loja referida em 3), pelas 8.30 h acompanhada de G….
11. Pelas 9.05 h E… – que era quem de facto dava ordens e instruções à Autora e a quem esta reportava os assuntos do dia-a-dia do seu trabalho - entrou na loja, tendo ocorrido uma discussão entre a Autora e E…, na sequência do que este E… disse à Autora que estava despedida, ordenando-lhe que saísse da loja.
Adita-se ainda a seguinte factualidade
A. A sociedade por quotas D…, Lda., está registada na Conservatória do Registo Comercial desde 04.10.1994 figurando como sócios E… e H…, sendo gerente aquele E… e tem por objecto a compra e venda de equipamentos e acessórios de telecomunicações.
B. A sociedade por quotas C…, Lda., está registada na Conservatória do Registo Comercial desde 22.10.1998 figurando como sócios I… e J…, sendo gerentes J… e K….
C. Em 17.11.2006 é nomeado gerente da C… E….
D. Em 22.11.2006 I… vende a sua quota ao outro sócio, o J….
E. Em 18.01.2007 E… compra a quota de J…
F. Em 25.09.2014 E… renuncia à gerência da C… e vende a quota a F….
G. Em 29.09.2014 é registada a alteração do contrato de sociedade para Sociedade Unipessoal por quotas figurando como sócia e gerente F….
H. Em 04.10.2017 é registada a dissolução da sociedade e designado o liquidatário.
* * *
III
Objecto do recurso.
Da desconsideração da personalidade colectiva das Rés.
Na decisão recorrida concluiu-se ter a Ré C… despedido verbalmente a Autora, segmento da decisão que não foi posto em causa no presente recurso e por isso transitou em julgado nesta parte.
Relativamente à Ré D… escreveu-se na sentença o seguinte: (…) “ Importa de seguida apurar se, no caso dos autos, se verifica actuação em fraude à lei, mais concretamente se ocorreu abuso da personalidade colectiva” (…) “no caso vertente as 1ª e 2ª Rés, actualmente não têm os mesmos sócios/gerentes, mas tiveram até ao ano de 2014, sendo que actualmente os gerentes formais das Rés têm uma relação familiar próxima – são pai e filha – para além do gerente de facto de ambas as Rés ser a mesma pessoa – E… – integrando um mesmo negócio familiar – pois que a 1ª Ré tinha apenas uma trabalhadora – a Autora – e o único objecto de actividade da 1ª Ré era a prestação dos serviços administrativos prestados pela Autora à 2ª Ré, quando a 1ª Ré laborava tinha a sua única funcionária a trabalhar na loja da 2ª Ré, sendo que actualmente a 1ª Ré se encontra em liquidação. Acresce que foi registada a entrada em liquidação da 1ª Ré logo após o despedimento da Autora, nada justificando a sua liquidação que não seja a intenção de evitar o pagamento dos créditos da Autora. O que, desde logo, indicia que a 1ª Ré não terá sido criada com o fundamento e fim supra assinalados como legalmente associados ao direito de constituir uma sociedade comercial (nova), que a transmissão dessa sociedade à filha de E… também não terá passado de um artifício formal, e que a projectada liquidação da 1ª Ré indicia fortemente o projecto de impedir a Autora de ver satisfeitos os seus créditos laborais. Ora, toda esta forma de actuação afigura-se-nos manifestamente abusiva e desconforme à boa-fé negocial, agindo os intervenientes com abuso de direito, previsto no artigo 334º do C. Civil” (…) “Concluindo-se, como se conclui, que a sociedade 1ª Ré na sua existência e funcionamento encerra abuso de personalidade colectiva, por não ser mais do que um embuste que permitiu de forma legal evitar o cumprimento das obrigações da responsabilidade da 2ª Ré, existe actuação com abuso de direito, pelo que se justifica a desconsideração da personalidade jurídica autónoma das sociedades em causa – 1ª e 2ª Rés – sendo ambas as Rés responsabilizadas solidariamente (cf. artigo 512º do C. Civil) pelo pagamento das quantias devidas à Autora” (…).
A apelante discorda pelos seguintes fundamentos: o Tribunal a quo, sem qualquer sustentação fáctica, decidiu responsabilizar a 2ª Ré recorrendo à figura da desconsideração da personalidade jurídica autónoma das duas Rés. Afigura-se à recorrente que o Tribunal a quo não andou bem nesta decisão, que mais não passa de que uma mera construção teórica, pois dos factos provados não resulta o «embuste» que só o Tribunal logrou descortinar. Se é verdade que o gerente da aqui recorrente é pai da gerente da 1ª Ré, de tal facto não se chega à ilação que o Tribunal a quo retirou de que «O que, desde logo, indicia que a 1ª Ré não terá sido criado com o fundamento e fim supra assinalados como legalmente associados ao direito de constituir uma sociedade comercial (nova), que a transmissão dessa sociedade à filha de E… também não terá passado de um artifício formal, e que a projectada liquidação da 1ª Ré indicia fortemente o projecto de impedir a Autora de ver satisfeitos os seus créditos laborais». Os sócios fundadores da 1ª Ré e da Ré recorrente não são os mesmos, tão pouco eram os mesmos gerentes à data da constituição das sociedades. Resulta, assim, desde logo, que a 1ª Ré foi constituída no seu direito de constituir uma sociedade comercial nova. Ao longo da sua existência, cada uma das sociedades contratou diversos trabalhadores, nunca tendo nenhum deles sido funcionário de ambos. É verdade que em 2017, data em que cessou o contrato de trabalho da Autora, a 1ª Ré só tinha como funcionária a Autora. Porém, como resulta dos autos, a Autora foi admitida ao serviço da 1ª Ré em Novembro de 2006. Assim, presumir-se que a 1ª Ré foi criada para impedir que a Autora não visse satisfeitos os seus créditos reclamados em 2017, será caso para dizer que o poder de «adivinhação», a tão longo prazo, das Rés seria, no mínimo, extraordinário. O que quer dizer que tal presunção ou ilação do Tribunal a quo não pode colher. Resulta ainda dos autos que ao longo dos anos, cada uma das sociedades registou na Conservatória a sua prestação de contas, que ao longo dos anos foi a 1ª Ré quem efectuou e entregou os descontos obrigatórios nos vencimentos da Autora à Segurança Social, que ao longo destes anos foi a 1ª Ré que efectuou os pagamentos dos vencimentos da Autora. Como resulta dos autos, a 1ª Ré entrou em liquidação em Outubro de 2017, sendo que tal facto não indicia, nem «fortemente o projecto de impedir a Autora de ver satisfeitos os seus créditos laborais», nem sequer levemente. Na verdade, a 1ª Ré registou a sua dissolução, mas encontra-se ainda em liquidação, o que significa que o seu património – activo e passivo – ainda não foi partilhado ou liquidado. Ou seja, não é pelo facto de se encontrar dissolvida que se pode concluir, ou presumir, que a 1ª Ré não tenha activo que possa responder pelos créditos da Autora que lhe venham a ser reconhecidos nestes autos. Em nenhum momento do processo a Autora alegou, ou provou, que a 1ª Ré não tinha ou tem património ou liquidez que lhe permitam pagar eventuais créditos que venham a ser reconhecidos à Autora, ou seja, dos autos nada resulta quanto à situação patrimonial da 1ª Ré. Se o Tribunal a quo desconhece se a 1ª Ré tem ou não bens que possam responder pelos créditos laborais da Autora, não pode dizer que a liquidação em que a 1ª Ré se encontra é um projecto para impedir a Autora de ver satisfeitos os seus créditos laborais. Assim, a «teoria» do embuste, da fraude à lei, do abuso da personalidade colectiva, no caso, não passa disso mesmo: duma «teoria». Na verdade, a actuação da recorrente, e da 1ª Ré, em momento algum se pode considerar ilícita, não resulta dos factos provados, nem face ao exposto, pode resultar, por presunção, que em algum momento a recorrente e a 1ª Ré tenham tido um nítido propósito de iludir a lei. Vejamos então.
O Professor M. Domingos de Andrade, define negócios em fraude à lei “ aqueles que procuram contornar ou circunvir uma proibição legal, tentando chegar ao mesmo resultado por caminhos diversos dos que a lei designadamente previu e proibiu – aqueles que por essa forma pretendem burlar a lei” (…) “estes, se vão contra a lei, é de modo disfarçado e oblíquo” (…) “ os negócios in fraudem legis como que só ofendem o seu espírito” – Teoria Geral da Relação Jurídica, volume 2, 1987, página 337. Refere ainda aquele ilustre professor que se deve seguir a concepção objectiva de fraude à lei, ou seja, “não releva a intenção das partes. Só interessa a situação ou o resultado prático que o negócio tende a criar. É necessário e suficiente para haver fraude à lei que tal situação ou resultado esteja em contraste com a finalidade legal” – obra citada, página 338.
O Professor Mota Pinto escreveu sobre tal questão o seguinte: “ devem ser considerados contrários à lei, não só os negócios que frontalmente a ofendem (negócios «contra legem»), mas também, quando se constate, por interpretação, que a lei quis impedir, de todo em todo, um certo resultado, os negócios que procuram contornar uma proibição legal, tentando chegar ao mesmo resultado por caminhos diversos dos que a lei expressamente previu e proibiu (negócios em fraude à lei)” (…) concluindo que “ há fraude à lei, quando se frustre claramente a intenção legislativa, se a proibição não for aplicada” – Teoria Geral do Direito Civil, 3ªedição, 1989, página 551.
No mesmo sentido é a posição do Professor Vaz Serra – Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 110, página 28.
Ora, a actuação em fraude à lei passa, no caso concreto, pela análise da existência do abuso da personalidade colectiva e que vamos de seguida tratar.
Segundo o Professor Menezes Cordeiro, os casos em que se coloca o levantamento da personalidade colectiva podem resumir-se em três grupos: a confusão de esferas jurídicas, a subcapitalização e o atentado a terceiros e o abuso da personalidade – O Levantamento da Personalidade Colectiva no Direito Civil e Comercial, Almedina, 2000, página 116.
Refere ainda aquele ilustre professor que “ O abuso do instituto da personalidade colectiva é uma situação de abuso do direito ou de exercício inadmissível de posições jurídicas, verificada a propósito da actuação do visado, através duma pessoa colectiva. No fundo, o comportamento que suscita a penetração vai caracterizar-se por atentar contra a confiança legítima (venire contra factum proprium, supressio ou surrectio) ou por defrontar a regra da primazia da materialidade subjacente (tu quoque ou exercício em desequilíbrio)” – obra citada, página 123.
O Supremo Tribunal de Justiça tem igualmente se pronunciado sobre a «desconsideração da personalidade jurídica» considerando que “ Por trás da desconsideração ou levantamento da personalidade colectiva está, sempre, a necessidade de corrigir comportamentos ilícitos, fraudulentos, de sócios que abusaram da personalidade colectiva da sociedade, seja actuando em abuso de direito, em fraude à lei ou, de forma mais geral, com violação das regras de boa-fé e em prejuízo de terceiros” – acórdão de 26.06.2007, processo 07A1274 em www.dgsi.pt
Também no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 29.04.2008, pode ler-se o seguinte: (…) “ O abuso do instituto da personalidade colectiva tanto ocorrerá nos casos em que o agente actue com intenção específica de ludibriar o credor social, como ainda nos casos em que actue, independentemente da sua intencionalidade, excedendo manifestamente os limites impostos pela boa-fé, como regra de conduta, pelos bons costumes, em particular pela ética dos negócios, ou pelo fim social e económico do direito ou instituto habilitante” – C.J., ano 2008, tomo 2, página 130 e seguintes.
Mais recentemente, no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 03.07.2013, defende-se: (…) “A desconsideração tem de envolver sempre um juízo de reprovação ou censura sobre a conduta do agente e esta deve revelar-se ilícita, havendo que verificar se ocorre uma postura de fraude à lei ou de abuso de direito” – C.J., ano 2013, tomo 3, página 293.
Passemos ao caso dos autos, importando indagar – em face da factualidade provada – qual a conduta ou condutas das Rés que nos permitem concluir que não actuaram, ao longo da relação laboral estabelecida entre a Autora e a 1ª Ré, de boa-fé ou em claro abuso do direito, a justificar a desconsideração da personalidade colectiva da 2ª Ré, já que a 1ª Ré responde, nos termos da sentença recorrida, pelo facto de ter celebrado com a Autora um contrato de trabalho e a ter despedido verbalmente.
A factualidade provada permite afirmar, desde logo, que a Autora foi contratada, em 15.11.2006, pela 1ª Ré para exercer funções de assistente comercial sendo certo que nos últimos anos exerceu tais funções na loja da 2ª Ré. E… pelo menos desde Novembro de 2006 exerceu as funções de gerente da 1ª Ré [e nessa qualidade contratou a Autora] e passou a ser único sócio da mesma na data em que adquiriu, em 18.01.2007, a E… as quotas que este detinha na 1ª Ré. Tal situação manteve-se, até que em Setembro de 2014, o referido E… renuncia à gerência e vende a quota a sua filha F… ocorrendo igualmente a alteração do contrato de sociedade.
É certo que entre a data da contratação da Autora [Novembro de 2006] e até Setembro de 2014, E… foi sócio e gerente de ambas as Rés, mas tal facto, por si só, não nos permite concluir pela existência de comportamentos fraudulentos em ordem a lesar direitos da Autora, quer relacionados com a execução do seu contrato de trabalho quer relacionados com a cessação do mesmo.
E salvo o devido respeito, não estava o E… proibido de constituir uma sociedade em 1994 e adquirir outra em 2007, no pressuposto da licitude do prosseguimento de actividades idênticas ou afins, como igualmente nada impede que ele tenha uma posição de predomínio em cada uma delas, se não for possível imputar-lhe práticas societárias abusivas, bem como à gerente e única sócia da 1ª Ré desde Setembro de 2014, destinadas a impedir a Autora de obter o pagamento dos créditos salariais.
Igualmente carece de suporte factual a conclusão de que nada justificava a liquidação da 1ª Ré, posto que inexistem factos que permitam afirmar que a 1ª Ré, logo após o despedimento da Autora, se apresentou em liquidação com o único objectivo de impedir que a trabalhadora obtivesse satisfação dos seus créditos, até porque se desconhece qual a situação económica da 1ª Ré, nomeadamente qual o seu património à data do despedimento da trabalhadora – 13.06.2017.
Também não é possível alcançar, por inexistência de factos, qual o objectivo «fraudulento» que presidiu à criação da 1ª Ré, já que ela «nasceu» no ano de 1998, muito antes da contratação da Autora.
E de igual modo não é possível retirar da factualidade provada a existência de qualquer artifício quando, em Setembro de 2014, se procede à alteração do contrato de sociedade da 1ª Ré para Sociedade Unipessoal por quotas, sendo única sócia e gerente a filha de E…, posto que este renunciou nessa data à gerência da 1ª Ré e vendeu a quota a sua filha. Com efeito, mesmo após tal alteração – ocorrida em Setembro de 2014 – o contrato de trabalho da Autora ainda perdurou por mais dois anos e dois meses [até ao seu despedimento], sem que se vislumbre nesta modificação qualquer sinal para prejudicar a Autora.
E, finalmente, inexistem factos que permitam concluir que quer a constituição da 1ª Ré, em 1998, quer a sua alteração em Setembro de 2014, traduzem um «embuste» que permite à 2ª Ré não cumprir com as suas obrigações.
Por outras palavras.
A sentença recorrida recorreu à desconsideração da personalidade jurídica considerando estarem verificados os pressupostos fraudulentos das Rés com vista a frustrarem o pagamento dos créditos salariais da Autora. Contudo, e com o devido respeito, não se mostram provados factos nesse sentido, ou os provados são manifestamente insuficientes para assim se concluir.
Na verdade não está em causa apurar quem é o real empregador da Autora [tal questão já foi definida na sentença ao ter considerado que foi a 1ª Ré que contratou a Autora e que a despediu] até porque, e como já referido, a questão da desconsideração da personalidade jurídica apenas foi abordada na sentença em sede de garantia dos créditos laborais.
Ou seja, não estão provados factos donde se possa concluir que as Rés agiram com abuso de direito, nomeadamente em fraude à lei, de forma clamorosa e ofensiva das concepções ético-jurídicas, pelo que não pode a sentença recorrida manter-se no que concerne à condenação da 2ª Ré, procedendo, deste modo, a apelação.
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Termos em que, se julga a apelação procedente, se revoga a decisão recorrida na parte em que condenou a 2ª Ré a pagar à Autora a quantia de €9.120,00, a título de indemnização por antiguidade, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da cessação do contrato até efectivo e integral pagamento, bem como as retribuições que a Autora deixou de auferir desde a data do despedimento – 13.06.2017 – à razão de €760,00 mensais, e o trânsito em julgado da sentença, acrescidas dos juros de mora, à taxa legal, desde a data do vencimento de cada retribuição até integral pagamento, descontado dos montantes eventualmente recebidos a título de subsídio de desemprego, tudo a liquidar posteriormente nos termos do disposto no artigo 358º, nº2 do CPC, e se absolve a 2ª Ré de tais pedidos. No mais se confirma a decisão recorrida.
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Custas da apelação a cargo da Autora, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário concedido.
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Porto, 07.01.2019
Fernanda Soares
Domingos Morais
Teresa Sá Lopes (vencida conforme declaração que junto)
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Votei vencida, considerando que a apelação devia ser improcedente pela fundamentação que passo a referir.

O Código Civil, no artigo 980º, contempla a noção do contrato de sociedade como sendo “(…) aquele em que duas ou mais pessoas se obrigam a contribuir com bens ou serviços para o exercício em comum de certa actividade económica, que não seja de mera fruição, a fim de repartirem os lucros resultantes dessa actividade”.
No Código das Sociedades, o artigo 5º estabelece que “As sociedades gozam de personalidade jurídica e existem como tais a partir da data do registo definitivo do contrato pelo qual se constituem, sem prejuízo do disposto quanto à constituição de sociedades por fusão, cisão ou transformação de outras”, (sublinhado nosso).
Como se refere na sentença: a concessão pela lei de personalidade jurídica autónoma às sociedades têm por fundamento o direito de associação e por fim o exercício de uma actividade lucrativa para os associados; não tem por fundamento a ocultação de bens ou património que serviria de garantia aos direitos de terceiros, nem tem por fim causar prejuízos a terceiros.
Pertinente é aqui a fundamentação incluída no Acórdão da Relação do Porto de 25.10.2005, (Relator Henrique Araújo, in www.dgsi.pt):
“Como é sabido, as pessoas colectivas são centros autónomos de relações jurídicas, autónomos mesmo em relação aos seus membros ou às pessoas que actuam como seus órgãos. Por isso, o art. 5º do Código das Sociedades Comerciais explicita que as sociedades gozam de personalidade jurídica.
(…).
Quando a personalidade colectiva seja usada de modo ilícito ou abusivo, para prejudicar terceiros, existindo uma utilização contrária a normas ou princípios gerais, incluindo a ética dos negócios, é possível proceder ao levantamento da personalidade colectiva: é o que a doutrina designa pela desconsideração ou superação da personalidade jurídica colectiva – cfr. Menezes Cordeiro, “O Levantamento da Personalidade Colectiva”, Almedina, 2000, pág. 122 e segs; Pedro Cordeiro, “A Desconsideração da Personalidade Jurídica das Sociedades Comerciais”, pág. 77.” (sublinhado e realce meus).
E bem assim a fundamentação incluída no Acórdão da Relação de Coimbra de 03.07.2013, (Relator Felizardo Paiva, in www.dgsi.pt):
Este instituto não se encontra regulamentado na lei portuguesa, mas isso não significa que o nosso direito civil não disponha, na sua positividade, de regras fundamentais que o permitem acolher particularmente, no que ao caso em análise interessa, o artº 334º do Cód.Civil (abuso de direito).
A desconsideração ou levantamento da personalidade colectiva surgiu na doutrina e, posteriormente, na jurisprudência como meio de cercear formas abusivas de actuação, que ponham em risco a harmonia e a credibilidade do sistema.
No fundamental, ele traduz-se numa delimitação negativa da personalidade colectiva por exigência do sistema ou, se se quiser, “ele exprime situações nas quais, mercê dos vectores sistemáticos concretamente mais poderosos, as normas que firmam a personalidade colectiva são substituídas por outras normas" - cfr. Menezes Cordeiro, Manual do Direito Das Sociedades, I vol., 2004. pag. 381.
O recurso a esse instituto é possível quando ocorram situações de responsabilidade civil assentes em princípios gerais ou em normas de protecção, nomeadamente dos credores, ou em situações de abuso de direito e não exista outro fundamento legal que invalide a conduta do sócio ou da sociedade que se pretende atacar, ou seja, a desconsideração tem carácter subsidiário.
De entre elas, avultam a confusão ou promiscuidade entre as esferas jurídicas de duas ou mais pessoas, normalmente entre a sociedade e os seus sócios (ainda que não tenha de ser obrigatoriamente assim); a subcapitalização da sociedade, por insuficiência de recursos patrimoniais necessários para concretizar o objecto social e prosseguir a sua actividade; e as relações de domínio grupal - cfr. Menezes Cordeiro, ob. cit. págs. 364 e segs.
Em todas estas situações verifica-se que a personalidade colectiva é usada de modo ilícito ou abusivo para prejudicar terceiros, existindo uma utilização contrária a normas ou princípios gerais, incluindo a ética dos negócios.
A desconsideração tem de envolver sempre um juízo de reprovação sobre a conduta do agente, ou seja, envolve sempre a formulação de um juízo de censura e deve revelar-se ilícita, havendo que verificar se ocorre uma postura de fraude à lei ou de abuso de direito”, (sublinhado e realce meus).
No caso em apreço, a 1ª Ré e a 2ª Ré não se encontram numa relação de domínio ou de grupo pelo que não lhes é aplicável o regime de responsabilidade solidária prevista no artigo 334º do Código do Trabalho.
Ainda assim “a confusão, ou melhor, a promiscuidade entre as duas sociedades” (continuando a valermo-nos das palavras daquele último Acórdão), a 1ª Ré e a 2ª Ré, afere-se, a meu ver, da seguinte factualidade assente:
- E… foi gerente de ambas as Rés, da 1ª Ré por deliberação de 17.11.2006 até 29.09.2014 e continua a ser gerente da 2ª Ré.
- Foi ainda quem, em 15 de Novembro de 2006, contratou a Autora enquanto gerente de facto da 1ª Ré.
- Em Junho de 2017, E…, gerente da 2ª Ré, era quem de facto dava ordens e instruções à Autora e a quem esta reportava os assuntos do dia a dia do seu trabalho e foi quem lhe disse que estava despedida;
- Só em 29.09.2014 – volvidos mais de sete anos desde que a Autora foi admitida ao serviço da 1ª Ré - foi registada a designação como gerente da mesma empresa de F…, da filha daquele E…;
- A Autora nos últimos 5 ou 6 anos desempenhou funções de assistente comercial na loja da 2ª Ré;
- A Autora era a única funcionária ao serviço da 1ª Ré, empresa que tinha por único objecto a prestação de serviços de assistente comercial à 2ª Ré.
Tenho assim como acertada a avaliação expressa na sentença do Tribunal a quo, a propósito desta factualidade já que desde 18.01.2007 até 29.09.2014 o gerente da 2ª Ré era também gerente da 1ª Ré, tendo sido o mesmo quem contratou a Autora em 15.11.2006 e continuou a ser quem de facto lhe dava ordens e instruções e a quem aquela reportava os assuntos do dia a dia, tendo sido ainda quem lhe disse que estava despedida, existindo uma relação familiar – pai e filha – entre os atuais gerentes de ambas as sociedades, sendo a Autora a única trabalhadora da 1ª Ré, cujo único objecto era a prestação de serviços de assistente comercial à 2ª Ré, ou seja, quando a 1ª Ré laborava tinha a sua única funcionária a trabalhar na loja da 2ª Ré.
Deste modo, a sociedade 1ª Ré tem sido “utilizada para mascarar uma situação; servindo de véu para encobrir uma realidade” – nas palavras de Pedro Cordeiro, “A Desconsideração da Personalidade Jurídica das Sociedades Comerciais”, pág. 73, nota 75 – no que respeita ao vínculo laboral com a Autora, já que tudo sucedia como se a mesma estivesse a trabalhar para a 2ª Ré.
Isto independentemente da 1ª Ré ter ou não ter sido criada somente com tal desiderato, como alega a apelante.
A Apelante incide o seu enfoque no “extraordinário” que seria ser a 1ª Ré constituída em 22 de Outubro de 1998 para impedir que a Autora não viesse a ver satisfeitos os seus créditos reclamados em 2017.
Não é esse porém o enquadramento daquela factualidade que considero relevante e que justifica, a meu ver, a conclusão da ocorrência de abuso da personalidade colectiva da 1ª Ré.
Com efeito, é o procedimento que decorria durante a existência do vínculo laboral com a Autora, nos últimos 5 ou 6 anos que entendo ser significativo, ou seja, a actuação traduzida em a 1ª Ré ter como único objecto a prestação de serviços de assistente comercial à 2ª Ré e estar a ser utilizada como entidade patronal da Autora, sua única trabalhadora, numa altura em que esta trabalhava como assistente comercial na loja da 2ª Ré, recebendo ordens e instruções do gerente da 2ª Ré - que foi quem a contratou e que também foi gerente da 1ª Ré desde praticamente o início do contrato até 29.09.2014 - a quem a Autora reportava os assuntos do dia a dia do seu trabalho.
Dito de outro modo, a realidade encoberta era mesmo a da Autora estar a prestar o seu trabalho para a 2ª Ré, mediante ordens e direcção desta ainda que formalmente o vínculo contratual tivesse sido com a 1ª Ré.
Entendo ser outrossim pertinente atender a que foi registada a entrada em liquidação da 1ª Ré em 04.10.2014, logo após o despedimento da Autora, em 13 de Junho de 2017.
Concluiu a apelante que tal é um facto perfeitamente inócuo não indiciando o projeto de impedir a Autora de ver satisfeitos os seus créditos laborais, pois ainda que tendo registado a sua dissolução, a 1ª Ré encontra-se ainda em liquidação, o que significa que o seu património ainda não foi partilhado ou liquidado.
Não obstante e ainda que não tenha ficado demonstrado que o activo por liquidar da 1ª Ré não é suficiente para responder pelos créditos laborais da Autora, certo é que a eventualidade de tal suceder – atenta a dissolução daquela - não é hipótese que se omita à partida.
Ora, é inquestionavelmente diferente se pelos mesmos créditos também o activo da 2ª Ré for responsável.
E se assim é, acresce ainda afirmar que é o próprio momento em que a dissolução da 1ª Ré foi registada, em 04/10/2017 (item 7º), após o despedimento da Autora em 13/06/2017 (item 11º) que a meu ver, pela respectiva proximidade, a par do descrito procedimento, também espelha o indício da existência do “projecto de impedir a Autora de ver satisfeitos os seus créditos laborais”, conforme referido na sentença do Tribunal a quo.
Entendo assim que bem andou a 1ª instância ao decidir que a existência e funcionamento da 1ª Ré, relativamente ao vínculo laboral da Autora, “encerra abuso de personalidade colectiva”, por “não ser mais do que um embuste” para permitir, de forma aparentemente legal, evitar o cumprimento de obrigações da responsabilidade da 2ª Ré – por responsabilidades relativas aquele vínculo - ocorrendo abuso de personalidade colectiva e verificando-se actuação com abuso do direito.
Dispõe o artigo 334º do Código Civil que «É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos costumes ou pelo fim social ou económico desse direito».
Como escreveu o Professor Menezes Cordeiro, in “Do abuso do direito: estudo das questões e perspectivas”, in Revista da Ordem dos Advogados, 2005 – Estudos em Honra do Professor Doutor António Castanheira Neves, (citação incluída na dissertação para obtenção do Grau de Mestre de Rui Manuel Ataíde de Araújo, página 26) trata-se de “uma disposição legal que (…) remete para o sistema e para a Ciência do Direito, confiando, ao intérprete aplicador, a tarefa do seu adensamento”. No fundo, o “abuso do direito é uma expressão consagrada para traduzir, hoje, um instituto multifacetado, internamente complexo e que prossegue, in concreto, os objectivos últimos do sistema”.
Ainda segundo o Professor Menezes Cordeiro (in “O Levantamento da Personalidade Colectiva no Direito Civil e Comercial”, Almedina, 2000, página 123, citado também no acórdão desta secção relatado por Fernanda Soares, aqui 1ª Adjunta, de 14.04.2012, in www.dgsi.pt), “O abuso do instituto da personalidade coletiva é uma situação de abuso do direito ou de exercício inadmissível de posições jurídicas, verificada a propósito da actuação do visado, através duma pessoa colectiva. No fundo, o comportamento que suscita a penetração vai caracterizar-se por atentar contra a confiança legítima (venire contra factum proprium, supressio ou surrectio) ou por defrontar a regra da primazia da materialidade subjacente (tu quoque ou exercício em desequilíbrio)”.
Note-se, como se lê no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 29.04.2008, (in Colectânea de Jurisprudência, Ano 2008, tomo II página 130 e seguintes, igualmente citado no referido acórdão desta secção relatado pela aqui 1ª Adjunta, de 14.04.2012), “(…) o abuso do instituto da personalidade colectiva tanto ocorrerá nos casos em que o agente actue com intenção específica de ludibriar o credor social, como ainda nos casos em que actue, independentemente da sua intencionalidade, excedendo manifestamente os limites impostos pela boa-fé, como regra de conduta, pelos bons costumes, em particular pela ética dos negócios, ou pelo fim social e económico do direito ou instituto habilitante”.
Entendo ser todo o procedimento de ambas as Rés analisado, contrário à boa-fé negocial, sendo patente o abuso de direito existente na pretensão de se considerar que se trata de duas personalidades colectivas autónomas, antes se justificando a desconsideração de tal e justificando-se concluir, tal como fez o Tribunal a quo que devem ser ambas as Rés responsabilizadas solidariamente pelo pagamento das quantias devidas à Autora, a título de créditos laborais, beneficiando assim esta última da faculdade de exigir a prestação correspondente a qualquer uma daquelas, conforme o preceituado no artigo 512º do Código Civil.

Teresa Sá Lopes