Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
783/08.0TBMCN.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE SEABRA
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RECUSA FINAL
PRESSUPOSTOS
Nº do Documento: RP20211122783/08.0TBMCN.P1
Data do Acordão: 11/22/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A recusa final da exoneração do passivo restante depende da verificação dos mesmos requisitos ou pressupostos que a recusa antecipada da exoneração, previstos no artigo 243º, do CIRE.
II - A recusa da exoneração para efeitos do previsto no artigo 243º, n.º 1 al. a), do CIRE, depende da demonstração cumulativa dos seguintes pressupostos:
a) Incumprimento pelo devedor de alguma das obrigações que lhe são consignadas pelo artigo 239º, do CIRE.
b) Prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência em razão desse incumprimento;
c) Que esse incumprimento seja imputável, a título de dolo ou negligência grave, ao devedor.
III - Na negligência grave, o agente actua em termos que só uma pessoa particularmente displicente ou descuidada, nas mesmas circunstâncias, actuaria.
IV - Actuam em negligência grave os insolventes que, durante o período da cessão, retêm ilicitamente quantias que, de acordo com a decisão que fixou o rendimento objecto da cessão à fidúcia, deveriam ter sido entregues ao fiduciário, vindo apenas, no final do período e na iminência de uma decisão de recusa da exoneração, invocar circunstâncias pessoais e despesas que podiam (e deviam) ter dado a conhecer ao Tribunal no decurso do dito período.
V - Nestas circunstâncias, só um cidadão particularmente displicente e descuidado perante as obrigações que lhe incumbem no contexto da por si pretendida exoneração do passivo restante (e que o mesmo não podia ignorar e se comprometeu a observar - artigo 236º, n.º 3, do CIRE), poderia encetar a conduta assumida pelos insolventes ao reter quantias que sabiam que deviam entregar à fidúcia e ao omitir naquele período e junto do Tribunal informações pessoais tidas por relevantes.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 783/08.0TBMCN.P1 - Juízo de Comércio de Amarante – J4.
Relator: Des. Jorge Seabra
1º Juiz Adjunto: Desembargador Pedro Damião e Cunha
2º Juiz Adjunto: Desembargadora Maria de Fátima Andrade.
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Sumário (elaborado pelo Relator):
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I. RELATÓRIO:
1. Mediante despacho proferido a 26.04.2021, a título de decisão final (artigo 244º, do CIRE), foi recusada a exoneração do passivo restante dos devedores/insolventes B… e marido C…, invocando-se, para o efeito, o disposto nos artigos 239º, n.º 4, alíneas c) e d) e 244º, n.º 2, todos do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas (ainda designado por CIRE).
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2. Inconformados, vieram os insolventes interpor recurso de apelação, no qual ofereceram alegações e aduziram, a final, as seguintes
CONCLUSÕES
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3. Não foram oferecidas contra-alegações.
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4. Observados os vistos legais, cumpre decidir.
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II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO do RECURSO.
Como resulta das conclusões do recurso – que, como é pacífico, delimitam o objecto do recurso e da actividade jurisdicional do tribunal ad quem – a questão a decidir é apenas a de saber se ocorrem os pressupostos legais para efeitos de recusa da exoneração do passivo restante, conforme decretado no despacho recorrido e em sede de decisão final.
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III. FUNDAMENTAÇÃO de FACTO:
Os factos que relevam à decisão são os seguintes:
a) Por despacho de 20-11-2015 foi admitido liminarmente o incidente da exoneração do passivo restante, tendo-se fixado como rendimento indisponível o valor de dois salários mínimos nacionais, para cada um dos insolventes, acrescido de metade de outro, para a filha menor a cargo, até atingir a maioridade, multiplicados por catorze meses.
b) Por despacho de 03-03-2016 foi definido que o valor do rendimento indisponível fixado no despacho de 20-11-2015 seria válido desde que os devedores se encontrassem em Portugal, sendo que se fixou o montante do rendimento disponível mensal em €150 para cada um dos insolventes enquanto se mantivessem na Suíça.
c) No relatório de 02-03-2021 o Exmo. Sr. Fiduciário pronunciou-se no sentido da concessão do benefício em causa dado que, segundo ele, os insolventes se tinham esforçado por cumprir com o estipulado, mesmo com a situação económica muito debilitada, tendo-se a mesma degradado com a pandemia, já que o insolvente ficou desempregado.
d) Em cumprimento do disposto no artigo 244.º, n.º 1 do CIRE o credor D…, S.A. - pronunciou-se no sentido da não concessão da exoneração do passivo restante devido ao incumprimento reiterado por parte dos insolventes das obrigações que sobre si impendiam, durante o período de cessão.
e) Foi então proferido o despacho de 09-04-2021 em que se afirmou: “No despacho de 03-03-2016 fixou-se em € 150 o montante que cada um dos insolventes deveria entregar ao Exmo. Sr. Fiduciário durante o período de cessão. Vale isto por dizer que durante o período de cessão os devedores deveriam ter cedido o montante global de € 18.000,00 (300 €urosx12 mesesx5 anos).
Sucede que, de acordo com as informações do Exmo. Sr. Fiduciário, apenas se mostra entregue pelos devedores a quantia de € 7.125,00 (€ 3.630 do 1.º ano de cessão; € 680 do 2.º ano de cessão; € 950 do 3.º ano de cessão: € 900 do 4.º ano de cessão; € 965 do 5.º ano de cessão), o que prefigura manifesto incumprimento do dever previsto no artigo 239.º, n.º 4, al. c) do CIRE.
O credor D…, S.A. veio já requerer recusa da concessão da exoneração do passivo restante, nos termos que constam do requerimento de 23-03-2021.
Destarte, uma vez que nunca para tal foram notificados, convidam-se agora os devedores a, no prazo de 10 dias, procederam ao pagamento à massa da fidúcia da quantia em falta, isto é € 10. 875 (=18.000 – 7125), sob expressa cominação de, não o fazendo, poder vir a ser recusada a concessão da exoneração do passivo restante.
Advertem-se os devedores de que tendo já decorrido o período de cessão, o prazo acima concedido não será objecto de prorrogação, por a isso se opor o disposto nos artigos 239.º, n.º 2 e 244.º, n.º 1 do CIRE. “
f) No referido prazo os devedores não vieram proceder ao pagamento da aludida quantia.
g) Apresentaram, no entanto, o requerimento de 23-04-2021 em que sustentam, em síntese:
- Ao longo dos cinco anos da fidúcia, sempre fizerem demonstrar junto do Sr. AI a sua incapacidade para prestar os valores que lhes foram fixados;
- Não obstante os rendimentos/remunerações que foram sendo auferidos, certo é que as despesas normais dos devedores, mesmo fixadas pelo mínimo, a tal valor correspondiam e mesmo ultrapassavam;
- A insolvente esposa apenas trabalhava três horas por semana, em limpezas, tendo ficado desempregada em Janeiro de 2017 e sem direito a qualquer subsídio ou abono;
- Em 2018 a insolvente esposa teve que regressar a Portugal, atendo o falecimento de sua mãe, de modo a assegurar os cuidados de seu pai;
- Em 2020 o devedor encontrou-se em subsídio de desemprego, tendo acabado por regressar a Portugal em Fevereiro de 2021.
- Se os insolventes não cumpriram com a prestação integral da fidúcia, apenas não o fizeram por absoluta incapacidade económica para o efeito, e não por dolo ou mera culpa;
- Nunca qualquer credor se insurgiu a solicitar quaisquer esclarecimentos, tão pouco a suscitar o incidente da cessação antecipada do benefício da exoneração do passivo restante, demonstrando deste modo a sua aceitação tácita perante a situação dos insolventes vertida nos autos.
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IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA:
Como é consabido, o actual CIRE instituiu medidas excepcionais de protecção do devedor pessoal singular, sendo uma das mais relevantes a exoneração do passivo restante.
Através deste instituto, após o património do devedor pessoa singular ter sido liquidado para pagamento aos credores, ou decorridos cinco anos após o encerramento do processo, as obrigações que, apesar dessa liquidação ou após o decurso do dito prazo, não puderem ser satisfeitas, em lugar de subsistirem, são tidas como extintas - artigo 235º do CIRE.
De facto, sendo o devedor pessoa singular, pretendeu o legislador conceder-lhe a possibilidade de exoneração (extinção) das suas obrigações perante os credores da insolvência, que não puderam ser liquidadas no decurso do processo ou nos cinco anos subsequentes ao seu encerramento, em ordem a evitar que fique vinculado ao pagamento de tais obrigações até ao limite do prazo de prescrição, prazo este que, nosso direito civil, pode, como é consabido, atingir os vinte anos - artigo 309º do Cód. Civil.
Assim, após a liquidação do seu património no processo de insolvência ou após o decurso de cinco anos após o encerramento do processo, o devedor tem a possibilidade de um «fresh start», de recomeçar de novo, sem o peso das obrigações que ainda permaneçam por liquidar.
Neste sentido, refere ASSUNÇÃO CRISTAS que “apurados os créditos da insolvência e uma vez esgotada a massa insolvente sem que tenha conseguido satisfazer totalmente ou a totalidade dos credores, o devedor pessoa singular fica vinculado ao pagamento aos credores durante cinco anos, findos os quais, cumpridos certos requisitos, pode ser exonerado pelo juiz do cumprimento do remanescente. O objectivo é que o devedor pessoa singular não fique amarrado a essas obrigações.” [1]
Esta solução teve por inspiração, como tem sido salientado pela doutrina e jurisprudência, a legislação dos Estados Unidos (discharge do Bakruptcy Code) e a legislação alemã (Rechstschuldbrefeiung da Insolvenzordnung), permitindo ao devedor, sob certas condições e em função do seu comportamento sério e honesto no denominado período da cessão, “a possibilidade de não viver o resto da vida (ou, pelo menos, até ao decurso do prazo de prescrição) sob o peso de dívidas que tornariam impossível o retomar de uma vida financeiramente equilibrada.” [2]
A exoneração do passivo restante resulta, necessariamente, de dois despachos, sendo o primeiro, denominado despacho inicial, que determina a obrigação de cessão do rendimento disponível pelo período de cinco anos após o encerramento do processo (artigo 237º, al. b) do CIRE), e o segundo, denominado de despacho de exoneração, que determina, a final, a definitiva concessão da exoneração, decorrido o mencionado prazo de cinco anos e verificando-se o integral cumprimento de todas as obrigações constantes do despacho inicial (artigos 237º, al. b), 244º e 245º, n.º 1 do CIRE).
Com efeito, o despacho inicial de acolhimento do pedido de exoneração corresponde a uma declaração de que a exoneração poderá vir a ser concedida, passados cinco anos do fim do processo de insolvência, desde que o devedor cumpra as condições nele assinaladas e, em especial, dê cumprimento à obrigação de cedência do rendimento disponível que venha a auferir no aludido período de cinco anos, conforme determinado no mesmo despacho inicial, sendo esta, aliás, a sua obrigação mais relevante naquele período da cessão.
Neste sentido, a admissão do pedido não significa que a exoneração esteja concedida ou que o venha ser necessariamente; Significa tão só que (i.) se não for aprovado e homologado nenhum plano de insolvência e (ii.) se durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência o devedor/insolvente der cumprimento às várias imposições previstas na lei, será exonerado das suas obrigações perante os credores e ainda por satisfazer.
A decisão final sobre a concessão ou não da exoneração só virá, portanto, a ter lugar depois de decorrido esse período (sem prejuízo da sua cessão antecipada, nas condições previstas no artigo 243º do CIRE), na decisão final do incidente de exoneração, conforme prevê o artigo 244º do mesmo CIRE. [3]
Relativamente a esta última decisão final que, por princípio (dada a possibilidade de revogação posterior, prevista no artigo 246º, do CIRE), põe termo ao incidente em causa, prevê o artigo 244º, o seguinte:
“1 – Não tendo havido lugar a cessão antecipada, o juiz decide nos 10 dias subsequentes ao termo do período da cessão sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor, ouvido este, o fiduciário e os credores da insolvência.
2 – A exoneração é recusada pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderia ter sido antecipadamente, nos termos do artigo anterior.”
Decorre deste normativo que a decisão final sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor cabe sempre ao juiz do processo, ainda que o mesmo, antes de a proferir, deva, em termos de contraditório, ouvir sobre a matéria em causa o próprio devedor, o fiduciário e os credores da insolvência, os quais, querendo, se podem pronunciar no prazo legal (ou não) sobre o sentido da decisão final a proferir pelo juiz.
Digamos que, como referem L. CARVALHO FERNANDES, J. LABAREDA, “CIRE Anotado”, 3ª edição, pág. 870, “a audição ordenada no n.º 1 é, neste contexto, fundamentalmente destinada à certificação de que nada obsta à concessão ou, se for esse o caso, ao apuramento do que justifica a recusa.”
No entanto, em nosso ver, estando em causa a decisão final do incidente (e ao contrário do que sucede na recusa antecipada, isto é a recusa decretada por decisão proferida antes do terminus do período da cessão – cfr. 1ª parte do n.º 1, do artigo 243º, do CIRE), o juiz do processo, em conformidade com a regra do n.º 1 do artigo 244º, pode, independentemente das posições assumidas no processo pelo fiduciário, pelo devedor ou pelos credores da insolvência, decretar a concessão ou a recusa da exoneração do passivo restante, verificados, naturalmente, os respectivos pressupostos.
Por outro lado e quanto a estes pressupostos, decorre, ainda, do mesmo normativo (n.º 2), que o juiz, para efeitos de recusa da exoneração do passivo restante do devedor, está vinculado pelos fundamentos e pelos requisitos previstos nas alíneas a), b) e c), do antecedente artigo 243º, do CIRE.
Nesta perspectiva, como salientam ainda os mesmos Autores, op. cit., pág. 870, o juiz do processo não tem, em sede de decisão final após o decurso do período da cessão, um poder discricionário quanto à concessão ou recusa da exoneração, antes vinculado, pois que deve atribuí-la ou não, consoante a avaliação que faça, à luz dos elementos colhidos nos autos ou de outras diligências de instrução que julgue pertinentes, quanto à verificação ou não de algum dos fundamentos e requisitos previstos nas alíneas a) a c), do n.º 1, do artigo 243º, do CIRE. [4]
Neste contexto e com o devido respeito, estando em causa, como já antes se salientou, a decisão final do incidente de exoneração do passivo restante, à luz do previsto no artigo 244º, n.º 1, é, segundo julgamos, irrelevante, ao contrário do que defendem os Recorrentes, que não tenham os credores da insolvência, nomeadamente o credor “D1…”, no período da cessão ora em causa suscitado o incumprimento dos deveres dos insolventes para efeitos de recusa antecipada da exoneração ou, ainda, que nesse mesmo período, não tenha o fiduciário suscitado qualquer incumprimento por parte dos insolventes quanto às suas obrigações, na estrita medida em que, por um lado, esses factos só relevariam em sede de decisão de recusa antecipada da exoneração do passivo restante (que não está em causa na decisão recorrida) – artigo 243º, n.º 1, do CIRE - e, por outro, não é possível extrair dessa inactividade processual no decurso do período da cessão nenhuma renúncia do aludido credor, nem mesmo tácita, à invocação posterior desse incumprimento, em particular no âmbito da pronúncia prévia e prevista no citado n.º 1, do artigo 244º, do CIRE.
Por outro lado, ainda, decorre do antes exposto, que, não obstante o fiduciário não tenha suscitado o incumprimento dos deveres pelos insolventes no decurso do período da cessão e tenha até dado parecer final favorável à concessão da exoneração do passivo restante dos devedores/insolventes (na sequência da sua audição prévia, nos termos do n.º 1 do artigo 244º, do CIRE), essa posição no decurso do processo e o subsequente parecer final não são vinculativos para o juiz do processo, no sentido de o mesmo, na decisão final a proferir, ter que seguir necessariamente essa posição ou parecer do fiduciário.
Nesta perspectiva, e com o devido respeito por opinião em contrário, repetindo o que já antes se expôs, é ao juiz do processo, em sede de decisão final, que incumbe, depois de ouvir as várias posições dos intervenientes quanto a tal matéria (princípio do contraditório e de proibição de decisões-surpresa), proferir a decisão de concessão ou não concessão da exoneração, em função da avaliação casuística que ele próprio, de forma independente e imparcial, faça da verificação ou não dos pressupostos previstos nas alíneas do n.º 1 do artigo 243º, do CIRE.
Aqui chegados, a questão central no recurso é, pois, a de saber se ocorrem no caso dos autos os fundamentos e os requisitos previstos no artigo 243º, n.º 1, alínea a), que, por sua vez, remetem para a previsão do artigo 239º, n.º 4, ambos do CIRE e, em concreto, as condições previstas nas alíneas c) e d), desse n.º 4 do dito normativo.
Segundo se colhe da decisão recorrida nela se propendeu para sustentar, por um lado, que os insolventes incumpriram as obrigações previstas na alínea c) e d) do dito n.º 4, do artigo 239º e, por outro, que esse incumprimento se ficou a dever a grave negligência dos insolventes, prejudicando ambos, com essa sua conduta, a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
Por seu turno, os insolventes advogam que, apesar de reconhecerem não terem procedido no decurso do período da cessão à entrega à fidúcia da quantia assinalada na decisão de € 10.875,00 e, ainda, de não terem procedido ao pagamento de tal quantia após serem notificados para tanto pelo juiz do processo, não está demonstrado, em seu ver, que de tal omissão decorra um prejuízo para os credores da insolvência e, ainda, não está demonstrado, face às dificuldades económicas e despesas que tiveram no dito período, que essa sua conduta possa ser toda como dolosa ou gravemente negligente.

Por outro lado, ainda, sustentam que não deram conhecimento da alteração da sua situação no decurso do período da cessão por que ignoravam que o tivessem que fazer, sendo certo, em primeiro lugar, que sempre deram conhecimento da sua situação ao fiduciário (que nunca invocou qualquer incumprimento) e, em segundo, porque lhes foi dito pelo aludido fiduciário que bastava essa informação, não carecendo a mesma de ser levada ao conhecimento do tribunal… Como assim, também aqui, segundo advogam, não é possível concluir que a sua conduta é excepcionalmente grave e, portanto, que se justifica a recusa da exoneração do passivo restante.
Vejamos.
Já antes se referiu que a decisão final de recusa da exoneração depende, segundo o consignado no n.º 2 do artigo 244º, dos mesmos requisitos e pressupostos erigidos no artigo 243º para a recusa antecipada.
Dito isto, preceitua este último artigo, na parte que ora releva, o seguinte:
“1 – Antes ainda de terminado o período da cessão, deve o juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se ainda estiver em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, quando:
a) O devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência;”
Perante o transcrito normativo, conforme defende a doutrina e jurisprudência e também já o decidimos em outros processos similares a este, estando em causa a violação pelo insolvente de alguma das obrigações que para si decorrem do preceituado no artigo 239º, do CIRE, não basta, para efeitos de recusa da exoneração, a mera demonstração do seu incumprimento, sendo, ainda, necessária, a verificação cumulativa, de um elemento subjectivo, dolo ou negligência grave, e um elemento objectivo, prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência e decorrente, em termos causais, daquele incumprimento. [5]
Destarte, conforme se mostra pacífico na doutrina e se salienta, entre outros, no citado AC STJ de 14.02.2013, ainda que se mostre verificado o incumprimento de alguma das obrigações que emergem para o insolvente no período da cessão, não é bastante para decretar a recusa da exoneração do passivo restante a mera verificação do incumprimento de alguma das aludidas obrigações, sendo ainda mister que esse incumprimento seja imputável ao devedor a título de dolo ou culpa grave e, ainda, que desse incumprimento decorra, em termos de causalidade adequada, um prejuízo para a satisfação dos créditos da insolvência.
Dito isto, quanto ao incumprimento das obrigações que para os insolventes decorrem do preceituado no artigo 239º, n.º 4, alínea c) [obrigação de entrega imediata ao fiduciário da parte dos seus rendimentos que são objecto da cessão] e alínea d) [obrigação de informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, após a respectiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego] é, em nosso ver, indiscutido que esse incumprimento se mostra objectivamente comprovado nos autos.
Com efeito, mostra-se definitivamente assente que os insolventes não procederam no período da cessão e ao contrário do que deviam à entrega do valor de € 10. 875,00 (alínea c), do n.º 4 do citado artigo 239º) e, ainda, mostra-se também devidamente assente (por os próprios insolventes o reconhecerem) que, no decurso do período da cessão, mudaram de domicílio (da Suíça para Portugal) e de situação laboral (de uma situação de emprego para uma alegada situação de desemprego) sem nunca terem, de tais factos, informado o Tribunal durante aquele período, o que fizeram apenas já decorrido o dito período e na sequência da notificação efectuada pelo Tribunal para efeitos do citado artigo 244º, do CIRE.
Note-se, como bem se salienta na decisão recorrida e ao contrário do que sugerem ou defendem os Recorrentes, a norma da alínea d), do n.º 4, do artigo 239º é perfeitamente clara e inequívoca quanto a obrigação de informar, em primeiro lugar, o Tribunal e, em segundo lugar, o fiduciário, o que significa, obviamente, que não basta alegadamente informar o fiduciário da sua situação, sem, nesse contexto, dar o mínimo conhecimento ao Tribunal dessas mudanças de situação, sendo certo que, em última instância e no mínimo, incumbe ao Tribunal diligenciar pela confirmação de tais informações.
Por outro lado, neste contexto, importa dar nota que constitui condição para a admissão liminar do pedido de exoneração do passivo restante que os insolventes/devedores declarem expressamente, nos termos do artigo 236º, n.º 3, do CIRE, que se dispõem a “observar todas as condições exigidas nos artigos seguintes”, ou seja, que se dispõem a cumprir as obrigações que decorrem do preceituado no subsequente artigo 239º, do CIRE, nomeadamente as que constam, no que ora releva, das alíneas c) e d), do n.º 4, deste último normativo.
Como assim, mal se compreende que os insolventes possam agora – no final do período da cessão - vir invocar que desconheciam as obrigações que se vincularam expressamente a cumprir, enquanto condição de admissibilidade liminar do pedido de exoneração do passivo restante.
E não se diga, como alegam de forma imprevidente os Recorrentes que os mesmos não sabiam que tinham que informar o Tribunal, pois que lhes terá sido dito pelo fiduciário que essa informação prestada ao mesmo bastaria…
Desde logo, e sem prejuízo do já antes referido quanto às obrigações que os devedores se vincularam expressamente a cumprir nos termos da declaração prevista no artigo 236º, n.º 3, muito nos espanta que o fiduciário possa ter dado uma tal informação quando a lei (artigo 239º, n.º 4, alínea d), do CIRE) é absolutamente clara e inequívoca, não dando, pois, margens a outras interpretações quanto à obrigatoriedade de informação do Tribunal e, ademais, os insolventes encontravam-se patrocinados por Advogado, junto de quem podiam (e deviam) aconselhar-se ou esclarecer qualquer dúvida quanto a tal matéria.
Mas, ainda que assim fosse, admitindo-o por dever de raciocínio, como resulta também claro e peremptório do artigo 6º do Código Civil “A ignorância ou má interpretação da lei não justifica a falta do seu cumprimento nem isenta as pessoas das sanções nela estabelecidas.”
Significa isto que a conduta assumida pelos insolventes não colhe justificação (e não exclui, portanto, a sua culpa) e não os pode isentar das sanções que a lei prevê para essa sua conduta ilícita, nomeadamente, no que ao caso importa, ao nível da recusa da exoneração do passivo restante.
Por outro lado, e em especial quanto à obrigação de entrega dos valores à fidúcia não relevam, salvo o devido respeito, as alegadas dificuldades económicas invocadas pelos insolventes e o montante elevado das despesas por si suportadas, pois que, a ser assim, incumbia-lhes suscitar junto do tribunal a alteração do valor do rendimento objecto da cessão à fidúcia, dando, nesse contexto, nota da sua situação actual e dessas alegadas despesas e, neste âmbito, do seu tipo ou natureza, de modo que o Tribunal avaliasse da sua justificação e de uma eventual alteração do montante fixado a título de quantia objecto da cessão à fidúcia.
De facto, em nosso ver e com o devido respeito, não podem os insolventes arvorar-se em juízes em causa própria e decidirem, de forma parcial e unilateral, dos valores que podem ceder à fidúcia e, reter, nesse contexto, quantias que bem sabiam (ou tinham que saber) ter que ser entregues à fidúcia, salvo decisão judicial em contrário, que nunca existiu, nem foi suscitada em termos de poder colher provimento junto do único órgão competente para o efeito, ou seja, o Tribunal.
Como assim, em nosso ver, e tal como decidido pelo Tribunal de 1ª instância, dúvidas não podem existir quanto ao incumprimento por parte dos insolventes das obrigações que sobre ambos impendiam e previstas no n.º 4, alíneas c) e d), do artigo 239º, do CIRE.
Quanto ao prejuízo para os credores da insolvência e nexo de causalidade também temos, no caso dos autos, por indiscutido este outro pressuposto.
De facto, não fazendo parte da massa insolvente, cujo produto se destina a ser distribuído pelos credores e para satisfação (possível) dos seus créditos, aquele valor de € 10.785,00 (valor que não é irrelevante ou despiciendo) que foi indevidamente retido pelos insolventes será, com o devido respeito, apodíctico afirmar-se que daí decorre, em termos de causalidade adequada, um prejuízo para a satisfação dos credores da insolvência que vêem diminuídas, em igual medida, as possibilidades de satisfação (rateada) dos seus créditos.
Neste sentido, ao não haver cessão de rendimentos ou sendo esta deficientemente cumprida, tal determinará necessariamente um prejuízo para a satisfação dos credores da insolvência, prejuízo que, no caso, face à quantia retida, se tem de qualificar como significativo, sendo certo que a lei não exige que o prejuízo causado seja excepcional ou muito elevado, bastando, de um ponto de vista proporcionalidade, que o mesmo não seja insignificante ou irrelevante. [6]
Neste sentido, como se sumaria no AC RC de 18.12.2019, em sentido que nos merece total concordância, “Os rendimentos cedidos pelo insolvente são o único meio de satisfação dos créditos da insolvência, dado que durante o período da cessão não se admite a agressão por via executiva do património do insolvente com vista à satisfação daqueles créditos – artigo 242º, n.º 1, do CIRE; É, assim, decorrência necessária, da violação dolosa ou com grave negligência de alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239º, a existência de prejuízo para a satisfação dos créditos dos credores.” (sublinhados nossos) [7]
Por último, quanto à culpa dos insolventes cremos que também ela se mostra comprovada, ainda que, no mínimo, sob a forma de negligência grave.
Neste sentido, a violação será cometida com grave negligência quando, em face das circunstâncias, só um devedor especialmente descuidado no cumprimento das suas obrigações é que não teria cumprido as obrigações que lhe são impostas.
Como refere, nesta sede, ASSUNÇÃO CRISTAS, op. cit., pág. 171, nota 6, “De acordo com os ensinamentos tradicionais, que distingue entre culpa grave, culpa leve e levíssima, a negligência grave ou grosseira corresponderá à conduta do agente que só seria susceptível de ser realizada por pessoa especialmente negligente, actuando a maioria das pessoas de modo diverso.”
Ainda no mesmo sentido e no âmbito da distinção entre a negligência leve e grave, refere I. GALVÃO TELLES, “Direito das Obrigações”, 6ª edição, pág. 349-350, o seguinte: “Quer a culpa grave, quer a culpa leve correspondem a condutas que uma pessoa normalmente diligente – o bonus pater familias – se absteria. A diferença entre elas está em que a primeira só por uma pessoa particularmente negligente se mostra susceptível de ser cometida. A culpa grave apresenta-se como uma negligência grosseira (…).
A culpa levíssima, essa seria a que apenas uma pessoa excepcionalmente diligente conseguiria evitar.”
Com efeito, a negligência grave há-de corresponder àquela conduta (ilícita) que só um cidadão particularmente negligente e descuidado levaria a cabo, por, nas suas circunstâncias, poder e dever adoptar um comportamento conforme à lei, tornando, assim, do ponto de vista da lei, justificado um juízo de censura mais acentuado do que a mera negligência por corresponder àquilo que, em termos mínimos ou básicos, é exigível, de um ponto de vista de razoabilidade e bom senso, a um qualquer cidadão nas mesmas circunstâncias.
Ora, em nosso ver, os insolventes não só podiam e deviam, em termos mínimos, proceder à entrega dos valores estabelecidos na decisão que fixou o rendimento objecto de cessão (transitada em julgado e a que, como qualquer cidadão, devem estrita obediência) – cuja obrigação não podiam desconhecer - ou, em alternativa, informar tempestivamente da sua situação pessoal e laboral e das suas eventuais despesas extraordinárias, colocando, nesse contexto e como qualquer cidadão minimamente diligente e cuidadoso, a decisão sobre tais matérias ao órgão competente para a administração da justiça (os Tribunais) e dando-lhe estrito cumprimento, ao invés de, em termos unilaterais e parciais, como fizeram, decidirem omitir essas informações e, ainda, decidirem, de forma voluntária e consciente, reter quantias que, de acordo com a decisão judicial antes proferida e transitada em julgado, bem sabiam que não podiam fazer suas.
Uma tal conduta, com o devido respeito, é, em nosso ver, no mínimo, uma conduta ostensiva ou grosseiramente negligente por corresponder a algo que só um cidadão particularmente displicente e descuidado quanto ao cumprimento das suas obrigações no contexto da por si pretendida exoneração do passivo restante e das obrigações que aceitaram vir a cumprir, nas circunstâncias em causa, encetaria.
Por conseguinte, em nosso julgamento e em consonância com o decidido pelo Tribunal de 1ª instância, ocorrem, no caso dos autos, todos os pressupostos e requisitos erigidos pelos artigos 239º, n.º 4, alíneas c) e d), 243º, n.º 1, alínea a) e 244º, n.ºs 1 e 2, ambos do CIRE, para efeitos de decisão de recusa da exoneração do passivo restante aos insolventes.
Não colhe, pois, provimento, a apelação.
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V. DECISÃO:
À luz do antes exposto, acordam os Juízes que compõem este Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o recurso interposto pelos insolventes, B… e C…, confirmando o despacho de recusa da exoneração do passivo restante proferido pelo Tribunal de 1ª instância.
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Custas pelos apelantes, pois que ficaram vencidos (artigo 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC.), sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficiem.
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Porto, 22.11.2021
Jorge Seabra
Pedro Damião e Cunha
Fátima Andrade

(O antecedente acórdão não segue na sua redacção o Novo Acordo Ortográfico)
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[1] ASSUNÇÃO CRISTAS, “Exoneração do Devedor pelo Passivo Restante”, Revista “Themis”, Edição Especial, 2005, pág. 167 e CATARINA SERRA, “O Novo Regime Português da Insolvência – Uma Introdução”, 2010, pág. 133.
[2] ALEXANDRE SOVERAL MARTINS, “Um Curso de Direito da Insolvência”, 2015, pág. 528.
[3] A. CRISTAS, op. cit., pág. 169-174 e MARIA do ROSÁRIO EPIFÂNIO, “Manual de Direito da Insolvência”, 6ª edição, pág. 324-330.
[4] Vide, neste sentido, ainda, L. MENEZES LEITÃO, “Direito da Insolvência”, 3ª edição, pág. 335, MARIA do ROSÁRIO EPIFÂNIO, “Manual de Direito da Insolvência”, 6ª edição, pág. 329 e A. SOVERAL MARTINS, op. cit., pág. 557.
[5] Vide, neste sentido L. CARVALHO FERNANDES, J. LABAREDA, op. cit., pág. 867, L. MENEZES LEITÃO, op. cit., pág. 333 e MARIA do ROSÁRIO EPIFÂNIO, op. cit., pág. 329. Na jurisprudência, vide, ainda, por todos, AC STJ de 9.04.2019, relator Sr.ª Juíza Conselheira Ana Paula Boularot e AC STJ de 14.02.2013, relator Sr. Juiz Conselheiro Hélder Roque, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.
[6] Veja-se, por todos, nesta temática e neste sentido, AC RC de 7.04.2016, relator Sr.ª Juíza Desembargadora Sílvia Pires, disponível no mesmo sítio oficial, em que se considerou – e bem – como irrelevante ou pouco significativo um prejuízo que atingia, no caso, um valor de cerca de € 500,00. Ora, no caso dos autos, o prejuízo é mais de 20 vezes aquele valor…
[7] AC RC de 18.12.2019, relator Sr. Juiz Desembargador Carlos Barreira, disponível in www.dgsi.pt.