Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
9619/14.1T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
DOCUMENTO PARTICULAR
Nº do Documento: RP201509109614/14.1T8PRT.P1
Data do Acordão: 09/10/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Conforme tem julgado o Tribunal Constitucional é inconstitucional, por violação do princípio da protecção da confiança decorrente do princípio do Estado de Direito democrático constante do artigo 2.º da Constituição, a norma resultante dos artigos 703.º do CPC e 6.º, n.º 3, da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, na interpretação de que aquele artigo 703.º se aplica a documentos particulares emitidos em data anterior à da entrada em vigor do novo CPC e então exequíveis por força do artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do CPC de 1961, pelo que as execuções instauradas depois da entrada em vigor do novo CPC com base em documentos emitidos antes e que na data da sua emissão tinham valor de título executivo devem ser recebidas por o documento manter esse valor.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação
Processo n.º 9619/14.1T8PRT.P1 [Comarca do Porto/Instância Central/Execuções]

Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I.
B…, Lda., com identificação fiscal n.º ………, e sede em …, instaurou contra C…, Lda., com identificação fiscal n.º ………, e sede em …, e contra D…, com identificação fiscal n.º ………, e residência em …, acção executiva para pagamento da quantia de €3.732,25.
A instruir o requerimento executivo, juntou cópia de um auto datado de 08.01.2013 e emitido no âmbito de diligência de penhora realizada no processo de execução que sob o nº 5/12.9TBVLG, no qual a ali executada C…, Lda., declara pretender pagar a “dívida em prestações” estabelecendo com a ali exequente acordo no qual confessa devedora perante a exequente da quantia de € 3.307,45, e se obriga a pagar essa quantia em 22 prestações mensais e sucessivas, no valor unitário de €150,34, vencendo-se a primeira no dia 15.03.2013 e as demais em igual dia dos meses subsequentes. Nesse documento o aqui executado D… declara que se constituiu “fiador” “do presente acordo” “com renúncia ao benefício de excussão prévia”, “assumindo o pagamento das quantias que se mostrem em dívida em caso de incumprimento”.
No final da exposição de factos do requerimento executivo a exequente refere que “a interpretação conjugada dos artigos 6º da Lei 41/2013 e 703º, nº 1, do Código do Processo Civil, na redacção que lhe foi introduzida pela Lei nº 41/2013, no sentido de que um documento particular, assinado pelo devedor, que importe o reconhecimento oi constituição de obrigação pecuniária, outorgado em momento anterior à da entrada em vigor da Lei nº 41/2013, não constitui título executivo suficiente à propositura de uma acção executiva após 1 de Setembro de 2013 (…) padece de inconstitucionalidade, por violação dos princípios da confiança e da segurança, ínsitos a um Estado de Direito Democrático, conforme estatuído no art. 2º da Constituição da República Portuguesa” e que “atenta a inconstitucionalidade da norma que retirou exequibilidade ao documento ora oferecido à execução, na interpretação supra descrita, a mesma é inaplicável, pelo que o documento apresentado pela exequente constitui um título executivo”.
Conclusos os autos, o Mmo. Juiz a quo proferiu decisão na qual declarou o entendimento de que “não se verifica a inconstitucionalidade invocada pela exequente, não dispondo a mesma de título executivo uma vez que o título dado à execução não integra o elenco do artº 703º do novo Código de Processo Civil” e, consequentemente, nos termos do artigo 726º, nº 2, alín. a), do Código de Processo Civil, indeferiu “liminarmente” o requerimento executivo.
Do assim decidido, a exequente interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
A- […], B- […], C- […], D- [a decisão recorrida apoia-se num] raciocínio que clama, de iure constituto, que a mutação legislativa que suprimiu do elenco do art." 46.° do CPC revogado a alínea c) do seu número 1 não arrastou consigo, num imediatismo consequente de uma relação de causa-efeito, a perda de força executória do documento particular constituído/ exarado em data anterior a 1 de Setembro de 2013 e a que fosse atribuída exequibilidade pelo regime vigente à data da sua constituição.
E- A predecessora menção à existência de um bloco de acórdãos corporiza-se na existência dos seguintes arestos: Acórdão do Tribunal Constitucional N.º 847/2014, de 3 de Dezembro de 2014 - Processo N.º 537/14-; Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 27/02/2014 - Processo N.º 374/13.3TUEVR.E1; Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 10/04/2014; Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26/03/2014 - Processo N.0766/13.8TTALM.LI-4.
F- A eles acoplam-se as posições doutrinárias de Maria João Galvão Teles (in A Reforma do Código de Processo Civil: A Supressão dos Documentos Particulares do Elenco dos Títulos Executivos) e Isabel Menéres Campos (in A Nova Acção Executiva),
G- Tudo conduzente ao seguinte: o art 6.°,3, da Lei 41/2013, quando interpretado no sentido da perda de força executiva de documentos particulares pré-constituídos, padece de inconstitucionalidade material.
H – […] I – […], J- Com efeito, da interpretação conjugada dos artigos 6.°,3 da referida lei e do art. 703.° do CPC resulta inapelável que "os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto" deixaram de gozar de exequibilidade e que o "disposto no Código de Processo Civil, aprovado em anexo à presente lei, relativamente a títulos executivos, às formas do processo executivo, ao requerimento executivo e à tramitação da fase introdutória só se aplica às execuções iniciadas após a sua entrada em vigor", pelo que a vexata quaestio da acção delimita-se pelo seguinte objecto: será inconstitucional a recusa da exequibilidade aos documentos particulares constituídos anteriormente a 1 de Setembro de 2013 em execuções interpostas posteriormente àquela data?
K - Ora, pugnou a instância a quo por um entendimento coincidente com a posição minoritária formada pelo Ac. da Relação de Coimbra de 7/10/2014, que defendeu a constitucionalidade da decisão legislativa que terá retirado força executiva aos documentos particulares constituídos antes da reforma legislativa já mencionada e aos quais a lei nova é de aplicação imediata desde a sua vigência - 1 de Setembro de 2013). L- Redarguir tal entendimento é algo que só poderá fazer-se por apelo aos princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança diante do poder normativo e por apelo ao que vêm a ser as noções de retroactividade e retrospectividade.
M- Ora, a recorrente, anteriormente exequente, apresentou aos autos judiciais de um processo de execução um documento particular constitutivo de obrigações pecuniárias, todas marcadas pela inadimplência dos ora recorridos/apelados, então devedores transmutados em executados: C…, Lda. e D…. Vale dizer, um título executivo negocial segundo a sistemática do hoje inexistente, na migração para o art. 703.° do CPC, art. 46.º al. c) do anterior CPC.
N - Um auto de diligência de penhora, desencadeada e legitimada pelo concatenado do processo judicial n.º 5/12.9TBVLG que corre termos no J8 da 1.ª Secção de Execução da Instância Central da Comarca do Porto - Porto -, eis a sua génese. Por seu efeito, confessou-se a executada e recorrida C…, Lda. devedora da quantia de 3.307,45 €, contando a exequente com a vinculação fidejussória do Exmo. Sr. D…, que com renúncia ao benefício da excussão prévia acantonou-se àqueloutra posição debitória de que se assumiu concomitantemente devedor principal, fixada pelas partes no cumprimento de 22 prestações mensais e sucessivas de 150,34 €, vencendo-se a primeira no dia 15/03/2013 e as sobejantes em igual dia dos meses subsequentes.
O- O incumprimento de tais prestações foi o que demandou da ora apelante a proposição de um requerimento executivo, o que foi feito por a exequente dispor do que a ciência jurídica designa por documento particular (art. 373.° do Código Civil) recognitivo de obrigação pecuniária e o que a lei adjectiva pátria consagrava no elenco de títulos executivos negociais do CPC de 1961 revisto (art. 46.º al. c), bem como porque a Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, recebera um entendimento quase conforme no sentido da sua ilegalidade - rectius, inconstitucionalidade material por preterição do conteúdo mínimo do valor normativo dos princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança (art. 2.° da CRP) - quando interpretada no sentido de limitar as portas do direito de acção executiva a credores munidos de documentos particulares constituídos e constituintes de título executivo na vigência da predecessora lei processual.
P- Aí alegou os factos que enformavam a causa de pedir e citou autorizados arestos e opiniões doutrinárias que expunham que outra decisão que não a manutenção dos caracteres de coercibilidade aos documentos particulares pré-existentes e integrantes do leque taxativo consagrado no art." 46.0.l.c) do anterior CPC era violador dos princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança (art." 2.° da Constituição da República Portuguesa) na modalidade de actos normativos. Esse compósito é o acervo constituinte da presente recurso, pois que é consabida que a posição do Exmo. Juiz foi o indeferimento liminar do requerimento executivo (art. 726.°, 2, a) do CPC) por entender que o sacrifício de expectativas jurídicas dos particulares lesados não integrava o núcleo essencial do direito de acção (art. 20.° da CRP) nem comprimia com onerosidade os princípios da segurança e da protecção jurídica (art. 2.° da CRP -"( ... ) contrariamente ao defendido no referido Ac. não estamos perante uma frustração de expectativas onerosa porquanto não expectável pelos destinatários da norma").
Q- Ora, sem embargo dessa opinião, a verdade é que da análise dos seguintes acórdãos resulta outra posição de charneira, favorável à pretensão recorrenda: Ac. do Tribunal da Relação de Évora, de 27-02-2014 (Processo N.º 374/13.3TUEVR.El); Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 10-04-2014; Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 26-03-2014 (Processo N.º 766/13.8TTALM.LI-4); Acórdão do Tribunal Constitucional N.º 847/2014, de 3 de Dezembro de 2014 (Processo N.º 537/14).
R- Tudo analisado, resulta que o que está sub judice presente é uma necessidade de ponderação, a efectuar sob a génese constitucional da relação de concordância prática com respeito pelo núcleo essencial dos direitos fundamentais (art.º 18.°.3 da CRP) - correspondente ao mínimo axiológico que a dignidade da pessoa humana constitui (art.º 1.º da CRP)-, entre o direito de acção executiva, imposto contra o Estado e integrante do espectro abstracto da previsão do art 20.º da CRP (acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva) e em si um direito fundamental de natureza análoga a Direitos, Liberdades e Garantias, por um lado, e o interesse e a legitimidade legiferantes do poder público na limitação da via de acesso executiva àquelas situações em que a natureza presente, líquida e exigível da relação de crédito não é apodíctica.
S- Porque tudo provém de uma mutação legislativa e da estatuição das normas que fixam a sua vacatio legis e marco de eficácia (art. 6.°.3 da Lei 41/2013), a matéria demanda a análise dos princípios da confiança e da segurança jurídica, na modalidade de tutela de expectativas legítimas perante alterações legislativas, o que desemboca novamente no art. 18.º da CRP e num dos limites intangíveis das leis restritivas de direitos fundamentais: a (ir )retroactividade.
T- Nesse campo, postula Gomes Canotilho que o princípio da segurança jurídica num Estado de Direito Democrático (art." 2.° da CRP) identifica-se com elementos objectivos da ordem jurídica - garantia da estabilidade jurídica, segurança de orientação e realização do direito -, ao passo que o princípio da protecção da confiança se prende mais com as componentes subjectivas da segurança, designadamente a calculabilidade e previsibilidade dos indivíduos em manter os efeitos jurídicos dos actos dos poderes públicos. Ainda com este autor, pode-se dizer que o princípio geral da segurança jurídica corresponde à protecção que o indivíduo tem de poder confiar em que aos seus actos ou às decisões públicas incidentes sobre os seus direitos, posições ou relações jurídicas alicerçados em normas jurídicas vigentes e válidas por esses actos jurídicos deixado pelas autoridades com base nessas normas se ligam os efeitos jurídicos previstos e prescritos no ordenamento jurídico.
U- Por interpretação de tais princípios somos levados ao postulado de duas garantias fundamentais: Primo, a precisão e determinabilidade das normas jurídicas: vale dizer, exigência de clareza das normas legais e exigência de densidade suficiente na regulamentação legal. Na situação concreta, não nos parece que resida aqui a dificuldade dogmática. Secondo, a proibição de retroactividade de leis restritivas de direitos, liberdades e garantias: o arquétipo desta proibição é-nos fornecido pelo art. 18.°/3 da CRP e aglutina dois valores essenciais - irretroactividade e protecção da confiança de disposições transitórias. Não se tocando, estão em íntima ligação. Assim, se por retroactividade se entende o decretamento ex lege de efeitos jurídicos de uma norma ulterior a relações de facto existentes antes da sua entrada em vigor, a protecção da confiança perante normas transitórias coloca já outra problemática, a da retroactividade inautêntica ou retrospectividade: "uma norma jurídica incide sobre situações ou relações jurídicas já existentes embora a nova disciplina jurídica pretenda ter efeitos para o futuro" (Gomes Canotilho, ob. cit., p. 262). Nesta situação, onde ao invés de efeitos ex tunc se produzem efeitos ex nunc, situações há em que uma norma, não pretendendo regular situações jurídicas passadas, acaba por lhes tocar. É aqui, como consequência, que colhem aplicação os subsídios relativos à protecção da confiança através de disposições legais transitórias: "No plano do direito constitucional, o princípio da protecção da confiança justificará que o Tribunal Constitucional controle a conformidade constitucional de uma lei, analisando se era ou não necessária e indispensável uma disciplina transitória, ou se esta regulou, de forma justa, adequada e proporcional, os problemas resultantes da conexão de efeitos jurídicos da lei nova a pressupostos - posições, relações, situações - anteriores e subsistentes no momento da sua entrada em vigor." • Importa também ter presente, enquanto parâmetro de aferição, o sentido com que a jurisprudência constitucional vem cunhando a interpretação dos princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança, para o que vem à liça o Ac. do TC n. 862/2013:"A protecção da confiança é uma noma com natureza principiológica que deflui de um dos elementos materiais justificadores e imanescentes do Estado de Direito: a segurança jurídica dedutível do artigo 2.0 da CRP. Enquanto associado e mediatizado pela segurança jurídica, o princípio da protecção da confiança prende-se com a dimensão subjectiva da segurança - o da protecção da confiança dos particulares na estabilidade, continuidade, permanência e regularidade das situações e relações jurídicas vigentes. Sustentado no princípio do Estado de Direito Democrático, o seu conteúdo tem sido construído pela jurisprudência, em avaliações e ponderações que têm em conta as circunstâncias do caso concreto".
V - Olhando para esse caso concreto, é indelével constatar que estamos defronte de um puro problema hermenêutico: saber se a Lei N.º 41/2013, de 26 de junho, quando decretou no seu art.º 6.°.3 a aplicação imediata da lei nova a situações cobertas por garantias creditícias que anteriormente favoreciam o credor, que dispunha das portas da acção executiva, é ou não inconstitucional por frustrar, desproporcionadamente e para lá do núcleo essencial do direito de acção contido no art.º 20.° da CRP, as expectativas na manutenção de um status quo legislativo favorecedor.
W - A resposta passa por dois tópicos: 1) Saber se a proibição de lei retroactiva abrange ainda as situações descritas como retrospectividade; 2) Sendo positiva a resposta, saber se a específica medida encontrada é proporcional, adequada e aferidora de um regime solucionador que salvaguarda o núcleo essencial do direito de acção e dos princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança.
X. No tangente ao primeiro dos tópicos, a resposta é positiva: "também a retrospectividade - tomada em consideração de factos anteriores à entrada em vigor da lei - não pode deixar de ser inconstitucional, precisamente quando é arbitrária ou restringe direitos, liberdades e garantias" (Gomes Canotilho, ob. cit., p. 452).
Y- Já quanto ao segundo tópico, na medida em que o direito à execução forçada cabe no art.º 20.0 da CRP e constitui um direito fundamental de natureza análoga a Direitos, Liberdades e Garantias (Ac. TC N.º 847/2014), há que indagar se essa lei obedece ao arquétipo de protecção de direitos fundamentais: proporcionalidade e preservação do conteúdo mínimo (are 18.0 da CRP), pois que sem isso violados estarão também os princípios da confiança e da segurança jurídica.
Z- Principiando essa análise pelo princípio da proporcionalidade, cumpre aludir ao art." 18.° da CRP, onde surge evidente no nº 2 que "a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos".
AA- Significa isso que "qualquer limitação, feita por lei ou com base na lei, deve ser adequada (apropriada), necessária (exigível) e proporcional (com justa medida). A exigência da adequação aponta para a necessidade de a medida restritiva ser apropriada para a prossecução dos fins invocados pela lei (conformidade com os fins). A exigência da necessidade pretende evitar a adopção de medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias que, embora adequadas, não são necessárias para se obterem os fins de protecção visados pela Constituição ou a lei. Uma medida será então exigível ou necessária quando não for possível escolher outro meio igualmente eficaz, mas menos «coactivo», relativamente aos direitos restringidos. O princípio da proporcionalidade em sentido estrito (= princípio da «justa medida») significa que uma lei restritiva, mesmo adequada e necessária, pode ser inconstitucional, quando adopte «cargas coactivas» de direitos, liberdades e garantias «desmedidas», «desajustadas», «excessivas» ou «desproporcionadas» em relação aos resultados obtidos" - cfr. Gomes Canotilho, ob. cit., p. 453.
BB- Por seu turno, a obrigatoriedade jus-constitucional de preservação no conteúdo mínimo ou essencial dos direitos fundamentais constituintes de direitos, liberdades e garantias ou de natureza análoga inculca a ideia da necessidade de protecção de um radical axiológico mínimo dos valores em protecção, que a doutrina entende ser assimilável por justaposição ao princípio da dignidade da pessoa humana (are 1.0 da CRP), assumindo posição de liderança, entre outras propostas, as teorias ditas relativas ou de colisão de direitos.
CC- Para essas, "o núcleo essencial é o resultado de um processo de ponderação, constituindo aquela parte do direito fundamental que, em face de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos e com ele colidentes, acaba por ser julgada prevalecente e consequentemente subtraída à disposição do legislador" - cf. Gomes Canotilho, ob. cit., p. 455. Em suma, portanto, "se é razoável o entendimento de o âmbito de protecção de um direito dever obter-se, caso a caso, tendo em conta outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos, também é certo que a proibição da diminuição da extensão do núcleo essencial só terá sentido constituir um reduto último intransponível por qualquer medida legal restritiva - cfr. Ac. TC 8/84" - Gomes Canotilho, ob. cit., p. 456.
DD- Tudo exposto, quando se tem de concluir pela constitucionalidade da norma do artº 6º, 3, da Lei 41/2013, é mister dizer que o malogro da via de entrada pelas portas da acção executiva leva a credora/ apelante a assacar a inconstitucionalidade do artº 6.°, 3, da Lei 41/2013, porquanto que frustra por modo excessivamente oneroso a sua posição creditícia.
EE- Efectivamente, se antes podia, com base num título executivo negocial, despoletar uma instância de jaez executivo e todas as suas características conaturais - vide, p. ex., o valor probatório do título ou a possibilidade de penhora sem citação prévia -, passou agora a ter de lançar mão de uma acção declarativa sob a forma de processo comum ou, o que acontecerá as mais das vezes, do procedimento declarativo de injunção (DL 269/98, de 1 de Setembro).
FF - Bem se dirá que a própria acção executiva se convola em acção declarativa quando, deduzida oposição, se processa o concatenado do apenso de embargos de executado ou de oposição à penhora (artºs 724.° e 784.° do CPC).
GG- Mas não se desmerece, por impedimento, que a natureza probatória do título e a possibilidade de penhora funcionam sempre como meios constritivos ao cumprimento da banda dos executados.
HH - Mais ainda, no apenso de embargos de executado é ao embargante (executado) que cumprirá provar o alegado de acordo com as regras gerais do ónus da prova (artº 342.° do CCiv.), o que já não acontecerá se fizer carreira a posição do Mmo. Juiz a quo, pois transferir-se-á para o credor a prova da relação creditícia causal e de todos os seus elementos, hoje protegida pelo valor probatório do título executivo.
11- É pois todo este constrangimento do direito de acção, de natureza análoga a Direitos, Liberdades e Garantias e inserido na previsão do artº 20.º, que sobreleva sobre o interesse estadual legiferante em querer incutir às relações jurídicas mais discussão substantiva e mais certezas sobre a causa de constituição da obrigação, pois onera em demasia uma posição creditícia constituída por móbeis de confiança num estado legislativo cuja mutação não era previsível ou expectável.
JJ- Em causa não está a lei 41/2013 no que dispõe para o futuro; inconstitucional é apenas a eliminação da via executiva a documentos particulares pré-constituídos e que antes poderiam, por já existir no mundo do direito, estribar uma acção de jaez coercitivo.
KK- Consequentemente, uma mudança legislativa do jaez daquela ocorrida, quando abrange retrospectivamente títulos executivos negociais particulares pré-existentes, viola o núcleo essencial do art.20.0 da CRP, ao mesmo tempo que é uma decisão de natureza jurisgénica desproporcional.
LL- Em concomitância, o artigo 6.°.3 ofende os princípios da confiança e segurança jurídica, porquanto que "afecta de forma inadmissível e arbitrária os direitos e expectativas legitimamente fundados dos cidadãos" (Ac. TC 11/82 do TC), assente que está, sem margem para tergiversações, que há certos efeitos jurídicos da lei nova vinculados a pressupostos ou relações iniciadas no passado - cf. Gomes Canotilho, ob. cit., p. 262 e Ac. do TC N.º 232/91 e 365/91 -, isto é, assente que está que a proibição de legislar com os olhos no passado abrange também as hipóteses ditas de retrospectividade (art.º 18.° da CRP).
MM- Tudo isto é o que estriba a premência de um entendimento jurisdicional revisitador do despacho a quo em crise, com o consequente decretamento do seguimento da acção executiva.
NN- Por conseguinte, se está presente no art." 6.°.3 da Lei 41/2013 uma inconstitucionalidade material, são os princípios constitucionais da segurança jurídica e da protecção da confiança (art.º 2.° da CRP), da proporcionalidade (art.º" 18.°.2 da CRP) e da proibição de retroactividade da lei restritiva de direitos fundamentais (artº 18.°.3 da CRP), a par do núcleo mínimo do art.º 20.° da CRP (tutela jurisdicional efectiva), que se mostram violados.
OO- À laia de conclusão, portanto, entre a protecção da legitimidade de expectativas dos cidadãos que ficaram privados da via executiva e o conatural poder legiferante em querer incutir aos litígios particulares maior discussão jurisgénica antes da prolação da via processual executiva, mormente através do envio dos litígios para o procedimento de injunção com vista à formação, aí, de título executivo quase-judicial, prevalece sobremaneira a primeira garantia dos particulares. Isto é, prevalece a constância da qualidade de título executivo de documentos particulares que constituam o reconhecimento de uma dívida, contanto que sejam lavrados antes da lei 41/2013, de 26 de junho, e neles os particulares tenham depositado fundadas expectativas de poder coercitivo, pois que se formaram a um tempo em que constituíam, sem tergiversações, um título executivo de tipo negocial.
Nos autos não se encontra resposta às alegações de recurso.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II.
As conclusões das alegações de recurso colocam este Tribunal perante o dever de resolver se é inconstitucional a interpretação segundo a qual em resultado de o novo Código de Processo Civil ter eliminado do elenco dos títulos executivos documentos particulares como o apresentado à execução, deixaram se poder ser usados como títulos executivos os documentos anteriores à entrada em vigor do novo Código e então com valor de títulos executivos.

III.
Os factos que interessam à decisão são os que constam do relatório que antecede.

IV.
- Da (in)constitucionalidade da retirada de valor de título executivo a documentos que antes da aprovação do novo Código de Processo Civil pela Lei n.º 41/2013 de 26 de Junho, tinham esse valor, e com base nos quais até à entrada em vigor daquele Código ainda não tinha sido instaurada acção executiva:
A questão que nos ocupa tem vindo a dividir a doutrina e a jurisprudência. Acompanhando de perto o Acórdão de 02-07-2015, no processo nº 263/14.4TBVLC.P1, relatado pelo aqui 1.º Adjunto e subscrito também pelo aqui 2.º Adjunto, de momento não publicado, diremos o seguinte:
No sentido de julgar inconstitucional a norma resultante dos artigos 703.º do novo Código de Processo Civil e 6.º, n.º 3, da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, na interpretação de que aquele artigo 703.º se aplica a documentos particulares elaborados em data anterior à da entrada em vigor do novo Código de Processo Civil e que então, por força do artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil de 1961, eram títulos executivos pronunciaram-se até ao momento:
A] na doutrina:
- Maria João Galvão Telles in A Reforma do Código de Processo Civil: A supressão dos documentos particulares do elenco dos títulos executivos, Julgar on line, 2013
- Elisabeth Fernandez in Um Novo Código de Processo Civil? Em busca das diferenças, Vida Económica 2014, págs. 157 e 158.
- Rui Pinto in Notas ao Código de Processo Civil, pág. 466.
- Isabel Menéres Campos, in A “Nova” acção executiva, in www.oa.pt
B] na jurisprudência publicada in www.dgsi.pt
- da Relação de Évora os Acórdãos de 27.2.2014, processo n.º 374/13.3TUEVR.E1 (Paula do Paço), de 10.04.2014, processo nº 305/13.0TBVVC.E1 (Mata Ribeiro), e de 12-03-2015, processo 321/14.5T8ENT.E1 (Assunção Raimundo);
- da Relação de Lisboa, os Acórdãos de 26.3.2014, processo n.º 766/13.8TTALM.L1-4 (Paula Santos) e de 17-12-2014, processo 23/14.2TTVFX.L1-4 (Jerónimo Freitas);
- da Relação do Porto, os Acórdãos de 05-01-2015, processo n.º 1329/14.6T2AGD.P1 (Teles de Menezes e Melo);
- Relação de Coimbra, os Acórdãos de 28-04-2015, processo 2186-14.8TJCBR.C1 (Moreira do Carmo) e de 19-05-2015, processo 376/14.2T8CBR.C1 (Arlindo Oliveira).
Já no sentido de julgar não existir inconstitucionalidade na retirada de valor de título executivo a documentos elaborados antes da entrada em vigor do novo Código de Processo Civil e, portanto, permitindo, apesar da listagem de títulos executivos deste Código, a instauração após 01.09.2013 de execuções baseadas nesses títulos, expressaram-se:
A] na doutrina:
Miguel Teixeira de Sousa e José Lebre de Freitas, no blogue do Instituto Português de Processo Civil no endereço electrónico http://blogippc.blogspot.pt/
Miguel Teixeira de Sousa, in Anotação ao Acórdão do Tribunal Constitucional nº 537/14 intitulada Títulos Executivos Perpétuos? Publicada em Cadernos de Direito Privado, nº 48, Outubro/Dezembro 2014, páginas 12 a 16.
B] na jurisprudência publicada in www.dgsi.pt:
- da Relação de Lisboa, os Acórdãos de 19.6.2014, processo n.º 138/14.7TCFUN.L1-6 (Tomé Ramião) e de 24.9.2014, processo n.º 3275/14.4YYLSB.L1-2 (Leitão Leal)
- da Relação de Coimbra, o Acórdão de 7.10.2014, processo n.º 61/14.5TBSBG.C1 (Maria João Areias)
- desta Relação do Porto, os Acórdãos de 9.12.2014, processo nº 1011/14.4T8PRT.P1 (Fernando Samões), de 27-01-2015, processo 6620/13.6YYPRT-A.P1 (João Diogo Rodrigues) e de 24-03-2015, processo 1403/14.9T2AGD.P1 (Francisco Matos);
- da Relação de Guimarães, os Acórdão de 17-12-2014 (Conceição Bucho), processo 31/14.3TBMDR.G1, e de 19-03-2015, processo 203/14.0T8VNF.G1 (Maria da Purificação Carvalho).
Não é necessário repetir aqui em profundidade a argumentação a que se acolhem ambas as posições, a qual se encontra devidamente esplanada em qualquer dos Acórdãos citados. Basta acentuar que, no essencial, a posição que defende a inconstitucionalidade da retirada de valor de título executivo aos documentos já elaborados antes de 01.09.2013, parte da consideração de que os beneficiários do direito de crédito titulado por esses documentos tinham um direito ou expectativa jurídica legitimamente fundada de que poderiam instaurar uma execução com base nesses títulos, que a alteração legislativa que privou esses documentos do valor de título executivo quebrou a confiança que esses credores depositavam no sistema jurídico, que não existe um interesse público relevante que justifique essa quebra de confiança porquanto existem meios judiciais de reacção contra as execuções injustas, que ao serem privados do acesso imediato ao processo executivo os credores ficam em sérias dificuldades ou mesmo privados de meios para obterem a satisfação do seu crédito, que nessa medida a retirada do valor de título executivo acaba por ser desproporcionada e violadora do princípio da protecção da confiança ínsito no princípio do Estado de Direito.
Já a posição que defende a constitucionalidade da aplicação da alteração legislativa de modo a abranger documentos anteriores radica, basicamente, nas ideias de que o acesso ao direito não compreende necessariamente o acesso imediato ao processo executivo, que as novas normas que dispõem sobre a força executiva dos documentos particulares apenas regulam o modo de realização judicial de um direito, sem afectarem a validade e força probatória do documento, modificarem o direito litigado ou importarem uma diferente valoração jurídica dos factos que lhe deram origem, que as alterações visam prosseguir o interesse público do melhor funcionamento da justiça e um maior equilíbrio entre os interesses em presença, designadamente o do credor em instaurar uma execução com base num documento particular e o de devedor em não ser alvo de uma execução e da penhora dos seus bens sem ter tido previamente oportunidade de se defender, não importando, por isso, qualquer violação desproporcionada, desadequada e desnecessária de princípio ou garantia constitucional.
Nesta polémica jurídica, impressiona-nos o relevo que se atribui ao acesso imediato à acção execução a partir de um título executivo, como se a acção executiva fosse o único meio concreto, efectivo, viável e admissível de jurisdicionalmente exercer direitos. A admitir-se esta tese chegar-se-ia com facilidade à constatação de que todos os meios processuais puramente declarativos seriam afinal inconstitucionais por violação do direito constitucional do acesso à justiça já que não representariam uma forma útil, viável ou adequada de os cidadãos exercerem os seus direitos com recurso aos tribunais. Ora esta tese não pode ser acompanhada, sobretudo quando a ordem jurídico processual civil já oferece meios que podemos qualificar de intermédios entre a pura acção declarativa e o ingresso imediato na via executiva, como é o caso do procedimento de injunção que de forma célere, não havendo litígio, permite a obtenção de um título executivo.
Isso mesmo anotou o legislador na exposição de motivos da Proposta de Lei que deu origem à Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, que aprovou o novo Código de Processo Civil: “É conhecida a tendência verificada nas últimas décadas, com especial destaque para a reforma de 1995/1996, no sentido de reduzir os requisitos de exequibilidade dos documentos particulares e, com isso, permitir ao respetivo portador o imediato acesso à ação executiva. Se é certo que tal solução teve por efeito reduzir significativamente a instauração de ações declarativas, a experiência mostra que também implicou o aumento do risco de execuções injustas, risco esse potenciado pela circunstância de as últimas alterações legislativas terem permitido cada vez mais hipóteses de a execução se iniciar pela penhora de bens do executado, postergando-se o contraditório. (…) Considerando que, neste momento, funciona adequadamente o procedimento de injunção, entende-se que os pretensos créditos suportados em meros documentos particulares devem passar pelo crivo da injunção, com a dupla vantagem de logo assegurar o contraditório e de, caso não haja oposição do requerido, tornar mais segura a subsequente execução, instaurada com base no título executivo assim formado. (…) Deste modo, relativamente ao regime que tem vigorado, opta-se por retirar exequibilidade aos documentos particulares, qualquer que seja a obrigação que titulem. Ressalvam-se os títulos de crédito, dotados de segurança e fiabilidade no comércio jurídico em termos de justificar a possibilidade de o respectivo credor poder aceder logo à via executiva. Ainda dentro dos títulos de crédito, consagra-se a sua exequibilidade como meros quirógrafos, desde que sejam alegados no requerimento executivo os factos constitutivos da relação subjacente.”
Acresce que a alteração processual verificada contende estritamente com a possibilidade de aceder de imediato à acção executiva, não prejudicando nem a validade ou força probatória do documento, nem o direito subjetivo por ele conferido. O credor continua munido de um documento com o mesmo valor probatório do direito que tinha antes, isto é, o valor de reconhecimento de uma dívida que nos termos do artigo 458.º do Código Civil dispensa o credor de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário. Donde resulta que mesmo numa acção declarativa, continua a ser o devedor, nos termos do artigo 342.º, n.º 2 do Código Civil, a ter de fazer a prova da inexistência do direito. A alteração está rigorosamente confinada à eliminação da possibilidade de instaurar imediatamente uma acção executiva, o que tem obviamente vantagens ao nível da rapidez na obtenção da satisfação do direito, sem que, todavia, se possa afirmar que a alteração atinge de forma inadmissível e arbitrária a expectativa gerada pela anterior força executiva do documento.
Impressiona-nos igualmente a circunstância de se atribuir ao beneficiário do documento particular um direito ou expectativa jurídica à manutenção do valor de título executivo do documento sem atender às normas de aplicação da lei no tempo. Na verdade, sempre foi entendido (cf. Assento n.º 9/93[1] publicado no DR, I.ª Série-A de 18.12.1993) que as normas que definem o tipo de acção susceptível de ser instaurada e os requisitos de acesso aos procedimentos jurisdicionais disponíveis, estejamos perante uma acção declarativa comum, um processo especial, uma acção executiva, um procedimento de injunção ou um incidente processual, são as normas legais vigentes na data da instauração da acção judicial; na doutrina cf. Remédio Marques, in Ação Declarativa À Luz do Código Revisto, 3.ª edição, pág. 190 e segs.[2]). A afirmação de que os credores portadores de um documento que na data da sua outorga reunia as características para permitir o ingresso imediato na acção executiva são titulares de um direito ou expectativa jurídica à manutenção desse status quo briga com aquele entendimento baseado no artigo 12.º do Código Civil e coloca-o directamente em causa, a nosso ver, sem fundamento bastante.
Chama-nos ainda a atenção a circunstância de não se atender a que a modificação legal serve um interesse público relevante de gerir melhor os recursos da justiça, desbloqueando o impasse que se verifica actualmente na acção executiva e que tem inevitáveis consequências para o exercício dos direitos dos demais credores para quem a acção executiva com as sucessivas alterações processuais se foi tornando uma via cada vez mais morosa e onerosa. Serve outrossim o interesse público relevante de ajustar os mecanismos processuais e fazê-los evoluir para responder aos entraves e abusos que a prática dos mesmos revela, onde se destaca a enorme litigiosidade que os documentos particulares suscitaram quanto a aspectos como a falsidade da assinatura e os vícios da vontade na sua outorga, fazendo inclusivamente surgir nos incidentes declarativos de oposição à penhora discussões antes raras nas acções declarativas em que esses documentos eram apresentados para prova do direito.
Como o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem assinalado continuamente[3] e constitui afinal uma imposição constitucional irrecusável, incumbe aos estados organizar o seu sistema judiciário de modo a assegurar as condições para que, mediante processos equitativos, as jurisdições possam cumprir as suas exigências e resolver as causas num prazo razoável. Essa organização passa necessariamente por uma boa e correcta distribuição das condições de acesso a determinado tipo de acção, a qual não pode deixar de atender às posições relativas dos interesses contraditórios envolvidos, designadamente aos interesses do credor e do devedor. Ora afigura-se-nos perfeitamente razoável atender devidamente aos interesses do devedor em não ser objecto de uma execução injusta e não ver o seu património penhorado, confiado a um fiel depositário e limitado no seu uso em virtude da penhora, nos casos em que a aparência do direito, possuindo embora a força de uma declaração confessória documentada, não possui a segurança proporcionada pela intervenção de um oficial público na elaboração ou autenticação do documento. Sobretudo, não vemos como é que se pode desprezar esse interesse com o argumento de que o sistema jurídico proporciona condições de reacção contra as execuções injustas (mal seria…) e concomitantemente não aceitar que a possibilidade de o credor recorrer a um procedimento de injunção para obter o título executivo que o documento deixou de lhe proporcionar representa uma forma válida, adequada e proporcionada de criar condições para poupar o devedor às delongas da acção executiva.
Como quer que seja, bem recentemente o Tribunal Constitucional interveio nesta polémica através do Acórdão n.º 847/2014, de 03.12.2014, relatado pela Exma. Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros, tendo decidido que “julgar inconstitucional a norma resultante dos artigos 703.º do CPC e 6.º, n.º 3 da Lei n.º 41/2013 de 26 de Junho, na interpretação de que aquele artigo 703.º se aplica a documentos particulares emitidos em data anterior à da entrada em vigor do novo CPC e então exequíveis por força do artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do CPC de 1961.”
O Tribunal Constitucional fundamentou da seguinte forma a sua decisão:
“11. A alteração normativa em presença caracteriza-se pela aplicação para o futuro a situações de facto e relações jurídicas presentes. Nestes casos, ainda que a nova regulação jurídica não substitua ex tunc a disciplina normativa existente, ela acaba por atingir posições jurídicas ou garantias geradas no passado e relativamente às quais os respetivos titulares formaram legítimas expetativas de não serem perturbados por um regime jurídico inovador. Trata-se da situação que a doutrina classifica de «retroatividade inautêntica» ou «retrospetiva».
É certo que o legislador pode legislar inovatoriamente, estando habilitado a alterar a lei processual (i.e., a lei por que se regem processos judiciais), mesmo quanto a pressupostos processuais ou a legitimidade ativa relativamente a factos passados, dentro de certos limites. De facto, não havendo «um direito à não-frustração de expetativas jurídicas ou à manutenção do regime legal em relações jurídicas duradoiras ou relativamente a factos complexos já parcialmente realizados» (Acórdão n.º 287/90, disponível, tal como os demais citados, em www.tribunalconstitucional.pt), bem se compreende, que o juízo da conformidade constitucional destes casos «dependerá essencialmente de uma ponderação de bens ou interesses em confronto» (J. Reis Novais, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, Coimbra Editora, 2004, p. 266).
12. Numa situação como a objeto do presente processo um dos limites constitucionais à atuação do legislador é o princípio da segurança jurídica ou ao princípio da proteção da confiança. Com efeito, apesar de o texto da Constituição não aludir expressamente a este princípio, ele é pacificamente dedutível do princípio do Estado de Direito consagrado no seu artigo 2.º. A afirmação deste princípio significa que, num Estado de Direito, a atuação dos poderes públicos deve ser previsível e confiável. (…)
13. A questão que deve ser colocada é, então, saber se a norma em causa afeta, de forma inadmissível, arbitrária ou demasiadamente onerosa direitos ou expetativas legitimamente fundadas dos cidadãos, traduzindo uma violação daquele mínimo de certeza e de segurança que as pessoas devem poder depositar na ordem jurídica de um Estado de Direito – i.e. uma violação do princípio da proteção da confiança, ínsito na ideia de Estado de Direito, consagrado no artigo 2.º da CRP (…).
Seguindo a metodologia adotada na jurisprudência do Tribunal Constitucional, importa começar por formular um juízo sobre a legitimidade das expetativas dos cidadãos visados. Neste âmbito, é necessário que i) as expetativas dos particulares sejam legítimas, justificadas e fundadas em boas razões, que ii) o Estado (em especial, o legislador) tenha atuado de forma a gerar nos particulares expetativas de continuidade, e que iii) os particulares tenham feito planos de vida tendo em conta essa expetativa de continuidade de comportamento estadual materializados ou traduzidos em atuações concretas (cfr. Acórdão n.º 355/2013). Confirmada a legitimidade da confiança deve, então, avançar-se para a ponderação sobre a prevalência do interesse público subjacente à medida sobre o interesse individual (a expetativa legítima) sacrificado pela mesma (cfr. Acórdãos n.os 556/2003 e 355/2013). Este juízo implica também a aferição da medida da afetação da confiança – relativamente a interesses públicos prevalecentes – no sentido de esta não poder ser desrazoável ou excessiva (Cfr. Acórdão n.º 355/2013). Neste âmbito deve recorrer-se a um raciocínio de ponderação semelhante ao efetuado quanto ao princípio da proporcionalidade (…)
14. (…) Neste sentido, importa começar por sublinhar a legitimidade e plena justificação das expetativas dos titulares de documentos particulares a que a lei atribuiu expressamente força executiva na exequibilidade do título de que se muniram. A alteração ao CPC de então que veio reconhecer estes documentos como títulos executivos deve ser lida no contexto da evolução da legislação em matéria de ação executiva, e em especial no que respeita à definição dos títulos executivos, no sentido da diminuição das exigências formais para a concessão da característica de exequibilidade a documentos particulares. A extensão da exequibilidade aos documentos particulares constitutivos da obrigação de entrega de coisas fungíveis, com a reforma de 1961, a que se seguiu a dispensa de reconhecimento notarial da assinatura do devedor nas letras, livranças e cheques de valor inferior à alçada da Relação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 533/77, de 30 de dezembro, mais tarde alargada a todos os títulos de crédito, independentemente do valor por via do Decreto-Lei n.º 242/85, de 9 de julho, culminando no alargamento da exequibilidade de documentos particulares relativos a obrigações pecuniárias de montante «determinável por simples cálculo aritmético», ou documentos relativos a obrigações de entrega de «coisas móveis infungíveis» e ainda às obrigações de «prestação de facto positivo ou negativo» com dispensa generalizada de reconhecimento notarial, bastando a imputação ao executado da assinatura nele inscrita, desde que do seu conteúdo derive o reconhecimento ou a constituição de alguma das obrigações previstas, inserem-se numa «linha que revela a tendência do legislador para a ampliação do âmbito de influência direta da ação executiva, sem intermediação da ação declarativa» (A. S. Abrantes Geraldes, “Títulos Executivo”, in A Reforma da Acção Executiva, Thémis, ano IV – n.º 7 – 2003, pp. 38-39).
De concluir será, portanto, que, nesta matéria, o legislador atuou de forma a gerar nos particulares expetativas de continuidade que os determinaram à realização de planos de vida, pressupondo a continuidade do comportamento estadual. A concretização dos ditos planos traduziu-se no municiamento com documento bastante (à data da formação do título) para garantir a imediata execução do seu crédito, através da recolha de um documento particular de reconhecimento de dívida assinado pelo devedor. Os cidadãos atuaram de acordo com um comportamento social normal, respeitador do enquadramento legal aplicável, confiando na sua estabilidade, pois nada fazia prever que fosse retirado o valor de título executivo a esses documentos. (…)
Facilmente se deduzirá, por conseguinte, que os credores que aceitaram os documentos particulares assinados pelos devedores como garantias dos seus créditos, dotadas de exequibilidade, determinaram os seus atos/negócios na convicção de que o legislador manteria as regras por si criadas, não retirando aos aludidos documentos, imprevisivelmente, a natureza que possuíam à data da sua constituição.
15. (…) Aceita-se, sem esforço, que a opção por um elenco mais modesto dos títulos executivos valoriza a segurança jurídica, impondo, por exemplo, maiores cautelas formais na verificação da autenticidade das declarações ou assinaturas constantes dos documentos ou obrigando à propositura da ação declarativa. Uma tal opção legislativa corporiza, portanto, um interesse público legítimo e relevante. Tanto mais quando não é possível ignorar que a exequibilidade dos documentos particulares, nos moldes que resultavam da anterior redação do artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do CPC, potencia o risco de interposição de execuções por quem não seja titular de um direito de crédito. Como observado por António Santos Abrantes Geraldes (ob. cit., p. 41), «generalizada a dispensa de qualquer intervenção notarial suscetível de confirmar a autenticidade da assinatura e fundada a exequibilidade apenas na apresentação de um documento imputado ao executado, ninguém está livre de ser demandado em ação executiva com base em documento viciado ou abusivamente utilizado».
(…) A medida legislativa em apreciação tem portanto a virtualidade de libertar o executado da necessidade de se defender de atos de agressão da sua esfera patrimonial diante de execuções abusivamente instauradas, o que, sem prejuízo do direito do exequente a instaurar execução com base no título executivo de que dispõe, também constitui direito merecedor de proteção à luz da Constituição.
Compreende-se, pois, a solução normativa em apreciação à luz do interesse público invocado. Mesmo considerando a maior morosidade no exercício do direito de crédito que ela acarreta em prejuízo da sua eficácia, a solução encontrada estabelece um compromisso entre celeridade e segurança que respeita os limites da liberdade de conformação do legislador. Ao garantir o direito de acesso aos tribunais, o artigo 20.º, n.º 1, da Constituição, não garante o direito a um determinado tipo de processo. Ora, a restrição ao direito de ação que a norma em análise implica traduz-se tão-só na eliminação da via executiva como via imediata de satisfação do crédito. Subsiste sempre a via geral do processo de declaração, além da via simplificada do processo de injunção.
16. (…) É, portanto, no confronto entre o interesse público em evitar execuções injustas e o interesse particular em manter a força executiva do documento que titula o crédito que se joga a apreciação da proporcionalidade da solução encontrada.
Nesta ponderação importa reter que o risco de instauração de execuções injustas por parte do credor munido de simples documento constitutivo de dívida assinado pelo devedor pode ser - e tem efetivamente sido –, contrabalançado por variadas soluções legislativas. Desde logo, a previsão da possibilidade de deduzir oposição à execução (embargos de executado) a garantir o pleno exercício do contraditório por parte do executado (artigo 816.º do CPC antigo e artigo 731.º do CPC novo). Ou a faculdade concedida ao juiz de, na sequência de dedução de oposição à execução com simples fundamento na falta de autenticidade da assinatura imputada ao executado, ordenar a suspensão da execução caso seja apresentado documento que constitua indício de prova revelador da viabilidade da oposição (artigo 818.º do CPC antigo e artigo 733.º do CPC novo) ou ainda a penalização do exequente que atue sem a prudência exigível (artigo 819.º do CPC antigo).
Diferentemente, a imprevista eliminação de exequibilidade a um documento que anteriormente era dotado de força executiva pode deixar o credor em sérias dificuldades (senão mesmo privado de meios) para ver satisfeito o seu direito de crédito.
Ainda que subsistam outras vias de acesso ao direito, como o processo de injunção ou a ação declarativa, o credor deixa de poder contar com a presunção de prova da dívida que lhe oferecia o documento munido de força executiva.
Na verdade, não deve ignorar-se que o direito de ação executiva, materializado no título executivo, pressupõe a presunção da prova da dívida. Por conseguinte, a exclusão de determinado tipo de documento do rol dos títulos executivos acarreta consigo não apenas a privação do acesso imediato à ação executiva como também a privação da presunção de prova do direito de crédito.
(…) Se em si mesma esta perda do benefício de uma presunção da prova de um direito se contém na liberdade de conformação do legislador, a incidência do novo regime jurídico sobre situações jurídicas constituídas no passado exige, todavia, uma ponderação de interesses contrapostos, constituídos, por um lado, pelas expetativas dos particulares na continuidade do quadro legislativo vigente e, por outro, pelas razões de interesse público que justificam a alteração das soluções legislativas. Nessa ponderação assume especial relevância a lesão ao interesse particular legítimo, na medida em que esta constitui uma ablação do valor de título executivo do documento particular que possui. A esta relevância da lesão do interesse particular contrapõe-se a prossecução de um interesse público de particular relevância que pode ser alcançado com um nível similar de eficácia através de meios menos lesivos ou numa escala temporal maior.
Assim, no juízo de ponderação que é imposto pela proteção da confiança, confronta-se e valora-se o efeito negativo sobre o interesse do credor particular (que pode ficar sem possibilidade de fazer valer o seu crédito), com um interesse público, que pode ser alcançado por outras medidas legislativas e seguramente também num horizonte temporal mais alargado. Ora, neste caso, a solução justa desta ponderação feita à luz do princípio da tutela da confiança impõe que a implementação da medida se faça de forma diferida no tempo. Aplicá-la de imediato, é ultrapassar, de forma excessiva, a medida de sacrifício imposto aos interesses particulares atingidos, uma vez que bastaria a previsão de um regime transitório adequado para acautelar as expetativas legítimas dos titulares de títulos executivos que perderam essa natureza, sem descurar o interesse público que reside na eliminação de execuções injustas.
(…) Conclui-se, assim, que a aplicação imediata e automática da solução legal ínsita na conjugação dos artigos 703.º do CPC e 6.º, n.º 3 da Lei n.º 41/2013 de 26 de junho, de que decorre a perda de valor de título executivo dos documentos particulares que o possuíam à luz do CPC revogado, sem uma disposição transitória que gradue temporalmente essa aplicação é uma medida desproporcional que afeta o princípio constitucional da Proteção da confiança ínsito no princípio do Estado de Direito democrático plasmado no artigo 2.º da Constituição.”
O Tribunal Constitucional é soberano na interpretação da conformidade das normas legais com a Constituição. O mencionado Acórdão não é ainda uma declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral. Todavia, a prática recente do Tribunal revela a tendência para reiterar e manter as posições expressas em anteriores Acórdãos, sendo excepcionais os casos em que o Tribunal altera a sua posição, adoptando jurisprudência diversa. Sinal disso mesmo é a circunstância de um dos Conselheiros subscritores ter proferido, já depois, a Decisão Sumária nº 82/2015, no processo 1147/14, na qual reafirmou o decidido e se limitou a remeter para aquele aresto, e mais recentemente, em 04-03-2015, ter sido proferido novo Acórdão nº 161/2015, no processo nº 1148/2014, que, também por unanimidade, se limitou a reproduzir a mesma fundamentação e a repetir a mesma decisão daquele primeiro.
Isto posto, admitindo que a questão reclama uma ponderação sobretudo baseada em princípios cuja plasticidade consente interpretações mais fluidas e variáveis, que a fundamentação do citado Acórdão corresponde a uma posição igualmente defendida nos tribunais comuns e que a segurança e uniformidade das soluções jurídicas para uma determinada questão ou caso representa um objectivo que deve ser prosseguido na actividade jurisdicional e que aliás é imposto pelo artigo 8.º do Código Civil, aderimos à posição veiculada pelo Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 847/2014.
Fazendo aplicação do juízo de inconstitucionalidade proferido nesse Acórdão ao caso concreto, conclui-se que assiste razão ao exequente e que a decisão recorrida deve ser revogada e substituída por outra que admita a execução por o exequente se encontrar afinal munido de título executivo bastante.
Cabe referir que no despacho recorrido não se atentou que em relação à sociedade executada já se encontra pendente processo executivo no qual foi celebrado o acordo de pagamento em prestações que aqui é apresentado como título executivo e que na referida execução, na sequência do não cumprimento do acordo, foi requerido o prosseguimento da execução, conduzindo a que estejam em simultâneo pendentes duas execuções contra a mesma pessoa para satisfação de uma mesma obrigação pecuniária, ainda que titulada por dois títulos executivos diferentes. Uma vez que essa questão não foi analisada na decisão recorrida, não nos é possível conhecer da mesma nesta sede, pelo que em 1.ª instância a mesma deverá ser apreciada e decidida.

V.
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso totalmente procedente e, em consequência, dando provimento à apelação, revogam a decisão recorrida, que deverá, em 1ª instância, ser substituída por outra que determine o prosseguimento da execução, caso nenhum outro motivo tal impeça.
Custas pela parte responsável, a final, pelas custas da execução (tabela I-B).
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Porto, 10 de Setembro de 2015.
Aristides Rodrigues de Almeida (Relator; Rto216)
José Amaral
Teles de Menezes
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[1] Assinala-se aí que “A aplicação no tempo das leis processuais, na falta de regulamentação especial no Código de Processo Civil, deve basear-se nos princípios consignados no artigo 12.º do Código Civil. Em particular no que respeita à forma de processo, a lei nova deve aplicar-se «para o futuro» n.º 1 do citado artigo 12.º), o que significa ser aplicável às acções intentadas depois da sua entrada em vigor, independentemente da lei vigente na data da constituição da relação jurídica material, ocorrendo, nessa medida, a aplicação imediata ou «retroactiva» da lei processual, justificada pela sua natureza publicística e instrumental. (…) Acresce que, mesmo quanto às leis substantivas que «apenas regulam o modo de realização judicial de um direito», é geralmente defendida a sua aplicação imediata (Baptista Machado, Sobre a Aplicação no Tempo do Novo Código Civil, p. 23, e Vaz Serra, Revisão de Legislação de Jurisprudência, ano 102.º, p. 189)…”.
[2] Exemplifica este autor: “Admita-se que a lei nova afasta os documentos particulares assinados pelo devedor do campo dos títulos executivos que permitem intentar execução para entrega de imóvel (art.º 46.º, alínea c), parte final do CPC). Neste caso, a sua aplicação atingiria os documentos particulares apenas assinados pelo devedor já preexistentes na data da sua entrada em vigor, onde se tivesse convencionado a entrega desses bens imóveis (art.º 12.º/2, 2.ª parte, do C. Civil)”.
[3] Cf., por exemplo, o Acórdão de 4.10.2011 Ferreira Alves c. Portugal (nº8) http://cmiskp.echr.coe.int /tkp197/view.asp?action=html&documentId=892667&portal=hbkm&source=externalbydocnumber&table=F69A27FD8FB86142BF01C1166DEA398649