Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
380/12.5PASTS.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EDUARDA LOBO
Descritores: RECUSA
PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL
Nº do Documento: RP20161012380/12.5PASTS.P2
Data do Acordão: 10/12/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: INDEFERIDA
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 1025, FLS.66-68)
Área Temática: .
Sumário: A mera apresentação de uma denúncia-crime não basta para justificar a preterição do princípio do juiz natural por via da sua recusa da sua intervenção no processo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 380/12.5PASTS.P2
1ª secção

Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO
No âmbito do Processo Comum com intervenção do Tribunal Singular que corre termos na Secção Criminal – J1 da Instância Local de Santo Tirso, Comarca do porto com o nº 380/12.5PASTS, em que é assistente B… e arguido C…, o arguido suscitou o incidente de recusa da Srª. Juíza de Direito que preside ao julgamento, Drª. D…, com os seguintes fundamentos em síntese:
1. O requerente apresentou duas queixas-crime contra a requerida, na Procuradoria Distrital do Porto, imputando-lhe a prática de atos suscetíveis de integrar um crime de denegação de justiça, favorecimento pessoal e prevaricação;
2. O requerente imputa à requerida a prática de atos dolosos de cariz persecutório, tendentes a eliminar os fundamentos dos recursos que o requerente interpôs.
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A Srª. Juíza visada respondeu nos termos constantes de fls. 740 que aqui se dão por reproduzidos, concluindo não haver fundamento para o incidente de recusa.
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II – O DIREITO
A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade” (artigo 43º n.º 1 do C.P.P.).
O incidente da recusa apresenta-se, assim, como um expediente que visa impedir a intervenção de um juiz em determinado processo quando existam razões sérias e graves suscetíveis de gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, sendo que esta é uma exigência específica de uma decisão justa, despida de quaisquer preconceitos ou prejuízos em relação à matéria a decidir ou em relação às pessoas afetadas pela decisão. Relembre-se que, já na Antiguidade, se dizia, atribuindo-se a expressão a Sócrates que “quatro características deve ter um juiz: ouvir cortesmente, responder sabiamente, ponderar prudentemente e decidir com imparcialidade”.
A lei não define o que deve entender-se por motivo sério e grave, mas deixa claro que ele terá de ser adequado a “gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade”, isto é, a seriedade e gravidade das razões invocadas para fundamentar a desconfiança sobre a imparcialidade do juiz terão que ser apreciadas e valoradas à luz do senso e da experiência comuns, a fim de apurar se há justificações objetivas para o incidente de recusa[1].
Como sublinhou o Tribunal Constitucional, citando Ireneu Barreto[2] “A imparcialidade do juiz pode ser vista de dois modos, numa aproximação subjetiva ou objetiva. Na perspetiva subjetiva, importa conhecer o que o juiz pensava no seu foro íntimo em determinada circunstância; esta imparcialidade presume-se até prova em contrário. Mas esta garantia é insuficiente; necessita-se de uma imparcialidade objetiva que dissipe todas as dúvidas ou reservas, porquanto mesmo as aparências podem ter importância de acordo com o adágio do direito inglês justice must not only be done; it must also be seen to be done. Deve ser recusado todo o juiz de quem se possa temer uma falta de imparcialidade, para preservar a confiança que, numa sociedade democrática, os tribunais devem oferecer aos cidadãos.”[3]
Nos artigos 39º a 47º, o C.P.Penal regula o essencial dos pressupostos e regime dos impedimentos, recusas e escusas em processo penal, enquanto garantias da imparcialidade do juiz, acolhendo um sistema essencialmente bipartido das garantias de imparcialidade, na medida em que prevê por um lado causas de impedimento (artigos 39º a 42º) e, por outro, os fundamentos de recusa e escusa (artigos 43º a 45º).
As causas de impedimento (arts 39º e 40º, CPP) constituem um conjunto de «proibições» absolutas[4] de o juiz praticar determinada função, de funcionamento automático, limitando-se o juiz a declarar-se impedido no processo.
Por contraponto, os artigos 43º a 45º regulam as «proibições» relativas inerentes à recusa e escusa acolhendo uma cláusula geral – poder ser considerada motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre imparcialidade do juiz – que permite avaliar em concreto os motivos invocados pelo requerente do incidente, seja ele o MP, arguido, assistente ou partes civis, no que respeita à recusa, e pelo próprio juiz, quanto à escusa. Os impedimentos (atualmente previstos no art. 39º e 40º CPP) visam “… garantir a imparcialidade dos juízes contra as influências que o legislador entende afetá-la sempre”[5], enquanto a recusa ou escusa acautelam as situações concretas que podem afetar aquela imparcialidade, mas não a afetam necessariamente, funcionando, pois, ope judicis.
Como bem sintetiza Mouraz Lopes, “ … na suspeição é a possibilidade ou o temor que determinado facto pode constituir para a imparcialidade do juiz, no caso concreto, que está em causa. É a verificação de uma condição de incompatibilidade num determinado caso concreto, e só neste, que não atinge o grau de desconfiança ao sistema para ser suportado por um motivo de impedimento, que está em causa, quer na escusa, quer na recusa”[6].
Em todo o caso, para além da sua dimensão subjetiva, sob a forma de suspeita de que no seu íntimo o juiz possa ter um interesse pessoal na causa ou um preconceito sobre o mérito da mesma, relacionado ou não com a pessoa de algum dos outros intervenientes processuais, a lei apela igualmente e de forma decisiva à dimensão objetiva da imparcialidade ao fazer depender a recusa da adequação do motivo invocado para gerar desconfiança.
Isto é, a recusa ou escusa será justificada se do ponto de vista do cidadão comum, enquanto critério de decisão essencialmente normativo que pode não coincidir com a perspetiva do queixoso ou do juiz escusando, a conduta do juiz constituir motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
Para além das dimensões da imparcialidade ora referidas, importa ainda à definição do âmbito e alcance da cláusula geral de recusa (e escusa) prevista no art. 43º nº1 do CPP, considerar quais os aspetos nucleares ou essenciais da imparcialidade que se pretendem salvaguardar com as garantias legalmente estabelecidas para sua proteção, incluindo o incidente de recusa, para melhor procurar um critério operativo de decisão.
Fala-se a este respeito de equidistância em concreto, de acordo com a qual o juiz é imparcial se para além de “…distinto [alteridade] e distante das partes [equidistante], está constantemente disponível a pronunciar-se sobre o mérito da causa somente sobre a base da prova legitimamente adquirida”[7], pois o não comprometimento do juiz antes do momento da decisão final tomada após a produção das provas e da cabal discussão da causa em todas as suas vertentes é requisito fundamental à legitimação da decisão a proferir. A conduta do juiz escusando ou recusando há-de, pois, ser perspetivada a esta luz. Se da mesma resulta que o juiz pode ter formado uma convicção sobre a culpabilidade do arguido antes do momento próprio, ou se, em todo o caso, a mesma conduta ou relacionamento pessoal é suscetível de fazer crer à generalidade das pessoas que existe motivo sério e grave para desconfiar que pode ter decidido ou que pode vir a decidir a causa de forma diversa da que resulta das provas produzidas e da discussão da causa, o juiz deve ser recusado ou escusado.[8]
O entendimento unânime nos tribunais é de que a seriedade e gravidade do motivo invocado causador do sentimento de desconfiança sobre a imparcialidade do julgador só são suscetíveis de conduzir à recusa quando objetivamente consideradas.
No caso em apreço, o recusante deduz o incidente invocando “duas denúncias que apresentou contra a Srª. Juíza requerida na Procuradoria Distrital do Porto imputando-lhe a prática de crimes de denegação de justiça, favorecimento pessoal e prevaricação e imputando ainda à requerida a prática de atos dolosos, de cariz persecutório que atentam contra o dever de imparcialidade”.
Contudo, como resulta dos autos e o próprio requerente admite, já interpôs recurso das decisões interlocutórias proferidas pela Srª. Juíza recusada.
Ora, como se disse, a seriedade e gravidade do motivo causador do sentimento de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz só são suscetíveis de conduzir à recusa do mesmo quando objetivamente consideradas, não bastando um puro convencimento subjetivo por parte de um dos sujeitos processuais para que se tenha por verificada a suspeição, e também não basta a constatação de qualquer motivo aparente, necessário é que tal motivo seja objetivo e mais que isso, que seja grave e sério.
Perscrutada a motivação do requerente não se vislumbra a existência de tal motivo objetivo, grave e sério, capaz de gerar desconfiança sobre a imparcialidade da Srª. Juíza visada, uma vez que surge aos olhos do arguido requerente apenas e tão só que a requerida pratica atos dolosos de cariz persecutório.
É certo que “não tipifica a lei quais sejam os casos que justificariam tal juízo de suspeição, mas tratar-se-á de factos objetivos e exteriorizados, os quais porque respeitantes (i) a situações pessoais, atinentes ao magistrado (ii) a relações sociais ou familiares que o envolvam (iii) a situações de tipo ideológico ou filosófico que funcionem como preconceitos quanto aos factos em análise (iv) ou a situações do foro psíquico, ainda que não patológico, possam colidir com o auto domínio ou ponderação da sua intervenção processual, enfim com a serenidade isenta e descomprometida que é apanágio da arte de julgar”[9].
Como se escreveu no Ac. da Rel. de Évora, de 05.12.2000[10], traduzindo entendimento pacífico[11], “O motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador, há-de resultar de objetiva justificação, avaliando as circunstâncias invocadas pelo requerente, não pelo convencimento subjetivo deste, mas pela valoração objetiva das mesmas circunstâncias, a partir do senso e experiência comuns, conforme juízo do cidadão de formação média da comunidade em que se insere o julgador; o que importa é, pois, determinar se um cidadão médio, representativo da comunidade, pode, fundadamente, suspeitar que o juiz, influenciado pelo facto invocado deixe de ser imparcial e injustamente o prejudique.”
Como se assinala no Ac do STJ de 27-4-2005 (proc.º n.º 05P909, rel. Cons.º Simas Santos, in www.dgsi.pt), é, pois, “imprescindível, a ocorrência de um motivo sério e grave, do qual ou no qual resulte inequivocamente um estado de forte verosimilhança (desconfiança) sobre a imparcialidade do juiz (propósito de favorecimento de certo sujeito processual em detrimento de outro), a avaliar objetivamente.”
Não basta, pois, a simples discordância jurídica em relação aos atos processuais praticados por um juiz, que podem conduzir à impugnação processual; não basta um puro convencimento subjetivo por parte de um dos sujeitos processuais para que se verifique a suspeição, tendo de haver uma especial exigência quanto à objetiva gravidade da invocada causa de suspeição, pois do uso indevido da recusa resulta a lesão do princípio constitucional do juiz natural, ao afastar o juiz por qualquer motivo fútil. Por isso é que, determinados atos ou determinados procedimentos (quer adjetivos, quer substantivos) só podem relevar para a legitimidade da recusa que se suscite, se neles, por eles ou através deles for possível aperceber inequivocamente ­um propósito de favorecimento de certo sujeito processual em detrimento de outro ou um prejuízo relativamente ao recusante.
Como se realça no Ac. R. Guimarães de 16.03.2009[12] “As meras discordâncias jurídicas com os atos processuais praticados ou com a sua ortodoxia, a não se revelar presciente, através deles, ofensa premeditada das garantias de imparcialidade, só por via de recurso podem e devem ser manifestadas e não através de petição de recusa.”
O requerente limitou-se a invocar “a prática de atos dolosos de cariz persecutório”, mas não demonstra minimamente como é que a recusa de extinção do procedimento criminal nos termos do artº 116º e 330º nº 2 do C.P.P., por falta injustificada da assistente na audiência resulta em motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade da Srª. Juíza recusada em relação à pessoa concreta do arguido requerente.
Refira-se, além do mais que, se a apresentação de denúncias-crime fossem o bastante para se suscitar a questão da imparcialidade dos juízes, poderíamos estar perante um intolerável meio de pressão sobre o juiz natural de um processo ou até sobre o juiz natural de todos os processos que um advogado ou arguido tivesse em determinado tribunal (ou, na vertente oposta, com um pedido de escusa em todos os processos que um determinado juiz tivesse com o mesmo advogado).
Por isso, só em casos muito excecionais - até porque advogados e juízes são profissionais do foro e agem necessariamente com toda a seriedade e imparcialidade - deve ser deferido um pedido de recusa ou de escusa com base na existência de simples participações crime ou recursos interpostos, como é o caso dos autos.
Por isso, ainda que se reconheça a delicadeza da situação e a posição menos cómoda e até algo desagradável em que se encontram o Meritíssima Juíza e o requerente, não se vê em que medida está posta em causa a imparcialidade daquela e muito menos que estejamos perante uma situação em que deva ser preterido o princípio do juiz natural.
O incidente deduzido mostra-se, por isso, manifestamente infundado, pelo que terá de improceder.
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III – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em recusar, por manifestamente infundado, o pedido de recusa formulado pelo arguido C….
Custas pelo requerente fixando-se a taxa de justiça em 3 UC’s, a que acrescerão ainda 6 UC’s, nos termos do artº 45º nº 7 do C.P.P.
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Porto, 12 de Outubro de 2016
(Elaborado pela relatora e revisto pelos subscritores)
Eduarda Lobo
Castela Rio
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[1] V., neste sentido, Ac. R. Coimbra de 10.07.1996, in CJ, Tomo IV, pág. 62 e 63; Ac. STJ de 06.11.1996, in CJ, III, pág. 187; Ac. STJ de 16.05.2002, proc. nº 01P3914, in www.dgsi.pt (Cons. Simas Santos).
[2] In Notas para um Processo Equitativo, Análise do Artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, à Luz da Jurisprudência da Comissão e do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, in Documentação e Direito Comparado nºs. 49/50, p. 114,115.
[3] V. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 935/96 de 10 de Julho, disponível em www.dgsi.pt
[4] V. José Mouraz Lopes, In A Tutela da Imparcialidade Endoprocessual No Processo Penal Português, STVDIA IVRIDICA-83, Coimbra Editora-2005, pág 96.
[5] Cfr. Luís Osório, Comentário ao Código do processo Penal Português II, Coimbra Editora-1932, p. 233
[6] Cfr. ob. cit., pág. 100.
[7] Cfr Mouraz Lopes, ob, cit, págs. 88-90 e 185.
[8] V. neste sentido, Ac. R. Évora de 08.04.2010, Des. António João Latas.
[9] Cfr. José António Barreiros, In Sistema e Estrutura do Processo Penal Português, Lisboa, 1997, vol. II, pág. 46
[10] In CJ, Ano XXV, Tomo 5, pág. 284.
[11] Cfr. Ac. Rel. Coimbra, de 10.07.96, Col. de Jur., ano XXI, tomo 4, pág. 62 e o Ac. da Rel. de Guimarães de 20.10.2008, proc.º n.º 1400/08-2, rel. Anselmo Lopes, in www.dgsi.pt
[12] Relatado pelo Des. Cruz Bucho, e disponível em www.dgsi.pt; v., neste sentido, o Ac.do STJ de 27.05.1999, proc. n.º 323/99.